Teoria e história

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Introdução do livro Theory and History, escrito por Ludwig von Mises

 

1. Dualismo metodológico

O mortal não tem a mais vaga ideia de como uma inteligência super-humana analisa o universo e tudo o que ele contém.  Talvez essa mente elevada esteja em posição capaz de elaborar uma interpretação monística, coerente e abrangente de todos os fenômenos.  O homem — até agora, pelo menos — sempre se extraviou lamentavelmente em todas as suas tentativas de reduzir a distância que ele impotentemente vê se agigantando entre a mente e a matéria, entre o cavaleiro e o cavalo, entre o pedreiro e a pedra.  Seria absurdamente ilógico ver esse fracasso como uma prova suficiente da solidez de uma filosofia dualística.  Tudo o que podemos inferir disso tudo é que a ciência — ao menos presentemente — deve adotar uma abordagem dualística.  Tal abordagem deve ser utilizada não como uma explicação filosófica, mas como um instrumento metodológico.

O dualismo metodológico evita fazer qualquer proposição acerca das essências e das construções metafísicas.  Ele meramente leva em consideração o fato de que nós humanos não sabemos como os eventos externos — físicos, químicos e psicológicos — afetam nossos pensamentos, ideias e julgamentos de valor.  Essa ignorância divide o âmbito do conhecimento em dois campos separados: o âmbito dos eventos externos — comumente chamado de natureza —, e o âmbito do pensamento e da ação humana.

Os antigos abordavam essa questão através de um ponto de vista moral ou religioso.  O monismo materialista foi rejeitado como sendo incompatível com o dualismo cristão do Criador e Sua criação, e da alma imortal e seu corpo mortal.  O determinismo foi rejeitado como sendo incompatível com os princípios fundamentais da moralidade e com os do código penal.  Em todas essas controvérsias, as posições que foram defendidas para respaldar os respectivos dogmas eram, em sua maioria, sem importância, e continuam sendo irrelevantes do ponto de vista metodológico dos nossos dias.  Os deterministas fizeram pouco mais do que apenas repetir incessantemente suas teses, sem contudo tentar dar a elas qualquer comprovação.  Já os indeterministas negavam as declarações de seus adversários, porém se mostraram incapazes de atacá-los em seus pontos mais fracos.  Os longos debates que ambas as correntes travaram não foram dos mais proveitosos.

O alcance da controvérsia foi alterado quando a nova ciência da economia entrou em cena.  Os partidos políticos — que rejeitavam passionalmente todas as conclusões práticas a que inevitavelmente levavam os resultados do pensamento econômico, mas que eram incapazes de propor quaisquer objeções sustentáveis contra sua veracidade e correção — se esquivaram e levaram a discussão para os campos da epistemologia e da metodologia.  Eles proclamaram os métodos experimentais das ciências naturais como sendo o único modo de pesquisa adequado, e a indução da experiência sensorial como sendo o único modo legítimo de raciocínio científico.  Eles se comportaram como se nunca tivessem ouvido falar dos problemas lógicos inerentes à indução.  Tudo o que não era experimentação ou indução era, em seus olhos, metafísica — um termo que eles utilizavam como sendo sinônimo de tolice.

2. Economia e metafísica

As ciências da ação humana partem do fato de que o homem propositalmente intenciona atingir os fins que ele escolheu.  É precisamente isso que todos os tipos de positivismo, comportamentalismo e panfisicalismo querem ou negar completamente ou ignorar silenciosamente.  Porém, seria algo simplesmente tolo negar o fato de que o homem manifestamente se comporta como se estivesse de fato buscando atingir fins definidos.  Logo, a negação de que há propósitos nas atitudes do homem é algo que somente pode ser aceito se for assumido que a escolha dos fins e dos meios é algo apenas aparente; que o comportamento humano é, em última instância, determinado por eventos fisiológicos que podem ser completamente descritos na terminologia da física e da química.

Mesmo os mais fanáticos defensores da “Unidade da Ciência” [dogma central do positivismo lógico], os quais formam uma seita, evitam propagandear inequivocamente essa formulação rude e grosseira de sua tese fundamental.  E há boas razões para essa reticência.  Enquanto não for descoberta uma relação clara e distinta entre ideias e eventos físicos ou químicos — dos quais as ideias seriam a consequência lógica —, a tese positivista permanecerá sendo apenas um postulado epistemológico originado não da experiência cientificamente estabelecida, mas de uma visão metafísica do mundo.

Os positivistas nos dizem que, um dia, uma nova disciplina científica surgirá e irá confirmar suas promessas, descrevendo em todos os detalhes os processos físicos e químicos que produzem ideias claras e definidas no corpo do homem.  Não briguemos hoje por causa de questões que o futuro resolverá.  Porém, é evidente que tal proposição metafísica não pode de maneira alguma invalidar os resultados obtidos pelo raciocínio discursivo das ciências da ação humana.  Os positivistas, por motivos emocionais, não gostam das conclusões que o indivíduo atuante — isto é, o indivíduo que age — irá necessariamente obter dos estudos econômicos.  Como os positivistas são incapazes de encontrar qualquer falha tanto no raciocínio econômico quanto nas inferências dele derivadas, eles recorrem a esquemas metafísicos com o intuito de desacreditar os fundamentos epistemológicos e a abordagem metodológica da ciência econômica.

Não há nada de maléfico em relação à metafísica.  O homem não pode viver sem ela.  Os positivistas estão lamentavelmente equivocados ao empregar o termo “metafísica” como sinônimo de tolice.  Porém, nenhuma proposição metafísica pode contradizer qualquer uma das constatações do raciocínio discursivo.  A metafísica não é uma ciência, e o apelo a noções metafísicas quando se faz um exame lógico dos problemas científicos é totalmente vão.  Isso é verdade também para a metafísica do positivismo, para a qual seus defensores deram o nome de antimetafísica.

3. Regularidade e Previsão

Epistemologicamente, a marca distinta daquilo que chamamos de ‘natureza’ pode ser vista na regularidade averiguável e inevitável do encadeamento e da sequência de fenômenos.  Por outro lado, a marca distinta daquilo que chamamos de ‘esfera humana’ — ou história, ou, ainda melhor, âmbito da ação humana — é a ausência dessa regularidade universalmente predominante.

Sob condições idênticas, as pedras sempre reagem aos mesmos estímulos da mesma maneira; podemos aprender algo por meio desses padrões regulares de reações, e podemos fazer uso desse conhecimento direcionando nossas ações para objetivos definidos.  Nossa classificação dos objetos naturais e o fato de designarmos nomes para essas classes é um resultado dessa experiência.  Uma pedra é um objeto que reage de uma forma definida.  Já os homens reagem aos mesmos estímulos de variadas maneiras, e o mesmo homem pode, em diferentes instantes de tempo, reagir de maneiras distintas em relação à sua conduta imediatamente anterior ou posterior.  É impossível agrupar os homens em classes cujos membros sempre irão reagir da mesma maneira.

Isso não quer dizer que ações humanas futuras são totalmente imprevisíveis.  Elas podem ser antecipadas de certa forma.  Porém, os métodos aplicados para tais antecipações, bem como sua extensão, são totalmente diferentes, lógica e epistemologicamente, daqueles aplicados para a antecipação de eventos naturais.

4. O conceito das Leis da Natureza

A experiência sempre se refere a experimentos relativos a acontecimentos passados.  Ela se refere àquilo que já foi e não mais é; a eventos que já sumiram para sempre no fluxo do tempo.

A percepção de que há regularidade na concatenação e sequência de vários fenômenos não afeta essa referência a experimentos que ocorreram uma vez no passado em lugar e tempo definidos e sob circunstâncias prevalecentes apenas naquele momento.  A percepção de regularidade também se refere exclusivamente a eventos passados.  O máximo que a experiência pode nos ensinar é isso: em todos os casos observados no passado havia uma regularidade averiguável.

Desde tempos imemoriais, todos os homens de todas as raças e civilizações davam como certo o fato de que a regularidade observada no passado iria prevalecer também no futuro.  A categoria da causalidade e a ideia de que eventos naturais irão, no futuro, seguir o mesmo padrão que apresentaram no passado são princípios fundamentais do pensamento humano, bem como da ação humana.  Nossa civilização material é o produto de uma conduta que foi guiada por esses princípios.  Qualquer dúvida quanto à validade deles dentro da esfera da ação humana que já ocorreu é dirimida quando se observa resultados dos aprimoramentos tecnológicos.  A história nos ensina irrefutavelmente que tanto nossos antepassados quanto nós próprios, até o presente momento, agimos sabiamente ao adotar esses princípios.  Eles são verdadeiros, no sentido que o pragmatismo dá ao conceito da palavra verdade.  Eles funcionam, ou, mais precisamente, funcionaram no passado.

Deixando de lado o problema da causalidade e suas implicações metafísicas, temos de reconhecer e aceitar que as ciências naturais são baseadas inteiramente na suposição de que uma conjunção regular de fenômenos prevalece no âmbito daquilo que investigam.  Elas não buscam apenas conjunções frequentes, mas, sim, uma regularidade que prevaleceu sem exceção em todos os casos observados no passado e a qual espera-se que prevaleça da mesma forma em todos os casos a serem observados no futuro.  Onde elas podem descobrir apenas uma conjunção frequente — como ocorre no caso da biologia, por exemplo —, elas assumem que isso se deve unicamente à imperfeição dos métodos de investigação, os quais estão temporariamente impedindo a descoberta de uma regularidade estrita.

Os dois conceitos de conjunção — invariável e frequente — não devem ser confundidos.  Ao se referir a uma conjunção invariável, está-se dizendo que nenhum desvio do padrão regular — lei — de conjunção jamais foi observado, e que podemos estar certos, até o ponto em que os homens podem estar certos de alguma coisa, de que nenhum desvio como esse é possível e tampouco que irá acontecer algum dia.  A melhor ilustração da ideia de regularidade inexorável na concatenação de fenômenos naturais é fornecida pelo conceito de milagres.  Um evento miraculoso é algo que simplesmente não pode acontecer no curso normal dos eventos que ocorrem no mundo, pois seu acontecimento não poderia ser explicado pelas leis da natureza.

Se, entretanto, tal ocorrência for relatada, duas diferentes interpretações serão fornecidas, ambas as quais, entretanto, concordam totalmente em aceitar como verdade a inexorabilidade das leis da natureza.  O devoto diria: “Isso não poderia acontecer no curso normal dos eventos.  Porém, aconteceu apenas porque o Senhor tem o poder de agir sem ser restringido pelas leis da natureza.  Trata-se de um evento incompreensível e inexplicável para a mente humana.  É um mistério, um milagre.”  Os racionalistas diriam: “Isso não poderia acontecer e, portanto, não aconteceu.  As testemunhas estão mentindo ou foram vítimas de uma ilusão.”  Se o conceito de leis da natureza significasse não uma regularidade inexorável, mas apenas conexões frequentes, então a noção de milagres jamais teria sido concebida.  As pessoas simplesmente diriam: A é frequentemente seguido de B, porém, em algumas circunstâncias, esse efeito não ocorreu.

Ninguém diz que pedras jogadas ao ar em um ângulo de 45 graus irão frequentemente cair.  Da mesma forma, ninguém diz que um membro humano que foi decepado em um acidente frequentemente não volta a crescer.  Todo o nosso pensamento e todas as nossas ações são guiados pelo conhecimento de que, em tais casos, não estamos vivenciando repetições frequentes da mesma conexão, mas, sim, repetições regulares.

5. As limitações do conhecimento humano

O conhecimento humano é condicionado pelo poder da mente humana e pela amplitude do campo em que os objetos despertam sensações humanas.  Talvez haja, no universo, coisas que nossos sentidos não podem perceber e relações que nossa mente não pode compreender.  Também pode existir fora da órbita daquilo que chamamos de universo outros sistemas de coisas sobre as quais nada podemos aprender, pois, até o presente momento, nenhum vestígio de sua existência penetrou nossa esfera de ação de modo a poder modificar nossas sensações.

Também pode ser que a regularidade na conjunção dos fenômenos naturais que estamos observando não seja eterna, mas apenas passageira, e que ela prevaleça somente no presente estágio (o qual pode durar milhões de anos) da história do universo, podendo um dia ser substituída por outro arranjo.

Esse e outros pensamentos similares podem induzir em um cientista escrupuloso uma cautela extrema na formulação dos resultados de seus estudos.  Cabe ao filósofo ser ainda mais comedido quando ao lidar com as categorias apriorísticas da causalidade e com a regularidade na sequência dos fenômenos naturais.

As formas e categorias apriorísticas do pensamento humano e da razão não podem ser remontadas a algo do qual elas pareceriam ser a conclusão necessariamente lógica.  É contraditório esperar que a lógica possa ter alguma utilidade em demonstrar a exatidão ou a validade dos princípios lógicos fundamentais.  Tudo o que pode ser dito sobre eles, os princípios lógicos fundamentais, é que negar sua exatidão ou validade parece ser algo absurdo para a mente humana, e que o pensamento, quando guiado por eles, levou a modos de ação bem sucedidos.

O ceticismo de Hume era a reação a um postulado de certeza absoluta, a qual para sempre será inalcançável para o homem.  Aqueles teólogos que viram que somente a revelação poderia dar ao homem a certeza perfeita estavam corretos.  Investigações científicas humanas não podem avançar para além dos limites determinados pela insuficiência dos sentidos do homem e pela estreiteza de sua mente.  Não há nenhuma demonstração dedutiva possível do princípio da causalidade e da inferência ampliativa da indução imperfeita; pode-se apenas recorrer à afirmação não menos indemonstrável de que há uma regularidade estrita na conjunção de todos os fenômenos naturais.  Se não nos referíssemos a essa uniformidade, todas as afirmações feitas pelas ciências naturais aparentariam ser meras generalizações apressadas.

6. Regularidade e Escolha

O principal fator em relação à ação humana é que não há uma regularidade na conjunção dos fenômenos.  Não se trata de uma deficiência das ciências da ação humana o fato de que elas não tiveram êxito em descobrir determinados padrões de resposta a estímulos.  Aquilo que não existe simplesmente não pode ser descoberto.

Se não houvesse regularidade na natureza, seria impossível afirmar qualquer coisa em relação ao comportamento das classes de objetos.  Seria necessário estudar os casos individuais e combinar em um relato histórico tudo o que foi aprendido sobre eles.

Em prol da argumentação, suponhamos que todas aquelas quantidades físicas que chamamos de constantes estejam, na realidade, constantemente se alterando e que a imperfeição de nossos métodos de investigação nos impeça de perceber essas mudanças lentas.  Nós não as levamos em consideração porque elas não possuem influência perceptível sobre nossas condições e não afetam notavelmente o resultado de nossas ações.  Portanto, pode-se dizer que essas quantidades estabelecidas pelas ciências naturais experimentais podem ser vistas como constantes, uma vez que elas permanecem inalteradas durante um período de tempo que excede em muito o período histórico para o qual queremos fornecer dados.

Porém, não é permissível argumentar analogamente em relação às quantidades que observamos no campo da ação humana.  Essas quantidades são manifestamente variáveis.  As mudanças que nelas ocorrem afetam claramente o resultado de nossas ações.  Todas as quantidades que podemos observar são um evento histórico, um fato que não pode ser completamente descrito sem se especificar o tempo e o ponto geográfico.

O econometricista é incapaz de refutar este fato, o qual tira toda a sustentação de seu raciocínio.  Ele terá de admitir que não existem “constantes comportamentais”.  Não obstante, ele quer introduzir alguns números, escolhidos arbitrariamente com base em um fato histórico, como “constantes comportamentaisdesconhecidas”.  A única desculpa que ele fornece é que suas hipóteses estão “dizendo apenas que esses números desconhecidos permanecem razoavelmente constantes durante um período de anos.”  Agora, se tal período de suposta constância de um dado número ainda está em andamento, ou se uma alteração no número já ocorreu, é algo que só poderá ser definido mais tarde.

Em retrospecto, pode ser possível, embora apenas em casos raros, declarar que ao longo de um período (provavelmente muito curto) de tempo, uma proporção aproximadamente estável — a qual o econometricista decidiu chamar de proporção “razoavelmente” constante — prevaleceu entre os valores numéricos de dois fatores.  Porém isso é algo fundamentalmente diferente das constantes da física.  É a declaração de um fato histórico, não de uma constante a qual se pode recorrer para tentar prever eventos futuros.

Deixando de lado, por ora, qualquer referência ao problema da vontade humana ou do livre arbítrio, podemos dizer que entidades não humanas reagem de acordo com padrões regulares. Já o homem escolhe.  Primeiro, o homem escolhe os fins que quer atingir; depois, escolhe os meios para tal.  Esses atos de escolha são determinados por pensamentos e ideias — ambos os quais, ao menos por enquanto, não são explicáveis pelas ciências naturais.

No tratamento matemático da física, a distinção entre constantes e variáveis faz sentido; é algo essencial em todas as instâncias da computação tecnológica.  Já na economia, não há relações constantes entre várias magnitudes.  Consequentemente, todos os dados averiguáveis são variáveis ou — o que dá no mesmo — dadoshistóricos.  Os economistas matemáticos reiteram que o problema da economia matemática consiste no fato de que há um grande número de variáveis.  A verdade é que há somente variáveis, e nenhuma constante.  É inútil falar sobre variáveis quando não existem constantes invariáveis.

7. Meios e fins

Escolher significa selecionar um entre dois ou mais possíveis modos de conduta e deixar de lado as alternativas.  Sempre que um ser humano está em uma situação na qual vários modos de comportamento, mutuamente excludentes, estão abertos a ele, ele escolhe.  Assim, a vida implica uma sequência infinita de atos de escolha.  A ação é uma conduta dirigida por escolhas.

Os atos mentais que determinam o conteúdo de uma escolha referem-se ou aos fins ou aos meios para se atingir esses fins.  A escolha dos fins é chamada de julgamento de valor; a escolha dos meios é uma decisão técnica derivada de proposições factuais.

No sentido estrito do termo, o indivíduo que age visa apenas a um único fim, à obtenção de uma situação que lhe satisfaz melhor que as alternativas.  Filósofos e economistas descrevem esse fato inegável declarando que o homem prefere o que o torna mais feliz àquilo que o torna menos feliz; ele busca a felicidade.[*]  A felicidade — no sentido puramente formal em que a teoria ética aplica o termo — é o único fim supremo, e todas as outras coisas e situações buscadas são apenas meios voltados para a realização do fim supremo.  É costumeiro, entretanto, empregar um modo de expressão menos preciso, frequentemente atribuindo o nome dos fins supremos a todos aqueles meios capazes de produzir satisfação diretamente ou imediatamente.

A marca característica dos fins supremos é que eles dependem inteiramente do julgamento pessoal e subjetivo de cada indivíduo, o qual não pode ser examinado, mensurado e muito menos corrigido por qualquer outra pessoa.  Cada indivíduo é o único e supremo juiz dos assuntos relacionados à sua própria satisfação e felicidade.

Como essa percepção fundamental é frequentemente considerada incompatível com a doutrina cristã, seria adequado aqui ilustrar sua verdade com exemplos retirados dos primórdios do credo cristão.  Os mártires rejeitaram tudo aquilo que outros consideravam ser prazeres supremos, com o intuito de ganhar a salvação e a benção eterna.  Eles não davam atenção aos seus companheiros bem intencionados, que os exortavam a prestar reverência à estátua do imperador divino para assim terem suas vidas poupadas.  Ao contrário, os mártires optaram por morrer pela causa em que acreditavam ao invés de preservarem suas vidas — o que os faria abdicar da felicidade eterna nos céus.

Quais argumentos poderia utilizar um homem que queira dissuadir seus amigos do martírio?  Ele poderia tentar solapar os fundamentos espirituais da fé que eles têm na mensagem dos Evangelhos e na interpretação feita pela Igreja.  Isso seria uma tentativa de abalar a crença do cristão na eficácia de sua religião como um meio de se atingir a salvação e a bem-aventurança.  Se essa argumentação sem sucesso não trouxesse proveito algum, o que restaria seria a decisão entre dois fins supremos: a escolha entre a bem-aventurança eterna e a condenação eterna.  Então o martírio seria um meio de se atingir um fim que, na opinião do mártir, asseguraria a felicidade suprema e perene.

Tão logo as pessoas se aventuram a questionar e a examinar um fim, elas não mais estão olhando para ele como um fim, mas sim como um meio para se atingir um fim ainda maior.  O fim supremo está além de qualquer análise racional.  Todos os fins não são temporários.  Mas eles se tornam meios assim que passam a ser comparados com outros fins e meios.

Meios são julgados e apreciados de acordo com suas capacidades de produzir efeitos claros e distintos.  Embora julgamentos de valor sejam pessoais, subjetivos e finais, julgamentos sobre meios são essencialmente inferências concebidas conforme proposições factuais relacionadas ao poder que os meios em questão têm de produzir efeitos bem definidos.  Quanto ao poder que um determinado meio tem para produzir um efeito definido, pode haver divergências e debates entre os homens.  Para uma avaliação dos fins supremos não há um padrão interpessoal disponível.

Escolher os meios é um problema técnico, com o termo “técnica” sendo empregado em seu sentido mais amplo.  Escolher os fins supremos é uma questão de cunho pessoal, subjetivo e individual.  Escolher os meios é uma questão de razão; escolher os fins é uma questão de alma e de desejo.

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Notas

[*] Não há nenhuma necessidade de refutar novamente os argumentos apresentados há mais de dois mil anos contra os princípios do eudemonismo, hedonismo e utilitarismo.  Para uma exposição das características formais e subjetivistas dos conceitos de “prazer” e “dor”, empregados no contexto dessas doutrinas, ver Mises, Ação Humana (New Haven, Yale University Press, 1949, pp. 14-15), e and Ludwig Feuerbach, Eudämonismus, in Sämmtliche Werke, ed. Bolin and Jodl (Stuttgart, 1907), 10, 230-93.  É claro, aqueles que creem que não há “felicidade”, exceto aquela trazida pelo orgasmo, pelo álcool e afins, continuam a repetir os velhos erros e distorções.

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Ludwig von Mises
Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico. Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política. Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico. Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de 'praxeologia'.

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