I. INTERVENCIONISMO
Desde que os bolchevistas desistiram de realizar o ideal socialista de um sistema social imediato na Rússia e adotaram a Nova Política Econômica, o mundo inteiro tem apenas um sistema real de política econômica: intervencionismo. Alguns de seus seguidores e defensores consideram-no um sistema temporário que deve ser substituído mais cedo ou mais tarde por um outro sistema socialista. Todos os socialistas marxistas, inclusive os bolchevistas, juntamente com os socialistas democráticos de várias convicções, pertencem a este grupo. Outros acreditam que estamos convivendo com o intervencionismo como ordem econômica permanente. Mas, no momento, esta diferença de opinião sobre a duração da política do intervencionismo tem importância meramente acadêmica. Todos os seus seguidores e defensores concordam integralmente que essa seja, de fato, a política correta para as décadas vindouras, até mesmo para as próximas gerações. E todos concordam que o intervencionismo constitui uma política econômica que prevalecerá num futuro previsível.
O intervencionismo procura manter a propriedade privada dos meios de produção. No entanto, ordens autoritárias, especialmente proibições, restringem as ações dos proprietários. Se essas restrições fizerem com que todas as decisões importantes sejam tomadas de forma autoritária, se o motivo não é o lucro dos proprietários, capitalistas e empresários, mas razões de Estado, o que vai decidir como e o que deve ser produzido, teremos, então, o socialismo, mesmo que se continue a empregar a expressão “propriedade privada”. Othmar Spann está inteiramente certo quando diz que tal sistema é “um sistema de propriedade privada em sentido formal, mas socialismo na sua essência” [2]. A propriedade pública dos meios de produção nada mais é do que socialismo, ou comunismo.
Entretanto, o intervencionismo não pretende ir tão longe. Não procura eliminar a propriedade privada da produção, mas apenas limitá-la. Por um lado, considera a propriedade privada ilimitada prejudicial à sociedade, e, por outro, considera que uma ordem baseada apenas na propriedade pública não é totalmente viável, pelo menos por enquanto. Procura, portanto, criar uma terceira ordem: um sistema social intermediário entre a propriedade privada e a propriedade pública. Desta forma, procura evitar os “excessos” e males do capitalismo, mantendo, contudo, as vantagens da iniciativa e indústria privadas, que o socialismo não pode gerar.
Aqueles que são favoráveis a que a propriedade privada seja dirigida, regulada e controlada pelo estado e por outras instituições de cunho social fazem exigências idênticas às que sempre foram feitas por líderes políticos e pelas massas. Quando ainda não se conhecia a economia, e o homem ignorava que os preços das mercadorias não podem ser “estabelecidos” arbitrariamente, por serem rigorosamente determinados pela situação do mercado, os governos procuravam, por mecanismos de controle, regular a vida econômica. Foi a economia clássica que revelou que todas essas intervenções no funcionamento do mercado nunca conseguem atingir os objetivos que as autoridades almejam. Consequentemente, o antigo liberalismo, cujas políticas econômicas se fundamentaram em ensinamentos da economia clássica, rejeitou categoricamente todas essas intervenções. Laissez faire et laissez passer! Nem mesmo os socialistas marxistas discordaram dos liberais clássicos na análise do intervencionismo. Procuravam demonstrar como eram absurdas todas as propostas intervencionistas, rotulando-as de “burguesas”. A ideologia hoje em voga no mundo recomenda justamente esse sistema de política econômica, que foi rejeitado tanto pelo liberalismo clássico quanto pelo marxismo antigo.
2. A NATUREZA DA INTERVENÇÃO
A questão do intervencionismo não deve ser confundida com a do socialismo. Não estamos discutindo se o socialismo é ou não, de alguma forma, concebível ou realizável. Neste momento, não estamos tentando questionar se a sociedade humana pode basear-se na propriedade pública dos meios de produção. O problema que se nos apresenta é o seguinte: quais são as consequências das intervenções do governo e de outras instâncias no sistema de propriedade privada? Será possível conseguir o resultado que se espera dessas intervenções?
É hora, portanto, de definir mais precisamente o conceito de “intervenção”.
1. Medidas que são tomadas com o fim de preservar e assegurar a propriedade privada não são propriamente intervenções. Isso é tão evidente que dispensa maiores explicações, muito embora não seja totalmente redundante, visto que o problema em questão é frequentemente confundido com o do anarquismo. Costuma-se argumentar que, se o estado deve proteger a propriedade privada, também serão permitidas, consequentemente, maiores intervenções por parte do governo. O anarquista, que rejeita qualquer espécie de ação do estado, é considerado coerente. Mas aquele que percebe corretamente a impraticabilidade do anarquismo e defende uma organização estatal, com os correspondentes mecanismos de correção, a fim de assegurar a cooperação social, é considerado incoerente, quando restringe o governo a uma função limitada.
Obviamente, esse raciocínio foge completamente do assunto em questão, Não estamos discutindo se a cooperação social pode ou não existir sem a estrutura coercitiva, seja esta o estado seja o governo. É nossa intenção apenas discutir se há apenas duas possibilidades concebíveis de organização social com divisão de trabalho, quais sejam, a ordem de propriedade pública e a de propriedade privada—independente do sindicalismo—ou se há, ainda, um terceiro sistema tal como o pretendido pelos intervencionistas, isto é, uma ordem de propriedade privada regulamentada pela intervenção do governo. Incidentalmente, devemos distinguir, cuidadosamente, entre a questão de o governo ser ou não necessário e a questão de em que casos a autoridade do governo é admissível. O fato de a vida social não poder prescindir dos instrumentos de coerção do governo não pode ser usado para se concluir, também, que o controle da consciência, a censura e medidas semelhantes sejam desejáveis, ou que certas medidas de economia sejam necessárias, úteis, ou apenas exequíveis.
Os regulamentos que visam à preservação da concorrência não se incluem, absolutamente, no conjunto dessas medidas que asseguram a propriedade privada. É um erro corriqueiro considerar a concorrência entre diversos produtores de um mesmo produto como a essência da ordem econômica liberal ideal. Na verdade, o cerne da teoria do liberalismo clássico é a propriedade privada, e não um conceito deturpado de livre concorrência. Por exemplo, não importa quantas gravadoras existam; o que importa é que haja mais meios de produção de discos nas mãos de particulares do que nas do governo. Esse equívoco, juntamente com uma interpretação de liberdade influenciada pela filosofia dos direitos naturais, levou a tentativas de impedir, através de leis contra cartéis e trustes, o desenvolvimento de grandes empresas. Não precisamos aqui discutir o objetivo de tal política. Mas devemos observar que nada é menos importante para a compreensão dos efeitos econômicos de uma determinada medida do que sua aceitação ou rejeição por alguma teoria jurídica.
A jurisprudência, a ciência política e o ramo científico da política não podem oferecer quaisquer informações que possam ser usadas para uma decisão no que diz respeito aos prós e contras de uma determinada diretriz política. Não importa que esse pró ou aquele contra correspondam a alguma lei ou documento constitucional, mesmo que este seja tão venerável e famoso como a Constituição dos Estados Unidos da América do Norte. A legislação do homem, quando se mostra inadequada para suas finalidades, deve ser mudada. Um debate sobre a conveniência de uma determinada política jamais pode aceitar o argumento de que essa política se opõe ao estatuto, lei, ou constituição. Isso é tão óbvio que, não fosse pelo fato de ser frequentemente esquecido, não precisaria ser mencionado. Os escritores alemães procuraram chegar à política social a partir das características do estado prussiano e da “realeza social”. Nos Estados Unidos, o atual debate econômico ora usa argumentos provenientes da Constituição, ora parte para uma interpretação dos conceitos de liberdade e democracia. A notável teoria sobre intervencionismo apresentada pelo professor J. R. Commons baseia-se fundamentalmente nesse raciocínio e tem uma grande importância prática, na medida em que representa a filosofia do partido de La Follete e as diretrizes do estado de Wisconsin. A autoridade da Constituição americana limita-se à União. Mas, em termos locais, os ideais de democracia, liberdade e igualdade prevalecem e dão origem, conforme podemos observar em toda parte, à tentativa de abolição da propriedade privada ou sua “limitação”. Essas questões, no entanto, não cabem na presente análise.
2. A socialização parcial dos meios de produção não nos parece ser intervenção. O conceito de intervenção pressupõe que a propriedade privada não é abolida, que continua existindo de fato, não é uma mera denominação. A nacionalização de uma estrada de ferro não é uma intervenção, mas o decreto que manda uma empresa reduzir as taxas de frete além do que ela pretendia é uma intervenção.
3. As medidas governamentais que lançam mão de recursos de mercado—isto é, que procuram influenciar a demanda e a oferta através de alterações dos fatores de mercado—não estão incluídas nesse conceito de intervenção. Se o governo comprar leite no mercado, a fim de vendê-lo bem barato para mães necessitadas, ou, mesmo, a fim de distribuí-lo de graça, ou se o governo subsidiar instituições educacionais, não há intervenção. (Voltaremos, mais adiante, à questão de saber se o método pelo qual o governo adquire os meios para essas medidas constitui “intervenção”). Entretanto, a imposição de preços máximos para o leite significa intervenção.
Intervenção é uma norma restritiva imposta por um órgão governamental, que força os donos dos meios de produção e empresários a empregarem estes meios de uma forma diferente da que empregariam. Uma “norma restritiva” é uma regra que não faz parte de um esquema socialista de regras, ou seja de um esquema de regras que regulamenta toda a produção e distribuição, substituindo, desta forma, a propriedade privada dos meios de produção pela propriedade pública desses meios. As regras da economia privada podem ser muito numerosas, mas, como não visam direcionar toda a economia e substituir a motivação para o lucro dos indivíduos pela obediência, enquanto força geradora de atividade humana, devem ser consideradas como normas limitadas. Por “meios de produção” entendemos todos os bens classificáveis em categorias mais elevadas, inclusive os estoques de produtos acabados que, estando na posse dos comerciantes, ainda não chegaram aos consumidores.
Devemos distinguir dois grupos dessas regras. Um deles reduz ou impede, diretamente, a produção econômica (no sentido mais amplo da palavra, inclusive a colocação dos bens de consumo). O outro procura fixar preços que diferem dos preços de mercado. Ao primeiro denominamos grupo de “restrições de produção”; ao segundo, geralmente conhecido como grupo de controles de preços, denominamos grupo de “interferência na estrutura de preços” [3].
3. RESTRIÇÕES DE PRODUÇÃO
A economia não precisa apontar o efeito imediato das restrições de produção. O governo ou qualquer outro órgão de coerção pode, logo de início, chegar ao que se propõe, pela intervenção. Mas, saber se ele pode atingir seus objetivos a médio e longo prazo através da intervenção, é outra questão. E deve-se investigar melhor se o resultado vale o custo, ou seja, se a autoridade intervencionista procederia à intervenção, caso tivesse pleno conhecimento dos custos envolvidos. Uma taxa de importação, por exemplo, é certamente prática, e seu efeito imediato pode corresponder ao objetivo do governo. Mas isso não quer dizer que essa taxa venha, de fato, atingir o objetivo final do governo. Nesse ponto começa o trabalho do economista. O propósito dos teóricos do livre comércio não foi demonstrar que as tarifas são impraticáveis ou nocivas, mas que elas têm consequências imprevistas e não atingem, nem podem atingir, o que seus defensores esperam delas. Observaram também que tarifas. protecionistas, bem como todas as outras restrições de produção, reduzem a produtividade da mão de obra humana—o que é ainda mais significativo. O resultado é sempre o mesmo: um determinado investimento de capital e trabalho rende menos com a restrição do que sem ela, ou seja, desde o início, se investe menos capital e trabalho na produção. Isso ocorre no caso de tarifas protecionistas que obrigam o cultivo em selo menos fértil, enquanto a terra mais fértil fica abandonada, e, também, no caso em que há restrições de classe com relação a atividades comerciais e à ocupação das terras (tais como os certificados de qualificação para certas ocupações na Áustria, ou os incentivos fiscais concedidos a pequenas empresas). Essas restrições de classe acabam priorizando atividades menos produtivas, em detrimento das mais produtivas. Finalmente, o rendimento do capital e do trabalho é menor quando se reduz a quantidade de mão de obra disponível, na medida em que se impõe limitação de jornada de trabalho e se cerceia o emprego de determinado tipo de mão de obra (mulheres e crianças).
É perfeitamente possível que o governo venha a interferir mesmo no caso de estar totalmente ciente das consequências. Essa interferência pode-se dar a partir da expectativa de se atingirem outros objetivos, não puramente econômicos, considerados mais importantes do que a esperada redução da produção. No entanto, é difícil acreditar que isso ocorra. O fato é que todas as restrições relativas à produção são apoiadas inteira ou parcialmente em alegações que pretendem provar que elas aumentam a produtividade, e não que a reduzem. A própria legislação que reduz a mão de obra de mulheres e crianças foi aprovada por se acreditar que traria desvantagens apenas para empresários e capitalistas: os grupos de mão de obra protegidos teriam de trabalhar menos.
As obras dos Socialistas de Cátedra têm sido corretamente criticadas pelo fato de que, numa análise final, não têm nenhum conceito objetivo de produtividade e de que suas ponderações, em relação às metas econômicas, são subjetivas.
Quando afirmamos, porém que as restrições à produção reduzem a produtividade da mão de obra, ainda não entramos no campo em que diferenças de opiniões subjetivas impedem que se considerem os fins e os meios de ação. Quando a formação de blocos econômicos quase autônomos prejudica a divisão internacional do trabalho, impedindo as vantagens decorrentes de se ter uma produção especializada em grande escala e de se empregar a mão de obra nos pontos mais vantajosos, vamos enfrentar consequências desagradáveis, a respeito das quais as opiniões da maioria dos habitantes da terra certamente coincidem. Sem dúvida, alguns podem acreditar que as vantagens da autonomia excedem as desvantagens. No debate dos prós e contras, os defensores dessa tese afirmam despudoradamente que a autonomia não diminui a quantidade e nem a qualidade dos bens econômicos ou, então, nem mesmo falam sobre isto de forma aberta e clara. É óbvio, porém, que estão todos inteiramente cientes de que a propaganda que fazem seria menos eficiente se tivessem de admitir toda a verdade sobre as consequências.
Qualquer restrição de produção prejudica diretamente uma parte dessa produção, assim como impede que determinadas oportunidades de emprego sejam franqueadas aos bens de categoria superior (terra, capital, mão de obra). Nenhum decreto governamental pode criar coisa alguma que já não tenha sido criada antes. Apenas os inflacionistas ingênuos acreditam que o governo pode enriquecer a humanidade através de emissão de dinheiro. O governo não pode criar coisa alguma; suas ordens não podem nem mesmo expropriar nada que pertença ao mundo da realidade, mas podem expulsar qualquer coisa do mundo do permissível. O governo não é capaz de tornar o homem mais rico, mas pode empobrecê-lo.
Quanto à maioria das restrições de produção, isso tudo se torna tão evidente que os responsáveis raramente ousam exigir abertamente para si os créditos das restrições que impõem. Muitas gerações de autores economistas têm procurado, em vão, demonstrar que as restrições de produção não reduzem a quantidade e a qualidade da produção. Não é o caso de voltarmos a ter a preocupação com justificativas a medidas protecionistas, procedentes de um ponto de vista puramente econômico. Há um único aspecto favorável às medidas protecionistas: os sacrifícios que impõem podem ser compensados por outras vantagens, não econômicas, como, por exemplo, do ponto de vista nacional e militar, poderia ser, de alguma forma, desejável o isolamento de um país do resto do mundo [4].
Na verdade, dificilmente se pode deixar de levar em consideração o fato de que as restrições à produção sempre reduzem a produtividade da mão de obra, diminuindo, desta forma, o dividendo social. Por isso mesmo, ninguém ousa defender as restrições como um sistema de política econômica à parte. Seus defensores—pelo menos a maioria deles—estão agora as promovendo como simples complementos da interferência do governo na estrutura de preços. A tônica do sistema intervencionista é a intervenção nos preços.
3. INTERVENÇÃO NOS PREÇOS
A intervenção nos preços visa determinar preços diferentes daqueles que seriam determinados pela ação do mercado.
Quando é o mercado livre que determina os preços, se o governo não interferir, o preço do produto cobre os custos de produção. Se o governo fixar um preço mais baixo, os lucros serão inferiores ao custo de produção. Os comerciantes e produtores venderão então apenas as mercadorias perecíveis, as que rapidamente perdem seu valor, guardando as outras para épocas mais favoráveis, quando, afortunadamente, seja suspenso o controle. Se o governo quiser evitar que as mercadorias desapareçam do mercado—uma consequência de sua própria intervenção—não pode limitar-se a determinar o preço: terá de exigir, simultaneamente, que todos os suprimentos existentes sejam vendidos pelos preços que determinou.
Nem mesmo essa medida resolveria o problema. Na vigência ideal das leis do mercado, oferta e demanda coincidem. No momento em que o governo decreta um preço mais baixo, a demanda passa a ser maior, e a oferta continua inalterada. Consequentemente o suprimento existente não será suficiente para atender à demanda pelo preço fixado. Parte da demanda deixará, então, de ser atendida. O mecanismo do mercado, que normalmente aproxima demanda e oferta pelas mudanças de preços, para de funcionar. Os consumidores que querem pagar o preço oficial ficam de mãos vazias, porque os primeiros compradores ou aqueles que conheciam pessoalmente os vendedores terão comprado o estoque inteiro. Assim, se o governo quiser evitar as consequências de sua própria intervenção—que, afinal, são exatamente o contrário do que pretendia—deve lançar mão do racionamento como medida complementar ao controle de preços e de ordens de liberação dos estoques. Dessa forma, é o governo que vai determinar a quantidade de um produto que pode ser vendida para cada comprador, ao preço tabelado.
Um problema muito mais difícil de resolver surge, quando os estoques, que existiam no momento da intervenção nos preços, se esgotam. Como a produção não é mais lucrativa ao preço fixado, ela é reduzida ou mesmo interrompida. Ora, se o governo quiser que a produção tenha continuidade, terá de não só forçar os produtores a não interrompê-la, mas também controlar os preços das matérias-primas, dos produtos semiacabados e salários. Esse controle, porém, não pode ser exercido apenas sobre algumas indústrias cujos produtos o governo acha que são, especialmente, importantes. Deve abranger todos os ramos da produção, os preços de todas as mercadorias, todos os salários, e as medidas econômicas tomadas por todos os empresários, capitalistas, proprietários e trabalhadores. Se alguma indústria permanecer fora do controle governamental, o capital e a mão de obra vão atuar livremente, frustrando, consequentemente, o propósito inicial da intervenção do governo. O governo—a quem certamente interessaria um considerável estoque dos produtos que julga essenciais, a ponto de procurar regulamentá-lo—não pode admitir que esses produtos desapareçam, por causa da intervenção [5].
Nossa análise revela que, num sistema de propriedade privada, a intervenção isolada não consegue atingir os objetivos traçados pelos responsáveis. Sob seu ponto de vista a intervenção é não só inútil, mas também uma medida inteiramente inadequada, já que agrava o “mal” que se pretendia eliminar. Antes da fixação dos preços, os bens de consumo eram extremamente caros, na opinião das autoridades. Com os preços tabelados, esses bens desaparecem do mercado, embora não fosse essa a intenção das autoridades, quando resolveram baixar o preço para os consumidores. Pelo contrário, as autoridades governamentais julgam que a escassez e a incapacidade de encontrar um suprimento têm de ser encarados como o maior problema. Nesse sentido, pode-se afirmar que intervenção limitada não é lógica nem adequada e que o sistema econômico que funciona através dessas intervenções não é exequível nem adequado, pois contradiz a lógica econômica.
Se o governo não se mostrar inclinado a melhorar a situação, retirando a intervenção limitada e suspendendo o controle de preços, o primeiro passo deve ser seguido de outros. Ao decreto que estabelece os preços máximos devem-se seguir, não apenas decretos relativos à venda de todos os estoques existentes e à introdução do racionamento, mas também medidas para o controle de preços de bens de categorias superiores, para o controle de salários e, finalmente, deve exigir trabalho compulsório para homens de negócios e trabalhadores. Tais decretos não podem restringir-se a uma única indústria, ou a algumas indústrias, mas devem abranger todos os ramos da produção. Não há outra escolha: ou o governo abandona a interferência restritiva nas forças de mercado, ou assume o controle total da produção e da distribuição. Ou o capitalismo ou o socialismo; não há meio-termo.
Vamos tomar um outro exemplo: o salário mínimo e o controle de salários. Não importa se é o governo que impõe esse controle diretamente, ou se ele é imposto por sindicatos que, através de pressões e ameaças, impedem que os empregadores contratem trabalhadores dispostos a trabalhar por salários mais baixos [6]. Quando os salários se elevam, também se elevam os custos de produção e, consequentemente, os preços. Se esses assalariados fossem os únicos consumidores dos produtos finais, na qualidade de compradores, o aumento dos salários reais, por esse método, não seria possível: os trabalhadores perderiam, enquanto consumidores, o que ganhassem a título de aumento de salários. É preciso, porém, considerar que há, também, consumidores cuja renda provém de bens imóveis e de atividade empresarial. A elevação dos salários não aumenta suas rendas; não podendo pagar os preços mais altos, eles terão de reduzir seu consumo. A redução da demanda leva à dispensa de trabalhadores. Se a coerção dos sindicatos não surtisse efeito, os desempregados pressionariam o mercado de trabalho, que reduziria os salários, artificialmente elevados ao nível normal de mercado. Essa saída, contudo, foi bloqueada, O desemprego, fenômeno de atrito, que logo desaparece numa ordem de mercado livre, toma-se uma instituição permanente, quando há intervencionismo.
Como o governo não tinha a intenção de criar tal situação vê-se obrigado a intervir de novo. Força os empregadores a readmitir os trabalhadores desempregados e a pagar os salários fixados, ou, então, a pagar impostos a título de compensação do desemprego. Tal gravame consome a renda dos proprietários, ou, no mínimo, a reduz drasticamente. É muito possível que a renda dos empresários e proprietários não possa cobrir essas despesas: será necessário, então, utilizar o capital para cobri-las. Ora, se a renda não proveniente de trabalho tiver de cobrir esses ônus, conclui-se que isso conduz a um dispêndio do capital. Capitalistas e empresários também precisam consumir e viver, mesmo que não tenham renda. Vão lançar mão do capital e, assim, enfrentar uma descapitalização. Entretanto, não é conveniente nem lógico privar empresários, capitalistas e proprietários de terra de suas rendas e, ao mesmo tempo, deixar em suas mãos o controle dos meios de produção. É também evidente que a descapitalização acaba por reduzir os salários. Se a estrutura salarial do mercado não for aceitável, todo o sistema da propriedade privada terá de ser abolido. Os controles dos salários podem elevá-los apenas temporariamente, e às custas de futuras reduções salariais.
A questão do controle de salários é, hoje, de tão grande importância que devemos analisá-la, ainda, sob outro prisma, qual seja, o da troca internacional de mercadorias. Suponhamos que haja uma troca de mercadorias entre dois países: a Atlântida e Tule. A Atlântida fornece produtos industriais, e Tule produtos agrícolas. Influenciado por Friedrich List [7], o governo de Tule começa a achar necessário fomentar a indústria do país, por meio de tarifas protecionistas. Essas medidas e o programa de industrialização de Tule acarretarão uma queda no volume de importação e exportação: menos produtos industriais serão importados da Atlântida, e menos produtos agrícolas serão exportados para aquele país. Os dois países satisfazem, assim, o desejo de atingir um maior nível de produção interna, o que vem a tornar o volume do produto social inferior ao que costumava ser, na medida em que as condições de produção passam a ser menos favoráveis.
Isso pode ser explicado da seguinte forma: numa reação às taxas de importação estabelecidas por Tule, a indústria de Atlântida baixa seus salários. É impossível, porém, compensar todo o ônus acarretado pela medida, com salários mais baixos. Quando os salários começam a cair, torna-se lucrativa a expansão da produção de matérias-primas. Por outro lado, a redução nas vendas de produtos agrícolas dos habitantes de Tule para os de Atlântida tende a baixar os salários na produção de matéria-prima de Tule, o que proporciona à indústria de Tule a oportunidade de competir com a de Atlântida pelos custos mais baixos de mão de obra. É evidente que além da baixa no rendimento do capital da indústria em Atlântida e da queda de rentabilidade da terra em Tule, os salários, em ambos os países, devem cair. Consequentemente, a baixa na renda corresponde à baixa do produto social.
Mas a Atlântida é um país “socialista”. Os sindicatos impedem uma redução dos salários. Os custos de produção da indústria de Atlântida permanecem nos mesmos níveis da fase pré-impostos de importação. Quando as vendas em Tule baixam, a indústria de Atlântida é obrigada a dispensar alguns operários. O seguro-desemprego evita que o operário não alocado se volte para a agricultura; o desemprego, portanto, torna-se uma instituição permanente [8].
Na Grã-Bretanha, a exportação de carvão tem diminuído. Como os mineiros desnecessários não podem emigrar—pois os outros países não os querem—eles procuram indústrias britânicas que estejam expandindo-se para compensar a diminuição das importações decorrentes do declínio nas exportações. Esse fluxo pode ser provocado por uma redução de salários dos mineiros de carvão. Mas os sindicatos podem impedir, durante anos, se bem que temporariamente, esse ajuste inevitável. Em resumo, um desequilíbrio na divisão internacional do trabalho pode causar uma deterioração nos padrões de vida, que será tanto maior quanto maior tiver sido a depreciação do capital em função de uma intervenção de caráter “social”.
A indústria austríaca passa por dificuldades porque outros países vêm continuamente elevando suas taxas de importação sobre produtos austríacos e impondo cada vez mais restrições à importação, tal como o controle cambial. Em reação a essa elevação de tarifas, se sua própria carga de impostos não for reduzida, a Áustria se verá obrigada a reduzir os salários. Todos os outros fatores de produção são inalteráveis. A matéria-prima e os produtos semiacabados têm de ser adquiridos no mercado internacional. Os lucros empresariais e as taxas de juros devem corresponder às condições do mercado internacional, uma vez que se investe mais capital estrangeiro na Áustria, do que capital austríaco no exterior. Apenas os salários são fixados a nível nacional, porque a emigração de operários austríacos sempre encontra obstáculos político-“sociais” no exterior. Apenas os níveis salariais podem cair. Políticas que defendam altos níveis salariais artificiais e a concessão de seguro-desemprego só servem para gerar mais desemprego.
É absurdo exigir a elevação dos salários na Europa, só porque os salários nos Estados Unidos são mais altos que os europeus. Se as barreiras à imigração para os Estados Unidos, Austrália etc. fossem suspensas, os trabalhadores europeus poderiam emigrar, o que gradativamente levaria a uma uniformização internacional dos níveis salariais.
O desemprego permanente de centenas de milhares e milhões de pessoas, de um lado, e a depreciação do capital do outro, são consequências da elevação artificial dos salários, pelos sindicatos, e do seguro-desemprego, ambos resultantes do intervencionismo.
5. A DESTRUIÇÃO RESULTANTE DA INTERVENÇÃO
Pode-se compreender a história das últimas décadas a partir de um simples exame das consequências da intervenção estatal nas operações econômicas da iniciativa privada. Desde o desaparecimento do liberalismo clássico, o intervencionismo tem sido a essência da política em todos os países da Europa e da América.
O leigo em economia observa apenas que as “partes interessadas” conseguem, frequentemente, escapar às restrições da lei. O fato de que o sistema funciona precariamente é censurado exclusivamente quanto à lei, que não é aplicada com profundidade e suficiência, e à corrupção, que impede esta aplicação. O próprio fracasso do intervencionismo vem reforçar a convicção do leigo de que a iniciativa privada deve ser rigorosamente controlada. A corrupção dos órgãos controladores não abala a confiança cega na infalibilidade e perfeição do estado; apenas provoca grande aversão pelos empresários e capitalistas.
Entretanto, a violação da lei não é simplesmente um mal que precisa ser erradicado para que se crie um paraíso na terra, não é um mal que nasce da fraqueza humana, extremamente difícil de ser exterminado, como os estadistas tão ingenuamente proclamam. Se todas as leis intervencionistas fossem realmente observadas, levariam a uma situação de absurdo. Todas as engrenagens acabariam parando, emperradas pelo braço forte e inoperante do governo.
Hoje em dia, o problema pode ser visto desta forma: fazendeiros e produtores de laticínios unem-se para provocar a subida do preço do leite. Vem, então, o Estado, interessado no bem-estar social, tranquilizar a todosf colocando o interesse comum acima do interesse particular, o ponto de vista da economia pública acima do interesse da iniciativa privada. Dissolve o “cartel do leite”, estabelece preços máximos e enquadra criminalmente os violadores das regras estabelecidas pelo intervencionismo. Como o leite não fica tão barato quanto os consumidores pretendiam, as críticas se voltam contra as leis, que não são suficientemente rigorosas, contra as medidas, ainda não muito severas, de combate ao não cumprimento das leis. Como é muito difícil lutar contra os interesses pelo lucro de certos grupos de pressão, que são prejudiciais ao público, faz-se necessário reforçar e executar as leis implacavelmente, sem quaisquer considerações.
Na verdade, a situação real é bem diferente. Se os preços máximos forem efetivamente mantidos à custa de fiscalização, o fornecimento de leite e seus derivados às cidades acabará sendo interrompido. Pouco ou nenhum leite chegará ao mercado. O consumidor, aliás, ainda consegue leite, porque as leis são burladas. Se aceitarmos do estado o antagonismo inadmissível e capcioso, que ele aponta, entre interesses públicos e privados, chegaremos à conclusão de que o vendedor de leite que viola a lei está servindo ao interesse público e o funcionário do governo que procura manter à força o preço tabelado está, na verdade, agindo contra esse interesse.
Evidentemente, o negociante que, a fim de produzir, viola as leis e suas regulamentações e produz, apesar dos obstáculos governamentais, não leva em conta aquelas considerações a respeito do interesse público, de que tanto abusam os próprios “defensores” desse interesse. Ele é movido pelo desejo de ter lucro ou de, pelo menos, evitar o prejuízo que teria se obedecesse à lei. A opinião pública, que se mostra indignada com a vileza de tal motivação e com a iniquidade de tais atitudes, não consegue compreender que a impraticabilidade dos decretos e proibições logo levaria a uma catástrofe, por ser sistemático esse desrespeito às ordens e proibições governamentais. A opinião pública espera que o cumprimento rigoroso da regulamentação das leis governamentais criadas “para a proteção dos fracos” seja a salvação. Censura o governo apenas porque ele não é suficientemente forte para fazer aprovar todas as regulamentações necessárias e porque ele não confia a execução das leis e decretos às mais capazes e íntegras pessoas. Os problemas básicos do intervencionismo não são absolutamente questionados. Aquele que timidamente ousa duvidar de alguma justificativa das restrições impostas aos capitalistas e empresários será com toda a certeza, ou tachado de mercenário, que só pensa em seus interesses particulares—aliás, sempre considerados extremamente prejudiciais para a sociedade como um todo—ou, então, na melhor das hipóteses, tratado com mudo desprezo. Até mesmo, numa análise dos métodos de intervencionismo, aquele que não quiser pôr em risco sua reputação e, principalmente, sua carreira, deve usar de muita cautela. Qualquer um pode facilmente cair na terrível suspeita de servir aos interesses do “capital”. E quem lançar mão de argumentos econômicos não há de conseguir escapar dessa suspeita.
Na verdade, a opinião pública não está errada em suspeitar de corrupção em todos os cantos do estado intervencionista. A corruptibilidade dos políticos, deputados e funcionários é a própria base do sistema. Sem ela, o sistema se desintegraria e seria substituído ou pelo socialismo ou pelo capitalismo. O liberalismo clássico considerava melhores as leis que não propiciavam total plenipotência às autoridades executivas, por diminuírem as ocasiões de arbitrariedades e abusos. O estado moderno, ao contrário, procura expandir essa plenipotência; tudo deve ser deixado a critério dos funcionários competentes.
Não podemos, aqui, investigar o impacto da corrupção nos costumes públicos. É lógico que nem os que subornam nem os que se deixam subornar se dão conta de que é seu tipo de comportamento que preserva o sistema, considerado certo pela opinião pública e por eles próprios. Eles estão conscientes de que, com a violação da lei, o bem-estar público fica prejudicado. No entanto, com a constante violação das leis criminais e dos decretos éticos, eles acabam perdendo a capacidade de distinguir o certo do errado, o bem do mal. Se, na verdade, são poucos os bens de consumo que podem ser produzidos ou vendidos sem que se tenha de violar alguma norma, a desobediência à lei e à autoridade torna-se um “mal necessário”. E os que gostariam que as coisas fossem diferentes são ridicularizados, tratados pejorativamente de “teóricos”. O comerciante que viola o controle do câmbio, restrições de importação e exportação, preços máximos etc., certamente também poderá enganar seu próprio sócio. A decadência ética da conduta comercial—que se costuma chamar de “efeito da inflação”—é a decorrência inevitável das restrições impostas ao comércio e à produção durante a inflação.
Pode-se dizer que o sistema de intervencionismo tornou-se suportável por causa do descaso dos responsáveis pela execução das leis. Considera-se mesmo que as interferências nos preços podem perder seu poder restritivo quando os empresários conseguem “corrigir” a situação através de dinheiro e persuasão. Todos concordam, porém, que seria melhor se não houvesse intervenção. Afinal, a opinião pública sempre procura a acomodação. O intervencionismo é visto como um tributo que deve ser pago à democracia, para que se possa preservar o sistema capitalista.
Essa linha de raciocínio pode ser entendida do ponto de vista dos empresários e capitalistas que adotaram o pensamento marxista-socialista ou estatal-socialista. Para eles, a propriedade privada dos meios de produção é uma instituição que, às custas do povo, favorece os interesses dos proprietários de terra, dos capitalistas e dos empresários. A preservação dessa ordem serve, apenas, aos interesses das classes proprietárias. Consequentemente, se pequenas concessões forem feitas, essas classes podem salvaguardar a instituição que lhes confere tanto proveito, embora isto venha a ser muito prejudicial para as outras classes. Por que pôr em risco a manutenção desse estado de coisas recusando, inflexivelmente, essas concessões?
Naturalmente, aqueles que não concordam com esse modo de reconhecer os interesses da “burguesia” não podem aceitar esse raciocínio. Não vemos por que razão a produtividade do trabalho econômico deva ser reduzida através de medidas falsas. Se a propriedade privada dos meios de produção é, de fato, uma instituição que favorece uma parte da sociedade em detrimento de outra, ela deve ser abolida. Mas, caso se chegue à conclusão de que a propriedade privada é útil para todos, e de que a sociedade, com suas divisões de trabalho, não poderia ser organizada de outra forma ela deve ser então, salvaguardada de modo a poder cumprir sua função da melhor forma possível. Não é preciso nos referir à conclusão que naturalmente surge em relação aos mais diversos preceitos morais, se os preceitos da lei e da moral rejeitam ou, no mínimo, reprovam o que deve ser preservado, como base da vida social. Pergunto-me, aliás, se há algum fundamento em se proibir alguma coisa na expectativa de que essa proibição seja totalmente desrespeitada.
Qualquer pessoa que defenda o intervencionismo com esses argumentos está, sem dúvida, seriamente enganada quanto à extensão do prejuízo causado na produtividade pelas intervenções governamentais. A adaptabilidade da economia capitalista tem, sem dúvida, conseguido afastar muitos dos obstáculos à atividade empresarial. Constantemente observamos que empresários conseguem fornecer aos mercados mais e melhores produtos e serviços, apesar de todas as dificuldades colocadas em seu caminho pela lei e pela administração. Contudo, não podemos calcular qual seria o reflexo na qualidade e na quantidade desses produtos e serviços se não houvesse o dispêndio de mais energia e dinheiro, ou seja, se o governo, com suas iniciativas precipitadas não agravasse as coisas inintencionalmente, é claro. Referimo-nos às consequências de todas as restrições de importação e exportação sobre as quais não pode haver diferença de opinião. Referimo-nos aos obstáculos aos melhoramentos da produção gerados pelo combate aos cartéis e trustes. Referimo-nos às consequências do controle de preços, às elevações artificiais dos salários pela pressão dos sindicatos, à falta de proteção para todos aqueles que querem trabalhar, ao seguro-desemprego, à negação da liberdade de ir de um país para outro e, finalmente, a tudo que tornou o desemprego de milhões de trabalhadores um fenômeno permanente.
Os estatizantes e os socialistas estão chamando a grande crise, que a economia mundial vem sofrendo desde o término da Grande Guerra, de “crise do capitalismo”. Na verdade, trata-se da crise do intervencionismo.
Numa economia estável pode haver terra ociosa, mas não pode haver capital ou mão de obra ociosa. Sob a ação livre do mercado, com os salários em níveis razoáveis, todos os trabalhadores encontram emprego. Mas se estiverem inalteradas outras condições, e houver desemprego—em decorrência da introdução de novos processos de produção que exijam menos trabalhadores, por exemplo—os níveis salariais caem. Então, com os novos salários mais baixos todos encontram trabalho. Na ordem social capitalista, o desemprego não passa de um fenômeno de transição sazonal. As medidas que impedem o fluxo livre de mão de obra de um lugar para outro, de um país para outro, podem tornar mais difícil o nivelamento dos salários. Podem, também, levar a diferentes remunerações os vários tipos de trabalho. Contudo, se houver liberdade para empresários e capitalistas, não teremos nunca o desemprego permanente e em larga escala. Trabalhadores à procura de emprego sempre encontram trabalho, quando acomodaram suas exigências salariais às condições de mercado.
Se os índices salariais continuassem a ser determinados pelo mercado, os efeitos da Guerra Mundial e das políticas econômicas destruidoras das últimas décadas teriam levado a uma baixa nos salários, mas não ao desemprego. O alcance e a duração do desemprego, atualmente interpretados como prova do fracasso do capitalismo, resultam do fato de que os sindicatos e o seguro-desemprego estão mantendo os níveis salariais mais altos do que os que seriam determinados pela ação do mercado. Sem o seguro-desemprego e sem a força dos sindicatos, impedindo a competição dos não sindicalizados que queiram trabalhar, a pressão da oferta logo provocaria um ajuste de salário que asseguraria emprego para todos. Podemos lamentar as consequências da política antimercadológica e anticapitalista das últimas décadas, mas não podemos mudá-las. Só com redução do consumo e trabalho árduo pode-se recuperar o capital perdido, e com a formação de novo capital pode-se elevar a produtividade marginal do trabalho e, por sua vez, os salários.
O seguro-desemprego não é capaz de erradicar o mal. Apenas adia o inevitável ajuste final dos salários à produtividade marginal reduzida. E, como o seguro normalmente não é pago pela renda, mas pelo capital, este se vai depreciando cada vez mais, e vai-se reduzindo a futura produtividade marginal da mão de obra.
Não devemos presumir, entretanto, que a eliminação imediata de todos os obstáculos para o bom funcionamento da ordem econômica capitalista acabaria prontamente com as consequências de muitas décadas de intervenção. Grandes quantidades de mercadoria dos produtores foram destruídas. Restrições ao comércio exterior e outras medidas mercantilistas levaram a desastrosos investimentos de capital mais vultoso, que resultaram em pouca ou nenhuma compensação. O fato de se alijarem do sistema cambial internacional grandes áreas férteis do mundo (como as da URSS) leva a reajustes ineficazes na produção e beneficiamento do setor primário. Mesmo em condições mais favoráveis, hão de se passar muitos anos antes que os vestígios das políticas errôneas das últimas décadas possam desaparecer. Contudo, não há outro meio de se chegar a um maior bem-estar para todos.
6. A DOUTRINA DO INTERVENCIONISMO
Para os pensadores pré-científicos, uma sociedade baseada na propriedade privada dos meios de produção parecia ser naturalmente, caótica. Sua organização dependeria—assim pensavam—apenas dos preceitos impostos pela moralidade e pela lei. Essa sociedade só poderia existir se o comprador e o vendedor observassem a justiça e a integridade. O governo deveria intervir, a fim de evitar o mal que decorre de um desvio arbitrário “do preço justo”. Essa teoria prevalece em todos os comentários sobre a vida social até o século XVIII. Apareceu, pela última vez, em toda a sua ingenuidade, nas obras dos mercantilistas.
Os escritores anticapitalistas dão muita ênfase ao fato de que a economia clássica servia aos “interesses” da “burguesia”, o que, supostamente explicaria seu êxito, levando, por sua vez, ao êxito da burguesia. Ninguém ousaria duvidar de que a liberdade alcançada pelo liberalismo clássico proporcionou o incrível desenvolvimento das forças de produção durante o último século. Mas infelizmente é um engano acreditar que, por se opor à intervenção, o liberalismo clássico tenha obtido uma aceitação mais fácil. Ele enfrentou a oposição de todos aqueles a quem a atividade febril do governo concedia proteção, favores e privilégios. O liberalismo clássico, não obstante, só pôde prevalecer em decorrência de ter sobrepujado intelectualmente os defensores do privilégio. Não havia novidade no fato de as vítimas do sistema de privilégios reivindicarem a extinção desse sistema. A grande novidade foi o enorme sucesso obtido pelas críticas ao sistema de privilégios, sucesso que deve ser atribuído exclusivamente ao triunfo das ideias do liberalismo clássico.
O liberalismo clássico venceu com a economia e através dela. É a única ideologia econômica que se pode adaptar à ciência da cataláctica. Durante as décadas de 1820 e 1830, na Inglaterra, fez-se uma tentativa no sentido de usar a economia para demonstrar que a ordem capitalista, além de injusta, não funciona satisfatoriamente. A partir daí, Karl Marx criou seu socialismo “científico”. No entanto, mesmo que Marx e seus seguidores tivessem conseguido provar, com sucesso, suas teses contra o capitalismo, teriam, ainda, de provar que uma outra ordem social, como o socialismo, seria melhor do que o capitalismo. E isso não foram capazes de fazer. Não conseguiram nem mesmo provar que uma ordem social pode, de fato, ser fundamentada na propriedade pública dos meios de produção. Pelo simples fato de rejeitarem ou deixarem de lado qualquer análise das “concepções utópicas” do socialismo, eles, evidentemente, não resolveram nada.
Alguns pensadores do século XVIII descobriram, então, o que já havia sido publicado por autores que os precederam, a respeito de dinheiro e de preços. Descobriram a existência de uma ciência da economia, que substituía o conjunto de máximas morais, os manuais de normas de controle, e as observações aforísticas sobre seus sucessos e fracassos. Aprenderam que os preços não são estabelecidos arbitrariamente, mas são determinados—dentro de estreitos limites—pela situação do mercado, e que todos os problemas práticos podem ser analisados com precisão. Reconheceram que as leis do mercado forçam os empresários e os proprietários dos meios de produção a se colocarem a serviço dos consumidores, e que suas ações econômicas não resultam de arbitrariedades, mas do imprescindível ajuste às condições dadas. Esses fatos foram suficientes para gerar uma ciência da economia e um sistema de cataláctica. Nas situações em que os primeiros pensadores viam apenas arbitrariedade e coincidência, os economistas clássicos passaram a ver necessidade e regularidade. De fato, eles substituíram os debates sobre normas de controle pela ciência e pelo sistema.
Os economistas clássicos não estavam ainda inteiramente cônscios de que o simples sistema da propriedade privada é capaz de oferecer o fundamento para uma sociedade com base na divisão de trabalho e de que o sistema de propriedade pública não é funcional. Influenciados pelo pensamento mercantilista, confrontaram produtividade com rentabilidade, o que fez com que se começasse a investigar se a ordem socialista é, ou não, preferível à ordem capitalista. Mas entenderam claramente—exceto no que tange ao sindicalismo—que as únicas alternativas são capitalismo e socialismo, e que a “intervenção” no funcionamento da ordem de propriedade privada é inadequada, embora seja extremamente bem vista, tanto pelo povo, quanto pelo governo.
As ferramentas da ciência não nos habilitam a afirmar se uma instituição ou ordem social é “justa” ou não. Certamente, podemos censurar isto ou aquilo como “injusto” ou “impróprio”. Mas, se não conhecemos nada melhor para substituir o que censuramos, é melhor não emitirmos opinião.
Nada disso, porém, nos interessa neste momento. Apenas um fato importa agora: jamais alguém conseguiu demonstrar que—excluindo o sindicalismo—exista uma terceira ordem social concebível e possível, que não se baseie ou na propriedade privada ou na propriedade pública dos meios de produção. O sistema intermediário de propriedade —- obstruído, orientado e regulado pelo governo—é por si mesmo, contraditório e ilógico. Qualquer tentativa no sentido de introduzi-lo seriamente deve levar a uma crise da qual só pode emergir o socialismo ou o capitalismo.
Esta é a conclusão irrefutável da economia. Quem tentar recomendar uma terceira ordem social—a da propriedade privada sob controle—terá de negar categoricamente a possibilidade de conhecimento científico no campo da economia. A Escola Historicista Alemã fez isto, e os institucionalistas, dos Estados Unidos, atualmente estão fazendo o mesmo. A economia está formalmente abolida, proibida e substituída pelo estado e por uma ciência política, que registra o que o governo decretou e recomenda o que ainda deve ser decretado. Os institucionalistas e históricos estão perfeitamente cientes de que estão voltando ao mercantilismo, à doutrina do princípio fundamental do preço justo e abandonando todas as teorias econômicas.
A Escola Historicista Alemã e seus inúmeros seguidores no exterior nunca julgaram necessário lutar contra os problemas de cataláctica. Satisfizeram-se plenamente com os argumentos de Gustav Schmoller expressos no famoso Methodenstreit e que seus discípulos—Hasbach, por exemplo—repetiram depois dele. Nas décadas situadas entre o conflito constitucional prussiano (1862) e a Constituição de Weimar (1919), apenas três homens perceberam os problemas da reforma social—Philippovich, Stolzmann e Max Weber. Desses, apenas Philippovich tinha algum conhecimento sobre a, natureza e o conteúdo da economia teórica. Em seu sistema, cataláctica e intervencionismo convivem lado a lado (embora nenhuma ponte ligue um ao outro), e não se propõe solução para esse grande problema. Stolzmann, basicamente, procura compreender o que Schmoller e Brentano tinham apenas sugerido. É triste, entretanto, observar que o único representante da Escola que realmente atacou o problema ignorasse totalmente o que os seus oponentes diziam. Max Weber, preocupado com assuntos bem diferentes, parou na metade do caminho porque se opunha à economia teórica. Talvez viesse a aprofundar o problema, não fosse sua morte prematura.
Por várias décadas, tem-se falado nas universidades alemãs de uma retomada do interesse pela economia teórica. Podemos mencionar um bom número de autores, tais como Liefmann, Oppenheimer, Gott e outros, que ardentemente se opuseram ao sistema da moderna economia subjetiva, da qual só conheciam a dos “austríacos”. Não precisamos levantar aqui a questão de serem ou não justificáveis esses ataques. Gostaríamos, porém, de mostrar o efeito interessante que tiveram na discussão da viabilidade do sistema do intervencionismo. Todos esses autores rejeitaram sumariamente o que tem sido preconizado pela economia teórica—pelos fisiocratas, autores clássicos e modernos. Em especial, descrevem o trabalho da economia moderna, especialmente o dos austríacos, como aberrações inacreditáveis do espírito humano. Em seguida apresentam seus próprios sistemas de economia teórica, supostamente originais, afirmando ter dirimido todas as dúvidas e solucionado todos os problemas. O público, infelizmente, é levado a crer que, em economia, tudo é incerto e problemático, e que a teoria econômica consiste, apenas, nas opiniões pessoais de vários especialistas. O entusiasmo gerado por esses autores nos países de língua alemã logrou encobrir o fato de que existe uma ciência econômica teórica que, apesar das diferenças de detalhes e, especialmente, de terminologia, está desfrutando de boa reputação entre todos os que se dedicam a ciência. E, apesar de todas as críticas e reservas, até mesmo esses autores basicamente concordaram com o sistema teórico no que diz respeito às questões essenciais; mas, como não se conscientizaram disso, eles não veem necessidade de examinar o intervencionismo do ponto de vista do conhecimento econômico.
Além disso, havia o efeito do debate sobre a possibilidade de, em ciência, se fazerem julgamentos de valor. Com a Escola Histórica, a ciência política tornara-se uma doutrina de arte para estadistas e políticos. Nas universidades e em manuais, reivindicações econômicas eram apresentadas e proclamadas como “científicas”. A “ciência” condenava o capitalismo, tachando-o de imoral e injusto, rejeitando como “radicais” as soluções oferecidas pelo socialismo marxista e recomendava o socialismo estatal ou, às vezes, até o sistema de propriedade privada com intervenção do governo. Economia não era mais questão de conhecimento e capacidade, mas de boas intenções. Particularmente, desde o início da segunda década deste século, quando a ingerência da política no ensino nas universidades tornou-se extremamente reprovável. O público começou a menosprezar os representantes oficiais da ciência, porque eles se utilizavam da “ciência” para promover as plataformas dos partidos de seus amigos, assim como não podia mais tolerar o aborrecimento que representava o fato de que cada partido político invocava sua própria ideia do que fosse “ciência”, isto é, que sempre houvesse um professor universitário em suas fileiras. Quando Max Weber e alguns de seus amigos exigiram que a “ciência” renunciasse a julgamento de valor e que as universidades não fossem usadas para propaganda política e econômica, obtiveram um apoio quase unânime.
Entre os autores que concordaram com Max Weber, ou que, pelo menos não ousaram contradizê-lo, havia muitos cuja obra estava total e abertamente em contradição com o princípio de objetividade e cujos esforços literários nada mais eram que paráfrases de determinados programas políticos. Interpretavam a expressão “ausência de julgamento de valor” de uma forma especial. Ludwig Pohle e Adolf Weber tocaram nos problemas básicos do intervencionismo, quando de seus debates sobre políticas salariais de associações trabalhistas. Os seguidores das doutrinas sindicalistas de Brentano e Webb foram incapazes de levantar quaisquer objeções pertinentes. Mas o novo postulado de “ciência livre de valor” parecia tirá-los da situação embaraçosa em que se encontravam. Agora, podiam arrogantemente rejeitar tudo o que não lhes agradava, sob o pretexto de que a interferência nas disputas de partidos políticos se coadunava com a dignidade da ciência. De boa fé, Max Weber introduzia o princípio de Wertfreiheil visando a uma retomada da investigação científica dos problemas da vida social. E, no entanto, isso foi usado pela Escola Histórico-Realista-Social como uma proteção contra a crítica da economia teórica.
Frequentemente—e talvez intencionalmente —, alguns escritores se recusam a reconhecer a diferença entre a análise de problemas econômicos e a formulação de postulados políticos. Não fazemos julgamentos de valor quando, por exemplo, averiguamos as consequências do controle de preço e concluímos que um preço máximo, estabelecido abaixo do estipulado pela ação do mercado, reduz a quantidade de bens oferecida, sem que haja alterações nas condições restantes. Não fazemos um julgamento de valor quando concluímos que os controles de preços não trazem os resultados esperados pelas autoridades, e que são medidas políticas absurdas. Um fisiologista não emite julgamento de valor, quando observa que o consumo de ácido cianídrico destrói a vida humana e, portanto, é ilógico que essa substância seja usada num “sistema nutricional”. À fisiologia não cabe julgar se um indivíduo quer nutrir ou matar, ou se deve proceder dessa ou daquela forma. A fisiologia apenas descreve o que é ou não lesivo à vida humana, o que aquele que deseja nutrir, ou aquele que deseja matar deve fazer, para atingir seu objetivo. Quando digo que o controle de preços é ilógico, estou afirmando que ele não atinge o objetivo que, via de regra, se propôs a atingir. Um comunista poderia replicar: “Apoio o controle de preços só porque impedem o livre funcionamento do mecanismo de mercado, porque transforma a sociedade humana num ‘caos absurdo’ e conduz rapidamente ao meu ideal de comunismo”. A teoria de controle de preços não vai poder responder-lhe, assim como a fisiologia não vai poder responder ao homem que quer utilizar o ácido cianídrico para matar, Não nos valemos de julgamentos de valor quando demonstramos da mesma forma, a falta de lógica do sindicalismo e a impraticabilidade do socialismo.
Destruiremos a economia se todas as suas investigações forem rejeitadas por inadmissíveis. Podemos observar quantos espíritos jovens—que em outras circunstâncias se teriam voltado para os problemas econômicos—se entregam a pesquisas que não correspondem aos seus talentos e, portanto, pouco acrescentam à ciência. Emaranhados nos erros já descritos, afastam-se de importantes investigações científicas.
7. OS ARGUMENTOS HISTÓRICOS E PRÁTICOS DO INTERVENCIONISMO
Postos em evidência pela crítica econômica, os representantes da Escola Histórico Realista, finalmente, invocam os “fatos”. Segundo eles, não se pode negar que todas as intervenções, teoricamente impróprias, foram e continuam, realmente, a ser feitas. Não podem acreditar que a prática econômica não tenha notado essa suposta impropriedade. Ocorre que as normas intervencionistas já existem há centenas de anos, e, desde o declínio do liberalismo, o mundo vem sendo governado novamente pelo intervencionismo. Consideram que é prova suficiente o fato de que, se o sistema é realizável e bem sucedido, não pode ser ilógico de forma alguma. Dizem que a rica literatura da Escola Histórico-Realista sobre a história da política econômica confirma as doutrinas do intervencionismo [9].
O fato de que tenham sido tomadas medidas que continuam a ser tomadas não prova que elas sejam apropriadas. Prova, apenas, que seus patrocinadores não reconheceram sua impropriedade. De fato, embora os “empíricos” não pensem assim, é extremamente difícil compreender a importância de uma medida econômica. Não podemos compreender sua importância sem um exame aprofundado do desenvolvimento da economia como um todo, isto é, se não buscarmos uma teoria abrangente. Os autores de obras sobre história e política econômica, descrições e estatísticas econômicas normalmente agem com muita imprudência. Sem ter o necessário conhecimento teórico, empenham-se em tarefas para as quais estão totalmente despreparados. Tudo o que os autores consultados deixaram de descobrir normalmente escapa, também, à atenção dos historiadores. Num debate sobre uma norma econômica, raramente estão propensos a examinar correta e cuidadosamente não só se o resultado almejado foi, de fato, alcançado, como também, no caso de ter sido alcançado, se isso resultou daquela norma ou de qualquer outro fator. Certamente, não têm capacidade de perceber todos os efeitos concomitantes que, do ponto de vista dos responsáveis pelos regulamentos, eram desejáveis ou indesejáveis. Foi apenas no capítulo da história monetária que os historiadores lograram melhor qualidade em alguns trabalhos, justamente por terem algum conhecimento da teoria monetária (lei de Gresham, teoria da quantidade) e, consequentemente, por conhecerem mais a fundo o trabalho que se propunham fazer.
A qualificação mais importante que pode caber a um pesquisador de “fatos” é o domínio total da teoria econômica. Ele deve interpretar o material disponível à luz da teoria. Se não tiver êxito nisto ou ficar insatisfeito com seu trabalho, deve indicar, com precisão, o ponto crítico, e formular o problema a ser solucionado teoricamente. A partir daí, outros podem tentar solucioná-lo. O fracasso será dele, não da teoria. A teoria explica tudo. As teorias não falham quanto a problemas individuais: falham por suas próprias deficiências. Quem procura substituir uma teoria por uma outra deve ou adaptá-la ao sistema dado, ou criar um novo sistema ao qual se adapte. É absolutamente anticientífico partir de “fatos” observados e, em seguida, anunciar o fracasso da “teoria” e do sistema. O gênio é quem faz a ciência progredir com novos conhecimentos e quem obtém informações valiosas a partir da observação de um processo diminuto, que passou despercebido, considerado insignificante por outros antes dele. Sua mente é estimulada por todos os assuntos. O inventor, porém, é que substitui o velho pelo novo, não através da negação, mas tendo em vista o conjunto e o sistema.
Não precisamos, aqui, nos ocupar com a questão epistemológica mais profunda dos sistemas em conflito. Nem precisamos discutir a multiplicidade dos sistemas em oposição. Para examinar os problemas do intervencionismo há, de um lado, a economia moderna juntamente com a teoria clássica e, de outro, os que negam o sistema e a teoria, não importa o cuidado com que formulem essa negação do conhecimento teórico. Nossa resposta a todos eles é simples; tentem criar um sistema de conhecimento teórico que agrade a vocês mais que a nós. Então podemos voltar a conversar.
Naturalmente, todas as objeções levantadas contra a economia teórica são “teorias” econômicas. De fato, os próprios oponentes estão agora escrevendo “teorias econômicas” e fazendo conferências sobre “economia teórica”. O trabalho deles, porém, é inadequado, uma vez que se descuidam de tecer os princípios de sua “teoria” num sistema—uma teoria abrangente da cataláctica. Um princípio teórico torna-se uma teoria apenas por meio de um sistema e dentro de um sistema. É muito fácil falar sobre salário, renda e juros. Só podemos falar, contudo, de uma teoria, quando as afirmações individuais estiverem ligadas a uma explicação que dê conta de todos os fenômenos de mercado.
Em suas experiências, os cientistas naturais podem eliminar todas as influências dissonantes e observar as consequências da mudança de um fator em condições idênticas. Se o resultado da experiência não puder se ajustar satisfatoriamente a seu sistema teórico, eles podem tentar uma expansão do sistema, ou mesmo sua substituição por um novo. Mas quem concluir, a partir do resultado de uma experiência, que não pode haver percepção teórica, corre o risco de cair no ridículo. Os cientistas sociais carecem de experiência. Nunca podem observar as consequências de um fator, se as condições forem imutáveis. Contudo, aqueles que negam o sistema e a teoria ousam concluir, a partir de algum “fato”, que a teoria (ou até mesmo todas as teorias), foi contestada.
Que dizer de afirmações genéricas, tais como: “a supremacia industrial da Grã-Bretanha durante os séculos XVIII e XIX foi o resultado da política mercantilista dos séculos anteriores”, ou “a elevação nos salários reais, durante as últimas décadas do século XIX e as décadas do início do século XX, deve ser atribuída aos sindicatos”, ou “a especulação imobiliária provoca o aumento dos aluguéis”. Acredita-se que essas afirmações partiram diretamente da experiência. Dizem eles que não se trata de mera teoria, mas de fatos tirados da vida real. Entretanto os que assim pensam recusam-se, inflexivelmente, a ouvir um teórico que se propõe examinar as diversas opiniões sobre “experiência prática” estudando-as, cuidadosamente, e buscando uni-las numa estrutura sistemática.
Nenhum dos argumentos apresentados pela Escola Empírico-Realista poderá suplantar a falta de um sistema teórico abrangente.
8. OBRAS RECENTES SOBRE OS PROBLEMAS DO INTERVENCIONISMO
Na Alemanha, o clássico país do intervencionismo, muito pouco se sentiu a necessidade de uma séria crítica econômica a esse sistema. O intervencionismo chegou ao poder sem luta. Nem tomou conhecimento da ciência econômica criada pelos ingleses e franceses. Friedrich List denunciava-a como prejudicial aos interesses do povo alemão. Entre os poucos economistas alemães, Thunen era quase desconhecido, Gossen, totalmente desconhecido, e Hermann e Malgold exerciam pouca influência. Menger foi “eliminado” no Methodenstreit. A ciência formal da Alemanha não se preocupava com os empreendimentos econômicos posteriores à década de 1870. Todas as objeções foram afastadas e rotuladas de afirmativas de interesse específico dos empresários e capitalistas [10].
Nos Estados Unidos da América do Norte, que agora parecem assumir a liderança do intervencionismo, a situação é bem diferente. No país de J. B. Clark, Taussig, Fetter, Davenport, Young e Seligman, é impossível ignorar todas as realizações da economia. Era de se esperar, portanto, que nesse país fosse feita uma tentativa de provar a viabilidade e conveniência do intervencionismo. John Maurice Clark, que já foi professor da Universidade de Chicago e agora, como seu avô John Bates Clark é professor da Universidade de Colúmbia, na cidade de Nova Iorque, incumbiu-se dessa tarefa [11].
Lamentamos, entretanto, que ele trate dos problemas fundamentais do intervencionismo, em apenas um capítulo com algumas páginas. O professor Clark distingue dois tipos de regulamento social de ações econômicas: regulamento para assuntos secundários “aqueles em que o estado trata de assuntos secundários para a transação principal”, e regulamento para assuntos essenciais, “aqueles em que é o “cerne” do contrato que está em jogo, e o estado toma a liberdade ou de fixar os termos do intercâmbio e determinar a compensação em dinheiro ou mercadoria, ou de dizer que absolutamente não haverá intercâmbio” [12]. Esta distinção coincide grosseiramente com a distinção que fazemos entre intervenção na produção e nos preços. Está claro que uma consideração econômica quanto ao sistema do intervencionismo não poderia de modo algum ser diferente.
Em sua análise sobre “controle de assuntos secundários ao contrato”, J. M. Clark não chega a qualquer conclusão diferente daquela a que chegamos na análise sobre a intervenção na produção. Ele também conclui que “tais restrições impõem alguns ônus à indústria” [13]. Isso é tudo o que nos interessa na sua argumentação. Seu exame dos prós e contras políticos dessa intervenção é irrelevante para o nosso problema.
Analisando o controle do “cerne do contrato”, que, de um modo geral, corresponde à intervenção nos preços, Clark primeiro menciona o controle americano das taxas de juros. Afirma que esse controle é ilusório, em função dos custos adicionais secundários que elevam a taxa nominal para os tomadores de empréstimos. Um comércio ilegal desenvolve-se em torno de pequenos empréstimos para os consumidores. Como as pessoas decentes não se envolvem nessas transações, estas ficam por conta de operadores inescrupulosos. Por outro lado, como nestas transações deve-se evitar a publicidade, são cobradas e aceitas taxas de juros exorbitantes, que excedem em muito às que prevaleceriam se não houvesse tabelamento. “É comum cobrarem-se taxas de várias centenas de percentual ao ano. A lei multiplica por dez os males da extorsão” [14].
Não obstante, o Professor Clark não acredita que a fixação de taxas seja ilógica. Em geral, o mercado de empréstimo, mesmo para essa categoria de empréstimos ao consumidor, deve ser deixado livre, por uma lei que proíba uma taxa de juros mais alta do que a de mercado. “A lei… pode prestar um grande serviço evitando a cobrança de lucros que materialmente estão acima da taxa real de mercado”. De acordo com Clark, o método mais simples, portanto, é “fixar, para essa classe de empréstimos, uma taxa legal que cubra amplamente todos os custos e procedimentos necessários, e proibir que se cobrem acima desta taxa” [15].
Certamente, o tabelamento dos juros não cria problemas quando segue as taxas de mercado ou mesmo as excede. Mas essa medida será inútil e supérflua. No entanto, se for fixada uma taxa mais baixa do que aquela procedente da ação do mercado, todas as consequências, tão bem descritas por Clark certamente, aparecerão. Por que, então, a fixação de taxas? A resposta de Clark é que ela é necessária para evitar discriminação injusta [16].
O conceito de “injustiça” ou “discriminação indevida” tem origem no campo do monopólio [17]. Se o monopolista, como vendedor, tiver a possibilidade de classificar os compradores em potencial a que oferece sua mercadoria ou serviço, de acordo com seu poder aquisitivo e com a intensidade de seu desejo, podendo assim, estabelecer preços diferentes, é mais vantajoso para ele, portanto, não ter um preço uniforme. Isso é o que acontece na maioria dos casos, com os meios de transporte, as usinas geradoras de energia elétrica e empresas similares. As taxas de fretes ferroviários representam um caso quase clássico de tal diferenciação. Mas não podemos chamar, sem maiores explicações, de “injusta” esta prática, acusação bastante ingênua e emocional dos intervencionistas contra os monopolistas. Entretanto, não cabe aqui nos envolvermos com a justificativa ética da intervenção. Do ponto de vista científico, devemos apenas observar que é possível haver a intervenção do governo no caso do monopólio.
Mas, há, também, um tratamento diferenciado das várias classes de compradores que vai de encontro aos interesses dos monopólios. Esse pode ser o caso em que o monopólio, sendo manipulado como parte de uma empresa de maior vulto, serve a objetivos que não representam o de maior lucro. Excluem-se todos os casos em que o monopolista ou é parte de uma associação compulsória ou age sob a influência desta, procurando alcançar determinados objetivos nacionais, militares ou sociais. Podem ser estabelecidas, por exemplo, taxas de frete convenientes para o comércio exterior ou para os serviços municipais, tarifas de acordo com a renda dos consumidores. Em todos estes casos, os intervencionistas aprovam a diferenciação. Para nós, são importantes apenas os casos em que o monopolista recorre à diferenciação, sem levar em consideração seus interesses de lucro. Pode ser que ele leve em consideração os interesses de outros empreendimentos seus, aos quais dê mais importância, ou então queira prejudicar um comprador por razões pessoais, ou forçá-lo a fazer ou a não fazer alguma coisa. Nos Estados Unidos, há estradas de ferro que têm favorecido determinados transportadores, com a concessão de taxas de frete mais baixas, o que frequentemente acaba forçando os transportadores concorrentes a encerrarem seus negócios ou a vender as firmas a preço muito baixo. O público, geralmente, censura essas medidas, porque favorecem a concentração industrial e a formação de monopólios. A opinião pública teme o desaparecimento da competição entre indústrias isoladas. Não reconhece que a competição entre produtores e vendedores se dá não apenas dentro de um ramo particular de produção, mas entre todos os ramos correlatos, e, por fim, entre todos os bens de consumo. E não reconhece também que o preço monopolizador cobrado pelos poucos monopólios verdadeiros—na área da mineração e de outros ramos primários da produção—não é assim tão prejudicial para todos, como os ingênuos adversários dos monopólios estão propensos a admitir [18].
Mas Clark não faz referência a monopólio no caso do mercado de empréstimos a consumidores, pequenos fazendeiros, comerciantes e homens de negócios. Como é possível fazer uma discriminação injusta? Quando um financiador não faz empréstimos à taxa de mercado, o tomador de empréstimo pode, simplesmente, procurar um outro. Naturalmente, não se pode negar que todos tendem—particularmente, entre aqueles que tomam o empréstimo, os devedores pertencentes a uma categoria socioeconômica mais baixa—a superestimar sua disponibilidade de crédito na praça e a estimar altas demais as taxas pedidas pelos credores.
J. M. Clark parte da análise da questão do controle de juros para a do salário mínimo. Ele acredita que a elevação “artificial” do salário leva ao desemprego, uma vez que eleva os custos de produção e, desta forma, o preço do produto. A quantidade que foi vendida a preço mais baixo não pode mais ser comercializada a preço mais alto. E se, por um lado, tal fato gera insatisfação nos compradores, que gostariam de adquirir o produto ao preço mais baixo, já fora de cotação, por outro, causa o desemprego de trabalhadores, dispostos a trabalhar por salários mais baixos. Finalmente, temos os empresários, dispostos a absorver este potencial de oferta e procura.
Até aqui, novamente, podemos concordar com Clark. No entanto, logo surge uma alegação que foge totalmente do assunto, qual seja, a de que “os controles que afetam as condições secundárias de emprego” devem ter as mesmas consequências, visto que, também, elevam os custos de produção [19]. Mas isso não corresponde à verdade. Se os salários são livremente determinados no mercado de trabalho, não pode haver, como decorrência de intervenções, aumento nos salários acima dos níveis de mercado. Entre essas intervenções estão a redução do tempo de trabalho, seguro obrigatório de trabalhadores à custa dos empregadores, regulamentação quanto às condições ambientais de trabalho, férias remuneradas etc. Todas essas despesas são transferidas para os salários e suportadas pelos trabalhadores. Esse fato não poderia ser levado em consideração porque essas intervenções de ordem social foram introduzidas, em primeiro lugar, numa época em que os salários reais vinham aumentando, enquanto o poder aquisitivo diminuía. A partir daí, os salários líquidos pagos aos trabalhadores continuaram a subir, não só em termos de dinheiro, mas também de poder aquisitivo—apesar de os custos sociais crescentes serem da responsabilidade dos empregadores. Seus cálculos dos custos salariais incluem, além do salário que têm de pagar a seus trabalhadores, todos os encargos sociais resultantes do emprego de cada um deles.
As outras observações de Clark não têm importância para o problema que ora discutimos. Ele acredita que os aumentos salariais, assim como outras intervenções a favor dos trabalhadores, “podem demonstrar autossuficiência, porque elevam o nível de eficiência pessoal e fornecem um estímulo adicional à pesquisa de métodos de aperfeiçoamento, por parte do empregador ou porque eliminam os empregadores menos eficientes, transferindo os negócios destes para os que os conduzirão com maior eficiência” [20]. Esta luta pela sobrevivência, porém, aconteceria no caso de um terremoto, ou de qualquer outra catástrofe natural.
O Professor Clark tem um excelente conhecimento teórico e é bastante sensível para não notar quão insustentável é, na verdade, seu raciocínio. Conclui, consequentemente, que a questão de uma determinada intervenção ser uma “violação da lei de economia”, ou não, é, basicamente, “uma questão de grau”. Clark assegura, em sua análise final, que devemos considerar até que ponto a intervenção afeta os custos de produção ou preços de mercado. A lei da oferta e da procura “não é de uma precisão e rigidez inexorável”, Muitas vezes “uma pequena mudança nos custos de produção” não afeta absolutamente os preços finais—é o caso, por exemplo, de quando o preço é, normalmente, cotado em números redondos, e os negociantes absorvem pequenas alterações nos custos ou nos preços de atacado. É essa a palavra final de Clark: “Uma grande elevação dos salários pode ser uma ‘violação da lei econômica’, no sentido em que estamos usando o termo, mas um pequeno aumento, não” [21].
Com cuidadosa reflexão, o Professor Clark rende-se a todas as objeções daqueles que denominaram o intervencionismo de impróprio e ilógico. É evidente e inegável que as consequências quantitativas de uma intervenção dependem da severidade da intervenção. Um leve terremoto destrói menos que um grande, e um terremoto muito pequeno pode não deixar quaisquer vestígios.
Contudo, é totalmente irrelevante que Clark mantenha-se fiel à afirmação de que estas intervenções podem ser feitas e defendidas. Ele é obrigado a admitir que isso leva a outras medidas que visam a atenuar as consequências. Por exemplo, quando são impostos controles de preços, deve haver também um racionamento de modo a neutralizar a discrepância entre oferta e demanda. E será necessário estimular a produção diretamente, uma vez que não haverá o impulso normal [22]. Nesse ponto, infelizmente, Clark interrompe sua análise. Se ele a tivesse continuado teria, necessariamente, chegado à conclusão de que há, apenas, duas alternativas: ou evitar toda e qualquer intervenção ou, então, se não quiser proceder assim, promover sempre novas intervenções, a fim de eliminar “a discrepância entre oferta e demanda que a política em favor da coletividade criou”, até o ponto em que toda a produção e distribuição estejam controladas pelo sistema social de coerção, ou seja, até o ponto em que os meios de produção sejam nacionalizados.
No caso da legislação do salário mínimo, a solução do Professor Clark é bastante insatisfatória: ele recomenda que os trabalhadores que perderam seus empregos sejam absorvidos pelo serviço público [23]. E quando, ao solicitar a intervenção do governo, aponta para a “energia, inteligência e lealdade” dessas pessoas, apenas revela sua falta de discernimento [24].
Do princípio ao fim do capítulo referente a fundamentos, Clark conclui que o “governo pode fazer um grande bem, se simplesmente cuidar para que todos gozem das vantagens dos níveis de mercado, seja ele qual for, impedindo, desta forma, que os menos esclarecidos sejam explorados por causa de sua ignorância” [25]. Isso coincide de forma total com a posição do liberalismo clássico: o governo deve limitar-se à proteção da propriedade privada e à eliminação de todos os obstáculos de acesso ao mercado livre por parte de indivíduos ou de grupos. Isto, em outras palavras, nada mais é que o princípio do laissez faire, laissez passer. Não importa que o Professor Clark aparentemente acredite que um programa de informações especiais seja necessário para a realização desse objetivo; a ignorância da situação de mercado por si só não pode impedir que os compradores em potencial e os trabalhadores tirem partido da situação. Se os vendedores e empresários não forem obstruídos na sua busca de consumidores e empregados, a concorrência entre eles reduzirá os preços dos bens de consumo e elevará os salários até que atinjam os níveis de mercado. Contudo, sejam quais forem esses níveis, os princípios do liberalismo clássico não serão violados, se o governo se encarregar de publicar dados importantes sobre a formação dos preços de mercado.
Assim, o resultado da pesquisa de Clark sobre o problema de que tratamos não contradiz a análise que anteriormente fizemos neste ensaio. Apesar da avidez de Clark em provar que as intervenções populares não são inadequadas e ilógicas, ele não teve êxito em acrescentar ao debater outra coisa além da observação de que as consequências são irrelevantes, se a intervenção não for quantitativamente importante, e que intervenções importantes têm consequências indesejáveis que devem ser amenizadas através de uma intervenção ainda maior. Infelizmente, Clark interrompeu sua análise nesse ponto. Se tivesse prosseguido na sua linha de raciocínio—o que aliás, deveria ter feito—teria chegado às duas únicas alternativas: ou se permite que a propriedade privada dos meios de produção funcione livremente, ou se transfere o controle dos meios de produção para uma sociedade organizada, para seu aparelho de repressão, o estado. Clark teria concluído que não pode haver outra alternativa fora do socialismo ou do capitalismo.
Dessa forma, nem a obra de Clark—que é a expressão mais completa do intervencionismo americano—consegue chegar a conclusões diferentes no exame das questões básicas sobre intervencionismo. O intervencionismo é um sistema contraditório e inadequado, mesmo sob o ponto de vista de seus patrocinadores, que não pode ser executado com lógica e cuja introdução só pode acarretar distúrbios no funcionamento uniforme da ordem social com base na propriedade privada.
Devemos a Richard Strigl, da Escola Austríaca, a mais recente análise alemã sobre o problema em questão. Embora não tão famoso quanto J. M. Clark, ele também simpatiza com o intervencionismo. Todo o seu trabalho—no qual procura analisar, teoricamente, os problemas salariais do intervencionismo [26]— reflete, claramente, seu desejo de enaltecer, tanto quanto possível, a política social em geral e as políticas sindicalistas em particular. Todas as afirmações de Strigl são cuidadosamente apresentadas; ele age da mesma forma como agiam os autores de séculos passados, ou seja, escolhendo as palavras para escapar a questionamentos ou críticas [27]. Mas todas as concessões que faz ao pensamento intervencionista dizem respeito apenas a considerações secundárias e à própria formulação da doutrina. Considerando o problema em si, a análise perceptiva de Strigl chega à mesma conclusão que a apresentada pela análise econômica científica. O ponto principal de sua doutrina está presente nessa frase: “Quanto mais serviço um trabalhador puder realizar, mais ele ganhará, desde que seu trabalho seja útil à economia; não importa que seu salário seja determinado pelo mercado livre, ou estabelecido pelo contrato coletivo” [28]. Evidentemente, ele lamenta que seja assim, mas não pode nem quer negar o fato.
Strigl ressalta que as elevações artificiais de salário geram desemprego [29]. Isto acontece, sem dúvida, no caso em que se elevam os salários apenas em certas indústrias ou em determinados países; no caso de os salários sofrerem aumentos desiguais em diferentes indústrias e países ou quando utilizam políticas monetárias que visam refrear uma elevação geral dos preços. Sem dúvida, a questão levantada por Strigl é importante para uma compreensão das condições atuais. Entretanto, para uma compreensão total do problema, devemos considerar uma outra hipótese básica. Para ter validade universal, nossa análise deve presumir que a elevação nos salários ocorre de maneira homogênea e simultânea nas diferentes indústrias e países, e que os fatores monetários não intervêm. Só, então, poderemos compreender integralmente o intervencionismo.
De todas as medidas intervencionistas, possivelmente, nenhuma está enfrentando maiores críticas na Alemanha e na Áustria que a da jornada de trabalho de oito horas. Muitos acreditam que a emergência econômica pode ser solucionada apenas através da rejeição da lei das oito horas: são necessários mais trabalhos e trabalho mais intensivo, Todos concordam que o prolongamento do horário de trabalho e o melhoramento na eficiência do trabalho não seriam acompanhados de salários mais altos, ou pelo menos, que os aumentos estariam condicionados à elevação da eficiência no trabalho, de modo que o trabalho se tornaria menos caro. Simultaneamente, exige-se uma redução em todas as espécies de “custos sociais”, tais como a eliminação do “imposto de previdência social” que os comerciantes da Áustria devem pagar. Admite-se, tacitamente, que o empregador guardaria o dinheiro poupado nestas reduções de custo, e que os custos do trabalho seriam, assim, indiretamente reduzidos. Em nossos dias, pouco se faz no sentido de se reduzirem diretamente os salários.
Em revistas sobre problemas sociais e na literatura sobre economia, a discussão sobre os problemas da jornada de oito horas e da intensidade do trabalho revela um progresso lento, mas firme, rumo à compreensão da economia. Até mesmo os autores que não escondem sua inclinação para o intervencionismo admitem que os argumentos mais importantes contra o intervencionismo são convincentes. Raramente ainda encontramos a cegueira na compreensão fundamental dos aspectos básicos desses assuntos que eram uma característica de nossa literatura anterior à guerra.
Certamente, a supremacia da escola intervencionista não foi ainda sobrepujada. Do socialismo estatal e estatismo de Schmoller e do socialismo igualitário e comunismo de Marx, apenas os nomes sobreviveram na vida política; o ideal socialista em si deixou de exercer uma influência política direta. Seus seguidores, mesmo aqueles que estavam dispostos a derramar sangue em sua defesa há alguns anos, agora o postergaram ou esqueceram-no inteiramente. O intervencionismo, porém, tal como defendido por Schmoller e Marx—Schmoller, com determinação, já que era ferrenho inimigo de toda “teoria”; Marx, com consciência pesada, já que o intervencionismo estava em contradição com todas as suas teorias—domina agora a opinião geral.
Não é o caso de examinar, aqui, se já há condições políticas suficientemente desenvolvidas para o povo alemão e para outras nações líderes poderem abandonar as políticas intervencionistas. Uma análise imparcial da situação pode tornar evidente que o intervencionismo continua progredindo, o que é inegável quanto à Grã-Bretanha e aos Estados Unidos da América do Norte. Defender, porém, o intervencionismo como significativo e importante, do ponto de vista da teoria econômica, é tão inútil hoje, quanto foi no passado. Na realidade, o intervencionismo não é significativo nem importante qualquer que seja o ponto de vista adotado. Não há uma correlação entre a economia e o intervencionismo. Todos os êxitos intervencionistas na política aplicada sempre foram “vitórias sobre a economia”.
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Notas
[1] Archiv fur Sozialwissenschaft und Sozialpolitik (Arquivos de ciência e política social), vol. 36, 1926.
[2] Othmar Spann, Der wahre Staat (O verdadeiro estado), Leipzig, 1921, pág. 249.
[3] Pode provocar alguma dúvida a conveniência de um terceiro grupo: interferência pela taxação, que consiste em expropriação de alguma riqueza ou renda. Não levamos em consideração este grupo porque os efeitos dessa intervenção podem, em parte, ser idênticos aos das restrições de produção, e, em parte, influenciar a distribuição da renda da produção, sem redirecionar a produção em si.
[4] Para uma crítica destas noções, ver Nation, Staat und Wirlschaft (Nação, Estado e Economia), de minha autoria, Viena, 1919, p. 56 et seq., especialmente com relação às políticas alemãs, a partir da década de 1870.
[5] Em relação à eficácia de controles de preços versus preços monopolizadores, ver, de minha autoria, “Theorie der Preistaxen” (Teoria de controles de preços) em Handwörterbuch der Staatswissenschaften(Manual de ciências sociais, 4.a ed. vol. VI, p. 1061 et. seq.). Esse ensaio também consta deste livro, Para entender o controle de preços que visa ao estabelecimento de preços monopolísticos, não nos devemos deixar influenciar pela terminologia popular, que vê ‘”monopólios” em toda parte, mas trabalhar com os conceitos estritamente econômicos de monopólio.
[6] Deve-se observar que a questão que estamos examinando aqui não é a de se os níveis salariais podem ou não ser elevados permanente e universalmente pela negociação coletiva. Queremos avaliar as consequências de uma alta geral de salário obtida artificialmente por pressão. Para evitar o surgimento de uma dificuldade teórica relacionada ao dinheiro, tal como a impossibilidade de haver um aumento geral nos preços sem que haja uma alteração na razão entre a quantidade de dinheiro e sua demanda, é preciso pressupor que, juntamente com a alta de salários, se vá verificar uma redução correspondente na demanda pelo dinheiro através de redução nas reservas de caixa (por exemplo, em consequência de pagamentos adicionais).
[7] Nota do Editor: um alemão no século XIX (1789-1846) defensor do uso de tarifas protecionistas para estimular o desenvolvimento industrial nacional.
[8] Sobre a questão de como um acordo coletivo pode elevar temporariamente os índices salariais, ver o ensaio de minha autoria, “Die allgemeine Teuerung im Lichte der theoretischen Nationalökonomie” (Os altos custos de vida à luz da teoria econômica) no vol. 3.7 de Archiv, p. 570 et seq. Sobre as causas do desemprego, ver C. A. Verijn Stuart, Die heutige Arbeislosigkeit im Lichte der Welwirtschaftschaltsiage(Desemprego contemporâneo à luz da economia mundial), Iena, 1922, p. 1 et seq.. L. Robbins, Wages,Londres, 1926. p. 58 et seq.
[9] Zwiedineck-Südenhorst, “Macht oder ökomisches Gesetz” (Controle ou lei econômica), Yearbook de Schmoller, 49 ano, p. 278 et seq.
[10] Ver a importante descrição desse método feita por Pohle. Die gegenwártige Krisis in der deutschen Volkswirtschaftslehe (A crise atual na economia alemã) 2.a ed. Leipzig, 1921, p. 115 et seq.
[11] J. M. Clark, Social Control of Business, (Chicago; University of Chicago Press, 1926).
[12] lbid., p. 450. Para evitar qualquer mal-entendido, gostaria de enfatizar que essa distinção nada tem a ver com a distinção da lei pública entre essentialia, naturalia e accidentalia negotti (o indispensavelmente necessário, os recursos naturais e os assuntos de contrato).
[13] lbid., p. 451.
[14] lbid. p. 453 et seq.
[15] lbid., p. 454.
[16] lbid.,
[17] Veja a volumosa literatura americana—Nash. The Economies of Public Utilities, Nova York, 1925, p. 97, 371. Wherry, Public Utilities and the Law, Nova York, 1925, pp. 3 et seq., 82 et seq., 174. Veja também Clark, op. cit. p. 398 ei seq.
[18] Ver Gemeinwirtschaft, de minha autoria, Iena, 1922, p. 382 et seq. (Edição em língua inglesa); Socialism(Londres: Jonathan Cap.e 19363, p. 391 et seq.): Também de minha autoria, Liberatismus, Iena 1927, p. 80 et seq. (Edição em língua inglesa: The Free and Prosperous Commonwealth (Nova York: D. Van Nostrand Co., Inc. 1962-. p. 92 et seq.)).
[19] Clark, op. cit., p. 455.
[20]ibid.,
[21]ibid.,
[22] Ibid.. p. 456.
[23]Ibid.
[24] ibid, p. 457.
[25]Ibid.,p. 459.
[26] Veja Strigl, Angewandte Lohntheorie. Unfersuchugen über die wirtschaftlichen Grundlagen der Socialpolitik. (Teoria salarial aplicada. Pesquisas sobre os fundamentos econômicos da política social), Leipzig e Viena, 1926.
[27]Ibid., principalmente p. 71 et seq.
[28]Ibid., p. 106.
[29]Ibid., p. 63. et seq., p. 116 et seq.