Tempo e ignorância – uma visão geral do subjetivismo da escola austríaca de economia

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FHayekPara a maioria dos economistas, subjetivismo significa quase que exclusivamente ou a teoria subjetiva do valor ou a idéia de que as teorias científicas, especialmente no campo humano, seriam pessoais e, portanto, não sujeitas a testes. Mas, segundo a tradição da Escola Austríaca de Economia, isto é falso, porque o subjetivismo de fato refere-se a uma pressuposição básica: a de que o conteúdo da mente humana – e, portanto, os processos de tomadas de decisão que caracterizam nossas escolhas ou ações – não são determinados rigidamente por eventos externos.

O subjetivismo assim concebido dá espaço para a criatividade e a autonomia das escolhas individuais e, portanto, deve estar subordinado ao individualismo metodológico, a visão de que os resultados do mercado como um todo devem ser explicados em termos dos atos de escolha individuais.

Assim, para os austríacos e para os subjetivistas em geral, a teoria econômica deve lidar, antes de qualquer outro pressuposto, com o complexo conjunto de fatores que explicam as escolhas e não com simples interações entre magnitudes objetivas.

Neste artigo procuramos enfatizar, tendo como pano de fundo essas considerações sobre o subjetivismo, a importância para a Teoria Econômica de dois fatores: o tempo, especialmente a forma como ele é concebido e a ignorância, entendida, na linha hayekiana, como resultante da insuficiência e da dispersão do conhecimento.

TEMPO E IGNORÂNCIA

A economia do mundo real – economy (e não economics) – pode ser definida, de acordo com a concepção austríaca, como “ação humana ao longo do tempo sob condições de incerteza genuína”. Parece intuitiva a idéia de que a autonomia relativa das escolhas individuais gera imperfeições nas previsões sobre as conseqüências futuras das escolhas feitas pelos agentes.

Ação humana é definida por Mises como qualquer ato voluntário praticado com o intuito de se passar de um estado menos satisfatório para um estado mais satisfatório. Toda ação, sendo por definição voluntária, é uma escolha e toda escolha acarreta consequências não apenas no momento em que é feita, mas em uma série de acontecimentos futuros interdependentes, que não têm como ser previstos no instante da escolha. Em outras palavras, uma ação acarreta um curso de ação, que pode ser permanentemente alterado no futuro, na medida em que for afetado por ações e por cursos de ações de outras escolhas feitas pelo próprio indivíduo ou por milhões de outros indivíduos.

Assim, quando um agente escolhe um determinado curso de ação, as conseqüências irão depender, em parte, dos cursos de ação que outros escolheram, estão escolhendo ou vão ainda escolher. Ora, se é muito difícil, para não dizermos impossível, por exemplo, sabermos quais foram, são e serão as escolhas passadas, presentes e futuras que milhões de outros indivíduos fizeram, estão fazendo neste momento ou farão no futuro, o que dizer então a respeito dos cursos de ação e das conseqüências dessas escolhas?  Por isso, parece inevitável a plausibilidade do argumento segundo o qual, em um mundo com decisões autônomas, o futuro não apenas é desconhecido (unknown), mas desconhecível (unknowable).

De fato, não há elementos no presente estado de nosso conhecimento que nos capacitem a prever o estado futuro, pois este é determinado por aquele; ora, se não temos como conhecer exatamente o presente, como seremos capazes de conhecer o futuro, que é determinado pelas escolhas no presente? Contudo, não podemos levar o subjetivismo às últimas consequências, porque nada impede o analista de, uma vez chegado o futuro, tentar explicá-lo ex-post pelo que aconteceu no passado. Na realidade, o subjetivismo extremado – o caleidoscópio – nos levaria à atitude extrema de rejeitar qualquer caráter científico para a Teoria Econômica.

Mas deve ser evidente que subjetivismo e ação humana sob condições de incerteza genuína são idéias (e fatos) inseparáveis!

Há duas  maneiras  complementares  de  conceituar  o desconhecimento do futuro:

(a) a concepção dinâmica do tempo (tempo real, ou subjetivo ou histórico);

(b) a noção de ignorância e seu corolário, a de incerteza genuína ou radical.

O TEMPO

Existem dois conceitos de tempo, cada um com três características básicas:

Tempo newtoniano (estático)

Essa concepção pode ser resumida no famoso “eixo do tempo”, concepção de Isaac Newton em que, quanto mais à direita estiverem os pontos, eles representarão valores mais “recentes” de uma dada variável e quanto mais à esquerda, mais “antigos”. Caracteriza-se por:

(a) homogeneidade: cada ponto é exatamente igual a todos os demais, a não ser por sua  posição  espacial:  com  isso, todos os pontos representativos do tempo  são  vazios  por  construção, o que significa dizer que o tempo não depende do seu conteúdo: ele passa sem que nada aconteça, pois é uma categoria  estática.

(b) continuidade matemática (divisibilidade contínua): cada instante do tempo é isolado dos demais. Se isso ocorresse no mundo real, os ajustamentos que caracterizam  o   processo de mercado deveriam se processar a velocidades infinitas e a  mobilidade dos  recursos econômicos deveria  ser  infinitamente alta, para que todo o processo ocorresse em um único instante. Não é por outra razão que a teoria convencional adota o expediente de considerar cada mudança como sendo exógena.

(c) inércia causal: o estado inicial do sistema deve conter tudo o que for necessário para produzir  as  mudanças;  o tempo não acrescenta, literalmente, nada. Ora, se todas as causas das mudanças  estivessem  presentes  no  instante  seminal   t0 , então para que esperar pelos resultados até t1 , t2 ,  etc.? Poderíamos, por exemplo, tomar agora a decisão de comprar um apartamento de x quartos, no bairro y, daqui a vinte anos, dois meses e quinze dias…

Tempo real (dinâmico)

Nesse conceito, atribuído ao filósofo francês Henri Bergson (1903), o tempo deixa de ser algo meramente correlacionado com a posição espacial que ocupa em um eixo e passa a ser considerado como um fluxo contínuo e permanente de novas experiências, fluxo esse  que não  está  no  tempo, mas que é o próprio tempo. Suas três características são:

(a) heterogeneidade: cada ponto do tempo é novo porque, por meio da memória, está ligado a pontos anteriores. A memória, além de ligar o passado ao presente, torna cada instante diferente dos demais. Mesmo quando um fenômeno qualquer ocorre “exatamente” como foi previsto, ele não será experimentado ou vivido exatamente como se imaginou, pois, quando foi feita a previsão, o ponto de vista era diferente do relevante ao ocorrer o fenômeno, porque a memória, ao incorporar a previsão, mudou a perspectiva do agente.

(b) continuidade dinâmica: analogia com a música, pois também considera que a estrutura dinâmica do tempo possui dois componentes: memória e antecipação (expectativa). Esses dois elementos geram a continuidade dinâmica, em que cada instante do tempo não é independente nem pode ser isolado dos demais. A continuidade dinâmica é a própria essência da concepção austríaca dos mercados como processos (e não como estados de equilíbrio). Na economia do mundo real tudo se passa como se estivéssemos permanentemente ouvindo uma canção desconhecida, que vai sendo descoberta a cada novo instante e sendo sucessivamente incorporada à memória e, também ininterruptamente, alterando a antecipação ou expectativa quanto ao futuro.

(c) eficácia causal: decorre da heterogeneidade. O simples passar do tempo é uma fonte permanente de novidades; já que a memória vai alterando as expectativas, o tempo passa a ser criativo e os mercados a serem vistos como processos de descoberta.

Infelizmente, a teoria da “mainstream”, apesar dos grandes progressos verificados nos últimos 70 anos, avançou muito pouco no que se refere ao tratamento dispensado ao fator tempo; as “inovações” teóricas nada mais têm feito do que estender o aparato dos métodos de maximização estática à maximização “dinâmica”. Por que as aspas?  Resposta: porque, nessas condições, o tempo é trabalhado em termos estáticos, isto é, admite-se a analogia newtoniana entre tempo e espaço – o “eixo do tempo”, em que “recente” e “anterior”, “novo” e “velho” são sempre identificados pelo fato de o fenômeno representado estar, respectivamente, mais à direita ou à esquerda no segmento de reta representativa do tempo.

Tal tratamento dispensado ao fator tempo leva-nos a admitir que, assim como um indivíduo pode alocar porções de espaço (terra) para certos propósitos, ele poderia também alocar porções de tempo para certas atividades. Assim, em princípio, tempo (estático) e perfeita previsibilidade são idéias compatíveis. Mas o mundo real é diferente.

Já o tempo dinâmico é visto como um fluxo de eventos que contém implicitamente a idéia de novidade, de aprendizado, de surpresa, de descoberta. Conforme o estoque de experiências cresce, as perspectivas individuais mudam e, assim, tanto o presente como o futuro vão sendo permanentemente afetados pelos fluxos contínuos de eventos, o que faz com que cada novo instante seja, por si só, uma nova perspectiva individual, o que torna impossível a previsibilidade perfeita.

Como todos os indivíduos são afetados similarmente e como as consequências de um curso de ação individual dependem do que outros indivíduos farão,  esta  concepção dinâmica do tempo altera os processos de tomada  de decisões. As escolhas no tempo real são, portanto, sempre feitas sem um conhecimento (determinístico ou estocástico) perfeito das suas conseqüências, o que explica, no nível social, o desenvolvimento das instituições como ordens espontâneas e não como resultantes do planejamento.

É exatamente esse crescimento do conhecimento, que se processa mediante as descobertas, a força endógena que impulsiona o sistema sem parar.

Há dois efeitos da adoção do conceito de tempo dinâmico:

(1º) ele é irreversível: ao nos movermos de um ponto para outro em uma “curva” de oferta ou demanda, não há volta possível.

(2º) ele também contém um processo de “evolução criativa”, de mudanças imprevistas, caracterizado por uma permanente sucessão de:

AÇÃO HUMANA (NO TEMPO)      NOVAS EXPERIÊNCIA     NOVOS CONHECIMENTOS

Não podemos deixar de prestar atenção ao fato de que o estado natural da economia no tempo é movimento e não repouso, já que, com as alterações do conhecimento, a própria economia se altera. Quando adotamos o conceito de tempo dinâmico, somos levados a rejeitar situações como o “ótimo de Pareto”, aquela elegante construção teórica que retrata uma situação de equilíbrio geral, em que nenhum agente pode melhorar sem que outro(s) necessariamente piore(m) em termos de satisfação.

A IGNORÂNCIA

Na tradição neoclássica antiga, conhecimento e previsão eram considerados como perfeitos (preços atuais e futuros, p. ex.); na teoria neoclássica moderna, são também admitidos como perfeitos, só que sob o ponto de vista estocástico (distribuição de preços correntes e estrutura que gerará os preços futuros).

Nessas condições, mesmo quando admitimos não conhecermos a distribuição completa de probabilidades, aceitamos implicitamente que ela existe sob alguma forma objetiva e que, portanto, como somos racionais, que pode ser aprendida gradualmente.

Talvez o artigo mais importante sobre a ignorância, entendida como imperfeição no conhecimento das condições de mercado, seja o famoso O Uso do Conhecimento na Sociedade, publicado por Hayek no início dos anos 40, em que o extraordinário economista alertava para o fato de que o conhecimento, tanto na Economia quanto nas ciências sociais em geral, apresenta duas características: (a) é incompleto, o que implica em incertezas não somente quanto ao futuro, mas também em relação ao presente e (b) encontra-se disperso, ou seja, está distribuído desigualmente entre os participantes do mercado.

Além disso, Hayek mostra no referido artigo que há dois tipos de conhecimento. O primeiro é, digamos, técnico, como, por exemplo, aquele que um PhD em Economia possui no seu campo de estudo. Já o segundo, que ele denomina de “conhecimento das circunstâncias de tempo e lugar”, é de natureza prática. Em resumo, para usarmos um exemplo simples, um professor de Economia, se for colocado atrás de um balcão de uma loja, terá – pelo menos durante algum tempo – enorme dificuldade para executar as tarefas exigidas de um bom balconista, pois não conhece as circunstâncias práticas que definem a atividade desse profissional. Da mesma forma, se o balconista for chamado para dar uma aula ou para proferir uma palestra ou escrever um artigo sobre Economia, também encontrará dificuldades, porque não tem o conhecimento técnico.

Porém, quem faz o mundo real “rodar”, quem faz efetivamente a economia funcionar, não é o professor, é aquele sujeito prático! Daí, aquela famosa frase de Mises: “good economics is basic economics“! Se não existisse essa separação entre conhecimento teórico e conhecimento prático, o planejamento central seria uma experiência bem sucedida, como frisou o próprio Hayek, já que, se todos soubessem como executar determinada tarefa, pouco importaria se quem a executasse fosse um PhD, ou um indivíduo sem estudos, mas dotado de grande prática. Mesmo assim, acrescento, em razão do caráter de subjetividade das escolhas individuais, os resultados atingidos seriam diferentes, uma vez que cada um tende a utilizar o seu conhecimento de maneira única, de acordo com as suas preferências individuais, que sempre contêm altas doses de subjetividade.

Assim, para os austríacos, a imperfeição do conhecimento ou ignorância não é algo que possa ser totalmente evitado, ou ignorado, ou eliminado; tampouco é um estado que possa ser assintoticamente eliminado por algum processo, uma vez que vivemos em um mundo em que o tempo é dinâmico e em que, portanto, as mudanças são imprevistas e a ignorância e os erros são inevitáveis.

A ignorância não pode e não deve ser transformada em uma variante do conhecimento, mediante expedientes analíticos.

CONCLUSÕES

Podemos agora sintetizar a crítica austríaca ao tratamento que a teoria econômica convencional dispensa ao tempo e à incerteza.

O approach neoclássico para a questão da incerteza não é compatível com a característica fundamental do subjetivismo, que é a da autonomia das escolhas individuais. Desenhar as incertezas em relação ao futuro como distribuições objetivas de probabilidades definidas em um conjunto amplo de eventos possíveis equivale a admitir que o futuro, por assim dizer, é apenas desconhecido, mas que pode vir a ser conhecido, já que, por suposição, ele existe e não depende das escolhas autônomas individuais. Isto equivale, em outras palavras, à abolição da própria autonomia que caracteriza a mente humana. Este é o grande problema dos modelos de equilíbrio geral, incluindo neles os modelos de “expectativas adaptativas” e os de “expectativas racionais”.

A procura de uma teoria de probabilidades “subjetiva” em algumas pesquisas de economistas, como Vernon Smith, por exemplo, representa sem dúvida um avanço, mas devemos enfatizar que esses trabalhos não consideram um aspecto da ignorância que não pode ser deixado de lado, que é a impossibilidade de listagem todos os resultados do conjunto de todos os experimentos possíveis. Sob o ponto de vista austríaco, o fato essencial é que não se trata apenas dessa impossibilidade, mas sim que o conjunto como um todo não pode ser demarcado. Portanto, a teoria subjetiva de probabilidades cobre o subjetivismo em sua forma estática, ao passo que o reconhecimento austríaco da impossibilidade de demarcação de todos os conjuntos possíveis considera o subjetivismo em sua dimensão dinâmica. Como ressaltam os austríacos Mario Rizzo e Gerald O´Driscoll Jr. no excelente livro The Economics of Time and Ignorance (Routledge, London, 1996), tempo real e ignorância encaixam-se como as peças de um quebra cabeças.

O subjetivismo tem implicações importantes para a teoria e as aplicações: as escolhas (ações) e, portanto, os mercados passam a ser vistos como processos de equilíbrio (e não mais como estados de equilíbrio, seja de concorrência perfeita, oligopólio, monopólio ou competição monopolista).

A teoria econômica deve preocupar-se com as forças determinantes do erro e da falta de coordenação e estas podem ser variações exógenas nos dados ou mudanças endógenas; o processo de mercado não tem fim.

Não existem equilíbrios estáveis, nem trajetórias de crescimento estáveis e a teoria deve afastar-se dos modelos de maximização matemática.

A interação dos cursos de ação individuais – ou seja, o próprio processo de mercado – é uma espécie de procedimento de descobertas (discovery procedure).

O planejamento, as políticas industriais e, em geral, o intervencionismo do Estado no mercado têm o efeito de privar a sociedade do conhecimento que ela terminaria obtendo naturalmente ao longo do tempo através do processo de mercado, bem como da habilidade de vencer as limitações do conhecimento individual, fatos que fazem claramente a ignorância aumentar.

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