27.A liberdade negativa de Isaiah Berlin
Se medidas de liberdade fossem uma função da satisfação de desejos, eu poderia aumentar a liberdade com a mesma eficácia tanto ao eliminar desejos quanto ao satisfazê-los; eu poderia tornar os homens (incluindo eu mesmo) livres ao condicioná-los a esquecer seus desejos originais que eu decidi não satisfazer.[3]
Em sua última versão (1969), Berlin eliminou a passagem ofensiva, alterando a primeira declaração acima para que dissesse: “A liberdade política, neste sentido, é simplesmente a área na qual um homem pode agir sem ser obstruído por outros”.[4] Porém, ainda permanecem problemas graves com esta ultima abordagem de Berlin. Pois Berlin explica agora que liberdade para ele é “a ausência de obstáculos a escolhas e a atividades possíveis”, sendo os obstáculos colocados lá por “práticas humanas alteráveis”.[5] Mas isto aproxima-se, como observa o professor Parent, da confusão de “liberdade” com “oportunidade”, em resumo, de desfazer o próprio conceito de liberdade negativa de Berlin e substituí-lo pelo conceito ilegítimo de “liberdade positiva”. Deste modo, conforme indica Parent, suponha que X se recusa a contratar Y porque Y é um ruivo eX não gosta de ruivos; certamente X está diminuindo o campo de oportunidades de Y, mas não se pode dizer que ele está invadindo a “liberdade” de Y.[6] Na verdade, Parent continua chamando a atenção para uma reiterada confusão de Berlin entre liberdade e oportunidade; assim, Berlin escreve que “a liberdade a qual me refiro é oportunidade para ação” (xlii) e identifica aumentos de liberdade com a “maximização de oportunidades” (xlviii). Conforme Parent destaca, “Os termos ‘liberdade’ e ‘oportunidade’ têm significados distintos”; alguém, por exemplo, pode não ter a oportunidade de comprar um ingresso para um show por inúmeras razões (e.g., ele está muito ocupado) e, não obstante, ele ainda estaria, de todos os modos significativos, “livre” para comprar tal ingresso.[7]
Assim, o erro fundamental de Berlin foi deixar de definir a liberdade negativa como a ausência de interferência física na pessoa ou na propriedade de um indivíduo, nos direitos de propriedade justosamplamente definidos. Por não ter conseguido chegar a esta definição, Berlin confundiu-se e acabou praticamente abandonando a própria liberdade negativa que tentou estabelecer e caindo, a contragosto, no campo da “liberdade positiva”. Mais do que isto, Berlin, magoado pelas críticas que o acusavam de defender o laissez-faire, passou a fazer ataques frenéticos e autocontraditórios ao laissez-faire, como se de alguma forma ele fosse algo prejudicial à liberdade negativa. Por exemplo, Berlin escreve que os “males do laissez-faire irrestrito . . . conduzem a violações brutais da liberdade ‘negativa’ . . . incluindo da liberdade de expressão ou associação”. Uma vez que o laissez-faire significa exatamente a total liberdade da pessoa e da propriedade, incluindo obviamente a liberdade de expressão e de associação como uma subdivisão dos direitos de propriedade privada, Berlin está dizendo disparates. E, em uma história parecida sem fundamento, Berlin escreve sobre
o destino da liberdade pessoal durante o reinado do individualismo econômico irrestrito — sobre a condição da maioria prejudicada, principalmente nas cidades, que tinham os seus filhos destruídos nas minas ou nas fábricas, enquanto seus pais viviam na pobreza, na doença e na ignorância, um situação em que o gozo dos direitos legais pelos pobres e oprimidos . . . se tornou uma zombaria abominável.[8]
Como seria de se esperar, Berlin ataca posteriormente aqueles libertários laissez-faire puros e coerentes, como Cobden e Spencer, e favorece aqueles liberais clássicos confusos e incoerentes, como Mill e de Tocqueville.
Existe uma série de problemas graves e básicos com as críticas espalhafatosas de Berlin. Uma é a sua completa ignorância em relação aos historiadores modernos da Revolução Industrial, tais como Ashton, Hayek, Hutt e Hartwell, que haviam demonstrado que a nova indústria aliviou a pobreza e a fome anteriores dos trabalhadores, incluindo os operários infantis, ao invés de acontecer o contrário.[9] Mas, em um nível conceitual, também existem vários problemas. Primeiro, é autocontraditório e absurdo declarar que o laissez-faire ou o individualismo econômico poderiam prejudicar a liberdade pessoal; e, segundo, Berlin está na verdade abandonando explicitamente o próprio conceito de liberdade “negativa” em favor de conceitos de riqueza e de poder positivos.
Berlin alcança o ápice (ou o fundo do poço) de sua abordagem quando ele ataca diretamente a liberdade negativa por ela ter sido
usada para . . . armar o forte, o brutal e o inescrupuloso contra o humano e o fraco. . . . A liberdade para os lobos tem significado frequentemente a morte para as ovelhas. Não é necessário insistir, em nossos dias, na história manchada de sangue do individualismo econômico e da competição capitalista desenfreada.[10]
Aqui a falácia crucial de Berlin é identificar insistentemente a liberdade e a economia de livre mercado com os seus opostos — com a agressão coercitiva. Repare o seu uso frequente de termos como “armar”, “brutal”, “lobos e ovelhas”, e “manchado de sangue”; todos são aplicáveis somente à agressão coercitiva tal como tem sido universalmente empregada pelo estado. Além disso, ele identifica então estas agressões com o seu oposto — o processo voluntário e pacífico de trocas livres na economia de mercado. O individualismo econômico irrestrito conduz, ao contrário, a trocas pacíficas e harmoniosas, que beneficiam mais precisamente os “fracos” e as “ovelhas”; são estes últimos que não sobreviveriam na lei da selva estatista, são estes que tiram maior proveito dos benefícios da economia livremente competitiva. Até mesmo um conhecimento superficial da ciência econômica, e em particular da Lei de Vantagens Comparativas ricardiana, teria esclarecido este ponto vital ao Sir Isaiah.[11]
[1] Isaiah Berlin, Two Concepts of Liberty (Oxford: Oxford University Press, 1958), pág. 7.
[2] Isaiah Berlin, “Introdução,” Four Essays on Liberty (Oxford: Oxford University Press, 1969), pág. xxxviii.
[3] Ibid., pág. xxxviii. Além disso veja William A. Parent, “Some Recent Work em o Conceito de Liberdade,”American Philosophical Quarterly (julho 1974): 149–53. O professor Parent acrescenta a crítica de que Berlin negligencia os casos em que os homens agem de maneira em que não desejem ou queiram “verdadeiramente”, de modo que Berlin teria que admitir que a liberdade de um homem não é reduzida se ele é impedido forçosamente de fazer alguma coisa que ele “não goste”. No entanto, Berlin pode ser salvo neste ponto se interpretarmos “querer” ou “desejar” no sentido formal de um objetivo livremente escolhido por uma pessoa, ao invés de no sentido de algo que ele hedonistica ou emocionalmente aprecie ou “goste” de fazer ou realizar. Ibid., págs. 150–52.
[4] Berlin, Four Essays on Liberty, pág. 122.
[5] Ibid., págs. xxxix–xl.
[6] Além disso, se alguém fosse proibir que X se recusasse a contratar Y por este último ser um ruivo, então Xteve um obstáculo imposto à sua ação por uma prática humana alterável. Na definição revisada de liberdade de Berlin, portanto, a remoção de obstáculos não aumenta a liberdade, pois ela só pode beneficiar a liberdade de algumas pessoas em detrimento da liberdade de outras. Devo este ponto ao doutor David Gordon.
[7] Parent, “Some Recent Work,” págs. 152–53.
[8] Berlin, Four Essays on Liberty, págs. xlv–xlvi.
[9] Veja F.A. Hayek, ed., Capitalism and the Historians (Chicago: University of Chicago Press, 1954); e R.M. Hartwell, The Industrial Revolution and Economic Growth (London: Methuen, 1971).
[10] Berlin, Four Essays on Liberty, pág. xlv.
[11] Veja também Murray N. Rothbard, “Back to the Jungle?” em Power and Market, 2nd ed. (Kansas City: Sheed Andrews and McMeel, 1977), págs. 226–28.