Desvalorização artificial do câmbio – um péssimo negócio

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exchange ratePaira no ar, principalmente por causa da China, a ideia de que “moeda fraca” ajuda a desenvolver um país.  O raciocínio é um tanto simples: com moeda fraca, os produtos locais ficam mais baratos e as exportações aumentam, fazendo as indústrias investir mais e contratar mais, iniciando assim um círculo virtuoso.  De certa maneira, não há nada de novo no raciocínio; muito pelo contrário, é o velho mercantilismo anterior a Adam Smith/David Ricardo somado a pitadas de keynesianismo versão “economia internacional”.

O primeiro problema com uma moeda desvalorizada artificialmente é que, na melhor das hipóteses, os aparentes resultados benéficos são de curto prazo.  Com um câmbio desvalorizado, as exportações aumentam, mas isso por sua vez incentivaria uma apreciação da moeda local – afinal, muitas pessoas a estão demandando.  Se o governo não continuar com a tática da desvalorização (comprando moeda estrangeira e emitindo moeda local), o câmbio volta ao seu patamar “de mercado” original, cancelando qualquer efeito de curto prazo sobre exportações.

Mas e o ganho nesse período em que a coisa funcionou (o câmbio ficou desvalorizado e o país exportou muito)?  Não deve contar como um benefício da política? Tal ganho é completamente ilusório, ganho geralmente defendido por quem olha alguns dados e não tem a mínima noção de teoria econômica.  Não existe mágica no mundo da escassez.  O câmbio desvalorizado não deixou o país autor da política mais rico; foi simplesmente um subsídio “escondido” para exportadores, pago pelos consumidores locais, importadores e indústrias não-exportadoras que viram seu poder de compra se deteriorar no exterior.  E, dependendo do quão longe foi a política, internamente também, via inflação.  Bens e riqueza não surgem do nada, precisam ser produzidos; e para serem produzidos é necessário que os agentes econômicos tenham incentivos corretos.  Dar subsídio a um setor, via câmbio desvalorizado às custas de outros agentes, distorce completamente esses incentivos.

O câmbio desvalorizado pode, como qualquer subsídio, incentivar investimentos no setor beneficiado por tal política (no caso específico tratado aqui, os setores exportadores), mas isso não tem relação alguma com a riqueza de um país.  Muito pelo contrário, se tal setor só se torna lucrativo com esses subsídios, o ideal em termos de bem estar econômico é que os recursos não sejam lá investidos.  Só um mercantilismo cego e completamente irracional pode considerar que, investimentos em setores exportadores, por si sós, são benéficos porque supostamente aumentariam o saldo comercial de um país.  Para esses mercantilistas, eu recomendaria a leitura de Adam Smith sobre a riqueza das nações ou David Ricardo, autores que há mais de 200 anos já desmistificaram essa questão.  Se não quiserem ler as leituras bem mais competentes dos dois autores, podem ler os meus textos “A Tara Nacional por Exportações” e “Um Falso Problema“.

Mas mesmo para esses mercantilistas, uma política de desvalorização cambial não geraria resultados tão agradáveis no curto e longo prazo.  No curto prazo, como já dito, há um incentivo para que o câmbio volte ao seu nível original, o que levaria a política a necessitar de doses cada vez maiores e consistentes de compra de moeda estrangeira, o que por sua vez geraria inflação ou déficits cada vez maiores.  Consequentemente, mais importante que os próprios déficits ou a inflação “no momento”, os agentes econômicos criariam expectativas de inflação futura (seja por causa do déficit ou da emissão direta de moeda), o que agiria exatamente no sentido oposto da desvalorização.  Se a moeda local desvaloriza 10% e a inflação esperada sobe em 10%, o efeito final esperado para um comprador estrangeiro é zero (ele conseguiria comprar 10% a mais de moeda local – por causa da desvalorização -, mas o preço em moeda local também exigirá 10% a mais de moeda local para obter o mesmo bem).  Essas expectativas incorporadas pelos agentes econômicos acabariam até mesmo com qualquer efeito futuro de curto prazo benéfico no saldo da balança comercial, tão apreciado pelos mercantilistas.

No entanto, o mais cruel será reservado para o longo prazo.  Além da inflação e dos efeitos perversos que ela produz no sistema de preços, e consequentemente na eficiência econômica, as desvalorizações já “permanentes” funcionam como um protecionismo velado às indústrias exportadoras locais.  E nós sabemos para onde o protecionismo acaba nos levando: primeiro, as indústrias locais perdem competitividade “de verdade” em relação ao exterior, ou seja, elas são incapazes de concorrer com as empresas do exterior sem uma ajudinha do governo, e isso definitivamente derrubará as exportações.  Segundo, os consumidores locais recebem bens de qualidade muito inferior àqueles vendidos pela indústria estrangeira, o que não só acarreta uma perda de bem-estar (um empobrecimento geral, no final das contas), como também gera um “desejo” por importações (e aquele velho sentimento conhecido entre nós brasileiros de que tudo que é nacional é ruim…. por que será?).

Repetindo, não existe mágica!  Um país não fica rico porque o governo faz estripulias com a sua moeda.  Muito pelo contrário, quanto menos “malabarismos”, melhor.  Um país fica rico porque dentro daquele dado território existe uma ordem estabelecida (instituições) que propicia os incentivos corretos para a produção de riquezas, a saber, leis que garantem direitos de propriedades adequados, leis que garantem que quem produziu receberá o benefício e igualmente arcará com os custos.  E um detalhe que quase ninguém considera: o segundo (arcar com os custos) é tão importante quanto o primeiro (receber os benefícios), pois só assim os agentes levarão custos e benefícios em conta nas suas escolhas, produzindo um resultado economicamente eficiente.

A China não cresce o que cresce por causa de “câmbio desvalorizado”.  Muito pelo contrário: se essa política for intensificada, os resultados negativos não tardarão a aparecer (no Brasil e na América Latina, levou-se 20, 30 anos para que seus efeitos se transformassem em “devastação em larga escala”, e mesmo assim alguns heterodoxos contestam que tenha sido políticas de protecionismo que causaram o quadro).  No caso da China, o que temos é um tradicional crescimento por melhoras institucionais.  Em certas áreas do país foi permitido “capitalismo”, apenas isso.  Como a China era um país miserável, mas com muito trabalho disponível, bastaram pequenas melhorias e o país cresceu estrondosamente (como se tivesse saído do 0,1 e ido para o 1, um crescimento espetacular!).  Com o tempo, esse crescimento tenderá a diminuir e se tornar parecido com o dos EUA (obviamente dependendo das políticas adotadas por cada governo).

Mas voltando mais especificamente ao câmbio desvalorizado, resta uma dúvida muito comum: tal política é prejudicial ou benéfica para os países estrangeiros?  No geral, é mais benéfica que prejudicial.  Afinal, economicamente, o governo do país que desvaloriza sua moeda está tirando poder de compra dos consumidores locais e dando aos consumidores estrangeiros que desejam comprar naquele país.  Os exportadores locais (do país que desvalorizou sua moeda) e os consumidores estrangeiros (a maior parte de um país estrangeiro) ganham, enquanto os consumidores locais e os exportadores estrangeiros perdem.  E é justamente por esse último grupo perder, que se ouvem tantas condenações às políticas de desvalorização cambial de grandes países (o lobby desse grupo – exportadores – é forte).  É claro que políticas de desvalorizações cambiais são ruins para o próprio país que a executou, mas não são ruins, como muitos dizem, porque “prejudicam” países estrangeiros (e supostamente “beneficiam” o país que a executou).  O que ocorre é exatamente o contrário.

Por fim, há um outro custo das políticas de desvalorização cambial também muito pouco comentado: o custo de se manter reservas cambiais.  Imagine a situação na qual um país queira fazer uma política de desvalorização via emissão de moeda adicional.  O BC então irá emitir mais moeda local e simplesmente irá ao mercado comprar a moeda estrangeira, que será a “moeda padrão” na qual a desvalorização será mensurada (no mundo de hoje, é o dólar).  Esse montante de “moeda estrangeira” não pode voltar ao mercado, caso contrário a desvalorização da moeda local não ocorrerá ou, se ocorrer por alguma combinação de compra/venda de outras moedas, não será grande.  Isso significa que o governo local terá que manter a moeda estrangeira guardada em algum cofre, parada, ou comprar ativos muito líquidos com essa moeda, ativos que exijam do vendedor a manutenção de boa parte da moeda recebida na venda guardada em um cofre, como reserva para o caso do comprador querer “resgatar” seu dinheiro.  É muito comum as reservas em dólar de um país ficarem “guardadas” em contas que pagam juros de título americano (ou seja, quase nada) ou mesmo em títulos americanos, que são comprados quando o próprio governo americano deseja “sumir” com aqueles dólares do mercado para realizar sua política monetária.

Se aquela montanha de dólares no cofre não rende juros, significa que há um custo de oportunidade “perdido” por aquele dinheiro.  A inflação gerada pela emissão da moeda local também tem um custo.  Ela é uma taxação sobre os saldos monetários dos habitantes locais, o que gera um peso morto ao alterar o comportamento dos agentes econômicos quanto à quantidade de moeda que demandam, além dos efeitos “distorcivos” nos preços, no caso de inflações mais consideráveis.  Esses custos – o custo de oportunidade das reservas mais o peso morto da inflação – formam o saldo final (um prejuízo) do subsídio via câmbio desvalorizado (dado que o arrecadado em imposto inflacionário e comprado em reservas é o montante do subsídio recebido pela empresa exportadora).

Tudo o que está relacionado ao prejuízo causado pela política de câmbio desvalorizado fica bem mais claro quando a desvalorização é realizada com emissão de dívida e não de moeda.  Para o caso do Brasil, por exemplo, com taxas de juros consideráveis, o dinheiro necessário para comprar as reservas será pego “emprestado” pelo BC à mesma taxa de juros da dívida brasileira.  Esse dinheiro será usado para comprar reservas que rendem nada ou quase nada e que ficarão paradas nos cofres do BC.  Como a taxa de juros da dívida de qualquer país, em geral, é maior que a da dívida americana, há um evidente prejuízo em tal política.  Se supusermos que esse prejuízo gera um aumento do déficit público (o que significa taxação futura), voltamos ao mesmo formato do saldo final no caso da inflação: peso morto da taxação futura mais custo de oportunidade das reservas paradas formando o prejuízo final da política (supondo novamente que o montante de subsídio é considerado como o montante comprado em reservas, o qual, por sua vez, é o montante arrecadado pelo governo ou via inflação ou via empréstimos).  No caso do Brasil, por exemplo, onde o diferencial das taxas internas em relação aos EUA é considerável, e dado que a política não é feita com emissão de moeda nova, esse prejuízo é enorme.

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