3. Carl Menger e os precursores da Escola Austríaca
3.1. Introdução
Apesar de existir acordo generalizado quanto ao fato de a Escola Austríaca ter nascido em 1871, com a publicação do livro de Carl Menger (1840-1921) intitulado Princípios de Economia Política (Menger, 1997), na realidade, o principal mérito deste autor consistiu em ter sabido recolher e impulsionar uma tradição do pensamento de origem católica e européia continental que se pode fazer remontar até ao nascimento do pensamento filosófico na Grécia e, de forma ainda mais intensa, até à tradição de pensamento jurídico, filosófico e político da Roma clássica.
Efetivamente, na Roma clássica descobriu-se que o direito é basicamente consuetudinário e que as instituições jurídicas (assim como as linguísticas e as econômicas) surgem como resultado de um longo processo evolutivo, incorporando um enorme volume de informação e conhecimentos que supera, e muito, a capacidade mental de qualquer governante, por mais sábio e bem intencionado que ele possa ser. Assim, sabemos graças a Cícero (De republica, II, 1-2), a forma como, para Catão: “o motivo pelo qual o nosso sistema político foi superior ao de todos os outros países é este: os sistemas políticos dos países restantes foram criados introduzindo leis e instituições de acordo com o parecer pessoal de indivíduos específicos, tais como Minos em Creta e Licurgo em Esparta. De forma diferente, a nossa república romana não se deve à criação pessoal de um homem, mas de muitos. Não foi fundada durante a vida de um indivíduo particular, mas sim durante uma sucessão de séculos e gerações. Porque nunca houve no mundo um homem com inteligência suficiente para tudo prever, e porque mesmo se pudéssemos concentrar todos os cérebros na cabeça de um mesmo homem, lhe seria impossível considerar tudo ao mesmo tempo sem ter acumulado a experiência que deriva da prática ao longo de um largoperíodo da história”. Como veremos, o núcleo desta ideia essencial constituirá o ponto fulcral do argumento de Ludwig von Mises sobre a impossibilidade teórica da planificação socialista, e será conservado e reforçado na Idade Média graças ao humanismo cristão e à filosofia tomista do direito natural, concebido como um corpo ético prévio e superior ao poder de cada governo terreno. Pedro Juan de Olivi, São Bernardino de Sena e Santo António de Florença, entre outros, teorizaram sobre o papel protagonista que a capacidade empresarial e criativa do ser humano tem como impulsionadora da economia de mercado e da civilização (Rothbard, 1999: 31-209). No entanto, o testemunho principal desta linha de pensamento foi recolhido, divulgado e aperfeiçoado pelo conjunto de grandes teóricos constituído pelos escolásticos do Século de Ouro espanhol os quais, sem qualquer dúvida, deverão ser considerados como os principais precursores da Escola Austríaca de Economia.
3.2. Os escolásticos do Século de Ouro espanhol como precursores da Escola Austríaca
Para Friedrich A. Hayek, os princípios teóricos da economia de mercado, assim como os elementos básicos do liberalismo econômico, não foram concebidos, como geralmente se acredita, pelos calvinistas e protestantes escoceses, sendo que, pelo contrário, são o resultado do esforço doutrinário empreendido pelos dominicanos e jesuítas membros da Escola de Salamanca durante o Século de Ouro espanhol (Hayek, 1988: 288-289). Hayek chegou mesmo ao extremo de citar dois dos nossos escolásticos, Luís de Molina e Juan de Lugo, no seu discurso de aceitação do Prêmio Nobel da Economia em 1974 (Hayek, 1976c: 19-20). Este economista austríaco começou a convencer-se da origem católica e espanhola da análise econômica austríaca a partir dos anos de 1950, graças à influência do professor italiano Bruno Leoni. Leoni convenceu Hayek de que as raízes da concepção dinâmica e subjetivista da economia eram de origem continental e de que, portanto, deveriam ser procuradas na Europa mediterrânica e na tradição grega, romana e tomista, mais do que na tradição dos filósofos escoceses do século XVIII (Leoni, 1995: 95-112). Além disso, Hayek teve a sorte de, durante esses anos, ter uma das suas melhores alunas, Marjorie Grice-Hutchinson, que se especializara em latim e literatura espanhola, levando a cabo, sob a orientação de Hayek, um trabalho de investigação sobre as contribuições dos escolásticos espanhóis no âmbito da economia, trabalho esse que, com o tempo, se converteu num pequeno clássico (Grice Hutchinson, 1952, 1982 e 1995).
Quem foram estes precursores intelectuais da moderna Escola Austríaca de Economia? A maioria deles foram dominicanos e jesuítas, professores de moral e teologia em universidades que, como a de Salamanca e a de Coimbra, constituíram os focos mais importantes do pensamento durante o Século de Ouro espanhol. (Chafuen, 1986). Analisaremos em seguida, de forma sintética, quais foram as suas principais contribuições para o que mais tarde seriam os elementos básicos da análise econômica austríaca.
Talvez devamos começar fazendo menção a Diego de Covarrubias y Leyva. Covarrubias (1512-1577), filho de um famoso arquiteto, chegou a bispo da cidade de Segóvia (em cuja catedral se encontra enterrado), sendo durante vários anos ministro do rei Filipe II. Em 1555, Covarrubias expôs melhor do que ninguém até então a essência da teoria subjetiva do valor, em torno da qual gira todo o enquadramento da análise econômica da Escola Austríaca, ao afirmar que “o valor de uma coisa não depende da sua natureza objetiva mas antes da estimação subjetiva dos homens, mesmo que tal estimação seja insensata”; aludindo para ilustrar a sua tese ao fato de que “nas Índias o trigo valer mais do que na Espanha porque ali os homens o estimam mais, e isso apesar de a natureza do trigo ser a mesma em ambos os lugares” (Covarrubias, 1604: 131). Covarrubias escreveu também um estudo sobre a evolução histórica da diminuição do poder aquisitivo do maravedí, antecipando muitas das conclusões teóricas sobre a teoria quantitativa da moeda que posteriormente seriam expostas por Martín de Azpilcueta e Juan de Mariana, entre outros. O estudo de Covarrubias incorpora um grande volume de dados estatísticos sobre a evolução dos preços no século precedente àquele em que viveu, e foi publicado em latim com o título deVeterum collatio numismatum. Esta obra de
Covarrubias é muito significativa, não apenas por ter sido citada de maneira laudatória em séculos posteriores pelos italianos Davanzati e Galiani, mas sobretudo por ser um dos livros citados por Carl Menger nos seus Princípios deEconomia Política (Menger , 1997: 325).
A tradição subjetivista iniciada por Covarrubias é continuada por outro notável escolástico, Luis Saravia de La Calle, que é o primeiro a tornar clara a verdadeira relação que existe entre preços e custos no mercado, no sentido de que, em todas as situações, são os custos que tendem a seguir os preços e não o contrário, antecipando-se assim na refutação dos erros da teoria objetiva do valor que seria posteriormente desenvolvida pelos teóricos da escola clássica anglo-saxônica, e que viria a se converter no fundamento da teoria da exploração de Karl Marx e dos seus sucessores socialistas. Assim, Saravia de la Calle, na sua obra Instrucción de mercaderes, publicada em castelhano em Medina del Campo em 1544, escreveu que “os que medem o preço justo de uma coisa segundo o trabalho, custos e riscos em que incorre quem produz a mercadoria cometem um grave erro; porque o preço justo nasce da abundância ou falta de mercadorias, de empresários e de moeda, e não dos custos, trabalhos e riscos” (Saravia de la Calle, 1949: 53).
Além disso, todo o livro de Saravia de la Calle se centra sobre a função do empresário, que ele denomina “mercader”, seguindo assim a já mencionada tradição escolástica sobre o papel dinamizador do empresário que remonta a Pedro João de Olivi, Santo António de Florença e, principalmente, São Bernardino de Sena (Rothbard, 1999: 113-121).
Outra notável contribuição dos nossos escolásticos foi a introdução do conceito dinâmico de concorrência (em latim,concurrentium), entendida como o processo empresarial de rivalidade que move o mercado e impulsiona o desenvolvimento da sociedade. Esta ideia, que haverá de converter-se no coração da teoria do mercado da Escola Austríaca, contrasta radicalmente com os modelos de equilíbrio de concorrência perfeita, monopolística e de monopólio analisados pelos neoclássicos, e levou também os escolásticos a concluir que os preços do modelo de equilíbrio (que eles denominaram “preços matemáticos”), que os teóricos neoclássicos socialistas pretenderam utilizar para justificar o intervencionismo e a planificação do mercado, nunca poderiam chegar a ser conhecidos. Assim, Raymond de Roover atribui a Luis de Molina o conceito dinâmico de concorrência entendida como “o processo de rivalidade entre compradores que tende a elevar o preço”, e que nada tem a ver com o modelo estático de “concorrência perfeita” que, no século XX, os denominados “teóricos do socialismo de mercado” ingenuamente acreditaram poder ser simulado num regime sem propriedade privada (Raymond de Roover, 1955: 169). Apesar disso, é Jerónimo Castillo de Bovadilla quem melhor expõe esta concepção dinâmica da livre concorrência entre empresários no seu livro Política para corregidores, publicado em Salamanca em 1585, onde ele afirma que a caracterísctica mais positiva da concorrência é conseguir “emular” o concorrente (Popescu, 1987: 141-159). Castillo de Bovadilla enuncia ainda a seguinte lei econômica, base da defesa do mercado por parte de todo o economista austríaco: “os preços dos produtos baixarão com a abundância, emulação e concorrência de vendedores” (Castillo de Bovadilla, 1985: 2, cap. 4, nº 49).
Quanto à impossibilidade de os governantes ou os analistas chegarem a conhecer os preços de equilíbrio e os demais dados de que necessitam para intervir no mercado ou para elaborar os seus modelos, destacam-se as contribuições dos cardeais jesuítas espanhóis Juan de Lugo e Juan de Salas. O primeiro, Juan de Lugo (1583-1660), questionando-se sobre a determinação do preço de equilíbrio, já em 1643 havia concluído que depende de uma tão grande quantidade decircunstâncias específicas que apenas Deus o pode conhecer (“pretium iustum mathematicum licet soli Deo notum“) (Lugo,1642: volume II, 312). O segundo, Juan de Salas, em 1617, referindo-se à possibilidade de que um governante possa chegar a conhecer a informação específica que dinamicamente se cria, descobre e usa no mercado, afirma que “quas exatecomprehendere et ponderare Dei est non hominum“, ou seja, que apenas Deus, e não os homens, pode compreender eponderar exatamente toda a informação e o conhecimento que são usados no processo de mercado pelos agentes econômicoscom todas as suas circunstâncias particulares de tempo e de espaço (Salas, 1617: 4, nº 6, 9). Como veremos, tanto Juan deLugo como Juan de Salas antecipam, em mais de três séculos, as mais refinadas contribuições dos mais destacadospensadores austríacos (especialmente Mises e Hayek).
Outro dos elementos essenciais do que depois se converterá na análise econômica da Escola Austríaca é o princípio da preferência temporal, segundo o qual, tudo o resto constante, os bens presentes são sempre mais valorizados do que os bens futuros. Esta doutrina foi redescoberta por Martín de Azpilcurta (o famoso doutor Navarro) em 1556, que por sua vez a tomou de um dos melhores discípulos de São Tomás de Aquino, Giles de Lessines que, já em 1285, havia afirmado que “os bens futuros não são tão valorizados como os mesmos bens disponíveis de imediato, nem têm a mesma utilidade para os seus proprietários. Por esta razão, o seu valor de acordo com a justiça há de ser mais reduzido” (Dempsey, 1943: 214).
Os efeitos distorcivos da inflação, entendida como toda a política estatal de crescimento da oferta monetária, foram também estudados analiticamente pelos escolásticos. Neste âmbito, destaca-se o trabalho do padre Juan de Mariana intitulado De monetae mutatione, traduzido para castelhano posteriormente pelo autor com o título de Tratado y discurso sobre la moneda de vellón que al presente se labra en castilla y de algunos desórdenes y abusos (Mariana, 1987). Neste livro, publicado pela primeira vez em 1605, Mariana critica a política seguida pelos governantes da sua época de baixar de forma deliberada o valor da moeda, embora não utilize o termo “inflação”, desconhecido na época, explica a forma como os efeitos da mesma são o incremento dos preços e a desorganização geral da economia real. Mariana critica também a política de estabelecimento de preços máximos para lutar contra os efeitos da inflação, política que ele considera não só incapaz de produzir efeitos positivos, mas também altamente danosa para o processo produtivo. Melhora-se assim a análise muito mais simplista, por ser exclusivamente macroeconômica, efetuada anteriormente por Martín de Azpilcueta em 1556, e antes dele por Copérnico no seu livro Monetae cudendae ratio, onde foi exposta pela primeira vez a típica versão, muito simplificada e mecanicista, da teoria quantitativa da moeda hoje tão divulgada (Azpilcueta, 1965: 74-75). São também importantes as contribuições dos nossos escolásticos para a teoria bancária (Huerta de Soto, 1997-1998: 141-165). Assim, por exemplo, é claríssima a crítica do Doutor Saravia de la Calle ao exercício do sistema bancário com reserva fracionária, no sentido de que a utilização em benefício próprio mediante concessão de empréstimos a terceiros, de dinheiro que é depositado à vista nos bancos é ilegítima e implica um pecado grave, doutrina que coincide plenamente com a que foi estabelecida pelos autores clássicos do direito romano, e que surge naturalmente da própria essência, causa e natureza jurídica do contrato de depósito irregular de dinheiro (Saravia de la Calle, 1949: 180-181, 195-197). Também Martín de Azpilcueta e Tomás de Mercado desenvolveram uma análise rigorosa e muito exigente sobre a atividade bancária que, embora não chegue aos níveis críticos de Saravia de la Calle, inclui um excelente tratamento das exigências que a justiça impõe que se observem no contrato de depósito bancário de dinheiro. Uns e outros, portanto, exigem implicitamente que a atividade bancária se exerça com um coeficiente de caixa de cem por cento, proposta esta que haverá de converter-se num dos elementos fundamentais da análise austríaca relativa à teoria do crédito e dos ciclos econômicos (Huerta de Soto, 1998). Menos rigorosa e, portanto, mais compreensiva com o exercício do sistema bancário de reserva fracionária, é a análise de Luis de Molina e Juan de Lugo, ainda que, de acordo com Dempsey, se estes autores tivessem conhecido detalhadamente o funcionamento e as implicações teóricas do sistema bancário com reserva fracionária, tal como os mesmos foram desenvolvidos por Mises, Hayek e o resto dos teóricos da Escola Austríaca, o processo de expansão do crédito e inflação fiduciária originado pelo sistema bancário com reserva fracionária teria sido considerado, pelos próprios Molina, Lesio e Lugo como um vasto e ilegítimo processo de usura institucional (Dempsey, 1943: 225-228).
Interessa, não obstante, ressaltar como Luis de Molina foi o primeiro teórico a salientar que os depósitos e o dinheiro bancário em geral, que ele denomina em latim chirographis pecuniarum, é parte integrante, da mesma forma que o dinheiro em espécie, da oferta monetária. De fato, Molina expressou em 1597, muito antes de Pennington em 1826, a ideia essencial de que o volume total de transações monetárias que se efetua numa feira não poderia ser pago com a quantidade de dinheiro metálico que na mesma muda de mãos, se não fosse pela utilização do dinheiro que os bancos geram através do registro dos seus depósitos e da emissão de cheques sobre os mesmos por parte dos depositantes. De tal forma que, como resultado da atividade financeira dos bancos, se cria a partir do nada uma nova quantidade de dinheiro sob a forma de depósitos que é utilizada nas transações (Molina, 1991: 147).
Finalmente, o padre Juan de Mariana escreveu outro livro intitulado Discurso sobre las enfermedades de La compañia, publicado com caráter póstumo em 1625. Neste livro, Mariana realiza uma análise puramente austríaca relativa à impossibilidade de um governo poder organizar a sociedade civil com base em ordens coercivas, e isto devido à falta de informação. De fato, é impossível ao Estado obter a informação de que necessita para dar um conteúdo coordenador às suas ordens, pelo que a sua intervenção tende a criar desordem e caos. Assim, Mariana, referindo-se ao governo, disse que “é um grande desatino que o cego queira guiar aquele que vê”, frisando que os governantes “não conhecem as pessoas, nem os fatos, pelo menos, com todas as circunstâncias que os envolvem, de que depende uma decisão acertada. É forçoso que se caia em muitos e graves erros, e que isso cause descontentamento às pessoas e as leve a menosprezar um governo tão cego”; conclui Mariana que “é louco o poder e o mando”, e que quando “as leis são muitas e em demasia, como não se podem preservar todas, nem sequer saber, a todas se perde o respeito” (Mariana, 1768: 151-155, 216).
Em suma, os escolásticos espanhóis do nosso Século de Ouro foram já capazes de articular o que depois viriam a ser os princípios mais importantes da escola austríaca de
Economia e, em concreto, os seguintes: primeiro, a teoria subjetiva do valor (Diego de Covarrubias y Leyva); segundo, a descoberta da relação correta que existe entre os preços e os custos (Luis Saravia de la Calle); terceiro, a natureza dinâmica do mercado e a impossibilidade de alcançar o modelo de equilíbrio (Juan de Lugo e Juan de Salas); quarto, o conceito dinâmico de concorrência entendida como um processo de rivalidade entre os vendedores (Castillo de Bovadilla e Luis de Molina), quinto, a redescoberta do princípio da preferência temporal (Martín de Azpilcueta); sexto, o efeito profundamente distorcivo que a inflação tem sobre a economia real (Juan de Mariana, Diego de Covarrubias e Martín de Azpilcueta);sétimo, a análise crítica do sistema bancário exercido com reserva fracionária (Luis Saravia de la Calle e Martín de Azpilcueta); oitavo, a descoberta de que os depósitos bancários são parte da oferta monetária (Luis de Molina e Juan de Lugo); nono, a impossibilidade de organizar a sociedade através de ordens compulsivas, por falta da informação necessária para dar um conteúdo coordenador às mesmas (Juan de Mariana), e décimo, a tradição liberal de que toda a intervenção injustificada no mercado constitui uma violação do direito natural (Juan de Mariana).
Existem, portanto, razões fundadas para concluir que a concepção subjetivista e dinâmica do mercado, ainda que tenha sido retomada e definitivamente impulsionada por
Menger em 1871, teve início na nossa pátria. A tradição do pensamento econômico da Escola Austríaca tem, pois, a sua origem intelectual na Espanha e mais concretamente numa escola, a de Salamanca, que, da mesma forma que a moderna Escola Austríaca, e em profundo contraste com o paradigma neoclássico, se caracteriza sobretudo pelo grande realismo e rigor dos seus pressupostos analíticos.
3.3. A decadência da tradição escolástica e a influência negativa de Adam Smith
Para compreender a influência dos escolásticos espanhóis sobre o posterior desenvolvimento da Escola Austríaca de Economia é preciso recordar, antes de tudo, que no século XVI, o imperador e rei de Espanha Carlos V enviou o seu irmão Fernando I para ser rei da Áustria. “Áustria” significa, etimologicamente, “parte este do Império”, Império que nessa altura compreendia praticamente a totalidade da Europa continental, com a única exceção importante da França, que permanecia isolada e rodeada por forças espanholas. É assim fácil compreender a origem da influência intelectual dos escolásticos espanhóis sobre a Escola Austríaca, e que não foi uma simples coincidência ou um mero capricho da história, mas que foi o produto de íntimas relações históricas, políticas e culturais que se desenvolveram entre a Espanha e a Áustria a partir do século XVI (Bérenguer, 1993: 133-335). Estas relações haveriam de manter-se durante vários séculos e nas mesmas também teve um papel importantíssimo a Itália, como ponte cultural através da qual fluíram as relações intelectuais entre ambos os extremos do Império (Espanha e Áustria). Por tudo isto, existem importantes argumentos para defender a tese de que, pelo menos nas suas origens, a Escola Austríaca é, em última instância, uma escola de tradição espanhola.
De fato, pode-se afirmar que o principal mérito de Carl Menger consistiu em redescobrir e impulsionar esta tradição católica continental de origem espanhola que, praticamente, estava esquecida e havia caído em decadência como consequência, por um lado, do triunfo da reforma protestante e da lenda negra contra tudo o que fosse espanhol e, por outro lado e +sobretudo, devido à muito negativa influência que as teorias de Adam Smith e do resto dos seus seguidores da Escola Clássica da Economia tiveram na história do pensamento econômico. De fato, como indica Murray N. Rothbard, Adam Smith abandonou as contribuições anteriores centradas na teoria subjetiva do valor, a função empresarial e o interesse em explicar os preços que se verificam no mercado real, substituindo a todas pela teoria do valor trabalho, sobre a qual Marx construirá, como conclusão natural, toda a teoria socialista da exploração. Além disso, Adam Smith concentra-se preferencialmente na explicação do “preço natural” de equilíbrio no longo prazo, um modelo de equilíbrio em que a função empresarial prima pela sua ausência no qual se supõe que toda a informação necessária já está disponível, pelo que virá depois a ser utilizado pelos teóricos neoclássicos do equilíbrio para criticar supostas “falhas de mercado” e para justificar o socialismo e a intervenção do estado sobre a economia e a sociedade civil. Por outro lado, Adam Smith impregnou a Ciência Econômica de calvinismo, por exemplo, ao apoiar a proibição da usura e ao distinguir entre ocupações “produtivas” e “improdutivas”. Finalmente, Adam Smith rompeu com o laissez-faire radical dos seus antecessores jusnaturalistas do continente (espanhóis, franceses e italianos) introduzindo na história do pensamento um “liberalismo” muito tíbio e tão empestado de exceções e relativizações que muitos teóricos “sociais-democratas” de hoje poderiam inclusivamente aceitar (Rothbard, 1999: 475-518).
A influência negativa que, do ponto de vista da Escola Austríaca, teve o pensamento da escola clássica anglo-saxônica sobre a Ciência Econômica acentua-se com os sucessores de Adam Smith e, em especial, com Jeremy Bentham, que inoculou o bacilo do mais estreito utilitarismo na nossa disciplina, impulsionando com ele o desenvolvimento de toda uma análise pseudo-científica de custos e benefícios (que se acredita que possam ser conhecidos), e o surgimento de toda uma tradição de “engenheiros sociais” que pretendem moldar a sociedade à sua vontade utilizando o poder coercivo do estado. Na Inglaterra, Stuart Mill culmina esta tendência com o seu abandono do laissez-faire e as suas numerosas concessões ao socialismo, e na França, o triunfo do racionalismo construtivista de origem cartesiana explica o domínio dos intervencionistas da École Polytechnique e do socialismo cientifista de Saint-Simon e Comte (Hayek, 1952a: 143-285). Afortunadamente, e apesar do obscurecedor imperialismo intelectual que os teóricos da escola clássica anglo-saxônica exerceram sobre a evolução da nossa disciplina, a tradição continental de origem católica impulsionada pelos nossos escolásticos do Século de Ouro espanhol nunca foi totalmente esquecida. Assim, esta corrente doutrinal influenciou dois notáveis economistas, um irlandês, Cantillon, e outro francês, Turgot, que podem em grande medida ser considerados os verdadeiros fundadores da Ciência Econômica. De fato, Cantillon, por volta do ano de 1730, escreve o seu Ensaio sobre a natureza do comércio em geral, que, segundo Jevons, é o primeiro tratado sistemático de economia. Neste livro, Cantillon realça a figura do empresário como motor do processo de mercado e explica ainda que o aumento da quantidade de dinheiro não afeta de imediato o nível geral de preços, uma vez que o seu impacto na economia real se dá por etapas, ou seja, sucessivamente e através de um processo que inevitavelmente afeta e distorce os preços relativos que surgem no mercado. Trata-se do famoso efeito Cantillon, logo copiado por Hume, e que foi depois retomado por Mises e Hayek na sua análise sobre a teoria do capital e dos ciclos (Cantillon, 1978).
Posteriormente, o marquês D’Argenson em 1751 e, sobretudo, Turgot, muito antes que Adam Smith, já haviam articulado perfeitamente o caráter disperso do conhecimento incorporado nas instituições sociais entendidas como ordens espontâneas, e cuja análise se haveria de converter num dos elementos essenciais do programa de investigação hayekiano. Assim, Turgot, no seu Elogio de Gournay, já em 1759, concluiu que “não é preciso provar que cada indivíduo é o único que pode julgar com conhecimento de causa o uso mais vantajoso das suas terras e do seu esforço. Somente ele possui o conhecimento específico sem o qual até o homem mais sábio se encontraria às cegas. Aprende com os seus intentos repetidos, com os seus êxitos e com os seus fracassos, e assim vai adquirindo um sentido especial para os negócios que é muito mais engenhoso do que o conhecimento teórico que pode ser adquirido por um observador indiferente, porque é impelido pela necessidade”. Refere-se igualmente Turgot, e neste aspecto segue o padre Juan de Mariana, à “completa impossibilidade de dirigir através de regras rígidas e de um controlo contínuo a multiplicidade de transações que, além de nunca poderem chegar a ser plenamente conhecidas devido à sua imensidade, também dependem continuamente de uma multiplicidade de circunstâncias em constante mudança que não podem controlar-se nem sequer prever-se” (Turgot, 1844: 275, 288).
Mesmo na Espanha, e durante a longa decadência dos séculos XVIII e XIX, a tradição dos nossos escolásticos não desapareceu completamente, e isto apesar do enorme complexo de inferioridade face ao universo intelectual anglo-saxônico típico daquela época. Prova disso é que outro autor espanhol de tradição católica foi capaz de resolver o paradoxo do valor e de enunciar com toda a clareza a lei da utilidade marginal vinte e sete anos antes de Carl Menger publicar os seusPrincípios de Economia Política. Trata-se do catalão Jaime Balmes (1810-1848), que durante a sua curta vida se tornou o mais importante filósofo tomista na Espanha do seu tempo. Assim, em 1844, publicou um artigo intitulado “Verdadeira ideia do valor ou reflexões sobre a origem, natureza e variedade dos preços”, em que ele não só resolveu o paradoxo do valor, como também expôs com toda a clareza a lei da utilidade marginal. Assim, Balmes questiona-se “Como é que uma pedra preciosa vale mais do que um pedaço de pão, do que um cômodo vestido, e talvez até do que uma saudável e grata vivenda?”; e responde: “não é difícil explicá-lo; sendo o valor de uma coisa a sua utilidade, ou aptidão para satisfazer as nossas necessidades, quanto mais precisa for para a satisfação delas maior será o seu valor; deve-se considerar também quese o número de meios aumenta, diminui a necessidade de cada um deles em particular, porque podendo-se escolher entremuitos, nenhum é indispensável. Aqui está por que razão há uma dependência necessária entre o aumento e diminuição do valor e a escassez e abundância de uma coisa. Um pedaço de pão tem pouco valor, mas é porque tem relação necessária com a satisfação das nossas necessidades, porque há muita abundância de pão, mas diminuam a sua abundância, e o seu valor rapidamente crescerá, até atingir um nível qualquer, fenômeno que se verifica em tempo de escassez, e que se torna mais palpável em todos os gêneros durante as calamidades da guerra numa praça acossada por um muito prolongado assédio” (Balmes, 1949: 615-624). Desta forma, Balmes foi capaz de fechar o círculo da tradição continental e deixá-lo preparado para que a mesma fosse completada, aperfeiçoada e impulsionada, poucas décadas depois, por Carl Menger, e pelo resto dos seus discípulos da Escola Austríaca de Economia.
3.4. Menger e a perspectiva subjetivista da Escola Austríaca: a concepção da ação como um conjunto de etapas subjetivas, a teoria subjetiva do valor e a lei da utilidade marginal
O jovem Menger, logo desde muito cedo, se deu conta de que a teoria clássica da determinação dos preços, tal como havia sido elaborada por Adam Smith e seus seguidores anglo-saxônicos, deixava muito a desejar. As suas observações pessoais sobre o funcionamento do mercado de bolsa de valores (durante algum tempo foi correspondente de bolsa para o WienerZeitung), assim como as suas investigações próprias, levaram-no a escrever aos trinta e um anos de idade, e como nos indica Hayek, num “estado febril de excitação” (Hayek, 1996d: 75), o que haveria de ser o livro que oficialmente deu nascimento à Escola Austríaca de Economia. Neste livro, o seu autor pretendeu estabelecer os novos fundamentos sobre os quais ele considerava necessário reedificar toda a Ciência Econômica. Estes princípios seriam, essencialmente, o desenvolvimento de uma ciência econômica baseada no ser humano considerado como ator criativo e protagonista de todos os processos e eventos sociais (Subjetivismo), assim como a elaboração, com base no Subjetivismo, e pela primeira vez na história do pensamento econômico, de toda uma teoria formal sobre o aparecimento espontâneo e evolução de todas as instituições sociais (econômicas, jurídicas e linguísticas) entendidas como esquemas pautados de comportamento. Todas estas ideias se incorporam no livro intitulado Princípios de Economia Política, publicado por Menger em 1871, que haveria de converter-se num dos livros mais influentes na história do pensamento econômico.
A ideia distintiva mais original e importante da contribuição de Menger radica, portanto, na tentativa de construir toda a economia partindo do ser humano, considerado como ator criativo e protagonista de todos os processos sociais. Menger considera imprescindível abandonar o estéril “objetivismo” da escola clássica anglo-saxônica, obcecada pela suposta existência de entidades externas de tipo objetivo (classes sociais, agregados, fatores materiais de produção etc.), devendo o cientista da economia situar-se, pelo contrário, sempre na perspectiva subjetiva do ser humano que atua, de maneira a que a referida perspectiva influencie de forma determinante a forma de elaborar todas as teorias econômicas. Hayek, comentando esta nova concepção subjetivista proposta por Menger, chegou mesmo a escrever que “provavelmente não é exagero afirmar que todos e cada um dos avanços mais importantes na teoria econômica que tiveram lugar durante os últimos cem anos foram o resultado de uma aplicação consistente da concepção subjetivista”, acrescentando que o Subjetivismo “foi impulsionado de forma mais coerente por Ludwig von Mises, de maneira que creio que a maioria das peculiaridades dos seus pontos de vista que inicialmente surpreendem os seus leitores se devem ao fato de ter aplicado de forma rigorosa o ponto de vista subjetivista muito mais do que os seus contemporâneos” (Hayek, 1952a: 30n.).
É possível que uma das manifestações mais características e originais deste novo impulso subjetivista proposto por Menger tenha sido a sua “teoria sobre os bens econômicos de diferentes ordens”. Para Menger, são “bens econômicos de primeira ordem” os bens de consumo, ou seja, aqueles que subjetivamente satisfazem as necessidades humanas de maneira direta e, portanto, constituem no contexto subjetivo e específico de cada ação o fim último que o ator pretende alcançar. Para atingir estes fins, bens de consumo ou bens econômicos de primeira ordem, é preciso passar previamente por uma série de etapas intermediárias, que Menger denomina “bens econômicos de ordem superior” (segunda, terceira, quarta e assim sucessivamente), sendo a ordem de cada etapa mais elevada conforme a mesma se encontre mais afastada do bem final de consumo. Concretamente, Menger afirma que “se dispomos dos bens complementares de uma ordem superior qualquer, temos que começar por os transformar em bens de ordem imediatamente inferior e levar adiante, passo a passo, este processo, até os converter em bens de primeira ordem, que já podemos utilizar para a satisfação direta das nossas necessidades” (Menger, 1997: 121).
Esta ideia seminal de Menger não é mais do que a consequência lógica da sua concepção subjetivista, na medida em que todo o ser humano pretende alcançar um fim que tem para ele um determinado valor subjetivo, e em função deste fim, emotivado pelo seu valor subjetivo, concebe e leva a cabo um programa de ação constituído por uma série de etapas, que ele considera serem necessárias para alcançar o referido fim, etapas que além disso adquirem uma utilidade subjetiva em função do valor do fim que o ator espera alcançar graças à utilização dos meios econômicos de ordem superior. Isto é o mesmo que dizer que a utilidade subjetiva dos meios ou bens econômicos de ordem superior virá determinada em última instância pelo valor subjetivo do fim ou bem final de consumo que aqueles meios permitam atingir ou alcançar. Assim, do ponto de vista subjetivo do ator, pela primeira vez na Ciência Econômica, e graças a Menger, teoriza-se com base num processo de ação constituído por uma série de etapas intermediárias que o ator empreende, leva a cabo e trata de concluir até alcançar o fim ou bem final de consumo (bem econômico de primeira ordem) que se propõe.
É que todo o ser humano, ao atuar, pretende alcançar determinados fins que descobriu, por alguma razão, serem importantes para ele. Denomina-se por valor a apreciação subjetiva, mais ou menos intensa psiquicamente, que o agente atribui ao seu fim. Meio é tudo aquilo que o agente subjetivamente considera ser adequado para atingir o fim. Denomina-se por utilidade a apreciação subjetiva que o agente atribui ao meio, em função do valor do fim que o agente acredita que aquele meio lhe permitirá alcançar. Neste sentido, valor e utilidade são as duas faces de uma mesma moeda, já que o valor subjetivo que o agente dá ao fim que persegue projeta-se no meio que considera útil para o atingir, precisamente através do conceito de utilidade.
A contribuição mais original e importante de Menger para a Ciência Econômica é a concepção subjetivista de cada processo de ação humana e não, como até agora se acreditava, a sua descoberta, independente e em paralelo com Jevons e Walras, da lei da utilidade marginal. Isto assim é porque a teoria subjetiva do valor e a descoberta da lei da utilidade marginal não são mais do que o corolário evidente da concepção subjetiva do processo de ação que devemos exclusivamente a Menger e que acabamos de expor. De fato, o ser humano, agindo ao longo de uma série de etapas, avalia os meios em função do fim que considera que os mesmos lhe permitirão alcançar, efetuando-se a referida avaliação não de uma maneira global ou agregada, mas em função das diferentes unidades intercambiáveis de meios que sejam relevantes no contexto de cada ação específica. Sendo assim, o agente tenderá a avaliar cada uma das unidades intercambiáveis de meios em função do valor que a última delas tenha na sua escala de avaliação, uma vez que a utilidade que perde ou ganha, com a perda de uma unidade ou com o ganho de mais uma unidade, respectivamente, é função do valor que na escala de avaliação individual tenha o fim que pode perder-se ou ganhar-se como consequência dessa última unidade. Para a Escola Austríaca, portanto, a lei da utilidade marginal nada tem a ver com a satisfação fisiológica das necessidades nem com a psicologia, uma vez que é uma lei estritamente praxeológica (seguindo a terminologia de Mises), ou seja, está inserida na própria lógica de toda a ação humana, empresarial e criativa.
É, portanto, imprescindível “desomogeneizar” a teoria da utilidade marginal tal como foi naturalmente desenvolvida por Menger, das leis de utilidade marginal que simultaneamente foram enunciadas por Jevons e Walras. De fato, em Jevons e em Walras a utilidade marginal é um simples enxerto num modelo matemático de equilíbrio (no caso de Jevons, parcial, e no caso de Walras, geral) em que o processo humano de ação brilha pela sua ausência, e que se mantém inalterado independentemente de se introduzir ou não no mesmo a lei da utilidade marginal. Pelo contrário, para Menger, a teoria da utilidade marginal é uma necessidade ontológica, consequência essencial da sua própria concepção da ação humana como um processo dinâmico (Jaffé, 1976: 511-524).
Também não devemos nos surpreender com o fato de o principal fundador da escola neoclássica de Chicago, Frank H. Knight, ter afirmado que a teoria de Menger sobre os bens econômicos de primeira ordem e de ordem superior seja uma das suas contribuições “menos relevantes” (Knight, 1950). Com esta afirmação, Knight põe precisamente em evidência as insuficiências teóricas do paradigma neoclássico do equilíbrio e, em particular, da escola de Chicago por ele fundada, para a qual o processo produtivo é objetivo e instantâneo, o tempo não tem nenhum papel que não seja meramente paramétrico, e a criatividade e incerteza próprias de todo o ato empresarial se encontram eliminadas de raiz pelo equilíbrio ricardiano no qual centram as suas investigações.
3.5. Menger e a teoria econômica das instituições sociais
Os Princípios de Economia Política de Menger constituíram um livro muito avançado para o seu tempo: nele, não só se deu entrada ao importante papel que têm na economia real o conceito de tempo, a ignorância, o conhecimento empresarial, o erro como algo inseparável da ação humana, os bens complementares que paulatinamente se vão acoplando no processo de mercado e os desequilíbrios e mudanças contínuas que caracterizam qualquer mercado real, como, para além de tudo isto, se introduziu toda uma incipiente teoria sobre a origem e a evolução das instituições sociais, que posteriormente Hayek se encarregaria de desenvolver até às suas últimas consequências.
De fato, deve-se considerar que a segunda contribuição de Menger consistiu em ter sido capaz de explicar teoricamente o aparecimento espontâneo e evolutivo das instituições sociais a partir da própria concepção subjetiva da ação e da interação humanas. Assim, não foi por capricho ou acaso que Menger dedicou os seus Princípios de Economia Política a um dos mais conspícuos historicistas alemães: Wilhelm Roscher. É que, na polêmica doutrinal entre os partidários de uma concepção evolutiva, histórica e espontânea das instituições, representados por Savigny no campo do direito e Montesquieu, Hume e Burke no campo da filosofia e da ciência política, frente aos partidários da concepção cartesiana estritamente racionalista (representados por Thibaut no campo do direito e por Bentham e os utilitaristas ingleses no campo da economia), Menger acreditava, com a sua contribuição, ter dado o suporte teórico definitivo de que necessitavam os primeiros.
A concepção subjetivista de Menger baseada no ser humano que age explica, através de um processo evolutivo em que atuam incontáveis seres humanos (cada um deles provido do seu pequeno acervo exclusivo e privativo de conhecimentos subjetivos, experiências práticas, desejos, sensações etc.), o surgimento evolutivo e espontâneo de uma série de comportamentos ordenados (instituições) que nos campos jurídico, econômico e linguístico tornam possível a vida em sociedade. Menger descobre que o aparecimento das instituições é o resultado de um processo social constituído por uma multiplicidade de ações humanas e liderado por uma série de seres humanos, homens e mulheres concretos de carne e osso que, nas suas circunstâncias históricas particulares de tempo e lugar, são capazes de descobrir antes dos demais que podem atingir mais facilmente os seus fins adotando determinados comportamentos ordenados. Põe-se desta forma em funcionamento um processo descentralizado de tentativa e erro no qual tendem a preponderar os comportamentos que melhor coordenam os desajustamentos sociais, de maneira que, através deste processo inconsciente de aprendizagem e imitação, o avanço iniciado pelos seres humanos mais criativos e bem sucedidos nas suas ações se estende e é seguido pelo resto dos membros da sociedade. Ainda que Menger desenvolva a sua teoria aplicando-a a uma instituição econômica concreta, a do surgimento e evolução do dinheiro (Menger, 1998: 200-220), também menciona que o mesmo esquema teórico básico pode ser aplicado, sem grandes dificuldades, às instituições jurídicas e também ao surgimento e evolução da linguagem. O próprio Menger expressa de forma impecável a nova pergunta em torno da qual pretende elaborar o seu novo programa de investigação científica: “Como é possível que as instituições que melhor servem o bem comum e que são mais significativas para o seu desenvolvimento tenham surgido sem a intervenção de uma vontade comum e deliberada para as criar?” (Menger, 1883: 163-165, 182). É que se verifica a paradóxica realidade de aquelas instituições que são mais importantes para a vida do homem em sociedade (linguísticas, econômicas, legais e morais) serem “consequências não intencionais das ações individuais” (ou na terminologia de Menger, Unbeabsichtigte Resultante, Menger, 1883: 182), uma vez que não poderiam ter sido criadas deliberadamente pelo próprio homem, por este carecer da capacidade intelectual necessária para assimilar o enorme volume de informação dispersa e dinâmica que as mesmas incorporam, tendo essas instituições progressivamente surgido de forma espontânea e evolutiva do processo social de interações humanas que para Menger e para os austríacos constitui precisamente o campo que deve ser o principal objeto de investigação da Ciência Econômica.
3.6. A Methodenstreit, ou a polêmica sobre os métodos
Grande deve ter sido a frustração causada a Menger pelo fato de a sua contribuição não só não ter sido entendida pelos catedráticos da Escola Histórica Alemã, como, para além disso, ter sido por estes considerada como um perigoso desafio ao historicismo. De fato, em vez de se darem conta de que a contribuição de Menger era o suporte teórico de que necessitava a concepção evolucionista dos processos sociais, eles consideraram que o seu caráter de análise abstrata e teórica era incompatível com o estreito historicismo que propunham. Surgiu assim a primeira e talvez a mais famosa polêmica em que se viram implicados os austríacos, a
Methodenstreit, que haveria de ocupar as energias intelectuais de Menger durante várias décadas. Os historicistas da Escola Alemã encabeçados por Schmoller, da mesma forma do que viria a suceder depois aos institucionalistas americanos da escola de Thorstein Veblen, foram vítimas do hiper-realismo, ao negar a existência de uma teoria econômica de validade universal, e ao defender a tese de que o único conhecimento válido era o que podia extrair-se da observação empírica e do recolhimento de dados de cada caso histórico. Contra eles Menger escreve o seu segundo livro importante intituladoInvestigações sobre o método das ciências sociais com especial referência à Economia Política (Menger, 1883) no qual, partindo de Aristóteles, considera que o conhecimento da realidade social exige duas disciplinas igualmente importantes mas que, apesar do seu caráter complementar, são radical e epistemologicamente distintas. A teoria é, de alguma maneira, a “forma” (no sentido aristotélico) que recolhe as essências dos fenômenos econômicos. Esta forma teórica é descoberta por introspecção, ou seja, por reflexão interior do investigador, que se torna possível pelo fato de a economia ser a única ciência na qual o investigador tem o privilégio de compartilhar a mesma natureza do observado, o que lhe proporciona um valiosíssimo conhecimento em primeira mão. Além disso, a teoria elabora-se de forma lógico-dedutiva a partir de conhecimentos evidentes do tipo axiomático. Distinta da teoria é a história, que de alguma maneira seria constituída pela “matéria” (no sentido aristotélico) que se concretiza nos fatos empíricos de cada acontecimento histórico. Para Menger, ambas as disciplinas, teoria e história, forma e matéria, são igualmente necessárias para conhecer a realidade, mas ele nega enfaticamente que seja possível extrair a teoria da história. Mais correto seria afirmar que as relações entre uma e outra são ao contrário, no sentido de que a história só pode interpretar-se, ordenar-se e tornar-se compreensível se se dispõe de uma teoria econômica prévia. Desta forma, Menger, apoiando-se em posições metodológicas que já haviam sido intuídas,em grande parte, por J. B. Say, estabelece os fundamentos do que depois se haveria de converter na metodologia “oficial” da Escola Austríaca de Economia.
É preciso ainda clarificar que existem pelo menos três sentidos diferentes para o termo “historicismo”. O primeiro, identificado com a escola historicista do direito (Savigny, Burke) e oposto ao racionalismo cartesiano, é o defendido pela Escola Austríaca na sua análise teórica sobre o aparecimento das instituições. O segundo sentido é o da Escola Histórica da Economia dos professores alemães do século XIX e dos institucionalistas americanos do século XX, que negam a possibilidade da existência de uma teoria econômica abstrata de validade universal, tal como a que defendia Menger e desenvolveram depois dele o resto dos economistas austríacos. O terceiro tipo de historicismo é o que se encontra na base do positivismo metodológico da escola neoclássica, que pretende recorrer à observação empírica (ou seja, em última instância, à história) para falsear ou comparar teorias o que, de acordo com Hayek, não é senão uma manifestação mais do racionalismo cartesiano que os austríacos tanto criticam
(Cubeddu, 1997: 29-38).
É curioso notar como Menger e os seus seguidores, na sua defesa da teoria frente aos historicistas alemães, contaram como aliados conjunturais com os teóricos do paradigma neoclássico do equilíbrio e, entre eles, com Walras e Jevons de entre os marginalistas matemáticos, e com os já neoclássicos Alfred Marshall na Inglaterra e John Bates Clark nos Estados Unidos. Ainda que os defensores austríacos da tradição subjetivista e dinâmica da análise dos processos de mercado estivessem conscientes das grandes diferenças que a sua visão tinha comparativamente à destes teóricos do equilíbrio (geral ou parcial), em muitas ocasiões consideraram que o objetivo de derrotar os historicistas e de defender o correto status científico da teoria econômica justificava a sua aliança temporária com os teóricos do equilíbrio. O elevado custo desta estratégia só se manifestaria quando, várias décadas depois, nos anos trinta do século XX (“the years of high theory”, na feliz expressão de Shackle) o triunfo dos defensores da teoria frente aos historicistas foi interpretado pela maioria dos economistas como o triunfo da teoria de equilíbrio formalizada matematicamente, e não da teoria dos processos sociais dinâmicos que, desde o princípio, Menger e os seus seguidores haviam se esforçado por desenvolver e impulsionar.
Em todo o caso, e contra as versões mais comuns dos manuais de economia, que geralmente qualificam a Methodenstreit, ou polêmica sobre os métodos, como tendo sido um infrutífero desperdício de esforços, consideramos que na mesma se depararam e perfilaram conceitualmente as inevitáveis diferenças metodológicas que existem entre as ciências da ação humana e as ciências do mundo da natureza, de maneira que as graves confusões que todavia continuam a perdurar hoje neste campo se devem, sem dúvida alguma, ao fato de a maioria dos economistas de profissão não ter prestado suficiente atenção às importantes contribuições realizadas por Menger a propósito desta polêmica (Huerta de Soto, 1982).