Alguns liberais antipetistas ficam desconcertados quando confrontados com o seguinte desafio: se o governo Lula está presidindo sobre o maior estado da história brasileira – tanto em carga tributária quanto em gastos, ambos em relação ao PIB -, por que as indústrias e várias empresas tiveram lucros seguidos (excetuando-se o período recessivo)?
E isso não ocorre apenas com as grandes empresas, que têm conexões com o estado: é bem provável que os donos daquele restaurante ou daquela padaria na esquina da sua rua também estejam indo bem. A enorme carga tributária já não deveria ter falido esses pequenos? Logo, seria o governo Lula um governo liberal disfarçado em retórica socialista?
Não, não seria. O que ocorre é um fenômeno perfeitamente explicável pela teoria econômica. Pode-se dizer que seria estranho se não ocorresse. Um estado inchado, que tributa e gasta muito, e que frequentemente incorre em déficits orçamentários (receitas menores que as despesas totais, incluindo juros), faz com que os lucros empresariais sejam altos. Mais ainda: faz com que os salários do setor privado cresçam em um ritmo menor do que os lucros das empresas.
Consequentemente, sob o atual arranjo brasileiro, os empresários estão obtendo bons lucros, mas os salários dos trabalhadores do setor privado seguem estagnados ou crescendo a um ritmo muito menor do que o crescimento dos lucros.
E isso traz consequências nefastas, como veremos. Mas antes, um pouco de teoria.
Salários
Como se sabe, o governo brasileiro constantemente gasta mais do que arrecada – isto é, possui déficits nominais constantes. Parte desse déficit é financiado por meio da expansão monetária praticada pelo Banco Central (e explicada com mais detalhes aqui). Fora esse artifício, o governo obtém suas receitas tanto por meio de impostos quanto por meio da venda de títulos do Tesouro.
Tanto os impostos quanto os títulos são financiados por pessoas físicas e empresas que pagam os impostos e compram os títulos com o dinheiro que já possuem e que fazia parte de suas poupanças. Se o governo não estivesse praticando déficits, se ele não estivesse vendendo seus títulos e não estivesse cobrando tantos impostos, as empresas estariam utilizando sua poupança para expandir seu capital físico, comprar mais bens de capital e pagar melhores salários. De modo semelhante, se os indivíduos não tivessem a opção de investir em títulos do Tesouro – um investimento seguro e cujo retorno advém dos impostos pagos por terceiros -, eles teriam de investir nessas empresas, o que facilitaria a expansão delas.
Como esse processo não acontece – ou acontece em escala muito menor do que a desejada -, a expansão salarial torna-se impossível, pois, repetindo, a poupança que financiaria essa expansão é desviada para pagar impostos e para financiar os déficits do governo. Assim, os salários do sistema econômico como um todo são menores por causa dos déficits e tributos governamentais.
É verdade que o governo também paga salários. Mas, ao menos enquanto ainda não há uma sovietização completa da economia brasileira, o volume total de salários que ele paga é menor que aquele pago pelas empresas – grandes, médias e pequenas. Assim, enquanto os aumentos salariais que o governo dá para seus funcionários – aumentos esses financiados por impostos e venda de títulos – forem menores que os aumentos salariais que as empresas deixaram de dar a seus funcionários porque elas tiveram de desviar parte de seu capital para financiar o governo, a massa salarial total da economia foi reduzida.
Em resumo: os impostos e os déficits governamentais absorvem poupança e capital que poderia ser utilizada por empresas para financiar suas expansões e o consequente aumento salarial que isso traria para seus funcionários. Ao desviar esses recursos para si, o governo faz com que seus empregados e dependentes possam ter rendimentos maiores. Isso faz com que aqueles que estão no governo tenham rendimentos maiores do que os assalariados do setor privado. Tal arranjo, no geral, faz com que a massa salarial total da economia seja menor ou muito aquém do seu potencial.
Não há novidade alguma no que foi dito acima. Como já mostramos em outros artigos, enquanto que os salários do setor público seguem crescendo, os salários do setor privado seguem estagnados.
Todavia, além dessa redução na massa salarial total do sistema econômico, um outro efeito dos déficits orçamentários é o aumento na quantidade agregada – isto é, total – dos lucros empresariais. Eis o porquê.
Lucros
As empresas arrumam dinheiro para financiar a compra de bens de capital e para pagar salários. O governo arruma dinheiro para comprar bens e serviços, pagar seus funcionalismo e prover assistencialismo.
Quer ocorra um ou outro, a receita total das empresas na economia será praticamente a mesma. Isso porque um real da venda de um bem para uma empresa privada e um real da venda de um bem para o governo ainda continua sendo um real de receita de vendas. Um real da venda de um bem para um empregado de uma empresa privada ou um real da venda de um bem para um funcionário público (ativo ou aposentado) ainda continua sendo um real de receita de vendas. Por fim, um real da venda de um bem para alguém que está no Bolsa-Família equivale à mesma receita de venda que um real gasto por alguém que suou para consegui-lo.
Mas aqui vem a diferença crucial: os reais que são gastos por empresas privadas na compra de bens de capital e no pagamento de salários são contabilizados como custos de produção. Para se calcular os lucros, esses custos de produção são subtraídos das receitas de venda. Na economia como um todo, o lucro agregado é o resultado dessa subtração.
Como os impostos e déficits do governo desviam para si os fundos que seriam utilizados pelas empresas para comprar mais bens de capital e pagar melhores salários, a consequência é a redução da magnitude dos custos de produção na economia como um todo e um correspondente aumento no lucro agregado do sistema econômico.
Os custos refletem as despesas das empresas. Se as despesas são menores, os custos serão menores. A redução nos custos de produção aumenta os lucros de modo equivalente, pois, como foi mostrado, a receita total de vendas no sistema econômico é a mesma em ambos os casos; é a mesma com ou sem os déficits do governo. (Vale enfatizar: a receita total é a mesma; o que é afetada é a criação de riqueza, como veremos abaixo). Se a receita agregada de vendas é a mesma, uma redução nos custos agregados significa lucros equivalentemente maiores.
Assim, os déficits orçamentários do governo explicam parcialmente o fato de os lucros das empresas brasileiras estarem subindo mais do que os salários.
Consequências
É óbvio que o fato de empresas estarem tendo lucros é ótimo. Lucros permitem mais investimentos, que por sua vez permitem mais riqueza, mais abundância, mais poder de compra e melhores salários.
Porém, quando os lucros são aumentados da forma vista acima, não há motivo algum para regozijo. O lucro aumentou em termos monetários, mas isso foi consequência do fato de os gastos com bens de capital terem sido reduzidos. Se há menos bens de capital, há menos maquinário sendo utilizado para a produção de mais riqueza.
Como explicado nesse artigo,
Em uma economia de mercado, o padrão de vida só irá aumentar se houver acúmulo de capital (maquinários, ferramentas, equipamentos de escritórios e afins). Tal acúmulo permite que a mão-de-obra seja mais produtiva, o que consequentemente resulta em maior produtividade por trabalhador. Essa maior produtividade gera uma maior abundância de bens de consumo. E essa maior abundância faz com que o preço de cada bem seja menor (gerando um aumento real dos salários), o que permite um aumento do consumo e do período de lazer, principalmente para as camadas mais pobres da população.
Para que haja um maior padrão de vida é preciso haver uma abundância de bens consumo, e essa abundância só é gerada se houver um aumento do capital per capita do país.
Quando o governo tributa ou quando ele incorre em déficits e absorve poupança, ele impede que essa poupança seja utilizada no investimento e na produção bens (riqueza) futuros. Essa poupança é desviada para o consumo do governo e para o consumo daqueles para quem o governo dá dinheiro.
A consequência inevitável de tudo isso é que a produtividade no sistema econômico será menor do que poderia ser. E como a produção será menor do que poderia ser, os preços serão maiores, o que faz com que os salários reais sejam menores. E, por ironia, enquanto que, contabilmente, os custos de produção na economia como um todo estão menores, os custos de produção por unidade serão maiores pelo fato de haver menos bens de capital disponíveis para o processo de produção.
Para resumir: impostos e déficits governamentais impedem o aumento nominal dos salários do setor privado, aumentam os lucros monetários e diminuem os salários reais, pois aumentam os custos unitários de produção e, consequentemente, os preços.
No Brasil
Entendida a teoria, fica claro o que se passa no Brasil. Como o governo está absorvendo poupança e gastando-a cada vez mais, a receita total da economia segue inalterada, mas os lucros contábeis das empresas sobem, pois elas deixam de investir.
O fato de as empresas terem de pagar impostos para sustentar funcionários do governo atrapalha seus planos de expansão, mas não necessariamente atrapalha suas receitas. O dono do empreendimento continua auferindo lucros, mas seus empregados permanecem com salários estagnados. Assim, o dono da padaria e do restaurante a quilo não estão interessados se seus clientes são funcionários públicos ou trabalham na iniciativa privada. Desde que ele esteja auferindo receitas (e a receita total da economia é mesma, independente de déficits e impostos), está tudo bem. E dependendo da região do país, se os funcionários públicos estão tendo aumentos, o empresário ganha com isso – afinal, terá clientes mais ricos. O fato de ser ele quem sustenta, por meio de seus impostos, esses funcionários públicos não o incomoda nem um pouco, desde que eles continuem consumindo seus produtos. O que ele não quer é perder esses clientes para a concorrência.
Na ocasião do Dia da Liberdade de Impostos, no dia 25 de maio deste ano, alguns líderes empresariais chegaram a dizer que não estavam protestando contra a carga tributária em si – sendo que alguns até chegaram a dizer que não ligariam de pagar mais impostos -, mas contra o desperdício e a malversação dos recursos desses impostos. Faz sentido. Eles sabem que boa parte dos impostos que pagam acabam voltando para eles próprios como forma de receita (afinal, o governo e os funcionários públicos são seus clientes). O ideal para eles seria que toda a carga tributária fosse remetida de volta. Mas isso só aconteceria se o governo não gastasse boa parte com corrupção. Daí o protesto contra a malversação.
Não tenho como provar o que vou dizer a seguir, mas o fato de líderes empresariais e entidades de classe não se organizarem para fazer protestos veementes contra a carga tributária (o impostômetro da Associação Comercial de São Paulo não incomoda ninguém), e nem ao menos se mobilizarem para movimentos de conscientização da população – como, por exemplo, discriminar nas notas fiscais qual a porcentagem de impostos embutida nos preços dos produtos -, é um forte indício de que eles sabem que um governo grande e deficitário não vai totalmente contra seus interesses.
Ademais, como explicado com mais detalhes aqui, impostos funcionam também como barreiras ao surgimento de novos concorrentes. Uma empresa já estabelecida em um determinado ramo já se adaptou aos impostos, ao passo que esses mesmo impostos impedem que pequenas empresas cresçam e que novas empresas surjam. Uma alta carga tributária, acompanhada de um emaranhado indecifrável de códigos tributários, serve como barreira de entrada no mercado, o que apenas ajuda as empresas já estabelecidas. Para estas, uma carga tributária, por mais que seja alta, é um preço válido a ser pago, pois garante que novas empresas fiquem afastadas e que a concorrência seja mínima.
Em um livre mercado, todos aqueles envolvidos na produção de bens e serviços tentam a todo o momento encontrar métodos de produção que seja menos custosos, o que lhes permite aumentar seus lucros. Com o tempo, esses lucros acabam atraindo novos concorrentes. E essa concorrência elimina os altos lucros e faz com que os baixos custos de produção tenham de ser repassados ao consumidor na forma de preços mais baixos. A contínua busca por lucros leva à descoberta e à implementação de novos métodos de produção ainda menos custosos, com o mesmo resultado acima. A consequência é uma queda progressiva nos preços reais de todos os produtos.
Mas se o governo entra em cena e impede esse processo – tributando e absorvendo poupança por meio de seus déficits -, quem se beneficia são os empresários já estabelecidos, e quem perde são os consumidores e os trabalhadores – os quais, em última instância, também são consumidores.
E é isso o que se vê no Brasil. As empresas seguem tendo bons lucros monetários, ao passo que seus empregados seguem sem desfrutar de boa parte dessa prosperidade. O governo e seus funcionários continuam absorvendo boa parte da poupança nacional e todo esse processo impede a formação de capital que permitiria um maior enriquecimento do país.
A divisão final fica assim:
1) Empresários lucram em termos nominais, mas ficam impedidos de fazer maiores investimentos. A expansão de suas empresas fica manietada e seus empregados ficam com salários estagnados ou crescendo muito menos que os lucros das empresas.
2) Esse arranjo impede uma maior abundância de bens, o que se traduz em preços mais altos e qualidade mais baixa.
3) Funcionários públicos desfrutam de altas salariais constantes. Embora isso lhes garanta amplo acesso aos bens produzidos, eles têm de se contentar com a baixa qualidade destes – embora possam comprar importados de qualidade mais alta.
4) Sem perspectivas de bons salários na iniciativa privada, os melhores cérebros acabam buscando o setor público. Inteligência e riqueza são desperdiçadas.
5) Algum buscam o empreendedorismo próprio, mas desanimam frente à carga tributária, às regulamentações e ao emaranhado burocrático. As empresas já estabelecidas agradecem a limitação da concorrência.
Logo, se você quiser enriquecer no Brasil por meios legais, há apenas duas opções: concurso público ou empreendedorismo. O primeiro é fácil e só exige que você tenha boa memória para decorar imbecilidades (o aspecto imoral de viver com o dinheiro alheio não será aqui abordado); o segundo exige muita paciência, perseverança e, principalmente, dinheiro – não é para preguiçosos. Vencidas as etapas burocráticas, regulatórias e tributárias, você tem grandes chances de se dar bem.
Agora, apenas como empregado, as perspectivas não são nada alvissareiras. E o culpado é justamente aquele a quem os prejudicados correm para pedir ajuda.
Seria despiciendo dizer que reduzir impostos e gastos governamentais já seria um grande avanço para a criação de riquezas. Mas tal medida – por ser algo que beneficia de modo mais explícito “apenas” os assalariados da iniciativa privada – ninguém quer.