Os peruanos foram agradavelmente surpreendidos, embora tenham ficado um tanto perplexos, com a notícia de que, no dia 8 de outubro, uma quinta-feira, haveria um fim de semana prolongado. O motivo deste feriado improvisado foi a chegada da “comunidade internacional” em Lima para o encontro anual dos líderes do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial.
O presidente do Peru, Ollanta Humala (podendo usufruir uma breve trégua em relação a um escândalo envolvendosubornos recebidos por sua mulher de empreiteiras brasileiras), estimulou os peruanos a se orgulharem do fato de que os lideres das finanças internacionais escolheram o Peru como vitrine para sua conferência, e sugeriu que “isso demonstra para todo o mundo a excelente administração da economia peruana e o nosso seguro e receptivo arcabouço para os investimentos” alcançada sob seus auspícios.
Tais comentários são interessantes porque o Peru realmente representa uma inegável história de sucesso econômico. Se você quer um exemplo clássico e atual de como os mercados podem retirar as pessoas da pobreza abjeta, basta estudar o Peru. (Veja todos os detalhes aqui).
No entanto, o que Humala intencionalmente ignorou — além do fato de que essa transformação econômica peruana ocorreu muito antes de sua presidência — é que as raízes do progresso peruano estão não em uma supostamente sábia política estadista, mas sim na antiga e venerável tradição da incompetência estatal peruana, a qual faz com que os indivíduos tenham de se virar para se sustentar.
Quinze anos atrás, o economista peruano Hernando de Soto, em seu instigante livro O Mistério do Capital, escreveu com profundidade sobre o bizantino funcionamento da burocracia peruana, em que obter títulos de propriedade ou abrir uma empresa exigia que o cidadão se submetesse a um suplício burocrático extremamente caro e demorado, podendo levar anos para se obter a autorização do estado. De Soto lamentou o fato de que essa falta de reconhecimento legal pelo estado impedia os pobres de utilizarem em proveito próprio aquilo que eram ativos realmente consideráveis: suas moradias.
[N. do E.: ao investigar as consequências econômicas da falta de direito de propriedade entre as populações mais pobres do continente, Hernando de Soto descobriu que os pobres da América Latina, só nas terras que possuem de fato mas não de direito, estavam sentados em cima de quase 10 bilhões de dólares. Sem título de propriedade, não podiam capitalizar em cima desse valor.
De Soto estimou que 80% da propriedade nos países em desenvolvimento está totalmente na informalidade. Ou seja, há dezenas de milhões de famílias no continente que simplesmente não podem utilizar sua propriedade como garantia para a obtenção de crédito, com o qual poderiam abrir pequenas empresas, fornecer empregos e, de forma geral, se integrar ao sistema produtivo. Se a casa ou o terreno de uma família pobre não são formalmente seus (como no caso das favelas brasileiras), não há nenhuma medida econômica que possa compensar tudo isso.]
No entanto, a análise de de Soto desconsiderou uma questão importante: caso o Peru tivesse adotado um eficiente aparato regulatório estatal, ao estilo dos países ricos do Ocidente, será que o cidadão médio peruano teria sido capaz de acumular riqueza para utilizar como garantia?
Vale ressaltar que — como todo peruano sabe e todo turista ocidental se surpreendente ao perceber — o Peru é um país em que, se você quer fazer algo, ninguém, muito menos o governo, irá impedir você.
Se você quer uma casa, você pode simplesmente ir para os subúrbios de uma cidade — como já o fizeram milhões de peruanos —, se apropriar de um pedaço de terra devoluto e construir sua casa ali. Os ineficientes burocratas dificilmente irão perder tempo lhe atormentando. Se você quer empreender, simplesmente comece a vender coisas nas ruas. Se você quer ter uma fábrica de roupas, simplesmente comece uma na sua própria casa. O mesmo vale para você que quer abrir um restaurante ou até mesmo uma escola.
É verdade que, como apontou de Soto, no papel, são necessários vinte e seis meses para o estado autorizar e reconhecer uma rota de ônibus. Isso, no entanto, não impediu que indivíduos empreendedores criassem, informalmente, seu próprio serviço de transporte público utilizando vans e ônibus escolares convertidos em ônibus comuns, o que marcou o início daqueles que hoje são os surpreendentemente eficientes (embora lotados) itinerários de ônibus em Lima, os quais transportam passageiros para praticamente todos os pontos imagináveis da irregular capital peruana, e por uma fração de um dólar. O bem-sucedido empreendimento dos ônibus e das vans é uma notável demonstração da ordem espontânea em ação.
No Peru, não é necessário pagar para um médico generalista para que este autorize um procedimento médico: exames de sangue, endoscopias e radiografias podem ser adquiridos prontamente à vista nas várias clínicas particulares individuais (de proprietários únicos) que existem no país. Todos os tipos de remédios genéricos podem ser prontamente adquiridos informalmente nestas clínicas, sem burocracia. E, se você quer entretenimento, em praticamente todas as ruas você pode comprar um DVD pirata, de alta resolução, do mais recente sucesso de Hollywood.
Obviamente, não estou dizendo que os peruanos nunca ouviram falar de alvarás, licenças, regulamentação de profissões, impostos, leis de zoneamento, patentes e tudo mais; elas existem e estão impressas em um Diário Oficial que está dentro de alguma gaveta em algum lugar. Mas tais burocracias são majoritariamente conceitos abstratos que, na maior parte do tempo, podem ser tranquilamente ignorados pelos peruanos. Tudo está à venda no Peru, e barreiras à entrada no mercado praticamente inexistem.
O resultado deste feliz e inesperado encontro entre o paladino espírito latino e um apático aparato estatal é uma sociedade civil sólida e flexível, em que serviços privados de saúde e educação de baixo custo estão disponíveis para todos e cujos cidadãos usufruem níveis nutricionais e de expectativa de vida que estão dentre as mais altas colocações do próprio índice de desenvolvimento do Banco Mundial.
No entanto, todas essas conquistas não estão adequadamente relatadas nas estatísticas do PIB, e certamente não estão sendo celebradas pelo presidente do Peru ou pelos dignitários do Banco Mundial. Com efeito, em vez de reconhecerem os pequenos empreendimentos informais como sendo a genuína manifestação dos princípios do livre mercado, bem como a quintessência da liberdade, o Banco abertamente criticou e condenou sua existência.
Para o Banco Mundial, a ausência de regulamentação é automaticamente sinônimo de subdesenvolvimento. Para o Banco, “desenvolvimento” é a imposição de métricas arbitrárias para o consumo, para os gastos sociais e para os anos de educação pública, bem como a implantação de disposições legais, como salário mínimo e encargos sociais e trabalhistas. O problema é que a implantação desses indicadores de desenvolvimento convenientemente gera uma população trabalhando por salários especificados pelo governo e em empresas também reguladas pelo governo, nas quais os trabalhadores podem ser tributados na fonte. Esses impostos serão então utilizados para financiar uma variedade de programas sociais gerenciados pelos “profissionais da pobreza”, que dedicam seus esforços para descobrir por que as pessoas estranhamente se tornam deprimidas tão logo elas são proibidas pelo estado de ganhar a vida como bem querem, sendo obrigadas a se submeter a decretos estatais e às empresas aliadas do regime.
Esse modelo de desenvolvimento totalmente sem imaginação também não é capaz de retirar a atenção da maneira questionável como o Banco — e mais especificamente sua sucursal, a International Financial Corporation (IFC), que concede empréstimos para grandes empresas — age para “retirar as pessoas da pobreza”. Os peruanos estão hoje bem cientes do quão sincero o lema do IFC de “criar oportunidades onde estas são mais necessárias” realmente é.
Por exemplo, um dos principais projetos do IFC, de fornecer acesso a serviços de saúde de alta qualidade, destinou US$ 120 milhões para a construção da suntuosa Clínica Delgado, no centro do rico distrito de Miraflores, em Lime. Os moradores de Lima agora podem fazer consultas por módicos US$ 150…
Outro necessitado peruano que o IFC se mostrou ávido para ajudar foi o homem mais rico do Peru, Carlos Rodriguez Pastor, cujo grupo Intercorp recebeu US$ 164 milhões para expandir sua divisão de serviços financeiros. Para não ficar para trás, o Grupo Romero (de propriedade da mais rica família de banqueiros do país) recebeu US$ 180 milhões para renovar duas fábricas de processamento de óleo vegetal. Já o Grupo Glória recebeu US$ 25 milhões para construir uma fábrica que irá solidificar sua monopólio sobre o processamento de laticínios no Peru.
O IFC também ampliou sua influência sobre a indústria do turismo peruana, a qual atrai milhões anualmente e fornece uma substancial renda para as pequenas empresas, para as operadoras locais de turismo e para as comunidades indígenas. Não obstante o êxito deste setor, o IFC evidentemente acredita que ainda há alguns peruanos que necessitam de uma ajudinha, como o faustoso grupo “Peru Holding de Turismo” e seu parceiro, a rede de hotéis “Orient Express”, dona de alguns dos mais lucrativos hotéis do Peru. Eles receberam US$ 40 milhões para remodelar vários hotéis de luxo na região de Cusco, os quais atendem exatamente o tipo de elite internacional que ocupa o alto escalão do IFC.
Certamente isso faz parte da estratégia de redução da pobreza do Banco, e os planejadores do organismo querem que Cusco se torne a Davos latino-americana, assegurando aos peruanos um futuro brilhante nos ramos da hospitalidade, dos cerimoniais e do entretenimento adulto.
Há vários outros exemplos de corporativismo e privilégios explícitos, e certamente estes ocorrem em vários outros países “em desenvolvimento”. A única coisa que muda são os nomes das elites nacionais e das corporações estrangeiras que recebem essa lucrativa forma de patrocínio estatal internacional.
Os milhares de peruanos que apareceram para se manifestar contra a conferência provavelmente estão corretos em suspeitar das motivações dos burocratas e diretores das instituições internacionais cujos planos (como o Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica) e modelos econômicos iriam, se concretizados, acabar com a verdadeira concorrência, dificultar o empreendedorismo e restringir suas liberdades.
Assim que a conferência acabou, os vendedores informais — os quais foram retirados das ruas e expulsos da área onde ocorreu a conferência — puderam retornar ao trabalho. Se eles tivessem algum interesse, poderiam até ter reconhecido Christine Lagarde, Jim Yong Kim etc. saindo em seus carros governamentais pretos e blindados. É de imaginar se esta elite estatal financiada com o dinheiro de impostos reconheceria um livre mercado mesmo se este estivesse explícito diante de seus olhos.
______________________________
Leia também:
O capitalismo explícito e o capitalismo envergonhado no Brasil