Quem vigia o vigilante?

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Marilena Chaui é uma escritora brasileira, autora do artigo “Uma ideologia perversa”, cuja crítica serve à compreensão da mística “justiça brasileira”.

O sentido através do qual Marilena Chaui concebe a ética enquanto ideologia se engrena sob os auspícios da ideia de dialética social. De qual forma? Prossigamos.

De fato, pode-se dizer que a ética confere ao homem, enquanto ser social, parâmetros de ação. O agir do indivíduo, então, faz-se socialmente aceitável à medida que ele se justifica eticamente, isto é, à medida que ele é taxado justo (bom ou reto) intersubjetivamente pelos demais indivíduos componentes da coletividade. A ética, portanto, orienta o indivíduo a um círculo relativamente ilimitado de possibilidades de ação dentro do qual o seu agir não entra em contradição com nenhum outro. No interior deste círculo, assim, cabe ao indivíduo, guiado por sua razão, arbitrar acerca de sua própria vida tomando a cadeia de decisões que considera ser a melhor no que se refere à consecução de sua própria felicidade. “A liberdade do homem termina onde começa a do outro”: coloca-se como um lema que põe o objetivo sumário da ética sob um molde retórico imediatamente digerível, formando uma espécie de bordão.

Afinal, esse é o papel dos bordões de modo geral, resumir determinadas normas sociais, as quais possuem em suas respectivas bases toda uma razão de ser fundada no modo pelo qual as coisas naturalmente operam.

À vista disso, enquanto a ética restringe o comportamento individual a um conjunto de ações não contraditórias à ordem social, a moral, no âmbito prático das coisas, inculca gradualmente no indivíduo uma tendência volitiva mediante vias definitivamente não controláveis. A moral opera na sociedade enquanto guardiã de um conjunto de fatos sociais, os quais se mostram ao indivíduo enquanto tais ao largo dos seus primeiros anos de vida, dia-a-dia, pouco-a-pouco, até moldá-lo comportamentalmente de modo a reproduzi-los.

Ora, embora o arbítrio humano seja irrepreensível, ele vê-se coordenável por intermédio de, por um lado, premiações e de, por outro, represálias. Por exemplo, quando uma criança espirra alto à mesa, são lançados a ela olhares de reprovação por parte de seus parentes e seus pais, praticamente de modo instintivo, certamente irão lhe advertir com rigor. Dessa forma, a criança, deparando-se com uma reação negativa ante o seu comportamento, sentirá tacitamente os efeitos negativos do seu ato, o que nela provocará consequentemente uma tendência à sua não repetição, ou seja, à sua remoção. Vê-se que, com isso, apesar de ainda estar sob o julgo do indivíduo a escolha de agir ou não de dada forma, o externo (isto é, o meio, o outrem, a comunidade na qual ele está inserido) inconscientemente delimita os moldes comportamentais aos quais ele deve encaixar-se se quiser ser bem-quisto socialmente. E, como é naturalmente preferível ao indivíduo conviver harmoniosamente com os demais, determina-se que a moral molda o indivíduo e, em última instância, por conseguinte, molda as tendências sociais.

Em vista disso, é imperativo tanto à ética quanto à moral efetuar categorizações. A ética, por destinar-se à determinação da ação justa, deve, também, determinar a injusta de modo a privá-la de coexistir com a justa e, assim, fazer reinar entre todos a dita liberdade. A eliminação dos comportamentos injustos configura, desse modo, um retorno à ética. A justiça, portanto, está substancialmente no prezar pragmático da ética. A justiça enquanto tal, assim, não pode possivelmente prescindir de força coativa, pois, como o homem responde a incentivos baseados em ganhos e perdas, a ação injusta humana vê-se efetivamente eliminável somente quando as perdas da sua prática são superiores aos seus benefícios. Portanto, as penas dadas às ações de cunho lesivo (isto é, de cunho antissocial), as quais atentam contra a liberdade doutros indivíduos, têm por intento fundamental desestimulá-las tanto quanto possível de modo a eliminar os atos injustos e estimular os justos, criando uma espécie de seleção natural das ações.

A moral, por sua vez, caminha pelo mesmo itinerário: aquele que não se submete aos valores externos é excluído dos âmbitos comunitários por ser considerado “estranho” ou “antiquado”.

Para Marilena, no entanto, essas duas categorias fundamentais do justo e do não-justo foram apropriadas pelos coordenadores da justiça de modo a servir à perversão deles. Afinal, cabe indagar: é a ética que se apropria da legislação para fazer-se valer ou são os legisladores que se apropriam da ética enquanto ideia para fazer valer os seus próprios interesses? A resposta que Marilena concede a tal indagação é: os legisladores se valem da ética enquanto ideia para operarem discricionariamente sob o espectro metafísico da justiça. Assim, aqueles encarregados do controle da mão legisladora encaixam na categoria do não-justo todos os entes contra os quais os seus interesses propriamente se lançam: os seus dissidentes ideológicos.

Sendo assim, o que, sob uma óptica crua e literalista, seria visto como um empreendimento autocrático, sob o espectro metafísico do retorno à ética, é visto meramente como o emprego da justiça.

Contraditoriamente, além de tudo, tem-se que a metafísica discursiva da ética normativa se retroalimenta. O que isso quer dizer? Embora o objetivo último do poder legislador seja o de ordenar a sociedade sob os parâmetros éticos e o de, supostamente, apartar-se maximamente da injustiça em prol do cenário místico da suma justiça, a ausência completa de injustiças, a legislação ganha as suas recargas diárias substantivamente à medida que as injustiças tomam espaço no tecido social, visto que é precisamente a existência delas que justifica a busca incessante e dramaticamente eterna pela justiça, ou seja, justifica, em última análise, o império do poder legislador (dito de outro modo, a ditadura dos legisladores, os quais, nesta ordem, assumem o papel de opressores).

A imagem do mal, sendo assim, tem de ser forte de modo a ser igualmente forte a busca pelo bem, ou a força opressora daqueles que coordenam autocraticamente a busca pelo bem. Recorda-se: mal (ou injustiça, ou amoralidade) enquanto categoria e bem (ou justiça, ou moralidade) enquanto cenário mitológico.

Portanto, não é do interesse do legislador apartar o mal, mas fortificá-lo. Qual motivo há para esperar o bem do legislador? Quem vigia o vigilante?

 

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