Capítulo IV – PI E DIREITOS DE PROPRIEDADE
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Propriedade e Escassez
Vamos voltar um passo e examinar desde o início a ideia dos direitos de propriedade. Libertários acreditam em direitos de propriedade sobre bens tangíveis (recursos). Por quê? O que há de especial com bens tangíveis que os sujeita a serem passíveis de apropriação? Por que bens tangíveis constituem propriedade?
Um pouco de reflexão mostrará que é a escassez desses bens – o fato de que pode haver conflito quanto a esses bens por parte de múltiplos agentes humanos. A própria possibilidade de conflito quanto a um recurso o torna escasso, dando origem à necessidade de regras éticas para governar seu uso. Assim, a função social e ética fundamental dos direitos de propriedade é prevenir conflito interpessoal quanto a recursos escassos.[1] Como nota Hoppe: “Apenas porque existe escassez existe um problema de formular leis morais; apenas se os bens são superabundantes (bens “livres”), nenhum conflito quanto ao uso dos bens é possível e nenhuma coordenação de ação é necessária. Consequentemente, disso segue que qualquer ética, corretamente concebida, deve ser formulada como uma teoria da propriedade, ou seja, uma teoria da atribuição de direitos de controle exclusivo sobre meios escassos. Só assim se torna possível evitar conflitos até então inevitáveis e sem solução.”[2]
A natureza contém, então, coisas que são economicamente escassas. Meu uso de alguma coisa conflita com (exclui) seu uso dela, e vice versa. A função dos direitos de propriedade é prevenir conflito interpessoal quanto a recursos escassos, ao alocar posse exclusiva de recursos a indivíduos específicos (donos).[3] Ao cumprir essa função, direitos de propriedade devem ser visíveis e justos. Claramente, para que os indivíduos evitem usar propriedade possuída por outros, limites e direitos de propriedade devem ser objetivos (intersubjetivamente definíveis): eles devem ser visíveis.[4] Por essa razão, direitos de propriedade devem ser objetivos e não ambíguos. Em outras palavras, “boas cercas criam bons vizinhos”.[5]
Direitos de propriedade devem ser demonstravelmente justos, bem como visíveis, porque eles não podem cumprir sua função de prevenir conflitos a menos que sejam aceitos como justos por aqueles afetados pelas regras.[6] Se os direitos de propriedade são alocados de maneira injusta, ou simplesmente agarrados à força, é como se não houvesse direito algum; é novamente o poder contra a justiça, isto é, a situação anterior aos direitos de propriedade. Mas como os libertários reconhecem, seguindo Locke, é apenas o primeiro ocupante ou usuário de tal propriedade que pode ser seu dono natural. Apenas a regra do primeiro ocupante garante uma alocação ética e não arbitrária de propriedade sobre recursos escassos.[7] Quando direitos de propriedade sobre meios escassos são alocados de acordo com a regra do primeiro ocupante, fronteiras de propriedade são visíveis, e a alocação é demonstravelmente justa. Conflito pode ser evitado com tais direitos de propriedade porque terceiros podem vê-los, e assim evitar as fronteiras, e serem motivados para fazê-lo porque a alocação é justa e clara.
Mas com certeza é claro que, dada a origem, a justificativa e a função dos direitos de propriedade, que eles são aplicáveis apenas a bens escassos. Caso estivéssemos num Jardim do Éden onde a terra e outros bens fossem infinitamente abundantes, não haveria escassez, e, portanto, nenhuma necessidade de direitos de propriedade; conceitos de propriedade não fariam sentido. A ideia de conflito, e a ideia de direitos, sequer surgiriam. Por exemplo, o fato de você pegar meu cortador de grama não acabaria me privando de um se eu pudesse encantar outro com um piscar de olhos. Pegar o cortador nessas circunstancias não seria “roubo”. Direitos de propriedade não são aplicáveis a coisas de abundância infinita, porque não há como haver conflito quanto a elas. Assim, direitos de propriedade devem possuir fronteiras objetivas, discerníveis, e devem ser alocadas de acordo com a regra do primeiro ocupante. Além disso, direitos de propriedade são aplicáveis apenas a recursos escassos. O problema com direitos sobre PI é que os objetos ideais protegidos pelos direitos sobre PI não são escassos; e, além disso, tais direitos de propriedade não são, e nem podem ser, alocados de acordo com a regra do primeiro ocupante, como será visto abaixo.
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Escassez e Ideias
Assim como o cortador de grama magicamente reproduzível, ideias não são escassas. Se eu inventar uma técnica para colher algodão, o fato de você colher algodão dessa forma não tira essa técnica de mim. Eu ainda possuo minha técnica (assim como meu algodão). Seu uso não exclui o meu; podemos ambos usar minha técnica para colher algodão. Não há escassez econômica, e nenhuma possibilidade de conflito quanto ao uso de um recurso escasso. Assim, não há necessidade de exclusividade.
Similarmente, se você copiar um livro que eu escrevi, eu ainda possui o livro original (tangível), e eu ainda “tenho” o padrão de palavras que constitui o livro. Assim, trabalhos assinados não são escassos no mesmo sentido que uma faixa de terra ou um carro o são. Se você pegar meu carro, eu não o tenho mais. Mas se você “pegar” um padrão de livro e usá-lo para fazer seu próprio livro físico, eu ainda possuo minha própria cópia. O mesmo é válido para invenções e, de fato, qualquer “padrão” ou informação que alguém gere ou possua. Como Thomas Jefferson – ele mesmo um inventor, bem como o primeiro Examinador de Patentes dos EUA – escreveu, “aquele que recebe uma ideia de mim recebe instrução sem diminuir a minha; da mesma forma aquele que acende sua vela perto de mim, recebe luz sem me escurecer”.[8] Como o uso da ideia de outros não os priva da mesma, nenhum conflito quanto ao uso é possível; ideias, então, não são candidatas a possuírem direitos de propriedade. Mesmo Rand reconheceu que “propriedade intelectual não pode ser consumida”.[9]
Ideias não são naturalmente escassas. Entretanto, ao reconhecer um direito sobre um objeto ideal, se cria escassez onde não existia antes. Como explica Arnold Plant: “É uma peculiaridade dos direitos de propriedade sobre patentes (e direitos autorais) que eles não apareçam da escassez dos objetos que são apropriados. Eles não são uma consequência da escassez. Eles são a criação deliberada de leis estatuárias, e, ao passo que em geral a instituição da propriedade privada colabora com a preservação dos bens escassos, tendendo… a aproveitar o máximo deles”, direitos de propriedade sobre patentes e direitos autorais tornam possível a criação de uma escassez dos produtos apropriados que caso contrário não poderia ser mantida”.[10] Bouckaert também argumenta que é a escassez natural o que dá origem à necessidade de regras de propriedade, e que leis de PI criam uma escassez artificial, injusta. Como ele nota: “Escassez natural é o que se segue da relação entre o homem e a natureza. A escassez é natural quando é possível concebê-la perante qualquer arranjo humano contratual, institucional. Escassez artificial, por outro lado, é o resultado de tais arranjos. Escassez artificial dificilmente pode servir como uma justificativa para o arcabouço legal que causa tal escassez. Tal argumento seria completamente circular. Pelo contrário, a escassez artificial em si precisa de uma justificativa.”[11]
Assim, Bouckaert mantém que “apenas entidades naturalmente escassas sobre as quais controle físico é possível são candidatas” a proteção por direitos de propriedade reais.[12] Para objetos ideais, a única proteção possível é aquela atingível através dos direitos pessoais, isto é, contrato (mais sobre isso na seção ‘PI Como Contrato’).[13]
Apenas recursos escassos, tangíveis, são objetos passíveis de conflito interpessoal, então é apenas a eles que as regras de propriedade são aplicáveis. Assim, patentes e direitos autorais são monopólios injustificáveis garantidos por legislação governamental. Não é de surpreender que, como nota Palmer, “privilégios monopolísticos e censura estão baseados na raiz histórica de patentes e direitos autorais”.[14] É esse privilégio monopolístico que cria uma escassez artificial onde não havia antes.
Vamos relembrar que direitos sobre PI conferem aos criadores de padrões direitos parciais de controle – posse – sobre a propriedade tangível de todos os outros. O criador do padrão possui controle parcial da propriedade de terceiros, graças ao seu direito sobre PI, porque ele pode proibi-los de executar certas ações com sua própria propriedade. O autor X, por exemplo, pode proibir um terceiro, Y, de estampar certo padrão de palavras nas próprias páginas vazias de Y com a própria tinta de Y. Ou seja, ao meramente se responsabilizar por uma expressão original de ideias, ao meramente pensar e gravar um padrão original de informação, ao encontrar uma nova forma de usar sua própria propriedade (receita), o criador de PI instantaneamente, magicamente, se torna um dono parcial da propriedade de terceiros. Ele tem alguma voz sobre como terceiros podem dispor de sua propriedade. Direitos de PI mudam o status quo ao redistribuir propriedade de indivíduos de uma classe (donos de propriedade tangível) para indivíduos de outra classe (autores e inventores). Prima facie, então, leis de PI transgridem ou “tomam” a propriedade de donos de propriedade tangível, ao transferir posse parcial para autores e inventores. É essa invasão e redistribuição de propriedade que deve ser justificada para que direitos sobre PI sejam válidos. Vemos, então, que defesas utilitaristas não são capazes de fornecer tal justificativa. Problemas adicionais com defesas jusnaturalistas serão explorados abaixo.
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Criação versus Escassez
Algumas inconsistências e problemas com teorias jusnaturalistas de PI foram apontados acima. Nessa seção são discutidos problemas adicionais com tais argumentos, sob a luz da discussão precedente quanto à significância da escassez.
Como notado acima, alguns defensores libertários da PI, tais como Rand, mantém que a criação é a base dos direitos de propriedade.[15] Isso confunde a natureza e os motivos para se ter direitos de propriedade, que residem no fato inegável da escassez. Dada a existência de escassez e a correspondente possibilidade de conflito quanto ao uso de recursos, conflitos são evitados e paz e cooperação são atingidas ao alocar direitos de propriedade a tais recursos. E o propósito dos direitos de propriedade dita a natureza de tais regras. Se as regras alocando direitos de propriedade devem servir como regras objetivas, com as quais todos podem concordar para evitar conflito, elas não podem ser enviesadas ou arbitrárias.[16] Por essa razão, recursos previamente sem dono passam a ser possuídos – apropriados – pelo primeiro possuidor.[17]
A regra geral, então, é que a posse de um dado recurso escasso pode ser identificada determinando quem primeiro o ocupou. Há várias formas de possuir ou ocupar recursos, e maneiras diferentes de demonstrar ou provar tal ocupação, dependendo da natureza do recurso e do uso que é designado. Assim, eu posso colher uma maçã do inexplorado e por consequência me apropriar dela, ou cercar uma faixa de terra e criar uma fazenda. Às vezes se diz que uma forma de ocupação é “formar” ou “criar” a coisa.[18] Por exemplo, eu posso esculpir uma estátua a partir de um bloco de mármore, ou forjar uma espada a partir de metal puro, ou mesmo “criar” uma fazenda numa faixa de terra.
Podemos ver através desses exemplos que a criação é relevante para a questão da posse de um recurso escasso “criado”, tal como uma estátua, espada ou fazenda, apenas quando o ato de criação é um ato de ocupação, ou caso contrário seja uma evidencia de primeira ocupação. Contudo, “criação” em si não justifica posse sobre coisas; não é nem necessária nem suficiente. Não se pode criar um recurso possivelmente escasso sem primeiro usar as matérias primas necessárias para criar o item. Mas essas matérias primas são escassas, e ou eu as possuo ou não. Caso não as possua, então eu não possuo o produto resultante. Se eu possuo os insumos, então, graças a tal posse, eu possuo a coisa resultante que eu transformei.
Considere o forjamento de uma espada. Se eu possuo algum metal puro (porque eu o extraí do chão que eu possuía), então eu possuo o próprio metal após tê-lo transformado numa espada. Eu não preciso contar com o fato da criação para possuir a espada, mas apenas com minha posse dos fatores usados para fazer a espada.[19] E eu não preciso de criação para possuir os fatores, uma vez que eu posso os apropriar simplesmente extraindo-os do solo e consequentemente me tornando o primeiro possuidor. Por outro lado, se eu confeccionar uma espada usando seu metal, eu não possuo a espada resultante. De fato, eu posso lhe dever danos por transgressão ou conversão. A criação, então, não é nem necessária nem suficiente para estabelecer posse. O foco na criação tira atenção do papel crucial da primeira ocupação como uma regra da propriedade que foca na escassez. A primeira ocupação, e não a criação ou trabalho, é condição necessária e suficiente para a apropriação de recursos escassos previamente sem dono.
Uma razão para a ênfase indevida dada a criação como fonte dos direitos de propriedade pode ser o foco de alguns no fato de o trabalho ser um meio de apropriar recursos previamente sem dono. Isso é manifesto no argumento de que se apropria propriedade sem dono misturando trabalho porque as pessoas são “donas” de seu trabalho. Entretanto, como Palmer corretamente mostra, “a ocupação, e não o trabalho, é a forma através da qual coisas externas se tornam propriedade”.[20] Ao se focar na primeira ocupação, ao invés do trabalho, como a chave para a apropriação, não há necessidade de colocar a criação como a fonte dos direitos de propriedade, como Objetivistas e outros o fazem. Na verdade, direitos de propriedade devem ser reconhecidos para pioneiros (ou seus herdeiros contratuais) para evitar o problema onipresente de conflito quanto a recursos escassos. Além do mais, não há necessidade de defender a estranha visão de que alguém é “dono” de seu trabalho para possuir as coisas que ocupa primeiro. O trabalho é um tipo de ação, e ações não são passíveis de ser apropriadas; pelo contrário, é a forma através da qual algumas coisas tangíveis (por exemplo, corpos) agem no mundo. O problema com defesas jusnaturalistas da PI, então, está no argumento de que pelo fato de que um autor-inventor “cria” alguma “coisa”, ele “dessa forma” merece possuí-la. O argumento pede uma réplica ao supor que o objeto ideal é passível de apropriação em primeira instância; uma vez que isso é garantido, parece natural que o “criador” dessa propriedade seja seu dono justo e natural. Contudo, objetos ideais não são passíveis de apropriação.
Na abordagem libertária, quando há um recurso escasso (apropriável), identificamos seu dono ao determinar quem é seu primeiro ocupante. No caso de bens “criados” (isto é, esculturas, fazendas, etc.), pode às vezes ser suposto que o criador também é o primeiro ocupante pelo fato de que a coleta de matérias-primas e o próprio ato da criação (impor um padrão sobre a matéria, confeccionando um artefato, ou coisa do gênero). Mas não é a criação per se que dá origem à posse, como dito acima.[21] Por motivos similares, a ideia Lockeana de “misturar trabalho” com um recurso escasso é relevante apenas quando indica que o usuário possuía a propriedade (a propriedade deve ser possuída para ser trabalhada). Não é porque o trabalho deve ser recompensado, nem porque “possuímos” trabalho e “logo” possuímos seus frutos. Em outras palavras, criação e mistura de trabalho indicam que alguém ocupou – e, consequentemente, se apropriou – de recursos escassos previamente sem dono.[22]
Ao focarem na criação e trabalho ao invés da primeira ocupação de recursos escassos como a pedra mestra dos direitos de propriedade, defensores da PI são levados a colocar ênfase indevida na importância de “recompensar” o trabalho do criador, assim como a falha teoria do valor trabalho de Adam Smith levou às visões comunistas ainda mais falhas de Marx sobre exploração.[23] Como dito acima, para Rand, direitos sobre PI são, em certo sentido, a recompensa por trabalho produtivo. Rand e outros defensores jusnaturalistas da PI parecem adotar um raciocínio misto de jusnaturalismo e utilitarismo ao manterem que a pessoa que investe tempo e esforço deve ser recompensada ou se beneficiar com esse esforço (por exemplo, Rand se opunha a patentes e direitos autorais perpétuos porque descendentes distantes não criaram o trabalho de seus ancestrais e não merecem recompensa).[24]
Além disso, numa estranha mistura de pensamento jusnaturalista e utilitarista, a abordagem jusnaturalista da PI implica que algo é propriedade se ela pode ter valor. Mas, como Hoppe decididamente mostrou, não se pode ter um direito de propriedade sobre o valor da propriedade de alguém, mas apenas sobre sua integridade física.[25] Além do mais, muitas “coisas” arbitrariamente definidas podem adquirir valor econômico se o governo conceder um monopólio sobre seu uso, ainda que naturalmente as mesmas não sejam recursos escassos (por exemplo, o poder de monopólio do Serviço Postal dos EUA de entregar cartas de primeira classe). Assim, pelo fato de que ideias não são recursos escassos num sentido de que conflito físico quanto ao seu uso possa ser possível, elas não estão sujeitas aos direitos de propriedade designados para evitar tais conflitos.
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Dois Tipos de Apropriação Original
O que, afinal, está realmente errado em reconhecer “novos” direitos de propriedade? Afinal, uma vez que novas ideias, criações artísticas e inovações continuamente nos enriquecem, qual é o mal em se “modernizar” e reconhecer novas formas de propriedade? O problema é que se direitos de propriedade são reconhecidos sobre recursos não escassos, isso necessariamente significa que direitos de propriedade sobre recursos tangíveis são correspondentemente diminuídos. Isso porque a única forma de reconhecer direitos ideais em nosso mundo real, escasso, é alocar direitos sobre bens tangíveis. O fato de eu possuir um direito efetivo de patente – um direito sobre uma ideia ou padrão, não sobre um recurso escasso – significa que eu tenho algum controle sobre os recursos escassos de todos os outros. De fato, podemos perceber que direitos sobre PI implicam uma nova regra para adquirir direitos sobre recursos escassos, que desloca o princípio libertário de primeira ocupação. Isso porque, de acordo com a apropriação original libertária-Lockeana, é o primeiro ocupante de um recurso escasso previamente sem dono que se torna seu dono, isto é, se apropria dele. Uma pessoa que chega depois e toma controle de tudo ou parte de tal propriedade é simplesmente um ladrão, porque a propriedade já tem dono. O ladrão efetivamente propõe uma nova e arbitrária regra de apropriação para substituir a regra do primeiro ocupante, de fato a regra particularista “eu me torno o dono da propriedade quando eu forçadamente a tomo de você”. É claro, tal regra não pode ser considerada como tal, e é claramente inferior à regra do primeiro possuidor. A regra do ladrão é particular, não universal; ela não é justa e certamente não é apropriada para evitar conflitos.
Defensores da PI devem também propor uma nova regra de apropriação para suplementar, talvez substituir, a regra de apropriação do primeiro possuidor. Eles devem manter que há uma segunda forma de um indivíduo vir a possuir propriedade tangível. A saber, o defensor da PI deve propor alguma regra de apropriação seguindo as linhas adiante: “uma pessoa que apareça com uma ideia útil ou criativa que possa guiar ou direcionar um agente no uso de sua própria propriedade tangível ganha instantaneamente um direito de controle sobre todas as outras propriedades tangíveis no mundo, com respeito ao uso similar dessa propriedade”. Essa nova técnica de apropriação é tão poderosa que dá ao criador direitos sobre propriedade tangível já possuída por terceiros. Por exemplo, ao inventar uma nova técnica para cavar um poço, o inventor pode prevenir todos os demais no mundo de cavar poços de tal maneira, mesmo com sua própria propriedade. Para usar outro exemplo, imagine o tempo em que os homens viviam em cavernas. Um cara esperto – vamos chamá-lo de Galt-Magnon – decide construir uma cabana de troncos num campo aberto, perto de sua plantação. Com certeza é uma boa ideia, e outros perceberam. Eles naturalmente imitam Galt-Magnon, e começam a construir suas próprias cabanas. Mas o primeiro homem a inventar uma casa, de acordo com os defensores da PI, teria o direito de impedir outros de construírem casas em sua própria terra, com seus próprios troncos, ou cobrar uma taxa caso eles decidam construir casas. É claro que o inovador nesses exemplos se torna um dono parcial da propriedade tangível (por exemplo, terra e troncos) de outros, não devido à primeira ocupação e uso daquela propriedade (uma vez que ela já está possuída), mas devido ao fato de ter aparecido com uma ideia. Claramente essa regra é um insulto à regra do primeiro usuário ocupante, arbitrariamente e sem bases deslocando a própria regra de apropriação que está na base de todos os direitos de propriedade.
Não há, de fato, razão alguma para que a mera inovação dê ao inovador posse parcial de propriedade já possuída por outros. Só porque uma regra pode ser proposta não significa que é funcional ou justa. Há muitas regras arbitrárias que podem ser imaginadas através das quais direitos de propriedade podem ser alocados. Por exemplo, um racista poderia propor que qualquer pessoa branca pode se apropriar de qualquer propriedade já apropriada por uma pessoa negra. Ou: o terceiro ocupante de um recurso escasso se torna seu dono. Ou: Estado pode se apropriar de todos os bens de capital, mesmo se já adquiridos antes por indivíduos. Ou: por decreto legislativo, o Estado pode se apropriar, na forma de impostos, de parte da propriedade já possuída por indivíduos privados. Todas essas regras arbitrárias de apropriação, incluindo a regra da PI, na qual inovadores se apropriam de controle parcial sobre recursos tangíveis de todos os outros, são injustificáveis. Todas elas conflitam com a única regra de apropriação justificável, a primeira ocupação. Nenhuma delas estabelece regras objetivas, justas, que evitem conflito interpessoal quanto a recursos escassos. Discussões de proteger direitos sobre “ideias”, “criações”, ou “coisas de valor” apenas servem para obscurecer o fato de que o defensor da PI se opõe ao direito não adulterado de se apropriar e possuir propriedade privada.
[1] O papel econômico ou catalático fundamental dos direitos de propriedade, junto com os preços de mercado que surgem das trocas de propriedade, é permitir o cálculo econômico. Ver N. Stephan Kinsella, “Knowledge, Calculation, Conflict, and Law: Review Essay of Randy E. Barnett, The Structure of Liberty: Justice and the Rule of Law,” Quarterly Journal of Austrian Economics 2, no. 4 (Inverno 1999): 49-71.
[2] Hans-Hermann Hoppe, A Theory of Socialism and Capitalism (Boston: Kluwer Academic Publishers, 1989), p. 235 n. 9.
[3] Plant, “The Economic Theory Concerning Patents for Inventions,” pp. 35-36; David Hume, An Inquiry Concerning the Principles of Morals: With a Supplement: A Dialogue (1751; reimpressão, Nova Iorque: Liberal Arts Press, 1957); Palmer, “Intellectual Property: A Non-Posnerian Law and Economics Approach,” pp. 261-66 and n. 50 (distinguindo dentre escassez “estática” e “dinâmica”), também pp. 279-80; Palmer, “Are Patents and Copyrights Morally Justified?” pp. 860-61, 864-65; and Rothbard, “Justice and Property Rights,” em The Logic of Action One, p. 274; sobre Tucker, ver McElroy, “Intellectual Property: Copyright and Patent.
[4] Hoppe, A Theory of Socialism and Capitalism, pp. 140-41. Eu não quero dizer restringir direitos ao que é observado; o termo visível aqui significa observável ou discernível. Eu devo essa clarificação a Gene Callahan.
[5] Robert Frost, “The Mending Wall,” in North of Boston, 2nd ed. (New York: Henry Holt, 1915), pp. 11-13. (Por favor, não me mande um e-mail sobre isso. Eu não me importo com o que Frost “realmente” quis dizer naquele poema, eu simplesmente gosto das palavras).
[6] Hoppe, A Theory of Socialism and Capitalism, p. 138.
[7] Ver, sobre a abordagem apropriada à regra de apropriação e primeiro usuário (a distinção entre pioneiro e seguidores), Hoppe, A Theory of Socialism and Capitalism, pp. 141-44; Hoppe, The Economics and Ethics of Private Property (Boston: Kluwer Academic Publishers, 1993), pp. 191-93; Jeffrey M. Herbener, “The Pareto Rule and Welfare Economics,” Review of Austrian Economics 10, no. 1 (1997): 105: “Uma vez que o item é possuído pelo primeiro usuário, outros não possuem mais a opção de ser seu primeiro usuário; assim, suas preferências naquele ponto do tempo não tem influência alguma na natureza Pareto-superior da aquisição pelo primeiro usuário”; e de Jassay, Against Politics, pp. 172-79. Sobre as justificativas éticas de tal esquema de direitos de propriedade, ver Hoppe A Theory of Socialism and Capitalism, cap. 7; Hoppe, The Economics and Ethics of Private Property; Rothbard, The Ethics of Liberty; Rothbard, “Justice and Property Rights,” em The Logic of Action One; N. Stephan Kinsella, “A Libertarian Theory of Punishment and Rights” Loyola of Los Angeles Law Review 30 (Primavera 1996): 607; N. Stephan Kinsella, “New Rationalist Directions in Libertarian Rights Theory,” Journal of Libertarian Studies 12, no. 2 (Outono 1996): 313-26.
[8] Thomas Jefferson para Isaac McPherson, Monticello, Agosto 13, 1813, carta, em The Writings of Thomas Jefferson, vol. 13, ed. A.A. Lipscomb and A.E. Bergh (Washington, D.C.: Thomas Jefferson Memorial Association, 1904), pp. 326-38. Jefferson reconheceu que, pelo fato de ideias não serem escassas, patentes e direitos autorais não são direitos naturais, e podem ser justificados apenas, e se possível, em campos utilitaristas de promover invenções úteis e trabalhos literários (e, mesmo assim, eles devem ser criados por estatuto, uma vez que não são direitos naturais). Ver Palmer, “Intellectual Property: A Non-Posnerian Law and Economics Approach,” p. 278 n. 53. Ainda sim isso não significa que Jefferson apoiava patentes, mesmo que em campos utilitaristas. O historiador de patentes Edward C. Walterscheid explica que “ao longo de sua vida, [Jefferson] manteve um saudável ceticismo quanto ao valor do sistema de patentes”. “Thomas Jefferson and the Patent Act of 1993,” Essays in History 40 (1998).
[9] Rand, “Patents and Copyrights,” p. 131. Mises, em Ação Humana, p. 661, reconhece que não há necessidade de economizar no emprego de “fórmulas”, “porque sua capacidade de gerar serviços não pode ser esgotada.” Na página 128 ele diz: “Uma coisa provendo tais serviços ilimitados é, por exemplo, o conhecimento da relação causal implícita. A fórmula, a receita que nos ensina como preparar café, uma vez conhecida, provém serviços ilimitados. Ela não perde nada quanto a sua capacidade produtiva não importa quanto for usada; seu poder produtivo é inesgotável; não se trata, portanto, de um bem econômico. O homem agente nunca enfrentou uma situação na qual ele deve escolher entre o valor de uso de uma fórmula conhecida e qualquer outra coisa útil.” Ver também p. 364.
[10] Plant, “The Economic Theory Concerning Patents for Inventions,” p. 36. Também Mises, Ação Humana, p. 364: “Tais receitas são, como regra, bens livres uma vez que sua habilidade de produzir certos efeitos é ilimitada. Elas podem se tornar bens econômicos caso sejam monopolizadas e seu uso seja restringido. Qualquer preço pago pelos serviços gerados por uma receita sempre será um preço monopolístico. Não importa se a restrição ao uso da receita seja possibilitada por condições institucionais – tais como patentes e leis de direitos autorais – ou pelo fato de que a fórmula é mantida em segredo e outras pessoas não são capazes de descobri-la”.
[11] Bouckaert, “What is Property?” p. 793; ver também pp. 797-99.
[12] Bouckaert, “What is Property?” pp. 799, 803.
[13] Palmer, “Intellectual Property: A Non-Posnerian Law and Economics Approach,” pp. 284-85.
[14] Palmer, “Intellectual Property: A Non-Posnerian Law and Economics Approach,” p. 264.
[15] Ver Rand, “Patents and Copyrights”; Kelley, “Response to Kinsella”; Franck, “Intellectual and Personality Property” e “Intellectual Property Rights: Are Intangibles True Property?”
[16] Ver Hoppe, A Theory of Socialism and Capitalism, chap. 7, esp. p. 138.
[17] Hoppe, A Theory of Socialism and Capitalism, p. 142; de Jasay, Against Politics, pp. 172-79; e Herbener, “The Pareto Rule and Welfare Economics,” p. 105.
[18] Ocupação ou tomar posse “pode tomar três formas: (1) ao tomar controle físico diretamente, (2) por formação, e (3) ao meramente demarcar como seu”. Palmer, “Are Patents and Copyrights Morally Justified?” p. 838.
[19] Eu também não preciso me apoiar na “posse” do meu trabalho; falando estritamente, o trabalho não pode ser possuído, e a posse do trabalho não precisa ser utilizada para mostrar que eu mantenho posse de minha propriedade conforme eu a transformo.
[20] Palmer, “Are Patents and Copyrights Morally Justified?” p. 838 (ênfase minha), citando Georg W.F. Hegel, Hegel’s Philosophy of Right, tradução. T.M. Knox. (1821; reimpressão, Londres: Oxford University Press, 1967), pp. 45-46.
[21] Mesmo defensores da PI como Rand não mantêm que a criação per se é suficiente para dar origem aos direitos, ou que a criação seja ao menos necessária. Não é necessária porque propriedade sem dono pode ser apropriada simplesmente ao ocupá-la, o que não envolve criação, a menos que o conceito seja ampliado sem limites. Também não é suficiente, porque Rand certamente não afirmaria que criar um item usando matérias-primas possuídas por terceiros dá ao criador-ladrão a posse do item. A própria visão de Rand implica que direitos, incluindo direitos de propriedade, aparecem apenas quando há possibilidade de conflito. Rand, por exemplo, vê os direitos como um conceito social surgindo apenas quando há mais de uma pessoa. Ver Rand, “Man’s Rights,” in Capitalism: The Unknown Ideal, p. 321: “Um “direito” é um princípio moral definindo e sancionando a liberdade de ação de um homem num contexto social”. De fato, como argumenta Rand, “Os direitos de um homem podem ser violados apenas através do uso da força física”, isto é, de algum conflito quanto a um recurso escasso. “The Nature of Government,” em Capitalism: The Unknown Ideal, p. 330. Na p. 334, Rand tenta (sem sucesso) justificar o governo, o agente que executa direitos, baseada no fato de que pode haver “desacordos honestos” – isto é, conflito – mesmo entre pessoas “completamente racionais e moralmente impecáveis”. Então, na teoria de Rand, a criação per se não é necessária nem suficiente, assim como na teoria de propriedade defendida aqui.
[22] É por essas razões que eu discordo da abordagem centrada na criação de Objetivistas como David Kelley e Murray Franck. De acordo com Franck, “Intellectual and Personality Property,” p.7, “apesar de direitos de propriedade ajudarem a ‘racionar’ a escassez, a escassez não é a base dos direitos de propriedade. A visão de que ela seja… parece reverter causa e efeito pois vê os direitos como uma função das necessidades da sociedade ao invés de inerentes no indivíduo que deve viver na sociedade”. Eu não tenho certeza do que significa dizer que direitos, os quais são conceitos relacionais que se aplicam apenas num contexto social, são inerentes num indivíduo, ou que eles são “funções” de alguma coisa. A primeira noção beira o positivista (ao implicar que os direitos possuem uma “fonte”, como se pudessem ser decretados por Deus ou pelo governo), e a última beira o pseudocientífico (ao usar a noção precisa matemática e das ciências naturais de “função”). E o argumento em favor dos direitos de propriedade não é baseado numa necessidade de “racionar” itens escassos, mas sim na necessidade dos indivíduos de empregarem meios para atingir fins, e evitar conflitos interpessoais quanto a esses meios. Assim, a escassez não é a “base” para os direitos de propriedade, mas um cenário necessário que deve ser obtido antes que direitos de propriedade possam surgir ou fazer sentido; só podem surgir conflitos quanto a recursos escassos, não abundantes. (Como dito na nota anterior, o Objetivismo também mantém que a possibilidade de conflito é uma condição necessária para os direitos de propriedade.) Além disso, o argumento baseado na escassez elaborado aqui não é mais “função das necessidades sociais” do que a abordagem Objetivista de Franck. Ele acredita que os homens “precisam” ser capazes de criar coisas para sobreviver – num contexto social no qual a presença de outros homens torna disputas possíveis. “Assim”, a lei deveria proteger direitos sobre coisas criadas. Mas o argumento baseado na escassez reconhece que os homens “precisam” ser capazes de usar recursos escassos e que isso requer que conflitos sejam evitados; assim, a lei deveria alocar direitos de propriedade sobre recursos escassos. Sejam quais forem os méritos relativos das posições baseadas na criação e na escassez, o argumento da escassez não é mais coletivista que o argumento da criação, e o argumento da criação não é mais individualista que o argumento da escassez. Kelley, em “Response to Kinsella”, p. 13, escreve: “Direitos de propriedade são necessários porque as pessoas precisam prover sua vida através do uso da razão. A tarefa primordial com relação a isso é criar valores que satisfaçam necessidades humanas, ao invés de depender do que encontramos na natureza, como os animais o fazem… A base essencial dos direitos de propriedade reside no fenômeno de criação de valor… A escassez se torna um assunto relevante quando consideramos o uso de coisas da natureza, tais como terra, como insumos ao processo de criação de valor. Como uma regra geral, eu diria que duas condições são necessárias para a apropriação de coisas da natureza e fazê-las propriedade de alguém: (1) elas devem ser colocadas em uso produtivo, e (2) esse uso produtivo deve requerer controle exclusivo sobre ela, isto é, o direito de excluir outros… A condição (2) se mantém apenas quando o recurso é escasso. Mas para coisas criadas, tais como um novo produto, o ato de criação de alguém é a fonte do direito, independente da escassez.” (ênfase adicionada).
Meus motivos para discordar de Kelley deveriam ser aparentes, mas deixe me apontar que toda ação humana, incluindo a criação de “valores”, tem que fazer uso de meios escassos, ou seja, as coisas materiais do mundo. Cada ato de criação emprega coisas feitas de átomos já existentes; nem esse fato, nem o reconhecimento disso, são animalescos em qualquer sentido pejorativo. Que o homem, em oposição aos animais, deseja criar valores de ordem mais elevada usando recursos escassos não muda essa análise. Segundo, Kelley defende duas regras separadas para apropriar recursos escassos: através do primeiro uso do recurso, e ao criar um padrão novo, útil ou artístico com sua própria propriedade, o que dá ao criador o direito de impedir todos os demais de usar um padrão similar, mesmo com sua própria propriedade. Como discutido abaixo, essas duas regras estão em conflito, e apenas a primeira é justificável. Finalmente, Kelley diz que o criador de um novo produto é seu dono porque ele o criou, independentemente da escassez. Se com isso Kelley entende um produto tangível, como uma ratoeira, tal bem é uma coisa tangível, realmente escassa. Presumivelmente o criador possuía as matérias-primas escassas que ele transformou no produto final. Mas ele não precisa ter um direito sobre o objeto ideal da ideia ou padrão da ratoeira para possuir o próprio produto final; ele já possuía as matérias-primas, e ainda as possui após transformá-las. Se Kelley, ao invés, entende que, ao criar um padrão ou ideia, se adquire o direito de controle sobre os recursos escassos de outros, então ele está defendendo um novo tipo de regra de apropriação, a qual eu critico abaixo.
[23] Ver, por exemplo, Murray N. Rothbard, Economic Thought Before Adam Smith: An Austrian Perspective on the History of Economic Thought, vol. 1 (Brookfield, Vt.: Edward Elgar, 1995), p. 453: “Foi, de fato, Adam Smith quase que o único responsável por injetar na economia a teoria do valor trabalho. E consequentemente é Smith que pode plausivelmente ser considerado responsável pela emergência e gravíssimas consequências de Marx.” Mesmo assim pensadores de respeito as vezes dão ênfase indevida à importância do trabalho para o processo de apropriação e sua capacidade de ser “possuído”. O próprio Rothbard, por exemplo, implica que um indivíduo “é dono de si e, portanto, de seu trabalho.” Rothbard, “Justice and Property Rights,” p. 284, ênfase adicionada; ver também Rothbard, The Ethics of Liberty, p. 49. É uma metáfora enganosa falar de “possuir trabalho” (ou a vida ou ideias). O direito de lucrar com o trabalho de alguém é apenas uma consequência de estar em controle de seu corpo, assim como o direito de “liberdade de expressão” é apenas uma consequência, ou uma derivação, do direito à propriedade privada, como reconhecida por Rothbard em The Ethics of Liberty, especialmente cap. 15.
[24]Ver também Reisman, Capitalism, pp. 388-89.
[25] Hoppe, A Theory of Socialism and Capitalism, pp. 139-41, 237 n. 17.