Por uma nova liberdade – O Manifesto Libertário

0

3. O ESTADO

O ESTADO COMO AGRESSOR

O impulso central do pensamento libertário, portanto, é se opor a toda e qualquer agressão contra os direitos de propriedade de indivíduos, tanto sobre suas próprias pessoas quanto sobre os objetos materiais que eles adquiriram voluntariamente. Embora criminosos, tanto individualmente quanto em grupos, sejam obviamente contrários, não há aí nada de singular no credo libertário, uma vez que quase todas as pessoas e escolas de pensamento se opõem ao exercício da violência aleatória contra pessoas e propriedade.

Existe, no entanto, uma diferença na ênfase, por parte dos libertários, mesmo nesta área universalmente aceita da defesa das pessoas contra o crime. Na sociedade libertária não há um “promotor público” que processa os criminosos em nome de uma “sociedade” inexistente, ainda que contra os desejos da vítima do crime. A vítima decidiria por si só se iria registrar uma queixa. Além disso, como o outro lado da mesma moeda, num mundo libertário a vítima seria capaz de entrar com uma ação judicial contra alguém que lhe lesou sem ter de convencer o promotor público de que ele deveria dar sequência ao processo. Além do mais, no sistema de punições criminais do mundo libertário, a ênfase nunca seria, como é atualmente, na prisão do criminoso pela “sociedade”; a ênfase seria, necessariamente, na obrigação do criminoso de indenizar a vítima de seu crime. O sistema atual, no qual a vítima não é recompensada, mas, pelo contrário, é obrigada a pagar impostos para sustentar o encarceramento de quem a atacou—seria evidentemente sem sentido num mundo onde o foco fosse a defesa dos direitos de propriedade e, portanto, a vítima do crime.

Ademais, embora a maior parte dos libertários não seja pacifista, eles não apoiariam o sistema atual na interferência com o direito das pessoas de serem pacifistas. Assim, suponhamos que Jones, um pacifista, fosse agredido por Smith, um criminoso. Se Jones, como resultado de suas crenças, é contrário ao uso da violência e, portanto, se opõe a qualquer instauração de processo, então Jones simplesmente não o processaria, e tudo ficaria por isso mesmo. Não haveria um mecanismo governamental para perseguir e julgar criminosos mesmo contra os desejos da vítima.

A diferença crítica, no entanto, entre os libertários e as outras pessoas não está na área do crime privado; a diferença crítica está em sua visão do papel do estado—o governo. Pois os libertários veem o estado como o supremo, eterno e mais bem-organizado agressor das pessoas e da propriedade de grande parte do público.Todos os estados, em todos os lugares, sejam eles democráticos, ditatoriais ou monárquicos, sejam eles vermelhos, brancos, azuis ou marrons.

O estado! Sempre e cada vez mais o governo e seus governantes e operadores vêm sendo considerados acima da lei moral geral. Os “Pentagon Papers“[1] são apenas um exemplo recente entre incontáveis exemplos na história de homens, a maior parte dos quais perfeitamente decentes em suas vidas privadas, que mentiram descaradamente perante o público. Por quê? Por “razões de estado”. O serviço prestado ao estado supostamente justifica todos os atos que seriam considerados imorais ou criminosos se tivessem sido cometidos por cidadãos “privados”. O fator característico dos libertários é que eles aplicam de maneira fria e inflexível a lei moral geral às pessoas mesmo enquanto estão atuando em seus papeis como membros do aparato estatal. Os libertários não abrem exceções. Por séculos, o estado (ou, mais precisamente, indivíduos atuando em seus papéis como “membros do governo”) mascarou sua atividade criminosa sob uma retórica pomposa. Por séculos, o estado cometeu assassinato em massa e o chamou de “guerra”; enobrecendo, então, a carnificina em massa que a “guerra” gera. Por séculos, o estado escravizou pessoas em seus batalhões armados e chamou isto de “alistamento militar obrigatório” a “serviço nacional”. Por séculos, o estado roubou as pessoas, à ponta de baioneta, e chamou isto de “imposto”. Na realidade, se você deseja saber como os libertários enxergam o estado e qualquer um de seus atos, simplesmente pense no estado como um bando de criminosos, e todas as atitudes libertárias se encaixarão de maneira lógica.

Consideremos, por exemplo, o que é que distingue acentuadamente o governo de todas as outras organizações da sociedade. Diversos cientistas políticos e sociólogos embaçaram esta distinção vital, referindo-se a todas as organizações e grupos como hierárquicos, estruturados, “governamentais” etc. Anarquistas de esquerda, por exemplo, se opõem igualmente ao governo e a organizações privadas como corporações, com o argumento de que ambas são igualmente “elitistas” e “coercitivas”. Porém o libertário “direitista” não se opõe à desigualdade, e seu conceito de “coerção” se aplica apenas ao uso da violência. O libertário vê uma diferença crucial entre o governo, seja central, estadual ou local, e todas as outras instituições da sociedade. Ou melhor, duas distinções cruciais. Primeiro, cada pessoa ou grupo recebe sua renda através de um pagamento voluntário: seja ele um presente ou uma contribuição voluntária (como o clube local de xadrez ou de bridge), ou através da aquisição voluntária de seus bens ou serviços no mercado (ou seja, o proprietário da mercearia, o jogador de beisebol, o produtor de aço etc.). Apenas o governo obtém sua renda através da coerção ou da violência—isto é, através da ameaça direta de confisco ou prisão caso o pagamento não seja realizado. Este confisco coagido é o “imposto”. Uma segunda diferença é que, além dos criminosos fora da lei, apenas o governo pode utilizar seus fundos para cometer uma violência contra seus próprios súditos, ou os de outrem; apenas o governo pode proibir a pornografia, impor uma observância religiosa ou colocar as pessoas na cadeia por venderem mercadorias a um preço mais alto do que o governo julga adequado. Ambas as distinções, obviamente, podem ser resumidas assim: apenas o governo, na sociedade, tem o poder para cometer agressões contra os direitos de propriedade de seus súditos, seja para obter renda, impor seu código moral ou matar aqueles de quem ele discorda. Além do mais, todo e qualquer governo, até o menos despótico, sempre obtém o grosso de sua renda através do poder coercitivo da taxação. E, historicamente, a parte incomparavelmente maior de toda a escravidão e de todos os assassinatos cometidos na história do mundo foi obra das mãos do governo. E como vimos que o impulso central do libertário é se opor a qualquer agressão contra os direitos da pessoa e da propriedade, o libertário se opõe, necessariamente, à instituição do estado, como o inimigo inerente e avassaladoramente mais importante destes direitos preciosos.

Há outro motivo pelo qual a agressão estatal tem sido mais importante que a privada, um motivo distinto da maior organização e mobilização central de recursos que os governantes do estado podem impor. O motivo é a ausência de qualquer controle sobre a pilhagem do estado, um controle que existe até mesmo quando temos que nos preocupar com assaltantes ou a máfia. Para nos protegermos de criminosos privados podemos apelar ao estado e à sua polícia; mas quem pode nos proteger do próprio estado? Ninguém. Pois outra diferença crítica do estado é que ela torna obrigatória a monopolização do serviço de proteção; o estado arroga a si um monopólio virtual da violência e o poder de tomar decisões em última instância na sociedade. Se não gostarmos das decisões das cortes estatais, por exemplo, não existem outras agências de proteção para as quais podemos recorrer.

É verdade que, nos Estados Unidos, pelo menos, temos uma constituição que impõe limites rigorosos em alguns poderes do governo. Mas, como descobrimos no século passado, nenhuma constituição pode se interpretar ou se aplicar sozinha; ela precisa ser interpretada pelos homens. E se o poder de última instância da interpretação de uma constituição é concedido à Suprema Corte daquele próprio governo, então a tendência inevitável é que esta corte continue a dar a sua aprovação a poderes cada vez mais amplos para o seu próprio governo. Além disso, os tão louvados “pesos e contrapesos” e “separação de poderes” do governo americano são, na realidade, frágeis, já que na análise final todas estas divisões fazem parte do mesmo governo e são governadas pelo mesmo conjunto de regras.

Um dos mais brilhantes teóricos políticos dos Estados Unidos, John C. Calhoun, escreveu de maneira profética sobre a tendência inerente de um estado para ultrapassar os limites de sua constituição escrita:

Uma constituição escrita certamente tem muitas vantagens notáveis, porém é um grande erro supor que a mera inserção de provisões que restrinjam e limitem os poderes do governo, sem prover aqueles para cuja proteção elas foram inseridas dos meios de impor sua observância, será suficiente para evitar que o partido principal e dominante abuse de seus poderes. Uma vez que este partido esteja em posse do governo, ele estará (…) a favor dos poderes concedidos pela constituição e se oporá às restrições que visam limitá-lo. Como partidos principais e dominantes, eles não terão necessidade destas restrições para sua proteção. (…)

O partido menor ou mais fraco, ao contrário, tomaria a direção oposta e os veria como essenciais à sua proteção contra o partido dominante. (…) Porém se não existirem meios através dos quais eles possam obrigar o partido maior a obedecer às restrições, o único recurso que lhes restaria seria uma interpretação rígida da constituição. (…) A isto, o partido maior responderia com uma interpretação liberal—uma que daria às palavras da concessão o significado mais amplo às quais elas fossem suscetíveis. Seria então uma questão de interpretação contra interpretação—uma visando diminuir e outra aumentar os poderes do governo ao máximo. Mas qual seria o benefício possível da interpretação rigorosa para o partido menor, contra a interpretação liberal do maior, quando este teria todos os poderes do governo para colocar sua interpretação em prática e o outro seria privado de todos os meios de aplicar a sua interpretação? Numa disputa tão desigual, não há como se ter dúvidas do resultado. O partido que apoia as restrições seria sobrepujado. (…) O fim da disputa seria a subversão da constituição (…) as restrições acabariam por ser anuladas e o governo seria convertido num governo com poderes ilimitados.

Nem mesmo a divisão do governo em departamentos separados e independentes entre si evitaria este resultado (…) na medida em que cada um e todos os departamentos—e, claro, todo o governo—estaria sob o controle da maioria numérica, fica claro demais para que se sequer se precise de uma explicação, que uma mera distribuição dos poderes entre seus agentes ou representantes pouco ou nada poderia fazer para contrabalancear sua tendência à opressão e ao abuso de poder.[2]

Mas por que se preocupar com a fraqueza dos limites sobre o poder governamental? Especialmente numa “democracia”, na frase tão usada pelos progressistas americanos em seu apogeu, antes dos meados da década de 1960, quando as dúvidas começaram a se infiltrar na utopia progressista: “Não somos nós o governo?” Na frase “nós somos o governo”, este útil termo coletivo “nós” permitiu que uma camuflagem ideológica fosse jogada sobre a realidade nua e aproveitadora da vida política. Pois se nós realmente somos o governo, entãoqualquer coisa que um governo faça a um indivíduo não é apenas justa e não-tirânica; ela também é “voluntária”, por parte do indivíduo em questão. Se o governo contraiu uma imensa dívida pública que deve ser paga através da taxação de um grupo em benefício de outro, a realidade deste fardo pode ser convenientemente ocultada ao se afirmar, displicentemente, que “nós devemos isto a nós mesmos” (masquem seriam esses “nós” e quem seriam esses “nós mesmos”?). Se o governo recruta um homem, ou o coloca na cadeia por ter opiniões dissidentes, então ele está apenas “fazendo isto a si mesmo”, e, portanto, nada de irregular aconteceu. Sob este raciocínio, logo, os judeus assassinados pelo governo nazista não foram assassinados; eles devem ter “cometido suicídio”, já que eles eram o governo (que foi escolhido democraticamente), e portanto qualquer coisa que o governo lhes tenha feito foi apenas algo voluntário de sua parte. Mas não há uma saída destas bizarrices para aqueles defensores do governo que veem o estado como um mero agente benevolente e voluntário do público.

E devemos, portanto, concluir que “nós” não somos o governo; o governo não somos “nós”. O governo não “representa”, em nenhum sentido preciso da palavra, a maioria das pessoas, mas mesmo se o fizesse, mesmo se 90% das pessoas decidissem assassinar ou escravizar os 10% restantes, isto ainda continuaria a ser assassinato e escravidão, e não escravidão voluntária ou suicídio voluntário por parte da minoria oprimida. Crime é crime, agressão contra os direitos é agressão, não importa quantos cidadãos concordem com a opressão. Não há nada de sacrossanto a respeito da maioria; a multidão que lincha alguém também é uma maioria em seu próprio domínio.

Porém enquanto, como entre a multidão de linchadores, a maioria pode se tornar ativamente tirânica e agressiva, a condição normal e contínua do estado é a do domínio oligárquico: o domínio de uma elite coercitiva que conseguiu assumir o controle da máquina estatal. Existem dois motivos básicos para isto: um é a desigualdade e a divisão de trabalho inerente à natureza do homem, que deu origem a uma “Lei de Ferro da Oligarquia” em todas as atividades humanas; e a segunda é a natureza parasítica do próprio empreendimento estatal.

Dissemos que o individualista não é um igualitário. Parte do motivo disso é a percepção do individualista da vasta diversidade e individualidade contida dentro da humanidade, uma diversidade que teve a oportunidade de florescer e se expandir à medida que a civilização e os padrões de vida progrediram. Os indivíduos têm habilidades e interesses diferentes, tanto dentro de suas ocupações como entre elas; e, portanto, em todas as ocupações e esferas da vida, sejam elas a produção de aço ou a organização de um clube de bridge, a liderança naquela determinada atividade será inevitavelmente assumida por um punhado daqueles que são relativamente mais capazes e enérgicos, enquanto a maioria restante constituirá os seguidores comuns. Esta verdade se aplica a todas as atividades, sejam elas benéficas ou malévolas (como nas organizações criminosas). Efetivamente, a descoberta da Lei de Ferro da Oligarquia foi feita pelo sociólogo italiano Robert Michels, que detectou que o Partido Social Democrata da Alemanha, apesar de seu compromisso retórico com o igualitarismo, funcionava na realidade de uma maneira rigidamente oligárquica e hierárquica.

Um segundo motivo básico para o domínio oligárquico do estado é a sua natureza parasítica—o fato de que ele sobrevive de maneira coercitiva a partir do que produzem seus cidadãos. Para ser proveitoso a seus praticantes, os frutos da exploração parasítica devem ficar confinados a uma minoria relativa; de outro modo, uma pilhagem sem sentido de todos por todos não traria ganhos para ninguém. Ninguém descreveu de maneira mais clara a natureza coercitiva e parasítica do estado que Franz Oppenheimer, o grande sociólogo alemão do século XIX. Oppenheimer apontou que existem dois e apenas dois meios mutuamente exclusivos para o homem obter riqueza. Um, o método da produção e das trocas voluntárias, o método do livre mercado, denominado por Oppenheimer de “meios econômicos”; o outro, o método do roubo através do uso da violência, que ele denominou de “meios políticos”. Os meios políticos são claramente parasíticos, pois eles exigem uma produção prévia para que os exploradores a confisquem, e, em vez de adicionar, subtraem da produção total da sociedade. Oppenheimer então definiu o estado como a “organização dos meios políticos”—a sistematização do processo predatório sobre uma determinada área territorial.[3]

Em suma, o crime privado é, na melhor das hipóteses, esporádico e incerto; seu parasitismo é efêmero, e seu cordão umbilical coercitivo e parasítico pode ser cortado a qualquer momento através da resistência das vítimas. O estado fornece um canal sistemático, legal e ordenado para a predação da propriedade dos produtores; ele mantém garantido, seguro e relativamente “pacífico” o cordão umbilical que liga a casta parasítica à sociedade. O grande autor libertário Albert Jay Nock escreveu de maneira brilhante que “o estado reivindica para si e exerce o monopólio do crime. (…) Ele proíbe os assassinatos privados, porém ele próprio organiza assassinatos numa escala colossal. Ele pune o roubo privado, porém ele próprio coloca suas mãos inescrupulosas sobre tudo o que quer, seja a propriedade de um cidadão ou de um estrangeiro.”[4]

Inicialmente, claro, é surpreendente para alguém considerar o imposto um roubo, e, por consequência, o governo um bando de assaltantes. Mas qualquer um que insista em pensar no imposto, em qualquer sentido do termo, como um pagamento “voluntário”, pode ver o que lhe acontece se ele optar por não pagar. O grande economista Joseph Schumpeter, de maneira alguma um libertário, escreveu que “o estado vive de renda produzida na esfera privada, para objetivos privados, e que teria de ser desviada de suas metas por força política. A teoria que explica os impostos, baseada na analogia com as mensalidades de um clube ou a compra de serviços, digamos, de um médico, mostra apenas como esta parte das Ciências Sociais é estranha aos hábitos científicos de pensamento.”[5] O eminente “positivista legal” vienense Hans Kelsen tentou, em seu tratado, Teoria Geral do Direito e do Estado, estabelecer uma justificativa e uma teoria política do estado, sobre uma base estritamente “científica” e desprovida de julgamento de valores. O que ocorreu é que logo no início do livro ele chegou ao ponto de fricção, o pons asinorum da filosofia política: o quedistingue os editos do estado dos comandos de uma gangue de bandidos? A resposta de Kelsen foi simplesmente afirmar que os decretos do estado são “válidos” e prosseguir, feliz, a partir dali, sem se preocupar em definir ou explicar este conceito de “validade”. De fato, seria um exercício útil para os não-libertários ponderar esta questão: como você conseguiria definir o imposto de uma maneira que o torne diferente de um roubo?

Para o grande anarquista individualista—e jurista constitucional—do século XIX, Lysander Spooner, não havia problema em se encontrar essa resposta. A análise de Spooner do estado como um grupo de assaltantes é talvez a mais devastadora já escrita:

É verdade que a teoria de nossa constituição afirma que todos os impostos são pagos voluntariamente; que nosso governo é uma companhia de seguros mútuos, que as pessoas estabeleceram voluntariamente entre si próprias. (…)

Porém esta teoria sobre nosso governo é totalmente diferente do fato, na prática. O fato é que o governo, como um salteador, diz a um homem: “seu dinheiro ou a vida”. E muitos, se não a maioria, dos impostos são pagos sob a compulsão desta ameaça.

De fato o governo não faz uma emboscada a um homem num local ermo, pula sobre ele da beira da estrada e, colocando uma pistola sobre sua cabeça, começa a esvaziar seus bolsos. Porém o assalto não deixa de ser um assalto por este motivo; e é ainda mais covarde e indecente.

O salteador assume unicamente para si a responsabilidade, o perigo e o crime de seu próprio ato. Ele não finge ter qualquer direito legítimo sobre o dinheiro de quem ele assaltou, ou alega que irá usá-lo para o próprio benefício dessa pessoa. Ele não finge ser nada mais que um assaltante. Ele não tem o descaramento suficiente para alegar ser apenas um “protetor”, e que ele pega o dinheiro dos homens contra sua vontade apenas para “proteger” aqueles ingênuos viajantes, que se sentem perfeitamente capazes de proteger a si próprios, e não apreciam seu sistema peculiar de proteção. Ele é um homem suficientemente sensato para fazer este tipo de declaração. Além do mais, depois de pegar o seu dinheiro, ele o abandona, como você gostaria que ele o fizesse. Ele não insiste em lhe seguir na estrada, contra a sua vontade; pretendendo ser o seu “soberano” legítimo por conta da “proteção” que ele lhe proporciona. Ele não continua a “proteger” você, ordenando-lhe que se curve diante dele e o sirva; exigindo que você faça isso, e proibindo que faça aquilo; roubando-lhe de mais dinheiro com a frequência que julgar conveniente para seu interesse e agrado; e estigmatizando-o como um rebelde, um traidor e um inimigo de seu país, e fuzilando-o sem misericórdia, se você contestar sua autoridade ou resistir às suas exigências. Ele é cavalheiro demais para ser culpado de embustes, insultos e vilanias como estas. Em suma, além de roubá-lo, ele não tenta enganá-lo nem transformá-lo em seu escravo.[6]

Se o estado é um grupo de saqueadores, então quem constitui o estado? Claramente, a elite dominante consiste, a qualquer momento, de (a) o aparato em tempo integral—os reis, políticos e burocratas que controlam e operam o estado; e (b) os grupos que manobraram de modo a obter privilégios, subsídios e benefícios do estado. O resto da sociedade constitui dos que são governados. Foi, novamente, John C. Calhoun quem viu com uma clareza cristalina que, não importa o quão pequeno seja o poder do governo, não importa o quão baixo seja o fardo dos impostos ou qual igualitária seja a sua distribuição, a própria natureza do governo cria duas classes desiguais inerentemente conflitantes: aqueles que, em termos líquidos, pagamos impostos (os contribuintes, os “pagadores de impostos”), e aqueles que, em termos líquidos, vivem dosimpostos (os “consumidores de impostos”). Suponhamos que o governo imponha um imposto baixo e distribuído de maneira aparentemente uniforme para pagar pela construção de uma represa. Este ato em si tira dinheiro da maior parte do público para pagá-lo aos “consumidores líquidos de impostos”: os burocratas que gerem a operação, os empreiteiros e trabalhadores que constroem a represa etc. E quanto maior o escopo do poder de tomada de decisões do governo, maior será a sua carga fiscal. Calhoun continuou, a respeito do fardo e da desigualdade artificial que é imposta entre estas duas classes:

Por menor que seja o seu número, comparativamente, os agentes e empregados do governo formam aquela parcela da comunidade que são os únicos a receber os proventos dos impostos. Qualquer que seja a quantia retirada da comunidade na forma de impostos, se ela não for perdida, vai para eles na forma de gastos e desembolsos. Ambos—desembolsos e taxação—constituem a ação fiscal do governo. São correlativos. O que se tira da comunidade sob o nome de impostos é transferido à parcela da comunidade que os recebe sob o nome de desembolsos. Porém, como os receptores constituem apenas uma parcela da comunidade, segue-se que, juntando-se as duas partes do processo fiscal, sua ação terá efeitos desiguais entre aqueles que pagam os impostos e os que recebem seus proventos. Nem poderia ser de outra maneira; a menos que o que fosse arrecadado de cada indivíduo na forma de impostos lhe fosse devolvido na forma de desembolsos, o que tornaria o processo inútil e absurdo. (…)

O resultado necessário, portanto, da ação fiscal desigual do governo é dividir a comunidade em duas grandes classes: uma que consiste daqueles que, na realidade, pagam os impostos e, obviamente, carregam sozinhos o fardo de sustentar o governo; e a outra, daqueles que recebem os proventos através dos desembolsos e que são, na realidade, sustentados pelo governo; ou, resumindo, é dividida entre os que pagam os impostos e os que os consomem.

Porém o efeito disto é colocá-las em relações antagônicas no que diz respeito à ação fiscal do governo—e a todo o processo político relacionado a ela. Pois quanto maiores os impostos e os desembolsos, maior será o ganho de uma e a perda da outra, e vice-versa. (…) O efeito, portanto, de cada aumento é enriquecer e fortalecer uma, e empobrecer e enfraquecer a outra.[7]

Se os estados, em todos os lugares, vêm sendo geridos por um grupo oligárquico de predadores, como eles puderam manter seu domínio sobre a massa da população? A resposta, como apontou o filósofo David Hume há mais de dois séculos, é que a longo prazo todo governo, não importa o quão ditatorial, se sustenta no apoio da maioria de seus súditos. Agora, isto obviamente não faz com que estes governos sejam “voluntários”, uma vez que a própria existência dos impostos e de outros poderes coercitivos mostra quanta compulsão o estado precisa exercer. Nem tampouco o apoio majoritário precisa ser uma aprovação entusiástica e ávida; ele pode muito bem ser uma mera resignação e aquiescência passiva. A conjunção na célebre frase “morte e impostos” implica uma aceitação passiva e resignada da suposta inevitabilidade do estado e sua taxação.

Os consumidores de impostos, os grupos que se beneficiam das operações do estado, obviamente serão seguidores ávidos, e não passivos, do mecanismo estatal. Mas eles são apenas uma minoria. Como é que se assegura a aquiescência e a complacência da massa da população? Aqui chegamos ao problema central da filosofia política—aquele ramo da filosofia que lida com a política, o exercício da violência regularizada: o mistério da obediência civil. Por que as pessoas obedecem aos editos e pilhagens da elite dominante? O autor conservador James Burnham, que é o inverso de um libertário, coloca o problema de maneira muito clara, admitindo que não existe justificativa racional para a obediência civil: “Nem a fonte nem a justificativa do governo podem ser expressas em termos inteiramente racionais (…) por que eu deveria aceitar a legitimidade hereditária, democrática, ou a partir de qualquer outro princípio? Por que deveria um princípio justificar o domínio daquele homem sobre mim?” Sua própria resposta dificilmente foi calculada com a intenção de convencer muitas outras pessoas: “Eu aceito, porque é assim que as coisas são e sempre serão.”[8] Suponha que alguém não aceite o princípio; qual será o “caminho”, então? E por que a maior parte dos súditos concordou em aceitá-lo?

 

O ESTADO E OS INTELECTUAIS

A resposta é que, desde as primeiras origens do estado, seus governantes sempre recorreram, como uma forma necessária de sustentar seu domínio, a uma aliança com a classe de intelectuais da sociedade. As massas não criam suas próprias ideias abstratas, ou sequer refletem de maneira independente sobre estas ideias; elas seguem passivamente as ideias adotadas e promulgadas pelo corpo de intelectuais, que se tornaram os “formadores de opinião”, de fato, na sociedade. E uma vez que é precisamente uma formação de opinião que favoreça os governantes que o estado precisa, de maneira quase desesperada, isto forma uma base consistente para a antiquíssima aliança entre intelectuais e as classes dominantes do estado. Esta aliança se baseia num quid pro quo: de um lado, os intelectuais espalham entre as massas a ideia de que o estado e seus governantes são sábios, bons, por vezes divinos, e, no mínimo, inevitáveis e melhores do que qualquer outra alternativa concebível. Em troca desta panóplia ideológica, o estado incorpora os intelectuais como parte da elite dominante, concedendo-lhes poder, status, prestígio e segurança material. Ademais, os intelectuais são necessários para integrar o quadro de funcionários da burocracia e “planejar” a economia e a sociedade.

Antes da era moderna, a casta sacerdotal era especialmente poderosa, principalmente entre os subordinados intelectuais do estado, cimentando a aliança terrível e poderosa entre o chefe guerreiro e o curandeiro, o Trono e o Altar. O estado “estabeleceu” a Igreja e lhe concedeu poder, prestígio e riqueza que ele extraía de seus súditos. Em troca, a Igreja ungia o estado com a sanção divina e inculcava esta sanção na população. Na era moderna, quando os argumentos teocráticos perderam boa parte de seu brilho perante o público, os intelectuais têm posado como o núcleo científico de “especialistas”, e vêm se mantendo ocupados informando o público desafortunado de que os assuntos políticos, tanto internos quanto externos, são complexos demais para que a pessoa comum se preocupe com eles. Apenas o estado e sua legião de especialistas intelectuais, planejadores, cientistas, economistas e “especialistas em segurança nacional” podem ter alguma esperança de lidar com esses problemas. O papel das massas, mesmo nas “democracias”, é de ratificar e concordar com as decisões de seus instruídos governantes.

Historicamente, a união entre Igreja e estado, entre o Trono e o Altar, tem sido o recurso mais eficaz para obter a obediência e o apoio dos seus súditos. Burnham atesta o poder do mito e do mistério na indução do apoio quando escreve que “nos tempos antigos, antes que as ilusões da ciência tivessem corrompido a sabedoria tradicional, os fundadores das cidades eram tidos como deuses ou semideuses”.[9] Para a classe sacerdotal estabelecida, o soberano ou era ungido por Deus ou, no caso do domínio absolutista de muitos despotismos orientais, era ele próprio Deus; portanto, qualquer questionamento ou resistência ao seu governo seria blasfêmia.

As armas ideológicas usadas pelo estado e pelos seus intelectuais ao longo dos séculos para induzir seus súditos a aceitarem seu domínio são numerosas e sutis. Uma arma excelente recebeu o poder da tradição. Quanto mais longo o domínio de qualquer estado, mais poderosa se torna essa arma; pois a Dinastia X ou o estado U têm então o poder aparente de séculos de tradição por trás de si. O culto aos ancestrais de alguém se torna então uma maneira muito pouco sutil de se cultivar o culto aos governantes ancestrais de alguém. A força da tradição é, obviamente, impulsionada pelo hábito antigo, que confirma os súditos na aparente adequação e legitimidade do governo sob o qual eles vivem. Assim, o teórico político Bertrand De Jouvenel escreveu:

A razão essencial para a obediência é que ela se tornou um hábito da espécie. (…) O poder é, para nós, um fato da natureza. Desde os primeiros dias da história registrada ele sempre presidiu sobre os destinos humanos (…) as autoridades que dominavam (…) em tempos anteriores não desapareceram sem legar a seus sucessores seus privilégios nem sem deixar na mente dos homens marcas que são cumulativas no seu efeito. A sucessão de governos que, no decorrer dos séculos, dominou a mesma sociedade pode ser vista como um único governo subjacente que vem assumindo um crescimento contínuo.[10]

Outra força ideológica potente é a depreciação do indivíduo por parte do estado, e a exaltação da coletividade da sociedade, tanto no passado quanto no presente. Qualquer voz isolada, qualquer um que levante novas dúvidas, pode então ser atacado como um violador profano da sabedoria de seus ancestrais. Além do mais, qualquer ideia nova, e ainda mais uma ideia crítica nova, deve necessariamente se iniciarcomo uma opinião de uma pequena minoria. Portanto, para rechaçar qualquer ideia potencialmente perigosa que ameace a aceitação de seu domínio pela maioria, o estado tentará cortar essa nova ideia pela raiz ridicularizando qualquer visão que se coloque contra a opinião das massas. As maneiras nas quais os governantes do estado nos antigos regimes despóticos chineses utilizavam-se da religião para atar o indivíduo à sociedade gerida pelo estado foram resumidas por Norman Jacobs:

A religião chinesa é uma religião social, que procura resolver os problemas dos interesses sociais, não de interesses individuais. (…) A religião é essencialmente uma força de controle e ajuste social impessoal—e não um meio para as soluções pessoais do indivíduo—e o controle e o ajuste social são colocados em efeito através da educação e da reverência aos superiores. (…) A reverência aos superiores—superiores em idade e, portanto, em educação e experiência—é a base ética do controle e do ajuste social. (…) Na China, a relação mútua entre a autoridade política e a religião ortodoxa igualava a heterodoxia com o erro político. A religião ortodoxa foi especialmente ativa na perseguição e destruição de seitas heterodoxas; nisto ela contou com o apoio do poder secular.[11]

A tendência geral do governo de procurar e impedir quaisquer pontos de vista heterodoxos foi descrita pelo escritor libertário H. L. Mencken, na sua maneira tipicamente encantadora e espirituosa:

Tudo [que o governo] consegue ver numa ideia original é uma mudança em potencial e, portanto, uma invasão de suas prerrogativas. O homem mais perigoso, para qualquer governo, é o homem capaz de chegar a uma conclusão sobre as coisas por si mesmo, sem se preocupar com os tabus e superstições predominantes. Quase que inevitavelmente ele chegará à conclusão que o governo sob o qual ele vive é desonesto, insano e intolerável e, portanto, se ele é um romântico, tentará mudá-lo. E mesmo se ele não é pessoalmente romântico, ele estará muito inclinado a espalhar o descontentamento entre aqueles que o são.[12]

É especialmente importante para o estado fazer com que seu domínio pareça inevitável; mesmo se seu reinado não agradar, como frequentemente é o caso, ele se deparará com a resignação passiva expressa na célebre associação entre “morte e impostos”. Um dos métodos é trazer para o seu lado o determinismo histórico: se o estado X nos governa, então isto inevitavelmente nos foi decretado pelas Leis Inexoráveis da História (ou a Vontade Divina, ou o Absoluto, ou as Forças Produtivas Materiais), e nada que qualquer indivíduo insignificante possa fazer poderá alterar o inevitável. Também é importante para o estado inculcar em seus súditos uma aversão a qualquer afloramento do que é chamado hoje em dia de “uma teoria conspiratória da história”. Pois uma procura por “conspirações”, por mais equivocados que seus resultados frequentemente o sejam, significa uma procura por motivos, e uma atribuição de responsabilidades individuais aos delitos históricos das elites dominantes. Se, no entanto, qualquer tirania, venalidade ou guerra de agressão impostas pelo estado não tiverem sido provocadas por governantes específicos do estado, mas por “forças sociais” misteriosas e arcanas, ou pelo estado imperfeito do mundo—ou se, de alguma maneira, todos foram culpados (“Somos todos assassinos”, afirma um slogan comum), então não existe motivo para alguém ficar indignado ou se insurgir contra estes delitos. Além do mais, desacreditar “teorias da conspiração”—ou, na realidade, qualquer coisa que soe como “determinismo econômico”—fará com que os súditos fiquem mais dispostos a acreditar nos motivos para o “bem-estar geral” que invariavelmente são apresentados pelo estado moderno para se envolver em qualquer ato de agressão.

Faz-se, assim, com que o domínio do estado pareça inevitável. Ademais, qualquer alternativa ao estado já existente fica envolta sob uma aura de medo. Ao omitir seu próprio monopólio de roubo e pilhagem, o estado levanta entre seus súditos o espectro do caos que supostamente se seguiria caso ele desaparecesse. Sustenta-se que as pessoas, por conta própria, não teriam a capacidade de se proteger de saqueadores e criminosos esporádicos. Além do mais, cada estado vem sendo especialmente bem-sucedido, ao longo dos séculos, em instilar o temor entre seus súditos dos governantes de outros estados. Com a área terrestre do globo atualmente dividida entre estados específicos, uma das táticas e doutrinas básicas de cada estado tem sido a de identificar a si próprio com o território que ele governa. Na medida em que a maior parte dos homens tende a amar sua pátria, a identificação daquela terra e de sua população com o estado é um modo de fazer com que o patriotismo natural trabalhe a favor do estado. Se, portanto, a “Ruritânia” for atacada pela “Valdávia”, a primeira obrigação do estado ruritânio e de seus intelectuais será a de convencer o povo da Ruritânia de que o ataque na realidade é contra eles, e não simplesmente contra sua classe governante. Desta forma, uma guerra entre governantes se transforma numa guerra entre povos, com cada povo correndo para defender seus governantes sob a crença errônea de que seus governantes lhes estão defendendo com afinco. Este artifício do nacionalismo vem sendo especialmente bem-sucedido nos últimos séculos; até não muito tempo atrás, ao menos na Europa ocidental, a maior parte dos súditos via guerras como batalhas irrelevantes travadas entre diversos grupos de nobres e seus séquitos.

Outro método bem comprovado para se submeter os súditos à vontade alheia é a infusão da culpa. Qualquer aumento no bem-estar privado pode ser atacado como “ganância inescrupulosa”, “materialismo” ou “riqueza excessiva”; e trocas mutuamente benéficas no mercado podem ser denunciadas como “egoístas”. De algum modo, a conclusão que sempre é obtida é a de que mais recursos devem ser expropriados do setor privado e desviados para o parasítico setor “público”, ou estatal. Muitas vezes o apelo ao público para que ele ceda mais recursos é expresso através de um apelo austero feito pela elite dominante por mais “sacrifícios” com vistas ao bem-estar comum ou nacional. De alguma maneira, no entanto, enquanto espera-se que o público sacrifique e restrinja sua “ganância materialista”, os sacrifícios são sempre de uma das partes. O estado não faz sacrifícios; o estado arrebata avidamente cada vez mais recursos materiais do público. De fato, é uma regra prática útil: quando seu governante clama, a plenos pulmões, por “sacrifícios”, tome cuidado com sua própria vida e a sua carteira!

Este tipo de argumentação reflete um padrão geral de dois pesos e duas medidas, no que diz respeito à moralidade, que sempre se aplica aos governantes do estado, mas não a qualquer outra pessoa. Ninguém, por exemplo, fica surpreso ou horrorizado ao descobrir que homens de negócio estão atrás de lucros mais altos. Ninguém fica horrorizado se trabalhadores trocarem empregos que pagam salários menores por outros que pagam mais. Todos estes exemplos são considerados comportamentos normais e apropriados. Porém se alguém ousar afirmar que políticos e burocratas são motivados pelo desejo de maximizar suas rendas, os clamores de “teorista da conspiração” ou “determinista econômico” serão ouvidos por toda a parte. A opinião geral—cuidadosamente cultivada, claro, pelo próprio estado—é de que homens entram para a política ou para o governo puramente por uma zelosa preocupação pelo bem comum e pelo bem-estar do público. O que dá aos cavalheiros do estado esta sua pátina moral superior? Talvez seja o conhecimento vago e instintivo da população de que o estado está envolvido no roubo e pilhagem sistemáticos, e eles sintam que apenas uma dedicação ao altruísmo por parte do estado tornaria tais atos toleráveis. Considerar políticos e burocratas sujeitos às mesmas metas monetárias que todas as outras pessoas seria remover o disfarce de Robin Hood da pilhagem estatal. Pois ficaria então claro que, nas palavras de Oppenheimer, os cidadãos comuns estavam seguindo os “meios econômicos” pacíficos e produtivos para obter riqueza, enquanto o aparato estatal estava se dedicando aos “meios políticos” organizados, coercitivos e exploradores. As roupas do imperador de uma suposta preocupação altruística pelo bem-estar comum seriam então removidas dele.

Os argumentos intelectuais utilizados pelo estado ao longo da história para “engendrar o consenso” entre o público podem ser classificados em duas partes: (1) que o domínio do governo atual é inevitável, absolutamente necessário, e muito melhor que os males indescritíveis que se seguiriam à sua queda; e (2) que os governantes do estado são especialmente grandiosos, sábios e melhores que seus súditos simplórios.

Em tempos antigos, o último argumento assumia a forma do domínio através do “direito divino” ou do próprio “soberano divino”, ou de uma “aristocracia” de homens. Nos tempos modernos, como indicamos anteriormente, este argumento não dá tanta ênfase na aprovação divina, mas no governo através de uma associação sábia de “especialistas científicos”, especialmente dotados de um conhecimento da arte de governar e dos fatos arcanos do mundo. O uso cada vez maior do jargão científico, especialmente nas ciências sociais, permitiu que os intelectuais tecessem apologias ao governo do estado que rivalizam as antigas classes sacerdotais em termos de obscurantismo. Por exemplo, um ladrão que se atrevesse a justificar seu roubo afirmando que ele estava, na realidade, ajudando suas vítimas a gastar o que roubou delas, dando assim ao comércio varejista um impulso necessário, seria calado sob vaias num piscar de olhos. Porém se esta mesma teoria for revestida de equações matemáticas keynesianas e impressionantes referências ao “efeito multiplicador”, ela traz consigo muito mais convicção a um público iludido.

Nos últimos anos, presenciamos o desenvolvimento nos Estados Unidos de uma profissão de “administradores da segurança nacional”, burocratas que nunca tiveram de enfrentar processos eleitorais, mas que continuam, governo após governo, utilizando secretamente sua suposta perícia especial para planejar intervenções bélicas e aventuras militares. Somente suas extraordinárias trapalhadas na Guerra do Vietnã levaram suas atividades a algum tipo de questionamento por parte do público; antes disso, eram capazes de passar por cima, belos, formosos e de cabeça erguida, sobre um público que viam apenas como bucha de canhão para seus próprios propósitos.

Um debate público entre o senador “isolacionista” Robert A. Taft e um dos principais intelectuais de segurança nacional, McGeorge Bundy, foi instrutivo ao demarcar tanto as questões em jogo e a atitude da elite intelectual dominante. Bundy atacou Taft no início de 1951 por dar início a um debate público sobre a realização da Guerra da Coreia. Bundy insistia que apenas os líderes políticos do executivo estavam preparados para manipular as forças diplomáticas e militares num longo período de décadas de uma guerra limitada contra as nações comunistas. Era importante, sustentava Bundy, que a opinião pública e o debate público fossem excluídos da promulgação de qualquer papel político neste tópico. Pois, ele alertou, o público infelizmente não estava comprometido com os rígidos propósitos nacionais discernidos pelos administradores políticos; ele simplesmente respondia às realidades ad hoc de determinadas situações. Bundy também afirmou que não deveria haver recriminações ou sequer investigações das decisões dos administradores políticos, porque era importante que o público aceitasse suas decisões sem questioná-las. Taft, por sua vez, denunciou o processo secreto de tomada de decisões dos especialistas e conselheiros militares do ramo executivo, decisões que na prática eram totalmente inacessíveis ao escrutínio público. Ademais, ele reclamou, “se alguém ousasse sugerir uma crítica ou até mesmo um debate rigoroso, ele seria rotulado imediatamente como isolacionista e um sabotador da unidade e da política externa bipartidária.”[13]

Do mesmo modo, numa época em que o presidente Eisenhower e o secretário de Estado Dulles estavam contemplando, de maneira privada, entrar em guerra contra a Indochina, outro notório administrador de segurança nacional, George F. Kennan, aconselhava o público de que “existem momentos em que, após ter eleito um governo, o melhor a ser feito é deixá-lo governar e falar por nós como ele bem desejar no conselhos nas nações”.[14]

Vemos claramente porque o estado precisa dos intelectuais; mas por que os intelectuais precisam do estado? Colocando de maneira simples, o sustento de um intelectual no livre mercado geralmente está longe de ser seguro; pois o intelectual, como todo o resto das pessoas no mercado, depende dos valores e das escolhas destas massas que, geralmente, não têm interesse nas preocupações intelectuais. O estado, por outro lado, está disposto a oferecer aos intelectuais um leito quente, seguro e permanente em seu aparato, um salário garantido, e a panóplia do prestígio.

A entusiástica aliança entre o estado e os intelectuais foi simbolizada pelo desejo ávido dos professores da Universidade de Berlim, no século XIX, de se unirem naquilo que eles próprios proclamaram como o “guarda-costas intelectual da Casa de Hohenzollern”. De uma perspectiva ideológica superficialmente diferente, ela pode ser vista na reação reveladoramente furiosa do célebre estudioso marxista da antiga China, Joseph Needham, à crítica ácida de Karl Wittfogel ao antigo despotismo chinês. Wittfogel havia mostrado a importância que o sistema de glorificação confuciana dos funcionários públicos cavalheiros-acadêmicos, que comandavam a burocracia dominante da China despótica, tivera para sustentar o sistema. Needham afirmou, de maneira indignada, que a “civilização que o professor Wittfogel está atacando de maneira tão mordaz era uma civilização que era capaz de transformar poetas e acadêmicos em funcionários públicos”[15] Que importa o totalitarismo, enquanto a classe dominante for composta de maneira tão abundante por intelectuais diplomados!

A atitude respeitosa e bajuladora dos intelectuais para com seus governantes vem sendo ilustrada por diversos momentos ao longo da história. Um equivalente americano do “guarda-costas intelectual da Casa de Hohenzollern” é a atitude de tantos intelectuais progressistas em relação ao cargo e à pessoa do presidente. Assim, para o cientista político e professor Richard Neustadt, o presidente é o “único símbolo semelhante à coroa da União”. E o administrador político Townsend Hoopes, no inverno de 1960, escreveu que “sob o nosso sistema as pessoas podem recorrer apenas ao presidente para definir a natureza de nosso problema de política externa, os programas nacionais e os sacrifícios necessários para lidar com eles de maneira eficaz.”[16] Após gerações deste tipo de retórica, não é surpreendente que Richard Nixon, às vésperas de sua eleição como presidente, tenha descrito assim o seu papel: “Ele deve articular os valores da nação, definir suas metas e guiar a sua vontade.” O conceito de Nixon a respeito de seu papel é assustadoramente semelhante à articulação de Ernst Huber, na Alemanha da década de 1930, da Lei Constitucional do Grande Reich Germânico. Huber escreveu que o chefe de estado “estabelece as metas que devem ser atingidas e compõe os planos para a utilização de todos os poderes nacionais na obtenção destas metas comuns (…) ele dá a vida nacional seu verdadeiro propósito e valor”.[17]

A atitude e motivação do guarda-costas intelectual da segurança nacional do estado contemporâneo foram descritas de maneira cáustica por Marcus Raskin, que fez parte da equipe do Conselho Nacional de Segurança durante a administração Kennedy. Chamando-os de “intelectuais da megamorte”, Raskin escreveu que:

sua função importante é a de justificar e prolongar a existência de seus empregadores. (…) Para justificar a produção contínua em grande escala destas bombas e mísseis [termonucleares], os líderes militares e industriais precisavam de algum tipo de teoria para racionalizar seu uso. (…) Isto se tornou especialmente urgente durante o fim da década de 1950, quando os membros mais preocupados com a economia do governo Eisenhower começaram a se perguntar por que tanto dinheiro, pensamento e recursos estavam sendo gastos com armas se seu uso não tinha como ser justificado. Começou então uma série de racionalizações por parte dos “intelectuais de defesa”, dentro e fora das universidades. (…) As aquisições militares continuaram a florescer, e eles continuarão a demonstrar porque isto deve acontecer. Neste ponto eles não são diferentes da maior parte dos especialistas modernos que aceitam as conjecturas das organizações que os empregam em troca das recompensas que recebem em dinheiro, poder e prestígio. (…) Eles sabem que não é de seu interesse questionar o direito de existir de seus empregadores.[18]

Isto não significa que todos os intelectuais em todos os lugares vêm agindo como “intelectuais da corte”, serventes e sócios minoritários do poder. Mas esta tem sido a condição prevalecente na história das civilizações—geralmente na forma de uma classe sacerdotal—bem como a condição dominante nestas civilizações vem sendo alguma forma de despotismo. Existiram exceções gloriosas, no entanto, especialmente na história da civilização ocidental, onde os intelectuais frequentemente foram críticos incisivos e oponentes do poder estatal, e utilizaram seus dons intelectuais para forjar sistemas teóricos que poderiam ser usados na luta pela libertação deste poder. Mas, invariavelmente, estes intelectuais só puderam surgir como uma força significativa quando foram capazes de operar a partir de uma base de poder independente—uma base de propriedade independente—separada do aparato do estado. Pois onde quer que o estado controle toda a propriedade, riqueza e empregos, todos se tornam dependentes, economicamente, dele, e torna-se difícil, quando não impossível, para que este ponto de vista crítico independente surja. Foi no Ocidente, com seus focos descentralizados de poder, suas fontes independentes de propriedade e emprego e, portanto, de bases a partir das quais se podia criticar o estado, que um corpo de críticos intelectuais pôde florescer. Na Idade Média, a Igreja Católica Romana, que ao menos era separada, quando não independente, do estado, e as novas cidades livres puderam servir como centros de oposição intelectual e significativa. Nos séculos posteriores, professores, ministros e panfletistas numa sociedade relativamente livre puderam utilizar sua independência do estado para suscitar o debate sobre a expansão da liberdade. Por outro lado, um dos primeiros filósofos libertários, Lao-Tsé, que viveu em meio ao antigo despotismo chinês, não via esperança para a conquista da liberdade numa sociedade totalitária, exceto através da recomendação do quietismo, a ponto do abandono completo da vida social por parte do indivíduo.

Com o poder descentralizado, com uma Igreja separada do estado, com cidades florescentes e capazes de se desenvolver fora da sociedade de poder feudal, e com liberdade na sociedade, a economia pôde se desenvolver na Europa ocidental de uma maneira que transcendeu todas as civilizações anteriores. Além disso, a estrutura tribal germânica—e, particularmente, a céltica—que havia conseguido desintegrar com sucesso o Império Romano tinha fortes elementos libertários. No lugar de um poderoso aparato estatal que exercia um monopólio da violência, as disputas eram resolvidas através de uma consulta feita pelos membros tribais que estavam em conflito aos anciões da tribo a respeito da natureza e da aplicação da lei comum e consuetudinária da tribo. O “chefe” era meramente um líder militar que era convocado para assumir seu papel como guerreiro apenas quando ocorria uma guerra com outras tribos. Na Europa ocidental, assim como em muitas outras civilizações, o modelo típico de origem do estado não ocorreu através de um “contrato social” voluntário, mas através da conquista de uma tribo por outra. A liberdade original da tribo ou dos camponeses sucumbia, assim, aos conquistadores. Inicialmente, a tribo que conquistava a outra matava e saqueava suas vítimas e seguia adiante. Mas, em algum momento, os conquistadores decidiram que seria mais vantajoso se estabelecer entre os camponeses conquistados e governá-los e saqueá-los de maneira permanente e sistemática. O tributo periódico cobrado dos súditos conquistados acabou por ser chamado de “imposto”. E, de maneira igualmente genérica, os chefes tribais que haviam realizado a conquista repartiram a terra destes camponeses entre os diversos líderes militares, que então puderam se estabelecer nestes locais e cobrar um “aluguel” feudal da classe campônia. Os camponeses muitas vezes eram transformados em escravos, ou, melhor dizendo, em servos, da própria terra, visando assim fornecer uma fonte contínua de trabalho forçado para os senhores feudais.[19]

Podemos observar alguns exemplos significativos do nascimento do estado através da conquista. Um deles foi a conquista dos camponeses indígenas da América Latina pelos espanhóis. Os conquistadores espanhóis não só estabeleceram um novo estado para governar estes indígenas, mas também dividiram a terra dos camponeses entre os líderes militares responsáveis pela conquista, que a partir de então passaram a cobrar aluguel daqueles que a cultivavam. Outro exemplo foi a nova forma política imposta sobre os saxões da Inglaterra após sua conquista pelos normandos, em 1066. A terra da Inglaterra foi dividida entre os senhores de guerra normandos, que formaram então um estado e um aparato feudal de domínio sobre a população de seus súditos. Para o libertário, o exemplo mais interessante e, certamente, o mais comovente, da criação de um estado através da conquista foi a destruição da sociedade libertária da antiga Irlanda pelos ingleses no século XVII, uma conquista que estabeleceu ali um estado imperial e expulsou diversos irlandeses de sua terra querida. A sociedade libertária irlandesa, que havia durado por mil anos—e que será descrita mais adiante—foi capaz de resistir à conquista inglesa por centenas de anos devido à ausência de um estado que pudesse ser conquistado com facilidade e então utilizado pelos conquistadores para dominar a população nativa.

Porém, enquanto ao longo da história ocidental os intelectuais formularam teorias projetadas para controlar e limitar o poder do estado, cada estado pôde usar seus próprios intelectuais para transformar estas ideias em novas formas de legitimação de sua própria ascensão ao poder. Assim, originalmente, o conceito do “direito divino dos reis” na Europa ocidental foi uma doutrina promovida pela Igreja para limitar o poder do estado. A ideia era que o rei não pudesse simplesmente impor sua vontade arbitrária; seus decretos eram limitados pela concordância com a lei divina. À medida que a monarquia absolutista se desenvolveu, no entanto, os reis puderam inverter o conceito e dar origem à ideia de que Deus colocou seu selo de aprovação em todos os atos do rei; que ele governava através do “direito divino”.

De maneira semelhante, o conceito da democracia parlamentar teve seu início como uma forma de impor um controle ao domínio absolutista do monarca. O rei era limitado pelo poder do parlamento de lhe conceder os rendimentos obtidos através dos impostos. Gradualmente, no entanto, à medida que o parlamento tomou o lugar do rei como chefe de estado, o próprio parlamento se tornou o soberano irrestrito do estado. No início do século XIX, os utilitaristas ingleses, que advogavam liberdades individuais adicionais em nome da utilidade social e do bem-estar geral, acabaram por ver estes conceitos sendo transformados em sanções para a expansão do poder do estado.

Nas palavras de De Jouvenel:

Muitos autores de teorias de soberania desenvolveram um ou outro destes artifícios restritivos. Porém, no final das contas, cada uma destas teorias acabou por, cedo ou tarde, perder seu propósito original, e passaram a ser usadas para agir meramente como um trampolim para o Poder, provendo-o do auxílio poderoso de um soberano invisível com o qual ele pôde, eventualmente, vir a se identificar com sucesso.[20]

Seguramente, a tentativa mais ambiciosa de se impor limites ao estado foi a Declaração de Direitos (Bill of Rights) e outras partes restritivas da constituição dos Estados Unidos. Ali, os limites escritos a respeito do governo se tornaram a lei fundamental, para ser interpretada por um judiciário supostamente independente de todos os outros ramos do governo. Todos os americanos estão familiarizados com o processo através do qual a análise profética de John C. Calhoun foi justificada; o próprio monopólio judiciário do estado ampliou de maneira inexorável a construção do poder estatal ao longo do último século e meio. Poucos, no entanto, foram tão argutos quanto o professor progressista Charles Black—que elogia o processo—ao perceber que o estado foi capaz de transformar a própria revisão judicial de um artifício limitador num poderoso instrumento de conquista de legitimidade para suas ações nas mentes do público. Se um decreto judicial que afirme que algo é “inconstitucional” é uma poderosa forma de controle do poder governamental, um veredito de “constitucional” é, da mesma maneira, uma arma poderosa para se fomentar a aceitação pública de um poder governamental cada vez maior.

O professor Black começa sua análise apontando a necessidade crucial de “legitimidade”, por parte de qualquer governo, para que ele possa perdurar; isto é, uma aceitação majoritária básica do governo e de seus atos. A aceitação da legitimidade, no entanto, se torna um problema real num país como os Estados Unidos, onde “limitações substantivas estão inseridas na teoria sobre a qual o governo se sustenta”. O que é necessário, acrescenta Black, é um método através do qual o governo possa assegurar o público de que a expansão de seus poderes é, de fato, “constitucional”. E esta, ele conclui, tem sido a principal função histórica da revisão judicial. Deixemos que Black ilustre o problema:

O risco supremo [para o governo] é de que o descontentamento e um sentimento de revolta sejam amplamente difundidos entre a população, e da perda de autoridade moral pelo governo como tal, por mais que ele seja escorado através da força, da inércia ou da falta de uma alternativa atraente e imediatamente disponível. Quase todos que vivem sob um governo de poderes limitados devem, uma hora ou outra, se sujeitar a algum ato governamental que seja encarado, em termos de opinião pessoal, como estando fora do escopo do poder do governo ou que seja inteiramente proibido a este governo. Um homem é convocado à força para o serviço militar, embora ele não encontre nada na constituição sobre esta convocação. (…) Um fazendeiro é informado sobre quanto trigo ele pode cultivar; ele acredita, e descobre, que alguns advogados acreditam, como ele, que o governo não tem mais direito de lhe dizer quanto trigo pode cultivar do que ele tem de dizer à sua filha com quem ela pode se casar. Um homem é condenado a uma penitenciária federal por dizer o que bem entende, e caminha por sua cela repetindo para si mesmo (…) “O congresso não deverá fazer leis que imponham limite à liberdade de expressão”. (…) Um homem de negócios é informado sobre o quanto ele pode cobrar, e quanto ele deve cobrar, pelo leitelho.

O perigo é suficientemente real para que cada uma destas pessoas (e quem não se inclui entre elas?) confrontem o conceito da limitação governamental com a realidade (tal como ele a vê) do acintoso abuso dos limites reais, e cheguem à conclusão do status de seu governo no que diz respeito à legitimidade.[21]

Este perigo pode ser evitado, acrescenta Black, fazendo-se com que o estado proponha a doutrina de queuma de suas agências tenha a decisão final a respeito da constitucionalidade, e que esta agência faça parte do próprio governo federal. Pois embora a aparente independência do judiciário federal tenha desempenhado um papel vital ao fazer de seus atos uma virtual escritura sagrada para a maior parte da população, também é verdade que o judiciário é parte integrante do aparato governamental, e é indicado pelos ramos executivo e legislativo. O professor Black admite que o governo, nessas instâncias, se instituiu como juiz de seu próprio caso, e, consequentemente, violou um princípio jurídico básico para chegar a um tipo de decisão minimamente justa. Porém Black é incrivelmente leviano a respeito desta violação fundamental: “O poder final do estado (…) deve ser interrompido onde a lei o interrompe.” E quem deverá estabelecer o limite, e quem deverá impor esta interrupção, contra o mais poderoso dos poderes? Ora, o próprio estado, é claro, através de seus juízes e de suas leis. Quem controla os moderados? Quem ensina aos sábios?[22] E, assim, Black admite que quando temos um estado, entregamos todas as nossas armas e meios de coerção ao aparato estatal, entregamos todos os nossos poderes de tomada de decisão final a este grupo deificado, e então devemos nos sentar alegremente, quietos, e esperar pela torrente sem fim de justiça que será derramada destas instituições—mesmo que elas estejam, basicamente, julgando nosso próprio caso. Black não vê uma alternativa concebível a este monopólio coercitivo das decisões judiciais aplicadas pelo estado, porém é exatamente aqui que este nosso novo movimento desafia esta visão convencional, e afirma que existe uma alternativa viável: o libertarianismo.

Sem ver esta alternativa, o professor Black recorre ao misticismo em sua defesa do estado, pois na análise final ele descobre que a obtenção da justiça e da legitimidade por parte do julgamento perpétuo do estado de sua própria causa como “uma espécie de milagre”. Desta maneira, o progressista Black se une ao conservador Burnham em recorrer ao milagroso, e, portanto, admitir que não existe um argumento racional satisfatório que apoie o estado.[23]

Ao aplicar sua visão realista da Suprema Corte ao célebre conflito entre a corte e o New Deal[24] na década de 1930, o professor Black repreende seus colegas progressistas por sua miopia na denúncia do obstrucionismo judicial:

a versão tradicional da história do New Deal e a da corte, embora precisa, à sua própria maneira, desloca a ênfase. (…) Ela se concentra sobre as dificuldades; quase se esquece de como tudo acabou por se desenrolar. O desfecho da questão (e é isto que eu gosto de enfatizar) foi que após cerca de vinte e quatro meses de impasses (…) a Suprema Corte, sem uma única alteração na lei de sua composição, ou, na realidade, em seus integrantes, deu o selo de legitimidade ao New Deal, e a toda a nova concepção de governo nos Estados Unidos [itálicos do autor].[25]

Assim, a Suprema Corte pôde dar o golpe de misericórdia a todo o grande grupo de americanos que tinham fortes objeções constitucionais à expansão de poderes provocada pelo New Deal:

Obviamente, nem todos estavam satisfeitos. O Bonnie Prince Charlie[26] dos adeptos do laissez-faire sancionado pela Constituição ainda agitava os corações de alguns poucos zelotes nasHighlands[27] da irrealidade colérica. Porém não havia mais qualquer dúvida pública significativa ou perigosa a respeito do poder constitucional do congresso para lidar como bem entendesse com a economia nacional. (…)  Não tínhamos qualquer outro meio, além da Suprema Corte, de dar legitimidade ao New Deal.[28]

Assim, até mesmo nos Estados Unidos, único entre os governos por ter uma constituição que, pelo menos em algumas de suas partes, visava impor limites rígidos e solenes sobre seus atos, mesmo aqui a constituição acabou por provar um instrumento para ratificar a expansão do poder do estado, e não o contrário. Como afirmou Calhoun, quaisquer limites escritos que deixem a cargo do governo a interpretação de seus próprios poderes estão fadados a ser interpretados como sanções para a expansão, e não para a limitação, destes poderes. Num sentido mais profundo, a ideia de limitação do poder através das amarras de uma constituição escrita se provou um experimento nobre que falhou. A ideia de um governo rigidamente limitado se provou utópica; algum outro meio mais radical deve ser encontrado para evitar o crescimento do estado agressivo. O sistema libertário resolveria este problema descartando toda a noção de se criar um governo—uma instituição com um monopólio coercitivo de força sobre um determinado território—e então esperar que fossem encontradas maneiras de evitar que esse governo se expandisse. A alternativa libertária seria de se abster, desde o início, de um governo monopolista como esse.

Exploraremos toda a noção de uma sociedade desprovida de estado, uma sociedade sem um governo formal, em capítulos posteriores. Porém um exercício instrutivo é tentar habituar as maneiras convencionais de se ver as coisas, e considerar o argumento por um estado de novo. Tentemos transcender o fato de que, desde que podemos nos lembrar, o estado monopolizou os serviços policiais e judiciais na sociedade. Suponhamos que estejamos todos começando completamente do zero, e que milhões de nós tenhamos sido deixados na terra, já inteiramente crescidos e desenvolvidos, vindos de algum outro planeta. O debate seria iniciado a respeito de como se poderia fornecer proteção (serviços policiais e judiciais). Alguém diria: “vamos dar todas as nossas armas para o Joe Jones, e seus parentes. E deixemos que Jones e sua família decidam a respeito de todos os conflitos entre nós. Assim, os Jones serão capazes de proteger a nós todos de qualquer agressão ou fraude que outra pessoa possa cometer. Com todo o poder e toda a capacidade de tomar as decisões finais sobre os conflitos nas mãos dos Jones, estaremos todos protegidos uns dos outros. E deixemos então que os Jones obtenham sua renda deste grande serviço através da utilização de suas armas, e da extração de tantos rendimentos quanto eles bem entenderem através da coerção.” Seguramente, numa situação como esta, ninguém seria capaz de tratar tal proposta com qualquer outra reação que não a de ridicularizar; pois neste caso ficaria completamente evidente que não existiria qualquer modo de nos protegermos das agressões ou pilhagens cometidas pelos próprios Jones. Ninguém, neste caso, seria louco o suficiente para responder àquela questão antiga e extremamente perspicaz: “quem guardará os guardiões?” respondendo-a com a displicente resposta do professor Black: “quem controla os moderados?” É simplesmente por termos nos acostumado, ao longo de milhares de anos, à existência do estado, que agora damos exatamente este tipo de resposta absurda ao problema da defesa e da proteção social.

E, obviamente, o estado nunca começou de fato com este tipo de “contrato social”. Como apontou Oppenheimer, o estado geralmente tem seu início na violência e na conquista; mesmo se por vezes processos internos deram origem ao estado, isto certamente nunca ocorreu através de um contrato ou de um consenso generalizado.

O credo libertário pode agora ser resumido como (1) o direito absoluto de todos os homens à propriedade de seu próprio corpo; (2) o direito igualmente absoluto de ter posse e, portanto, controlar os recursos materiais que ele encontrou e transformou; e (3) portanto, o direito absoluto de trocar ou dar a propriedade destes títulos a quem quer que esteja disposto a trocá-los ou recebê-los. Como vimos, cada um destes passos envolve os direitos de propriedade, porém ainda que chamemos o passo (1) de direitos “pessoais”, veremos que os problemas a respeito da “liberdade pessoal” inextricavelmente envolvem os direitos da propriedade material ou da livre troca. Ou, resumindo: os direitos da liberdade pessoal e da “liberdade de empreendimento” quase que invariavelmente estão entrelaçados e não podem, de fato, ser separados.

Vimos que o exercício da “liberdade de expressão” pessoal, por exemplo, envolve quase que invariavelmente o exercício da “liberdade econômica”—isto é, a liberdade de possuir e trocar a propriedade material. A realização de uma reunião para exercer a liberdade de expressão envolve o aluguel ou a compra de uma sala de reuniões, de se deslocar até esta sala utilizando-se de estradas, e a utilização de alguma forma de transporte etc. A “liberdade de imprensa”, intimamente relacionada com o que foi citado acima, envolve de maneira ainda mais evidente o custo de impressão e do uso de uma prensa ou uma impressora, a venda de panfletos para aqueles que os queiram comprar—em suma, todos os ingredientes da “liberdade econômica”. Além disso, nosso exemplo de se “gritar ‘fogo’ num teatro lotado” nos fornece uma diretriz clara para que se chegue a uma decisão a respeito dos direitos de quem devem ser defendidos em alguma determinada situação—diretrizes que são fornecidas pelo nosso critério: os direitos de propriedade.

 


[1] Os Pentagon Papers foram uma série de relatórios classificados como top-secret pelo Departamento de Defesa americano que documentavam o envolvimento militar dos Estados Unidos no Vietnã de 1945 a 1967, e que demonstravam que autoridades dos mais altos escalões, como o presidente Lyndon Johnson, haviam mentido publicamente sobre o assunto tanto para o público quanto para o congresso. (N.T.)

[2] John C. Calhoun, A Disquisition on Government (Nova York: Liberal Arts Press, 1953), p. 25–27.

[3] Franz Oppenheimer, The State (Nova York: Vanguard Press, 1926), p. 24–27 e passim.

[4] Albert Jay Nock, On Doing the Right Thing, and Other Essays (Nova York: Harper and Bros., 1928), p. 145.

[5] Joseph A. Schumpeter, Capitalismo, Socialismo e Democracia; tradução de Ruy Jungmann (Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961), p. 242.

[6] Lysander Spooner, No Treason, nº VI, The Constitution of No Authority

(1870; reimpresso em Larkspur, Colo.: Pine Tree Press, 1966), p. 17.

[7] Calhoun, Disquisition on Government, p. 16–18.

[8] James Burnham, Congress and the American Tradition (Chicago: Henry Regnery, 1959), p. 6–8.

[9] Burnham, Congress and the American Tradition, p. 3.

[10] Bertrand De Jouvenel, On Power (New York: Viking Press 1949), p. 22.

[11] Norman Jacobs, The Origin of Modern Capitalism and Eastern Asia (Hong Kong: Hong Kong University Press, 1958), pp. 161–63, 185. A grande obra sobre todos os aspectos do despotismo oriental é Karl A. Wittfogel, Oriental Despotism: A Comparative Study of Total Power (New Haven, Conn.: Yale University Press, 1957).

[12] H.L. Mencken, A Mencken Chrestomathy (Nova York: Alfred A. Knopf, 1949), p. 145.

[13] Veja Leonard P. Liggio, Why the Futile Crusade? (Nova York: Center for Libertarian Studies, abril de 1978), p. 41–43.

[14] George F. Kennan, Realities of American Foreign Policy (Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1954), p. 95–96.

[15] Joseph Needham, “Review of Karl A. Wittfogel, Oriental Despotism,” Science and Society (1958): 65. Para uma atitude que contraste com a de Needham, ver John Lukacs, “Intellectual Class or Intellectual Profession?,” in George B. deHuszar (ed.), The Intellectuals (Glencoe, Ill.: The Free Press, 1960): 522.

[16] Richard Neustadt, “Presidency at Mid-Century,” Law and Contempo- rary Problems (outono de 1956), p. 609–45; Townsend Hoopes, “The Per- sistence of Illusion: The Soviet Economic Drive and American National Interest,” Yale Review (março de 1960): 336.

[17] Citado in Thomas Reeves e Karl Hess, The End of the Draft (Nova York: Vintage Books, 1970), p. 64–65.

[18] Marcus Raskin, “The Megadeath Intellectuals,” The New York Review of Books (14 de novembro de 1963): 6–7. Ver também Martin Nicolaus, “The Professor, the Policeman, and the Peasant,” Viet-Report (junho–julho de 1966): 15–19.

[19] Sobre a gênese típica do estado, ver Oppenheimer, The State, cap. II. Enquanto acadêmicos como Lowie e Wittfogel (Oriental Despotism, p. 324–25) questionam a tese de Gumplowicz-Oppenheimer-Rüstow de que o estado sempre se originou através de conquistas, eles reconhecem que a conquista  muitas vezes fez parte do suposto desenvolvimento interno dos estados. Além do mais, existem evidências de que na primeira grande civilização, a Suméria, uma sociedade próspera, livre e desprovida de estado existiu até que a defesamilitar contra conquistas externas forçou o desenvolvimento de uma burocracia estatal e militar permanente. Ver Samuel Noah Kramer, The Sumerians (Chicago: University of Chicago Press, 1963), p. 73ss.

[20] De Jouvenel, On Power, p. 27.

[21] Charles L. Black, Jr., The People and the Court (Nova York: Macmillan, 1960), p. 42–43.

[22] Ibid., p. 32–33.

[23] Contrastando com a complacência de Black está a crítica aguda da constituição e dos poderes da Suprema Corte feita pelo cientista político J. Allen Smith. Smith escreveu que “claramente, o bom senso dita que nenhum órgão do governo deveria poder determinar seus próprios poderes”. J. Allen Smith, The Growth and Decadence of Constitutional Government (Nova York: Henry Holt, 1930), p. 87. Claramente, bom senso e “milagres” ditam visões muito diferentes de governo.

[24] Conjunto de programas  e políticas que tinham em vista promover reformas sociais e uma recuperação da economia americana, introduzido durante a década de 1930 pelo presidente Franklin D. Roosevelt. (N.T.)

[25] J. Allen Smith, The Growth and Decadence of Constitutional Government (Nova York: Henry Holt, 1930), p. 64.

[26] Apelido dado ao príncipe inglês Carlos Eduardo (Charles Edward, 1720-1788), último pretendente ao trono britânico da Casa dos Stuart, responsável por liderar a revolução jacobita de 1745-46 que visava restaurar sua família ao trono do Reino da Grã-Bretanha (Inglaterra, Escócia e Irlanda). (N.T.)

[27] Literalmente “Terras Altas”, nome dado à região montanhosa do norte e centro da Escócia, célebre por sua cultura distinta e por não se submeter aos governos centrais. (N.T.)

[28] J. Allen Smith, The Growth and Decadence of Constitutional Government (Nova York: Henry Holt, 1930), p. 65 [p. 70] [p. 71] [p. 72] [p. 73].

 

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui