Uma raça para a todos escolarizar

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O grande erudito antifascista Ludwig von Mises alertou que as escolas governamentais são uma fonte inevitável de conflitos étnicos, pois as nacionalidades dominantes podem usá-las para doutrinarem as crianças de outras culturas, afastando-as dos seus pais e das suas comunidades.[1] No Canadá, esse era explicitamente o objetivo das escolas residenciais indígenas, as quais buscavam “matar o índio dentro da criança”.[2]

O governo canadense começou seriamente a escolarizar as crianças aborígenes por meio da criação, em 1883, do programa de escolas residenciais/internatos. A finalidade era tirar as crianças dos seus pais desobedientes e bárbaros e transformá-las em súditos britânicos submissos e civilizados.

Em 1996, quando a última escola residencial indígena fechou as portas, tal sistema já era famoso pelos padrões baixíssimos de educação e pelas elevadíssimas taxas de agressão física e sexual contra as crianças.[3]

Mas a fonte da brutalidade nas escolas residenciais era essencialmente a mesma de outras escolas públicas em estados multiculturais. Mises, um judeu austríaco, provavelmente estava pensando nos conflitos étnicos na sua terra natal quando escreveu:

Naquelas extensas áreas em que povos que falam línguas diferentes vivem juntos, lado a lado (…), [a] escola pode alienar as crianças da nacionalidade à qual os seus pais pertencem. (…) Quem controla as escolas possui o poder de prejudicar outras nacionalidades e beneficiar a sua própria. (Liberalism — In the Classical Tradition [“Liberalismo — Na Tradição Clássica”], p. 114)

No Canadá, era excepcionalmente amplo o abismo cultural entre as culturas dominantes inglesa, francesa e escocesa e as dezenas de culturas aborígenes subjugadas. Muitos europeus acreditavam que era o próprio destino deles dominar essa terra selvagem e que o destino dos nativos era desaparecer ou assimilar. Mas os nativos não estavam aquiescendo sem problemas.

Em 1886, um ano após as revoltas armadas dos Métis e dos Cree nas pradarias ocidentais, o inspetor das escolas indígenas John McRae comentou: “É improvável que qualquer tribo — ou quaisquer tribos — causasse problemas de natureza séria ao Governo caso os membros dela — ou delas — tivessem filhos completamente sob o controle do Governo.”[4]

Venham pela comida. Fiquem pelas algemas.

O estado contratou clérigos para administrarem as escolas (em parte porque eram baratos de contratar); e, como resultado, muitos ex-alunos identificam as suas terríveis experiências com o cristianismo missionário em vez de com o governo coercitivo. Com certeza, muitos professores supostamente cristãos nas escolas residenciais têm crimes hediondos pelos quais responder.

Mas o estado nomeou os diretores; construiu as escolas; financiou o sistema. Mais importante ainda: o estado encurralou as crianças dentro das escolas.

As escolas governamentais eram obrigatórias, compulsórias, para todos os indígenas menores de dezesseis anos. No início, os agentes do estado aplicavam essa regra apenas de modo esporádico; o governo, porém, tinha outros métodos de persuasão.

No final do século XIX, a maioria dos aborígenes do Canadá estava submetida a uma massiva regulamentação estatal. O estado os confinava em reservas e os proibia de venderem qualquer produto a não indígenas sem a permissão por escrito de um “agente indígena” do governo. Os aborígenes também não podiam (e na maioria dos casos ainda não podem) ser donos de qualquer imóvel nas reservas.

Não há liberdade sem liberdade econômica. Alguns pais aborígenes desejavam que os seus filhos recebessem uma educação ocidental. No entanto, como estavam economicamente presos à vida nas reservas, esses pais não podiam viajar, muito menos pesquisar boas opções. Ficavam presos ao provedor monopolista, as escolas residenciais.

Em outros casos, as famílias simplesmente estavam passando fome devido ao controle socialista sobre as suas vidas. Elas imaginavam que, nas escolas, os seus filhos pelo menos seriam bem alimentados. (Em relação a isso, eles, com frequência, estavam enganados.)

Outros pais, ainda, mantinham — da maneira como podiam — os seus filhos longe das mãos dos funcionários governamentais. Uma menina lembra que o pai dela “mandou que eu me escondesse nos bosques. Ele disse ao agente indígena que eu não me encontrava em casa, o que era verdade. Eu estava me escondendo num toco oco.”[5]

As próprias escolas frequentemente ficavam a quilômetros de distância das reservas nas quais as crianças moravam, em parte para economizar custos pelo funcionamento em localizações centrais, em parte para dificultar as fugas. Várias crianças faleceram tentando voltar para casa através da natureza selvagem.

Quando os professores capturavam um fugitivo, podiam chicoteá-lo na frente dos outros alunos, para servir de exemplo. Ou os professores, então, podiam trancafiá-lo em confinamento solitário por dias ou, simplesmente, acorrentá-lo à cama durante a noite.

Um pai que viajou para visitar a sua filha na escola viu uma menina com as pernas algemadas juntas de modo a impedi-la de obter velocidade suficiente para escapar.

Reeducação

Sobre as escolas públicas em geral, o intelectual misesiano Richard Ebeling, na sua introdução ao livro Separating School & State [“Separando a Escola e o Estado”], de Sheldon Richman, escreveu que

os pais eram vistos — e ainda são dessa forma considerados — como uma influência retrógrada e danosa nos anos de formação da criança, uma influência que deve ser corrigida. (…) A escola pública, portanto, é um “campo de reeducação”. (p. xiv)

Nas escolas residenciais, a reeducação era levada ao seu extremo lógico. Os professores acreditavam que todos os aspectos da educação de uma criança aborígene constituíam uma ameaça às chances dela de se tornar um súdito britânico leal.

Na sua maioria, as culturas das quais essas crianças estavam sendo arrancadas eram sociedades em grande parte anárquicas e voluntárias. Havia guerra, mas não recrutamento militar. Havia comércio, mas não tributação. Havia líderes, mas não governantes.

Havia anciãos para aconselharem, mas não havia reis ou presidentes para darem ordens.[6] Cada homem e cada mulher decidiam por si o que fazer a cada dia.

Tradicionalmente, o objetivo primordial da educação de uma criança em tal cultura estava em prepará-la para tomar decisões inteligentes por conta própria, a fim de ajudar a sua família a sobreviver e crescer. Por exemplo, para os caçadores Cree das florestas boreais, os momentos mais desafiadores na vida econômica de um homem aconteciam quando ele perseguia um animal na mata, sem ninguém por perto — estando a pessoa mais próxima a quilômetros de distância — para lhe dizer aonde ir ou o que fazer em seguida.

Portanto, os métodos educacionais dessas culturas preparavam as crianças para serem radicalmente independentes. Os pais quase nunca utilizavam castigos físicos. Ensinavam as crianças a lidarem com as suas próprias emoções e a tomarem as suas próprias decisões.

Não é de se espantar que os professores do governo achassem que essas pessoas fossem selvagens indisciplinados. Tais pessoas nunca aprenderam a obedecer.

Duncan Campbell Scott, o famoso poeta e burocrata de Assuntos Indígenas, temia que, “sem educação e com negligência, os índios formassem elementos indesejáveis e muitas vezes perigosos na sociedade”.[7]

Com o propósito de neutralizar esses elementos perigosos, os professores das escolas residenciais decidiram pela destruição de todos os símbolos que representassem a pertença de uma criança à sua cultura de origem. Os professores cortavam os cabelos longos e trançados das crianças e confiscavam as suas peles e os seus colares. Em vez disso, vestiam todos os alunos com uniformes escolares.

As seguintes fotos de antes-e-depois do aluno Cree “Thomas Moore” (cerca de 1897) mostram a intencionada transição de um selvagem ameaçador para um aluno obediente.

Sim: na foto de “antes”, ele está carregando um revólver.[8]

Os professores também tiravam os nomes que os pais deram aos filhos e os chamavam por novos nomes, nomes que os professores conseguiam pronunciar. (Em algumas escolas, eles simplesmente usavam números.) E os professores utilizavam a cinta ou algo pior em qualquer criança que falasse uma palavra na sua língua nativa — muitas vezes, a única linguagem que ela conhecia.

De fato, a equipe docente fazia uso de castigos corporais para quase todos os delitos imagináveis. Em 1896, um agente indígena observou que os métodos violentos dos professores “não seriam tolerados em uma escola para brancos por um único dia em qualquer parte do Canadá”.[9]

Mas as crianças dos selvagens precisavam aprender o que significava obedecer sob a ameaça da força. Elas, neste momento, entravam num mundo de controle total: conforme relatou um ex-aluno, os professores lhes diziam

quando ir ao banheiro, quando comer, quando fazer isto e aquilo, quando rezar. Inclusive nos diziam quando bocejar e tossir. As crianças não conseguem se conter quando tossem, mas nos diziam: “Parem com os latidos!”[10]

Essas escolas tinham por objetivo separar irrevogavelmente cada criança da cultura da sua família. Um aluno, Charlie Bigknife,

lembrou-se de lhe ter sido dito, depois que o seu cabelo foi cortado na escola File Hills, em Saskatchewan: “Agora você não é mais um índio.”[11]

Além de tudo isso, os professores — e alunos mais velhos, já deformados pelas escolas — abusavam sexualmente de muitos meninos e muitas meninas. A vergonha e a confusão das vítimas só agravavam o ataque psicológico às suas identidades.

“Isto nunca deve acontecer novamente”

 Os estudantes conceberam meios elaborados de resistência. Utilizavam linguagem de sinais para se comunicarem; realizavam incursões às cozinhas para furtarem a comida de qualidade superior dos professores; andavam em grupo para se protegerem de abusos; tentavam escapar repetidamente; e, às vezes, até mesmo colocavam fogo nas escolas.

Mas, no fim das contas, as escolas residenciais foram com frequência bem-sucedidas em solapar a capacidade dos seus alunos de terem funcionalidade no âmbito das culturas dos seus pais. Proibidas de falarem as suas línguas de origem por dez meses seguidos, as crianças frequentemente descobriam, ao voltarem para casa durante o verão, que não conseguiam entender os seus pais ou os mais velhos, nem explicar o que acontecera na escola. As crianças também não aprenderam nenhuma das habilidades necessárias para prosperarem economicamente, socialmente ou inclusive emocionalmente nas comunidades dos seus pais.

No Canadá, é assim que o Oeste foi conquistado.

Para muitas crianças, as escolas também deixaram de lhes proporcionar as habilidades que poderiam tê-las auxiliado a serem funcionais na economia canadense convencional (mesmo que todas as regulamentações sobre a vida indígena tivessem sido revogadas). Não é de se surpreender que, como provedor monopolista para uma população encarcerada, o sistema escolar mantivesse padrões baixíssimos de educação. Os abusos, o isolamento e a falta de educação real impediram que muitos formandos alcançassem a capacidade de serem membros saudáveis de qualquer sociedade.

No Canadá, está agora na moda dizer que a principal causa desse pesadelo foi a crença racista europeia na inferioridade indígena. Trata-se de um pensamento reconfortante; o racismo explícito tem apresentado diminuição durante grande parcela do século passado.

Mas o verdadeiro perigo permanece. Enquanto eu tiver o poder de tirar os seus filhos de você por dez meses ao ano, ensinando-lhes aquilo em que acredito e tratando-os como eu achar melhor, você e o seu modo de vida jamais estarão seguros. Se, ao invés, você tiver esse poder sobre os meus filhos, então eu e as minhas tradições jamais estaremos seguros.

Conforme Mises nos ensinou:

Em todas as áreas de nacionalidade mista, a escola é um prêmio político da mais elevada importância. Ela não pode ser destituída do seu caráter político enquanto permanecer uma instituição pública e compulsória. (Liberalism — In the Classical Tradition, p. 115)

O recente relatório da Comissão de Verdade e Reconciliação do governo canadense sobre essas escolas horríveis, horrorosas, conclui: “Isto nunca deve acontecer novamente.”

A melhor maneira de garantir que isso nunca aconteça novamente é dar ouvidos às palavras de Mises:

Na realidade, existe apenas uma solução: o estado, o governo, a legislação não devem, de forma alguma, envolver-se com a escolaridade ou a educação.

 

 

 

Bibliografia Consultada

John Milloy, A National Crime: The Canadian Government and the Residential School System, 1879 to 1986

Ludwig von Mises, Nation, State and Economy

Ludwig von Mises, Liberalism — In the Classical Tradition

Sheldon Richman, Separating School & State

Truth and Reconciliation Commission of Canada, They Came for the Children: Canada, Aboriginal Peoples, and Residential Schools

 

 

 

Artigo original aqui.

_________________________________

Notas

[1] Conferir a discussão dele sobre dialeto e linguagem padrão em Nation, State and Economy [“Nação, Estado e Economia”], começando na página 46, e a sua discussão sobre a função das escolas governamentais algumas páginas depois.

[2] They Came for the Children: Canada, Aboriginal Peoples, and Residential Schools [“Eles Vieram Pelas Crianças: Canadá, Povos Aborígenes e Escolas Residenciais”]. Comissão de Verdade e Reconciliação do Canadá. Esse útil relatório reúne depoimentos de diversos relatos escritos e orais de testemunhas oculares das escolas residenciais.

[3] No Canadá, muitos povos aborígenes consideram a palavra “índio” um estigma depreciativo. Trata-se também de, na legislação federal, uma categoria jurídica de pessoas. Portanto, um insulto está determinado nos estatutos.

[4] Citado em They Came for the Children: Canada, Aboriginal Peoples, and Residential Schools. Comissão de Verdade e Reconciliação do Canadá, p. 13.

[5] Citado em They Came for the Children: Canada, Aboriginal Peoples, and Residential Schools. Comissão de Verdade e Reconciliação do Canadá, p. 55.

[6] Em muitos casos, até mesmo a instituição de “chefes” era apenas uma fantasia europeia posteriormente codificada na legislação governamental.

[7] Citado em They Came for the Children: Canada, Aboriginal Peoples, and Residential Schools. Comissão de Verdade e Reconciliação do Canadá, p. 33.

[8] John Milloy chamou a minha atenção para essas imagens, as quis ele utilizou na capa do seu chocante e erudito livro denominado A National Crime: The Canadian Government and the Residential School System, 1879 to 1986 [“Um Crime Nacional: O Governo Canadense e o Sistema de Escolas Residenciais, 1879 a 1986”].

[9] Citado em They Came for the Children: Canada, Aboriginal Peoples, and Residential Schools. Comissão de Verdade e Reconciliação do Canadá, p. 38.

[10] Citado em They Came for the Children: Canada, Aboriginal Peoples, and Residential Schools. Comissão de Verdade e Reconciliação do Canadá, p. 24.

[11] They Came for the Children: Canada, Aboriginal Peoples, and Residential Schools. Comissão de Verdade e Reconciliação do Canadá, p. 22.

4 COMENTÁRIOS

    • Você é mesmo um enorme analfabeto funcional.

      O artigo deixa bastante claro que critica a compulsoriedade do sistema escolar. As crianças indígenas se tornavam prisioneiras das escolas, ficando sujeitas aos abusos — morais, físicos e sexuais — de professores e demais funcionários, os quais porventura eram missionários religiosos.

      O fato de alguém vestir uma batina ou ter um cargo numa organização religiosa não significa que esse indivíduo seja uma pessoa boa, correta, honesta, amorosa, santa.

      • “Com certeza, muitos professores supostamente cristãos nas escolas residenciais têm crimes hediondos pelos quais responder.”

        De fato, uma crítica isenta ao sistema de ensino compulsório do estado.

        • Reproduzo o contexto inteiro:
          ***
          “O estado contratou clérigos para administrarem as escolas (em parte porque eram baratos de contratar); e, como resultado, muitos ex-alunos identificam as suas terríveis experiências com o cristianismo missionário em vez de com o governo coercitivo. Com certeza, muitos professores supostamente cristãos nas escolas residenciais têm crimes hediondos pelos quais responder.

          Mas o estado nomeou os diretores; construiu as escolas; financiou o sistema. Mais importante ainda: o estado encurralou as crianças dentro das escolas.”
          ***
          Devemos separar a instituição da sagrada Igreja Católica Apostólica Romana — a valorosa “esposa de Cristo” que criou as bases através das quais o mundo ocidental se formou e prosperou — das pessoas que ocupam cargos religiosos. Apenas isso. Muitíssimos religiosos católicos fizeram e fazem corretamente a sua parte e inclusive alcançaram e alcançam a Santidade. Muitíssimos outros, infelizmente, trilharam e trilham o negro caminho do crime e do pecado.

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