A Economia do Intervencionismo

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22. História: mais Bastiat e menos Marx

Reler os livros de História Geral depois de estudar teoria econômica nos revela a necessidade de uma gigantesca tarefa revisionista. A leitura de tais livros nos passa a sensação de que tudo o que foi escrito em Economia nos últimos 140 anos jamais existiu, mesmo se tomarmos os autores que se julgam menos comprometidos com o referencial marxista.Nesses livros, o estudo de uma civilização ainda tende a se iniciar com a descrição de aspectos técnicos de alguma atividade produtiva, a partir da qual se organizam classes econômicas cujos interesses conflitantes determinam as relações sociais e explicam as instituições.

Sendo assim, ainda predomina a crença historicista de que a teoria econômica moderna só seria aplicável ao período histórico referente àquilo que denominam “modo de produção capitalista”. No entanto, mais de um século se passou desde que a produção deixou de ser o problema central da teoria econômica, em favor da concepção mais ampla e fundamental segundo a qual o problema econômico central se refere ao modo como os recursos produtivos escassos são direcionados aos fins mais importantes segundo a apreciação dos indivíduos. Se a sociedade for composta por mais do que poucas centenas de pessoas, necessariamente nos deparamos, em qualquer época ou local, com o problema que diz respeito à forma pela qual são coordenadas as ações individuais quando o problema alocativo se torna cada vez mais complexo. O problema é o mesmo, caso tenhamos mercados, trabalho escravo, servidão ou se as decisões forem tomadas de forma descentralizada ou por um déspota racionalista, um comitê eleito ou um mago leitor de borras de café. Construir pirâmides no Egito envolvia custos de oportunidade e aumentar a produção do bem x em Atenas também envolvia a coordenação das intenções dos seus usuários e dos produtores que utilizariam os insumos para outra coisa. A riqueza produzida nessas ocasiões também dependia do grau de sucesso da coordenação de planos.

Os autores de livros de história ainda acreditam que a Economia não tem aplicação geral porque depende da hipótese de agentes egoístas, ignorando que a teoria moderna apenas utiliza a hipótese de agentes que tenham propósitos, não importando a natureza dos mesmos.

Mas não apenas o problema econômico é universal, como também as regularidades estudadas pela Economia se manifestam em todas as épocas e lugares. Políticas como controles de preços, expansão monetária, restrições ao comércio e a existência de regras que, por um lado, garantam a propriedade privada ou, por outro, estimulem a atividade de rent-seeking, tiveram as mesmas consequências na China antiga, no Império Romano, na Europa medieval ou no Brasil contemporâneo. Mas, em vez de utilizar as diversas ferramentas econômicas modernas para explicar como as sociedades se tornam mais ou menos prósperas, a narrativa histórica ainda apela para hipóteses ad hoc clássicas, como revoluções técnicas exógenas, quebras de safras, epidemias ou invasões bárbaras para explicar a expansão e declínio das civilizações.

Nas narrativas sobre a Revolução Francesa, ainda ouvimos falar de indivíduos que representam politicamente a “classe burguesa”, como se a teoria do valor de trabalho que fundamenta a teoria marxista da exploração no “capitalismo” não tivesse sido superada ainda no século XIX, tornando vazias as velhas noções de classe.

Os autores escrevem como se tal teoria de exploração não tivesse em Economia sido substituída por outra, baseada na oferta de privilégios legais derivados do poder político, como é feito pela moderna Escola da Escolha Pública. Nessa última, não existem forças econômicas que definem uma classe: é o poder político que, ao conferir privilégios legais, cria castas com interesses comuns.

Essa última constatação é muito bem exploradas pelos textos de Raico[1], que fornecem um excelente ponto de partida para a substituição da teoria marxista da exploração por outra mais adequada, derivada da teoria da exploração do liberalismo clássico francês, abrindo caminho para trabalhos críticos da historiografia prevalecente.

Dada a grande necessidade de revisionismo histórico que inclua as ferramentas fornecidas pelas teorias econômicas modernas, é de se esperar que tal tarefa já tenha sido empreendida em algum grau. De fato, existem inúmeros exemplos, dos quais citaremos apenas alguns. Talvez o esforço mais conhecido de história informada pela teoria econômica moderna seja o trabalho de Douglass North[2] a partir da teoria neoinstitucional, que, retomando o caminho inicialmente trilhado por autores como Smith e Say, mostra como a qualidade das regras do jogo institucional dão conta de explicar a prosperidade relativa das sociedades. Diversos autores efetuam estudos de instituições comparadas para mostrar os efeitos de fatores como governo limitado e respeito à propriedade privada no desempenho das nações. Outro exemplo de trabalho histórico pautado pela teoria econômica moderna foi dado por Mises[3], que explorou de forma fascinante a relação entre estatismo, protecionismo e guerra na Alemanha. Além de construir histórias alternativas, podemos encontrar entre economistas críticas das interpretações históricas ortodoxas que se tornaram verdadeiros mitos, como aqueles sobre os impactos da revolução industrial ou aquele sobre a grande depressão da década de 1930.

A despeito da quantidade cada vez maior desse tipo de pesquisa, a probabilidade de que certos mitos deixem de ser ensinados aos alunos é pequena. A visão de mundo marxista ainda fornece uma guia para a interpretação padrão da história. Para que tenhamos sucesso na tarefa de desenvolvimento e divulgação de uma interpretação alternativa, que utilize a teoria econômica moderna, não devemos apenas utilizar a teoria econômica como ferramenta ocasional, mas desenvolver uma visão de mundo alternativa que organize a narrativa. Precisamos de um referencial que substitua Marx por Bastiat.

Embora anterior à Revolução Marginalista, Bastiat[4] antecipa em sua obra vários aspectos da teoria modernos, úteis para a organização de nossa história alternativa. Em primeiro lugar, temos em Bastiat de fato uma interpretação da história calcada em termos de uma teoria da exploração alternativa, que pode ser encontrada tanto nos economistas clássicos quanto nos austríacos e autores da Escola de Escolha Pública modernos. Segundo essa teoria, existem apenas duas formas de interação social: ação voluntária e roubo. Para Bastiat, o roubo assume a forma de escravidão, pilhagem de guerra, servidão, fraude induzida por teocracia e, modernamente, a pilhagem legal derivada da ação estatal.

Segundo essa concepção, uma sociedade prospera conforme suas instituições facilitem os ganhos esperados de se dedicar à atividade voluntária, em comparação com a atividade de pilhagem. Se as instituições favorecerem a atividade de rent-seeking, aumenta a proporção de pessoas que vivem à custa das demais, reduzindo em proporção a atividade produtiva, relativa às ações voluntárias. Podemos imaginar um modelo no qual, no equilíbrio, temos a igualdade entre os retornos marginais esperados da produção e pilhagem, mas, conforme a qualidade das instituições varie, teremos proporções diferentes de produtores e predadores, o que resulta em sociedades marcadas respectivamente pela prosperidade ou declínio.

Utilizando-se esse referencial comum, as diferenças entre a Washington moderna e a Roma antiga empalidecem em comparação com as semelhanças. Nos dois contextos, fica cada vez mais vantajoso competir na arena política, em busca de privilégios monopolísticos, do que investir em inovação, para competir na arena econômica. Surgem assim os mesmos fenômenos resultantes desse processo: perda de dinamismo econômico, desvio de poupança para financiamento de déficit público, desvalorização monetária e aumento de protecionismo. Mas o destino será o mesmo?

Se acrescentarmos um aspecto dinâmico ao nosso modelo de parasitismo, voltamos à nossa análise da dinâmica do sistema intervencionista. A nova historiografia deveria então substituir a noção de modo de produção capitalista pela noção de sistema econômico intervencionista. De posse dessa visão, podemos estudar a evolução histórica das sociedades, identificando as condições que isolaram uma sociedade da atividade predadora, tanto externa (guerra) quanto internamente, permitindo o desenvolvimento de fase comercial e consequente florescimento da sociedade. A geração de riqueza, por sua vez, atrai os dois tipos de atividade de predação, convidando a expansão dos governos e do rent-seeking, responsável pela eventual estagnação e declínio. Ou, por outro lado, como as limitações à liberdade individual condenaram no passado a maioria das sociedades à miséria ainda nos primeiros estágios de desenvolvimento.

A ilustração empírica da teoria ao longo da história, ou seja, o estudo da dinâmica do intervencionismo em diversas civilizações, se depara com uma dificuldade de ordem metodológica, derivada também de considerações bastiatianas (ou hayekianas) sobre a natureza abstrata da ordem espontânea dos mercados.

Como mostrou Hayek, o aumento da complexidade do problema alocativo que necessariamente acompanha o desenvolvimento econômico das sociedades faz com que progressivamente tenhamos que substituir relações pessoais por normas abstratas, impessoais. Quanto mais produtiva e, portanto, complexa a estrutura do capital, menor será o conhecimento de cada agente sobre os detalhes do sistema econômico. Em outras palavras, a alienação no sentido marxista do termo é condição necessária para o desenvolvimento econômico. A consequência disso que nos interessa é que os agentes cada vez menos são capazes de apreciar o princípio de funcionamento de ordens espontâneas. Isso nos leva ao nosso problema metodológico.

Da mesma forma que em Biologia o registro fóssil é composto em essência por estruturais ósseas, de modo que conjecturas sobre a evolução do olho devem ser mais especulativas, na historiografia temos um viés estatista derivado do fato que os “fósseis históricos”, ou seja, os monumentos e palácios são reflexos da atividade estatal, de modo que temos dificuldade de documentar a fase anterior de prosperidade que possibilitou a extração de riqueza que financia os famosos “elefantes brancos” que encantam os turistas. De fato, é conhecida a ideia de que quanto mais despótico um governo, mais agradável será o turismo na região alguns séculos depois. As regiões ou períodos nos quais predominava a ação voluntária naturalmente tinham seus esforços voltados para construção do próprio bem estar, ao contrário das capitais e centros religiosos, com sua arquitetura suntuosa construída por atividade de pilhagem. Esta última, porém, só existe a partir da primeira.

Dada a distinção fundamental bastiatiana entre aquilo que se vê e aquilo que não se vê em Economia, ou seja, do entendimento da natureza abstrata das ordens espontâneas, devemos de acordo com isso corrigir nossa historiografia para que ela não coincida com a narração dos incríveis feitos proclamados pelos governantes, esquecendo a atividade livre e criativa que possibilitou previamente a prosperidade. A documentação das fases de recrudescimento da pilhagem estatal, por sua vez, é sujeita ao viés de que os documentos sobre o conflito geralmente foram escritos pelo lado predador da relação.

 



[1] Ver, por exemplo, Raico (1993).

[2] North (1990).

[3] Mises (1985).

[4] Bastiat (1995) e (1996b).

 

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