Ação Humana – Um Tratado de Economia

0
Tempo estimado de leitura: 24 minutos

Capítulo XII. O âmbito do cálculo econômico

 

1. O significado das expressões monetárias

 

O cálculo econômico abrange tudo o que possa ser trocado por moeda. Os preços dos bens e serviços ou são dados históricos que descrevem eventos passados ou, então, são antecipações de um evento futuro. Uma informação acerca de um preço passado transmite o conhecimento de que um ou mais atos de troca interpessoal foram efetuados segundo aquela relação de troca. Não nos fornece, diretamente, nenhuma informação sobre preços futuros. Podemos presumir como frequentemente o fazemos, que as condições de mercado que determinaram a formação dos preços no passado recente permanecerão inalteradas ou pelo menos não mudarão substancialmente por certo período, de tal sorte que os preços não se alterarão ou sofrerão apenas pequenas variações.  Tais expectativas são razoáveis desde que os preços em questão sejam o resultado de interação de muitas pessoas dispostas a vender e a comprar, desde que as relações de troca lhes pareçam propícias, e que a situação do mercado não tenha sido influenciada por condições que possam ser consideradas como acidentais extraordinárias e que, provavelmente, não se repetirão.

Entretanto, a tarefa principal do cálculo econômico não é lidar com os problemas de uma situação de mercado em que não ocorrem mudanças ou só ocorrem pequenas mudanças, mas, sim, lidar com a mudança. O indivíduo, ao agir, ou bem antecipa as mudanças que irão ocorrer sem a sua interferência e procura ajustar suas ações à situação antecipada; ou bem toma a iniciativa de mudar as condições existentes, mesmo que outros fatores possam contribuir para tal mudança. Os preços do passado são para ele simples pontos de partida das suas tentativas de antecipar os futuros preços.

Historiadores e estatísticos se interessam pelos preços passados. O homem, na prática, concentra seu interesse nos preços do futuro, mesmo que seja o futuro imediato do próximo mês, dia ou hora. Para ele, os preços passados representam meramente uma ajuda para antecipar preços futuros. Não só nos seus cálculos preliminares quanto ao possível resultado da ação planejada, como também no seu desejo de avaliar o resultado de suas transações anteriores, o que lhe interessa, sobretudo são os preços futuros.

Pelos balanços e declarações de lucros e perdas, ficamos sabendo qual foi o resultado da ação pela diferença entre o equivalente em moeda do patrimônio líquido (ativo total menos passivo total) no princípio e no fim do período considerado, e pela diferença entre o equivalente em moeda das receitas auferidas e dos custos incorridos. Nessas declarações, é necessário traduzir em moeda todos os elementos do ativo e passivo que não sejam recursos em caixa. Esses elementos devem ser avaliados de acordo com os preços pelos quais poderiam provavelmente ser vendidos no futuro ou, é o caso dos instrumentos de produção, com base nos preços que se espera obter pela venda das mercadorias fabricadas com sua ajuda. Entretanto, práticas antigas dos produtores e disposições do direito comercial e do direito fiscal introduziram uma deformação nos princípios sadios da contabilidade que visam apenas ao maior grau possível de exatidão. Essas práticas e essas leis não estão especialmente interessadas na exatidão dos balanços e das contas de lucros e perdas; são outros os seus objetivos. A legislação comercial procura estabelecer um método de contabilidade que possa indiretamente proteger os credores do risco de perda. Tende, numa certa medida, a avaliar os ativos abaixo de seu valor de mercado, de maneira a fazer o lucro líquido e o patrimônio líquido parecerem menores do que realmente são. Portanto, uma margem de segurança é criada para reduzir o perigo de que, em prejuízo dos credores, possam ser retirados da firma somas elevadas a título de lucro, e de que uma firma já insolvente possa continuar exaurindo os meios disponíveis necessários à satisfação de seus credores. Por outro lado, o direito fiscal é propenso a métodos de computação que fazem com que os ganhos pareçam maiores do que seriam se um método correto e imparcial fosse utilizado. A ideia é aumentar o imposto, sem tornar este aumento visível na taxa nominal do imposto. Devemos, portanto distinguir entre cálculo econômico, conforme praticado pelos empresários ao planejarem suas futuras transações, e a contabilidade de fatos econômicos que atende a outros objetivos. A determinação do imposto a pagar e o cálculo econômico são duas coisas diferentes. Se uma lei submete quem tem empregados domésticos a um imposto, e se estabelece que um empregado homem deva ser computado como duas empregadas mulheres, ninguém interpretaria tal provisão como algo mais do que um método para determinar o valor do imposto devido. Da mesma maneira, se uma lei de heranças estabelece que valores mobiliários devam ser avaliados pela cotação na Bolsa de Valores no dia da morte do falecido, estará simplesmente estipulando uma maneira de calcular o valor do imposto.

Registros contábeis bem feitos, num sistema de contabilidade correto, são exatos até o nível dos centavos. Exibem uma precisão impressionante e a exatidão numérica de seus lançamentos faz supor absoluta certeza quanto aos números escriturados. Na realidade, as cifras mais importantes de uma contabilidade são especulações quanto às futuras condições do mercado. É um erro comparar os itens de qualquer registro contábil aos itens usados num cálculo tecnológico, como por exemplo, no projeto para construção de uma máquina. O engenheiro — no que se refere ao aspecto puramente técnico de seu trabalho — utiliza apenas relações numéricas estabelecidas pelos métodos experimentais das ciências naturais; o empresário tem de usar cifras que resultam de seu entendimento quanto à futura conduta das outras pessoas. O problema principal nos balanços e nas declarações de lucros e perdas é a avaliação dos elementos do ativo e do passivo que não são representados por valores em espécie. Todos esses balanços e declarações são provisórios. Descrevem, na medida do possível, o estado das contas num instante arbitrariamente escolhido, enquanto a vida e a ação prosseguem sem interrupção. É possível encerrar negócios específicos, mas o sistema de produção como um todo não se interrompe. Nem mesmo os ativos e passivos representados por valores em espécie estão imunes a essa indeterminação inerente a todos os lançamentos contábeis. Dependem da futura situação do mercado, tanto quanto qualquer outra conta de inventário ou equipamento. A exatidão numérica das contas e assentamentos contábeis não nos deve impedir de perceber o caráter incerto e especulativo de suas cifras e dos cálculos que com elas se efetuam.

Não obstante, esses fatos não diminuem a eficiência do cálculo econômico. O cálculo econômico é tão eficiente quanto pode ser. Nenhuma reforma poderia aumentar sua eficiência. Propicia ao agente homem todos os serviços que podem ser obtidos com a computação numérica. Não consiste, evidentemente, num meio de conhecer condições futuras com certeza, nem retira da ação o seu caráter especulativo. Mas isto só pode ser considerado como uma deficiência por aqueles que não chegam a perceber o fato de que a vida não é rígida, que todas as coisas estão em permanente mutação e que os homens não podem ter nenhuma certeza quanto ao futuro.

Não é tarefa do cálculo econômico aumentar o conhecimento do homem quanto a condições futuras. Sua tarefa é ajustar as ações do homem, tanto quanto possível, à sua própria opinião relativamente à satisfação de necessidades no futuro. Para isso, o agente homem necessita de um método de computação que se aplique a todos os elementos considerados. Este denominador comum do cálculo econômico é a moeda.

 

2. Os limites do cálculo econômico

 

O cálculo econômico não se aplica às coisas que não podem ser compradas ou vendidas com dinheiro.

Existem coisas que não estão à venda e para cuja aquisição são necessários outros sacrifícios além do dispêndio de dinheiro. Aquele que pretende preparar-se para grandes realizações terá de empregar muitos meios, alguns dos quais implicam em dispêndio de dinheiro. Mas as coisas essenciais necessárias à realização deste intento não são compráveis. A honra, a virtude, a glória, assim como o vigor físico, a saúde e a própria vida representam na ação um papel tanto de meios como de fins, sem que possam ser considerados no cálculo econômico.

Existem coisas que não podem ser, de forma alguma, avaliadas em moeda, e existem outras que podem ser avaliadas em moeda apenas em relação a uma fração do valor que lhes é atribuído. A avaliação de um prédio antigo não considera sua importância artística ou histórica, na medida em que estas qualidades não são uma fonte de renda em moeda ou em bens vendáveis. O que sensibiliza a apenas uma pessoa, e não induz outras pessoas a fazer sacrifícios para obter o mesmo prazer, está fora do âmbito do cálculo econômico. Entretanto, estas considerações não prejudicam a utilidade do cálculo econômico. Todas aquelas coisas que não se incluem entre as que podem ser contabilizadas e calculadas ou são fins ou são bens de primeira ordem. Nenhum cálculo é necessário para que elas sejam levadas em consideração e para que seu valor seja reconhecido. Tudo o que o agente homem precisa para fazer sua escolha é contrastá-las com o custo necessário à sua aquisição ou preservação. Suponhamos que uma municipalidade tenha que decidir entre dois projetos de abastecimento de água.

Um deles implica na demolição de um marco histórico, enquanto o outro, à custa de um maior dispêndio, preservaria o marco histórico em questão. O fato de que os sentimentos que recomendam a preservação do monumento não possam ser representados por uma quantia em moeda não impede a decisão da municipalidade. Ao contrário, por não poderem ser expressos em moeda, são içados a uma posição especial que torna a decisão mais fácil. Nenhuma queixa pode ser mais infundada do que lamentar que coisas não vendáveis estejam fora do âmbito do cálculo econômico. Os valores morais e estéticos não sofrem nenhum dano com este fato.

A moeda, os preços em moeda, as transações mercantis, assim como o cálculo econômico que se baseia nesses elementos, são os principais alvos dos críticos. Pregadores loquazes condenam a civilização ocidental como um sistema perverso de traficantes e mascates. A presunção, o farisaísmo e a hipocrisia exultam em escarnecer a ”filosofia do dólar”, que se supõe típica de nossa época. Reformadores neuróticos, literatos mentalmente desequilibrados e demagogos ambiciosos sentem prazer em acusar a ”racionalidade” e em pregar o evangelho do ”irracional”. Aos olhos desses falastrões, a moeda e o cálculo são as fontes dos piores males. Entretanto, o fato de os homens terem elaborado um método para avaliar tanto quanto possível a conveniência de suas ações e para diminuir o desconforto da maneira mais prática e econômica não impede alguém de ajustar sua conduta aos princípios que considere mais certos. O ”materialismo” da Bolsa de Valores e da contabilidade comercial não proíbe a ninguém viver segundo os padrões do monge Thomas de Kempis, nem morrer por uma causa nobre. O fato de as massas preferirem estórias de detetives a poesia, tornando esta menos lucrativa do que aquelas, não tem nada a ver com o uso de moeda nem com contabilidade monetária. Não é culpa da moeda o fato de existirem bandidos, ladrões, assassinos, prostitutas, funcionários e juízes corruptos. Não é verdade que não ”valha a pena” ser honesto. Vale a pena para aqueles que preferem a fidelidade aos princípios que consideram certos às vantagens que poderiam obter com outra atitude.

Há outro grupo de críticos que não chega a perceber que o cálculo econômico é um método disponível tão somente às pessoas que atuam num sistema econômico baseado na divisão do trabalho e numa ordem social alicerçada na propriedade privada dos meios de produção. Só pode servir às considerações de indivíduos ou grupos de indivíduos que operem no quadro institucional desta ordem social. Consequentemente, é um cálculo de benefícios privados e não de ”bem estar social”. Isto significa que os preços de mercado são o fato básico para o cálculo econômico. Só pode ser aplicado em considerações que se baseiem na demanda dos consumidores manifestada no mercado, e não segundo valorações hipotéticas de um ente ditatorial, diretor supremo da economia nacional ou mundial. Aquele que pretende julgar as ações do ponto de vista de uma pretensa ”ordem social”, isto é, do ponto de vista da ”sociedade como um todo”, e criticá-las comparando-as com o que se passaria num imaginário sistema socialista onde sua própria vontade fosse soberana, não precisa do cálculo econômico. O cálculo econômico, em termos de preços monetários, é o cálculo feito por empresários produzindo para os consumidores numa sociedade de mercado. Não tem nenhuma utilidade fora desse contexto.

Quem desejar empregar o cálculo econômico não pode considerar a atividade econômica como algo manipulável por uma mente despótica. Os preços podem ser usados para cálculo, pelos empresários, investidores, proprietários e assalariados de uma sociedade capitalista. De nada servem, preços e cálculos, para tratar de questões estranhas às categorias da sociedade capitalista. Não tem sentido avaliar em dinheiro objetos que não são negociáveis no mercado e introduzir, nos cálculos, dados arbitrários sem qualquer base na realidade. A lei pode determinar o valor a ser pago como indenização por quem tenha causado a morte de alguém. Mas isto não significa que esse seja o preço da vida humana. Onde há escravidão, há preços de mercado para comprar e vender escravos. Onde não há escravidão, o homem, a vida humana e a saúde sãores extra comercium.[1] Numa sociedade de homens livres, a preservação da vida humana e da saúde são fins e não meios. Não podem ser considerados em nenhum sistema de contabilização de meios.

É possível calcular a soma das rendas e da fortuna de certo número de pessoas, utilizando-se os preços em moeda. Mas não tem sentido calcular a renda nacional ou a riqueza nacional. Na medida em que passamos a raciocinar sobre situações estranhas ao funcionamento de uma sociedade de mercado, não podemos mais nos valer da ajuda dos métodos de cálculo monetário. As tentativas para definir em termos monetários a riqueza de uma nação ou de toda a humanidade são tão infantis quanto os esforços místicos para resolver os enigmas do universo a partir de elucubrações sobre as dimensões da pirâmide de Queops. Se um cálculo mercantil dá o valor de $100 a um fornecimento de batatas, isto significa que será possível vendê-las ou repô-las por esta quantia. Se uma unidade empresarial inteira é estimada em $1.000.000, é porque se supõe que ela possa ser vendida por este montante. Mas qual o significado das diversas rubricas de um balanço da riqueza total de uma nação? Qual o significado do saldo final resultante? O que deve ser incluído e o que deve ser excluído de tal balanço? Seria correto incluir, ou excluir, o ”valor” do clima do país ou as habilidades inatas ou adquiridas da população? As pessoas podem converter suas propriedades em moedas, mas uma nação não pode.

Os equivalentes monetários que a ação e o cálculo econômico utilizam são preços em moeda, isto é, relações de troca entre moeda e outros bens e serviços. Os preços não são medidos em moeda: eles consistem numa certa quantidade de moeda. Os preços ou bem são preços do passado ou preços esperados no futuro. Um preço é necessariamente um fato histórico passado ou futuro. Não há nada nos preços que possibilite equipará-los à medição de fenômenos físicos ou químicos.

 

3. A variabilidade dos preços

 

As relações de troca estão permanentemente sujeitas a mudanças porque as condições que as determinam estão permanentemente mudando. O valor que um indivíduo atribui tanto à moeda como aos bens e serviços são o resultado de uma escolha num momento determinado. O instante seguinte pode engendrar algo novo e introduzir outras considerações e valorações. O que devia ser considerado como um problema digno de exame não é propriamente o fato de os preços flutuarem, mas, sobretudo, o fato de não variarem mais rapidamente.

A experiência de todos os dias ensina, a todos, que as relações de troca no mercado são variáveis. Podemos supor que todos têm consciência desse fato. Não obstante, todas as noções populares de produção e consumo, de técnicas de comercialização e preços são mais ou menos contaminadas por uma vaga e contraditória noção de rigidez dos preços. O leigo tende a considerar como normal e justa a manutenção dos preços registrados ontem e a condenar as mudanças nas relações de troca como violação das leis da natureza e da justiça. Seria um erro explicar essas crenças populares como a sedimentação de velhas opiniões concebidas ao tempo em que as condições de produção e comercialização eram mais estáveis. Pode-se colocar em dúvida se antigamente havia maior ou menor estabilidade de preços do que hoje em dia. Entretanto, seria mais exato afirmar que a integração de mercados locais em mercados nacionais, resultando finalmente num mercado mundial que cobre todo o planeta, bem como a evolução do comércio no sentido de procurar provisionar continuamente os consumidores fizeram com que as mudanças de preços fossem menos frequentes e menos intensas. Nos tempos pré-capitalistas, havia maior estabilidade quanto a métodos tecnológicos de produção, mas havia uma maior irregularidade no suprimento aos vários mercados locais e no ajuste deste suprimento às variações de demanda. Mas mesmo sendo verdade que os preços fossem um pouco mais estáveis num passado distante, isto teria pouca importância nos dias de hoje. As noções populares de moeda e de preços em moeda não derivam de ideias formadas no passado. Seria errado interpretá-las como reminiscências atávicas. Atualmente, todo indivíduo é confrontado diariamente com tantas situações de compra e venda que seria equivocado imaginar que suas opiniões sobre o assunto decorram simplesmente da aceitação irrefletida de ideias tradicionais.

É fácil compreender por que aqueles cujos interesses de curto prazo são prejudicados por mudanças nos preços reclamam destas mudanças, enfatizando que os preços anteriores eram não só mais justos, como mais normal, e sustentado que a estabilidade dos preços está em conformidade com as leis da natureza e da moralidade. Mas toda mudança de preços favorece os interesses de curto prazo de outras pessoas. Os favorecidos certamente não se sentem impelidos a enfatizar a equidade e a normalidade da rigidez dos preços.

A existência de reminiscências atávicas ou de interesses egoístas de grupos não é suficiente para explicar a popularidade da ideia da estabilidade de preços. Suas raízes devem ser encontradas no fato de as noções concernentes às relações sociais terem sido concebidas segundo o padrão das ciências naturais. Os economistas e os sociólogos que pretendem moldar as ciências sociais segundo o modelo da física ou da fisiologia estão simplesmente cedendo a uma forma de pensar que as ilusões populares adotariam mais tarde.

Mesmo os economistas clássicos não foram capazes de se libertar desse erro. Para eles, valor era algo objetivo, isto é, um fenômeno do mundo exterior, uma qualidade inerente às coisas e, portanto, mensurável. Falharam inteiramente ao não perceber o caráter puramente humano e voluntarista dos julgamentos de valor. Tanto quanto podemos saber hoje, foi Samuel Bailey quem primeiro desvendou o que ocorre quando se prefere uma coisa a outra.[2]Mas o seu livro, assim como os escritos de outros precursores da teoria subjetiva de valor, passou despercebido.

O dever de refutar o erro contido na ideia de que a ação é mensurável não cabe apenas à ciência econômica. É também um dever da política econômica. Porque os fracassos das políticas econômicas dos nossos dias se devem, em certa medida, à lamentável confusão provocada pela ideia de que existe algo fixo e, portanto, mensurável nas relações inter-humanas.

 

4. A estabilização

 

Uma excrescência fruto de todos esses erros, é a ideia de estabilização. Os danos causados pela intervenção governamental nos assuntos monetários e as consequências desastrosas de políticas adotadas com o propósito de reduzir a taxa de juros e incrementar a atividade econômica através da expansão do crédito deram origem às ideias que acabaram gerando o slogan ”estabilização”. Podemos explicar seu surgimento e sua popularidade; podemos compreendê-lo como sendo o fruto da história da moeda e do crédito nos últimos 150 anos; podemos, por assim dizer, alegar circunstâncias atenuantes para os erros cometidos. Mas nenhuma explicação benevolente conseguirá fazer com que essas falácias possam ser um pouco mais defensáveis.

A estabilidade pretendida por um programa de estabilização é uma noção vazia e contraditória. O impulso para agir, isto é, para melhorar as condições de vida, é inato no homem. O próprio homem muda de momento em momento, e suas valorações, vontades e atos mudam com ele. No domínio da ação, nada é perpétuo, a não ser a mudança. Nada é permanente nessa incessante flutuação; somente as categorias apriorísticas da ação é que são eternas. É inútil tentar separar a valoração e a ação da instabilidade e da variabilidade de seu comportamento e argumentar como se existissem no universo valores eternos independentes dos julgamentos de valor dos homens, capazes de servir como unidade de medida para avaliação da ação.[3]

Todos os métodos sugeridos para medir as variações do poder de compra das unidades monetárias são baseados, de forma mais ou menos inconsciente, na imagem ilusória de um ser eterno e imutável que determina, pela aplicação de um padrão invariável, a quantidade de satisfação que uma unidade de moeda lhe proporciona. Alegar que só se deseja medir as mudanças no poder de compra da moeda constitui uma justificativa pobre dessa ideia mal concebida. O ponto crucial da noção de estabilidade reside principalmentenesse conceito de poder aquisitivo. O leigo, influenciado pelas ideias da física, considerava a moeda como um padrão de medida dos preços. Acreditava que as flutuações das relações de troca ocorriam apenas entre as várias mercadorias e serviços, e não entre a moeda e a ”totalidade” dos bens e serviços. Mais tarde, as pessoas inverteram o argumento. Não era mais à moeda que se atribuía a constância de valor, mas à ”totalidade” das coisas que podiam ser objeto de compra e venda. Começaram a imaginar conjuntos de mercadorias para serem contrastados com a unidade monetária. A ânsia de encontrar índices para medir o poder de compra da moeda silenciava todos os escrúpulos. Tanto a ambiguidade e a incomparabilidade dos registros de preços como o caráter arbitrário dos procedimentos usados no cálculo das medidas não eram levados em consideração.

O eminente economista americano Irving Fisher, grande paladino do movimento de estabilização nos EUA, contrastava o dólar com uma cesta contendo todas as mercadorias que a dona de casa compra no mercado para o aprovisionamento habitual de sua despensa. Na proporção em que a quantidade de dinheiro necessária para comprar o conteúdo dessa cesta variasse o poder aquisitivo do dólar também variaria. O objetivo pretendido por essa política de estabilização era a preservação da imutabilidade deste gasto em moeda.[4]Isto teria cabimento se a dona de casa e sua cesta imaginária fossem elementos constantes, se a cesta contivesse sempre os mesmos produtos e a mesma quantidade de cada um, e se não variasse, na vida das famílias, o papel representado por este conjunto de bens. No mundo em que vivemos, nenhuma dessas condições é real.

Em primeiro lugar, existe o fato de que a qualidade das mercadorias varia continuamente. É um erro considerar que todo trigo produzido é de mesma qualidade; isto para não falar de sapatos, chapéus e outras manufaturas. As grandes diferenças de preços que podem ser observadas em vendas simultâneas de mercadorias que a linguagem corrente e as estatísticas colocam sob a mesma rubrica evidenciam claramente esse truísmo. Uma expressão idiomática assevera que duas ervilhas são iguais;[5] mas compradores e vendedores distinguem várias qualidades e tipos de ervilhas. É inútil comparar preços pagos em diferentes locais ou momentos por mercadorias que a tecnologia e a estatística designam pelo mesmo nome, se não houver certeza de que sua qualidade — exceto quanto à diferença de local — é exatamente a mesma. Qualidade neste contexto significa: todas as propriedades às quais os compradores ou os potenciais compradores atribuem importância. O simples fato de que a qualidade de todos os bens e serviços de primeira ordem está sujeita a mudanças desmoraliza um dos pressupostos fundamentais de todos os métodos de cálculo de índices. É irrelevante o fato de que um pequeno número de bens de ordens mais elevadas — especialmente metais e produtos químicos que podem ser bem definidos por meio de fórmulas — seja suscetível de uma descrição precisa de suas características. Uma medição do poder de compra teria que depender dos preços dos bens e serviços de primeira ordem. E não só de alguns, mas de todos eles. Empregar os preços dos bens de produção para se medir o poder aquisitivo é um método que não resolveria o problema, porque implicaria em computar várias vezes as diversas fases de produção de um mesmo bem de consumo, o que falsearia o resultado. Restringir-se a um grupo selecionado de bens seria bastante arbitrário e consequentemente vicioso.

Mas, mesmo deixando de lado estes obstáculos intransponíveis, a tarefa continuaria sem solução. Porque não só as características tecnológicas das mercadorias mudam, fazendo surgir novos tipos de bens enquanto outros desaparecem, como o valor que lhes atribuímos também muda, provocando alterações na demanda e na produção. Os pressupostos em que se ampara a doutrina da medição exigiriam homens cujos desejos e valorações fossem imutáveis.

Somente se as pessoas valorassem as mesmas coisas sempre da mesma maneira, poderíamos considerar mudanças nos preços como representativas de mudanças no poder aquisitivo da moeda. Sendo impossível estabelecer a quantidade total de moeda dispendida em bens de consumo, numa determinada fração de tempo, as estatísticas são obrigadas a recorrer aos preços pagos por mercadoria. Isto suscita dois outros problemas, para os quais não há solução apodítica. Torna-se necessário atribuir, às várias mercadorias, coeficientes de importância. Seria evidentemente errado computar os preços das várias mercadorias sem considerar sua respectiva importância na economia doméstica dos indivíduos. Mas o estabelecimento de uma ponderação adequada também é arbitrário. Em segundo lugar, torna-se necessário calcular médias dos dados coletados e ponderados. Mas existem diferentes métodos para cálculo de médias. Existe a média aritmética, a geométrica, a harmônica; existe a quase média, conhecida como a mediana. Cada uma delas conduz a um resultado diferente. Nenhuma delas pode ser considerada como o único modo de obter uma resposta logicamente inatacável. A decisão em favor de um desses métodos de cálculo é arbitrária.

Se todas as circunstâncias humanas fossem imutáveis; se todas as pessoas repetissem sempre as mesmas ações — por ser sempre o mesmo o seu desconforto e a mesma a forma de removê-lo -, ou se pudéssemos assegurar que as mudanças ocorridas em alguns indivíduos ou grupos fossem contrabalançadas por mudanças em sentido contrário em outros indivíduos ou grupos e, portanto, não afetassem a demanda total nem a oferta total, estaríamos vivendo num mundo de estabilidade. Mas nesta hipótese, a ideia de que o poder aquisitivo da moeda pudesse variar é contraditória. Como serão demonstradas mais adiante, mudanças no poder aquisitivo da moeda afetam necessariamente os preços dos vários bens e serviços, em momentos diferentes e numa proporção diferente; consequentemente, produzem mudanças na oferta e procura, na produção e no consumo.[6] A ideia implícita no impróprio termo nível de preços, como se – mantidas iguais as demais circunstâncias — todos os preços pudessem aumentar e diminuir uniformemente, é uma ideia insustentável. As demais circunstâncias não podem permanecer iguais, quando varia o poder de compra da moeda.

No campo da praxeologia e da economia, carece de sentido a ideia de medição. Numa hipotética situação em que todas as condições fossem rígidas, não haveria mudanças a serem medidas. No nosso mundo sempre cambiante, não existem pontos fixos, dimensões ou relações que possam servir de padrão de medida. O poder de compra da unidade monetária nunca varia uniformemente em relação a todas as coisas vendáveis ou compráveis. As noções de estabilidade e estabilização são vazias de sentido, se não se referem a um estado de rigidez e à sua preservação. Entretanto, esse estado de rigidez não pode sequer ser consistentemente imaginado até suas últimas consequências lógicas; muito menos ainda pode existir na realidade.[7] Onde há ação, há mudança. A ação é uma alavanca para mudanças.

A solenidade pretensiosa exibida pelos estatísticos e pelas agências estatísticas ao anunciarem índices de custo de vida e de poder de compra é desmedida. Esses índices numéricos não são mais do que ilustrações grosseiras e inexatas de mudanças já ocorridas. Nos períodos em que a relação entre a oferta e a demanda por moeda se altera muito lentamente, os índices não nos fornecem nenhuma informação. Nos períodos de inflação e, consequentemente, de variações bruscas de preços, os índices nos proporcionam uma imagem tosca de eventos que cada indivíduo percebe por experiência própria, no seu dia a dia. Uma dona de casa judiciosa sabe mais sobre mudanças de preços que afetem sua economia doméstica do que lhe poderiam ensinar as médias estatísticas. Para ela, de pouco adiantam cálculos feitos sem considerar as mudanças tanto em qualidade quanto em quantidade dos bens que ela pode adquirir aos preços utilizados para calcular o índice. Se, numa apreciação pessoal, ela ”medir” as mudanças, considerando apenas os preços de duas ou três mercadorias como um padrão, não estará sendo menos ”científica” e nem menos arbitrária do que matemáticos sofisticados ao escolher os seus métodos para computar os dados do mercado.

Na vida prática, ninguém se deixa iludir por índices numéricos. Ninguém aceita a ficção segundo a qual tais índices devem ser considerados como medições. Quando quantidades são medidas, desaparecem as dúvidas e discussões em relação às suas dimensões.

É questão resolvida. Ninguém ousaria discutir com os meteorologistas sobre medições de temperatura, umidade, pressão atmosférica e outros dados meteorológicos. Por outro lado, ninguém concorda com um índice numérico, se não espera uma vantagem pessoal resultante de sua aceitação pela opinião pública. O estabelecimento de índices numéricos não resolve as disputas; simplesmente as desloca para um campo onde o choque de opiniões e interesses é irreconciliável.

A ação humana provoca mudanças. Na medida em que há ação humana, não há estabilidade, mas incessante alteração. O processo histórico é uma sucessão de mudanças. O homem não tem possibilidade de detê-lo nem de criar uma era de estabilidade fazendo cessar o curso da história. É de a natureza humana querer melhorar, conceber novas ideias e ajustar as condições de sua vida em conformidade com essas ideias.

Os preços do mercado são fatos históricos que exprimem um estado de coisas que prevaleceu num determinado instante do irreversível processo histórico. Para a praxeologia, o conceito de medição é desprovido de sentido. No imaginário — e, obviamente, irrealizável — estado de rigidez e estabilidade, não existem mudanças a serem medidas. No mundo real de permanente mudança, não existem pontos fixos, objetos, qualidades ou relações fixas que permitam medir as mudanças ocorridas.

 

5. A base da ideia de estabilização

 

O cálculo econômico não necessita de estabilidade monetária no sentido com que este termo é empregado pelos defensores da estabilização. O fato de que a rigidez do poder de compra da unidade monetária é inconcebível e irrealizável não impede o cálculo econômico. O que o cálculo econômico requer é um sistema monetário cujo funcionamento não seja sabotado pela interferência do governo. Quando as autoridades governamentais expandem a quantidade de moeda em circulação, seja para aumentar sua capacidade de gastar, seja para produzir uma temporária baixa na taxa de juros, desarticulam todas as relações monetárias e perturbam o cálculo econômico. O primeiro objetivo de uma política monetária deve ser o de impedir o governo de adotar medidas inflacionárias e de criar condições que estimulem a expansão do crédito por parte dos bancos. Este programa seria bastante diferente do confuso e autocontraditório programa de estabilização do poder de compra.

Para o bom funcionamento do cálculo econômico, basta evitar flutuações grandes e abruptas na oferta de dinheiro. O ouro e, até meados do século XIX, a prata, atenderam muito bem às necessidades do cálculo econômico. As variações na relação entre a oferta e a demanda destes metais preciosos e as consequentes alterações no poder de compra foram tão lentas que o cálculo econômico dos empresários podia desprezá-las sem correr o risco de grandes desvios. A precisão no cálculo econômico é inatingível, mesmo excluindo as imperfeições decorrentes do fato de não se dar a devida atenção às variações monetárias.[8] Ao fazer seus planos, o empresário não pode deixar de empregar dados relativos a um futuro desconhecido; lida necessariamente com preços e custos de produção que só serão conhecidos no futuro. A contabilidade, no seu esforço para estabelecer o resultado da ação passada, tem o mesmo problema, na medida em que depende da estimativa do valor de instalações fixas, estoques e realizáveis contra terceiros. A despeito de todas estas incertezas, o cálculo econômico pode cumprir sua função. Isto porque as incertezas não decorrem do sistema de cálculo. São inerentes à essência da ação que lida sempre com a incerteza do futuro.

A ideia de tornar estável o poder de compra não teve sua origem na tentativa de tornar o cálculo econômico mais preciso. Ela decorreu do desejo de criar algo que ficasse imune ao incessante fluir da atividade humana, um campo que não pudesse ser afetado pelo processo histórico. As dotações destinadas a prover perpetuamente as necessidades de um corpo eclesiástico, de uma instituição de caridade ou de uma família foram durante muito tempo estabelecido em terras ou em produtos agrícolas. Mais tarde, a elas se acrescentaram anuidades definidas em moeda. Doadores e beneficiários supunham que uma anuidade definida em termos de uma quantidade certa de metais preciosos não seria afetada por mudanças nas condições econômicas. Tais esperanças eram ilusórias. As gerações seguintes constataram que os planos de seus antecessores não se realizaram. Estimulados por esta experiência, começaram a investigar como poderiam atingir os objetivos visados. Foi assim que teve início as tentativas de medir as mudanças no poder aquisitivo e as de eliminar essas mudanças.

O problema assumiu maior importância quando os governos começaram a recorrer a empréstimos em longo prazo, perpétuos, cujo principal não seria nunca reembolsado. O Estado, essa nova deidade da nascente estatolatria, essa eterna e super-humana instituição imune às fraquezas humanas, oferecia ao cidadão uma oportunidade de colocar sua riqueza a salvo de qualquer vicissitude. Abria o caminho para libertar o indivíduo da necessidade de arriscar e de ter que conseguir sua renda novamente, cada dia, no mercado capitalista. Quem investisse seus recursos em títulos emitidos pelo governo ou por entidades paraestatais ficava liberado das inevitáveis leis do mercado e da soberania dos consumidores. Deixava de ter necessidade de investir recursos para melhor servir os desejos e necessidades dos consumidores.

Passava a ter segurança, protegido dos perigos da competição no mercado onde os prejuízos são a punição pela ineficiência; o Estado eterno o acolhia sob sua asa e lhe garantia o desfrute tranquilo de seus recursos. Desde então, sua renda não mais decorria do processo de atender os desejos, mas dos impostos arrecadados pelo aparato de compulsão e coerção. Em vez de servir os seus concidadãos, submisso à sua soberania, passava a ser um sócio do governo que arrecadava impostos do povo. O que o governo pagava como juros eram menos do que o mercado oferecia. Mas esta diferença era fartamente compensada pela indiscutível solvência do devedor, o Estado, cuja receita não dependia de satisfazer o público, mas da cobrança inflexível do pagamento dos impostos.

Apesar das desagradáveis lembranças deixadas pelos primeiros empréstimos públicos, as pessoas estavam dispostas a confiar generosamente no Estado modernizado do século XIX. Em geral, tinha-se como evidente que esse novo Estado cumpriria escrupulosamente as obrigações que voluntariamente havia assumido. Os capitalistas e os empresários tinham plena consciência do fato de que, numa sociedade de mercado, o único meio de preservar a riqueza é ganhá-la de novo a cada dia, numa árdua competição com todos, com as firmas já existentes e com as que estão ”começando do nada”. O empresário envelhecido e cansado, que não estava mais disposto a arriscar sua riqueza duramente conquistada em novas tentativas de servir aos desejos do consumidor, e o herdeiro dos lucros de alguém, indolente e cônscio de sua própria ineficiência, preferia investir em títulos da dívida pública, libertando-se, assim, da lei do mercado.

Ora, uma dívida pública perpétua e não amortizável pressupõe a estabilidade do poder de compra. Embora o Estado e seu poder de coerção possam ser eternos, os juros pagos sobre a dívida pública só podem ser eternos se baseados num padrão de valor imutável. Desta forma, o investidor, que por razões de segurança evita o mercado, a atividade empresarial e o investimento na livre iniciativa, preferindo títulos do governo, defrontam-se novamente com o problema da mutabilidade de todos os assuntos humanos. Descobre que no quadro de uma sociedade de mercado não há lugar para uma riqueza que não seja dependente do mercado. Seus esforços para encontrar uma fonte inesgotável de renda são inúteis.

Não há neste mundo nada que se possa chamar de estabilidade ou segurança e nenhum esforço humano será capaz de criá-las. Numa sociedade regida pelo mercado, a única maneira de adquirir riqueza e preservá-la é a de ser bem-sucedido ao servir o consumidor. O Estado, é claro, pode impor pagamentos aos seus súditos ou tomar recursos por empréstimo. Entretanto, mesmo o mais implacável governante não é capaz de, em longo prazo, violentar as leis que regem a vida e a ação do homem. Se o governo usa os recursos tomados por empréstimo de maneira a melhor servir os desejos dos consumidores, e se é bem-sucedido nessas atividades empresariais, competindo livremente e sem privilégios com empresários privados, está na mesma posição de qualquer outro empreendedor; pode pagar juros porque teve superávit. Mas se o governo investe mal os seus recursos e não produz resultados superavitários, ou se os utiliza para despesas correntes, o capital tomado por empréstimo diminui ou desaparece completamente, secando a fonte de onde deveriam provir os recursos para pagar os juros e o principal. Assim sendo, a única maneira de que dispõe para cumprir os compromissos assumidos nos contratos de crédito é a cobrança de impostos. Ao cobrar impostos com este fim, o governo penaliza os cidadãos pelos recursos que malbaratou no passado. Pelos impostos pagos, os cidadãos não recebem nenhuma contrapartida do aparato governamental. O governo paga juros sobre um capital que consumiu e que já não existe. O Tesouro é onerado pelos resultados desastrados de políticas anteriores.

Em certas circunstâncias, podem-se justificar empréstimos de curto prazo ao governo. Evidentemente, a justificativa popular de empréstimo de guerra não tem sentido. Todos os materiais necessários para conduzir uma guerra devem ser obtidos pela restrição do consumo civil, pelo maior volume de trabalho e pelo consumo de uma parte do capital disponível. O peso do esforço de guerra deve recair sobre a geração em luta. As futuras gerações são afetadas apenas na medida em que, devido ao esforço de guerra, herdarão menos do que herdariam se não tivesse havido uma guerra. Financiar uma guerra através de empréstimos evita a transferência do ônus para os filhos e netos.[9] É simplesmente um modo de distribuir a carga entre os cidadãos. Se toda a despesa fosse coberta por impostos, somente aqueles que tivessem recursos disponíveis poderiam ser taxados. As demais pessoas não contribuiriam de maneira adequada. Empréstimos em curto prazo pode ser um recurso para diminuir essa desigualdade, uma vez que permitem uma oportuna tributação sobre os detentores de capital fixo.

O crédito em longo prazo, público ou semipúblico, é um elemento estranho e perturbador à estrutura da sociedade de mercado. Seu estabelecimento foi uma tentativa inútil de ir além dos limites da ação humana e de criar uma órbita de segurança eterna que não pudesse ser afetada pela transitoriedade e instabilidade dos assuntos terrenos. Que presunção arrogante esta de pactuar empréstimos perpétuos, de fazer contratos para a eternidade, de estipular para todo o sempre! Neste particular, pouco importa se os empréstimos eram formalmente perpétuos ou não; intencional e praticamente, eram assim considerados e transacionados. No apogeu do liberalismo, algumas nações ocidentais redimiram parte de sua dívida de longo prazo mediante honrado reembolso do principal. Mas, na maior parte dos casos, as novas dívidas se foram acumulando sobre as antigas. A história financeira do último século mostra um contínuo aumento do montante da dívida pública. Ninguém acredita que os Estados irão suportar eternamente a carga dos juros a pagar. É óbvio que, mais cedo ou mais tarde, todos estes débitos serão liquidados de alguma maneira, diferente daquela prevista no contrato. Uma legião de autores inescrupulosos já se ocupa em preparar a justificação moral para o dia do ajuste final.[10]

O fato de o cálculo econômico, em termos de moeda, não ser apropriado às tarefas que lhe são atribuídas pelos quiméricos planos que visam à implantação de um impraticável regime de absoluta quietude e de eterna segurança, imune às inevitáveis limitações da ação humana, não pode ser considerado uma deficiência. Não há nada que possa ser considerado como valores eternos, absolutos e invariáveis. A procura de um padrão para medir tais valores é inútil. O cálculo econômico não deve ser considerado como imperfeito por não corresponder às ideias confusas de pessoas que desejam uma renda estável que não dependa do processo produtivo dos homens.



[1] Coisas fora de comércio. (N.T.)

[2] Ver Samuel Bailey, A Critical Dissertation on the Nature, Measures and Causes of Values, Londres, 1825, n. 7 in ”Series of Reprints of Scarce Tracts in Economics and Political Science”, London School of Economics, Londres, 1931.

[3] Para a propensão da mente em considerar a rigidez e a imutabilidade como o essencial, e o movimento e a mudança como o acidental, ver Bergson, La pensée et le mouvant, p.85 e segs.

[4] Ver Irving Fisher, The Money Illusion, Nova Iorque, 1928, p. 19-20.

[5] Para designar coisas exatamente iguais, a língua inglesa possui a expressão ”as like two peas”, cuja tradução literal é ”iguais como duas ervilhas”. (N.T.)

[6] Ver adiante p. ……..

[7] Ver adiante p. ……..

[8] Nenhum cálculo prático pode jamais ser preciso. A fórmula adotada para o cálculo pode ser exata; mas o cálculo em si utiliza sempre quantidades aproximadas e, portanto, é necessariamente impreciso. A economia é, como já foi mostrado anteriormente, (p. ……), uma ciência exata de coisas reais. Mas quando começamos a raciocinar com dados de preços, desaparece a exatidão e a teoria econômica é substituída pela história econômica.

[9] Empréstimos, neste contexto, significam recursos tomados por empréstimo daqueles que têm recursos para emprestar. Não nos estamos referindo ao problema da expansão de crédito que ocorre, hoje em dia na América, principalmente em consequência da expansão do crédito feita através dos bancos comerciais.

[10] A mais popular dessas doutrinas está cristalizada na seguinte frase: uma dívida pública não é uma obrigação, porque devemo-la a nós mesmos. Se isto fosse verdade, o cancelamento da dívida pública seria uma operação inofensiva, um mero lançamento contábil. Na realidade, a dívida pública compreende direitos de pessoas que, no passado, confiaram seus recursos ao governo, contra todos aqueles cidadãos que diariamente estão produzindo novas riquezas. Onera-se o segmento produtivo da sociedade em benefício de outro segmento. Há uma maneira de se liberarem os produtores de novas riquezas desta carga: aplicar os impostos necessários aos pagamentos exclusivamente sobre os portadores de títulos. Mas isto significa um flagrante desrespeito ao compromisso assumido.

 

Artigo anteriorAção Humana – Um Tratado de Economia
Próximo artigoAção Humana – Um Tratado de Economia
Ludwig von Mises
Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico. Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política. Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico. Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de 'praxeologia'.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui