“Ao lutar contra as sociedades menos desenvolvidas, as mais desenvolvidas sempre descobriram que levam sua maior vantagem na falta de unidade nas fileiras inimigas”
Ludwig von Mises, Socialism, p. 273
A intervenção do governo americano no Iraque, como bem ensinam as teorias sobre a intervenção do estado, não tinha como dar certo. Não apenas nada saiu como o planejado, como também os custos em termos de vidas perdidas e em termos financeiros foram estarrecedores.
Para piorar, e também como acontece em todas as intervenções governamentais, ocorreu no Iraque uma consequência não-premeditada do intervencionismo: o esfacelamento da região levou à ascensão dos brutais terroristas do Estado Islâmico, organização também conhecido pela sigla ISIS (Islamic State of Iraq and Syria), cuja autoproclamada intenção é criar um califado na região.
O surgimento dessa organização terrorista serviu para criar um consenso político onde antes não havia: EUA, Europa, Jordânia e Arábia Saudita juntaram esforços com Rússia, Afeganistão, Nigéria, Paquistão, Talibã, Al-Qaeda e Hezbollah para combater os terroristas do ISIS.
Direita e esquerda parecem concordar com a necessidade de eliminar essa organização terrorista, a qual é vista como a maior ameaça para a humanidade. Mesmo pessoas que haviam se posicionado firmemente contra a guerra no Iraque passaram a assumir uma postura de que “desta vez é diferente”, e que o ISIS é de fato uma organização que tem de ser combatida pelos governos, pois representa uma ameaça global.
Com efeito, é sim bem possível que desta vez seja diferente. As bárbaras ações dos membros do Estado Islâmico demonstram uma até então impensável brutalidade, a qual é difícil de ser ignorada.
Dado que é impossível, este artigo não tem a pretensão de afirmar se tais pessoas estão, do ponto de vista da política externa, certas ou erradas em sua avaliação sobre o ISIS ser a maior ameaça para a humanidade. Com efeito, este artigo não tem a pretensão de fazer uma análise de assuntos relacionadas a política externa. Devo dizer abertamente que nada do que será escrito aqui deve ser visto como uma declaração de conhecimento sobre especificidades do Estado Islâmico, sobre quão poderosa de fato é essa organização, e se ela representa algo a ser realmente temido, ao contrário de Saddam Hussein — que, olhando em retrospecto, parecia não ser.
Este artigo terá, no entanto, a pretensão de fazer uma análise da situação exclusivamente sob um ponto de vista econômico. Mais especificamente, este artigo tentará abordar a suposta ameaça do Estado Islâmico por meio das idéias do grande pensador econômico austríaco, Ludwig von Mises. O palpite é que o ISIS não teria amedrontado Mises.
E o ISIS não teria intimidado Mises porque tal organização surgiu e cresceu exatamente naquele tipo de sociedade “menos desenvolvida” à qual Mises se referiu como sendo não-ameaçadora em seu clássico livro Socialism.
Sem em nenhum momento tentar minimizar os horrores dos atentados de 11 de setembro, as ações repugnantes do ISIS, ou a capacidade de grupos terroristas ou extremistas fazerem novos atentados naquele que é considerado o símbolo máximo do mundo desenvolvido (os EUA), é justo supor que Mises ficaria um tanto espantado com todo esse estardalhaço feito em relação ao ISIS. Afinal, tal organização não surgiu e não foi formada dentro de nenhum país minimamente sofisticado ou desenvolvido.
A realidade é que essa organização — que conseguiu fazer com que esquerda e direita se unissem em prol de uma reação musculosa — nasceu em uma região do mundo que: a) é uma das menos produtivas economicamente, b) não criou um único bem de consumo desejado pelos consumidores do mundo (sim, ali há o recurso natural do petróleo, mas riqueza gerada pelo petróleo é majoritariamente uma criação de engenhosidade ocidental), c) não possui uma única universidade que tenha alguma reputação. Ou seja, é uma região hoje habitada por pessoas economicamente atrasadas, pouco produtivas e sem engenhosidade.
Não obstante, todos estão temendo o ISIS?
Ainda mais incompreensíveis são as reportagens sobre essa organização. Uma recente matéria de capa do The Wall Street Journal tinha a seguinte manchete: “O Estado Islâmico e sua economia baseada na extorsão”. A reportagem explicou que o ISIS é uma organização que se financia por meio da “extração coerciva de tributos de uma população de 8 milhões de pessoas”, e também consegue levantar fundos por meios de “atividades criminosas e terroristas”.
Certo. Então quer dizer que um grupo que se financia por meio de espoliação de indivíduos que não são ricos nem produtivos representa uma ameaça para todo o mundo capitalista, desenvolvido e civilizado?
Uma coisa é você ter uma organização que tributa (de maneira previsível) centenas de milhões de indivíduos extremamente produtivos e ricos, como é o caso do governo americano. Essa, sim, é uma organização a ser temida. Outra coisa, completamente distinta, é você ter um grupo terrorista que sobrevive da espoliação violenta de indivíduos pobres e nada produtivos. Pode esse grupo representar uma ameaça para o mundo rico e desenvolvido?
Mises, muito provavelmente, estaria fazendo escárnio do atual consenso dos governos mundiais em relação ao ISIS exatamente porque toda a base da existência do ISIS é o roubo e a coerção violenta de indivíduos pobres e pouco produtivos. Tais fundamentos não têm como durar para sempre. Como ele escreveu em Socialism, “Toda a civilização ainda existe porque os homens foram bem-sucedidos em reagir aos ataques dos redistributivistas”.
O mundo rico e desenvolvido prosperou exatamente porque conseguiu se manter relativamente livre. Já uma entidade terrorista que se financia por meio do esbulho de pessoas pobres e pouco produtivas deve ser vista como uma ameaça irrefreável para o mundo?
O que é curioso nisso tudo é ver como vários membros da direita estão caindo nessa narrativa e se contradizendo fragorosamente. Embora tais pessoas digam, corretamente, que baixos impostos e menos barreiras regulatórias irão gerar mais riqueza e mais crescimento econômico, essas mesmas pessoas, paradoxalmente, passam a acreditar que políticas de redistribuição forçosa de renda são eficazes em criar exuberância e poderio avassalador em uma região pobre do Oriente Médio. Não é irônico?
Ainda mais interessantes são os relatos de quão habilidosos são os terroristas do ISIS. Quem ler a supracitada matéria do jornal sem um olhar mais crítico irá ficar com a impressão de que o ISIS é gerido por uma equipe de consultores da McKinsey e não por militantes radicais. Segundo a reportagem, “os radicais do grupo administram um metódico sistema de extorsão sobre o comércio, cobram taxas sobre o uso do transporte público, e impõem pagamentos de proteção a cristãos e outras minorias religiosas que optaram por viver sob o comando dos militantes em vez de fugir”.
É possível tal cenário gerar um crescimento vibrante em algum lugar do mundo? Muito menos em um local pobre e pouco produtivo, e a lógica econômica sugere que o ISIS não será capaz de alterar essa realidade.
Há quem diga que as receitas do petróleo podem estar financiando o ISIS. Se isso for verdade, então o melhor que o governo americano poderia fazer é adotar uma política de valorização do dólar, o que derrubaria os preços do petróleo. Com o dólar forte e os preços do petróleo em queda, as receitas obtidas com a venda dos barris de petróleo cairiam acentuadamente e os produtores de petróleo do Oriente Médio ficariam sufocados. Isso reduziria os valores obtidos pelas extorsões do ISIS.
No que mais, se a qualidade intelectual e administrativa dos líderes políticos dos países ricos e avançados já não é nada impressionante, como deve ser então a qualidade dos radicais que lideram o ISIS? Não é necessário ser nenhum especialista em política externa para deduzir que provavelmente não há uma coleção de Thomas Jeffersons e George Washingtons no alto escalão dessa entidade que está apavorando o mundo.
Se a classe política de qualquer país minimamente civilizado raramente concorda entre si (a suposta ameaça representada pelo ISIS é um raro exemplo de consenso) e as rixas são constantes, por que então deveríamos imaginar que as atividades de uma organização criminosa são definidas por um competente, calmo e estudado consenso do seu alto escalão, de modo que uma inação agora causaria massacres nas cidades ocidentais?
De novo, pode até ser que dessa vez seja diferente, e de fato o ISIS seja uma exceção. Esse artigo, como dito, não pretende dar aulas de política externa. Entretanto, a mais básica lógica econômica sugere algum ceticismo quanto ao real poder do ISIS em escala global. Com tempo, ensina a lógica econômica, organizações que se baseiam nesse tipo de arranjo se ramificam e se esfacelam.
Como explicou Mises em Socialism, “Apenas temporariamente podem aquelas nações que possuem uma baixa organização fazer grandes empreendimentos militares. A desunião interna sempre atuou para dispersar seus exércitos muito rapidamente.”
Adicionalmente, Mises também afirmou que “Sociedades mais desenvolvidas conseguem alcançar uma maior riqueza natural do que as menos desenvolvidas; consequentemente, elas têm mais recursos e capacidade para preservar seus membros da miséria e da pobreza. Elas também são mais bem equipadas para defender seus membros de eventuais inimigos” (ênfase minha).
Infelizmente, Mises não está entre nós para participar das discussões sobre o ISIS, mas seus escritos sugerem que ele teria um olhar cético sobre todo o estardalhaço a respeito dessa mais recente ameaça terrorista. Repetindo: pode ser que, de fato, dessa vez seja diferente. Mas, se isso ocorrer, então toda a lógica econômica estará refutada.