13. Sociedade de leis privadas ou estatais?

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I. O problema da Ordem Social

Sozinho em sua ilha, Robinson Crusoé pode fazer o que quiser. Para ele, a questão das regras de conduta humana ordenada — cooperação social — simplesmente não existe. Esta questão só pode surgir quando uma segunda pessoa, Sexta-feira, chegar à ilha. No entanto, mesmo assim, a questão permanece em grande parte irrelevante enquanto não existir escassez. Suponha que a ilha seja o Jardim do Éden. Todos os bens externos estão disponíveis em superabundância. Eles são “bens gratuitos”, assim como o ar que respiramos é normalmente um bem “gratuito”. O que quer que Crusoé faça com esses bens, suas ações não têm repercussões – nem com relação ao seu próprio suprimento futuro de tais bens nem em relação ao suprimento presente ou futuro dos mesmos bens para sexta-feira (e vice-versa). Portanto, é impossível que um conflito sobre o uso de tais bens possa surgir entre Crusoé e Sexta-feira. Um conflito só é possível se os bens forem escassos; e só então é necessário formular regras que tornem possível uma cooperação social ordenada e sem conflitos.

No Jardim do Éden existem apenas dois bens escassos: o corpo físico de uma pessoa e o lugar que ela está. Crusoé e Sexta-feira têm apenas um corpo e só podem ficar em um lugar de cada vez. Portanto, mesmo no Jardim do Éden podem surgir conflitos entre Crusoé e Sexta-feira: Crusoé e Sexta-feira não podem ocupar o mesmo lugar simultaneamente sem entrar em conflito físico um com o outro. Assim, mesmo no Jardim do Éden devem existir regras de conduta social ordenada – regras relativas à localização e movimento adequados dos corpos humanos. Fora do Jardim do Éden, no reino da escassez geral, deve haver regras que regulem o uso não apenas de corpos pessoais, mas de tudo o que é escasso, de modo que todos os possíveis conflitos possam ser eliminados. Este é o problema da ordem social.

 

II. A solução: a ideia de Propriedade Privada

Na história do pensamento social e político, inúmeras propostas foram oferecidas como soluções para o problema da ordem social, e essa multiplicidade de propostas mutuamente incompatíveis contribuiu para a crença generalizada de que a busca por uma única solução “correta” é fútil e ilusória. No entanto, existe uma solução correta. Não há razão para sucumbir ao relativismo moral. De fato, a solução para o problema da ordem social é conhecida há centenas de anos. A solução é a ideia de propriedade privada.

Deixe-me formular a solução primeiro para o caso especial representado pelo Jardim do Éden e, posteriormente, para o caso geral representado pelo mundo real de escassez geral.

No Jardim do Éden, a solução é dada pela regra simples que estipula que cada um pode colocar ou mover seu próprio corpo onde quiser, desde que ninguém mais esteja lá ocupando o mesmo espaço.

Fora do Jardim do Éden, no reino da escassez geral, a solução é fornecida por quatro regras logicamente inter-relacionadas:

  1. Cada pessoa é a proprietária privada (exclusiva) de seu próprio corpo físico. De fato, quem mais, senão Crusoé, deveria ser o dono do corpo de Crusoé? Sexta-feira? Ou Crusoé e Sexta-feira juntos? No entanto, isso não ajudaria a evitar conflitos. Em vez disso, criaria conflito e o tornaria permanente.
  2. Toda pessoa é proprietária privada de todos os bens dados pela natureza que ela percebeu como escassos e pôs em uso por meio de seu corpo, antes de qualquer outra pessoa. Novamente, quem mais, se não o primeiro usuário, deveria ser seu dono? O segundo usuário? Ou o primeiro e o segundo usuário em conjunto? No entanto, tais decisões novamente seriam contrárias ao próprio propósito das normas: ajudar a evitar o conflito, em vez de criá-lo.
  3. Qualquer pessoa que, com a ajuda do seu corpo e dos seus bens originalmente apropriados, produz novos produtos torna-se assim proprietário legítimo desses produtos, desde que, no processo de produção, não danifique fisicamente os bens pertencentes a outra pessoa.
  4. Uma vez apropriado ou produzido um bem, a sua posse só pode ser adquirida por meio de uma transferência voluntária e contratual do seu título de propriedade de um proprietário anterior para um posterior.

Posso me poupar aqui da tarefa de fornecer uma justificativa ética e econômica detalhada dessas regras. Isso foi feito em outro lugar. No entanto, algumas declarações a este respeito podem ser feitas.

Ao contrário da afirmação que ouvimos frequentemente de que a instituição da propriedade privada é apenas uma convenção, o seguinte deve ser categoricamente declarado: uma convenção serve a um propósito, e é algo para o qual existe uma alternativa. O alfabeto latino, por exemplo, serve ao propósito da comunicação escrita e existe uma alternativa a ele, o alfabeto cirílico. Por isso é chamado de convenção.

Mas qual é a finalidade das normas de ação? Se não existisse conflito interpessoal – isto é: se, devido a uma harmonia pré-estabilizada de todos os interesses, não surgisse nenhuma situação em que duas ou mais pessoas quisessem usar um e o mesmo bem de maneiras incompatíveis – então não seriam necessárias normas. O propósito das normas é ajudar a evitar conflitos que de outra forma seriam inevitáveis. Uma norma que gera conflito em vez de ajudar a evitá-lo é contrária ao próprio propósito das normas. É uma norma disfuncional ou uma perversão.

No que diz respeito ao objetivo de evitar conflitos, no entanto, a instituição da propriedade privada definitivamente não é apenas uma convenção, porque não existe alternativa a ela. Somente a propriedade privada (exclusiva) possibilita que todos os conflitos que de outra forma seriam inevitáveis ​​possam ser evitados. E somente o princípio da aquisição da propriedade por meio de atos de apropriação original, realizados por determinados indivíduos em um determinado momento e local, permite evitar o conflito desde os primórdios da humanidade, pois somente a primeira apropriação de algum bem anteriormente não apropriado pode ser livre de conflitos – simplesmente porque – per definitionem – ninguém mais teve qualquer relação anterior com o bem.

 

III. A execução da Ordem Social e a proteção da Propriedade Privada: o Estado

Por mais importante que seja essa percepção – que, dado o desiderato de evitar conflitos (paz), não há alternativa para a instituição da propriedade privada, em última análise fundamentada em atos de apropriação original – ela não é suficiente para estabelecer a ordem social. Pois mesmo que todos saibam como o conflito pode ser evitado, ainda é possível que as pessoas simplesmente não queiram evitar o conflito, porque esperam se beneficiar dele à custa dos outros.

De fato, enquanto a humanidade for o que é, sempre existirão assassinos, ladrões, assaltantes, bandidos e vigaristas, ou seja, pessoas que não agem de acordo com as regras acima mencionadas. Portanto, toda ordem social, para ser mantida com sucesso, requer instituições e mecanismos projetados para manter esses violadores de regras sob controle. Como realizar esta tarefa, e por quem?

A resposta padrão a essa pergunta é dizer que essa tarefa, ou seja, a aplicação da lei e da ordem, é o primeiro e principal dever – na verdade, a raison d’être – do Estado. Em particular, esta é a resposta também dada por liberais clássicos como meu próprio mestre intelectual, Ludwig von Mises. Se esta resposta está correta ou não depende de como “Estado” é definido.

O Estado, de acordo com a definição padrão, não é uma empresa regular e especializada. Em vez disso, é definido como uma agência caracterizada por dois traços únicos e logicamente conectados. Primeiro, o Estado é uma agência que exerce o monopólio territorial da tomada de decisão final. Ou seja, o Estado é o árbitro final em todos os casos de conflito, incluindo conflitos envolvendo ele mesmo. Não permite nenhuma apelação acima e além de si mesmo. Em segundo lugar, o Estado é uma agência que exerce um monopólio territorial de tributação. Ou seja, é uma agência que fixa unilateralmente o preço que os cidadãos devem pagar pelo serviço do Estado como juiz final e executor da lei e da ordem.

 

IV. O erro fundamental do “estatismo”

Por mais difundida que seja a visão padrão sobre a necessidade da instituição de um Estado como provedor da lei e da ordem, ela está em clara contradição com as leis e princípios econômicos e morais elementares.

Em primeiro lugar, entre economistas e filósofos existem duas proposições quase universalmente aceitas:

  1. Todo “monopólio” é “ruim” do ponto de vista dos consumidores. Monopólio é aqui entendido em seu significado clássico como privilégio exclusivo concedido a um único produtor de uma mercadoria ou serviço, ou como a ausência de “livre entrada” em uma determinada linha de produção. Apenas uma agência, A, pode produzir determinado bem ou serviço, X. Tal monopólio é “ruim” para os consumidores, pois, protegido de potenciais novos entrantes em determinada área de produção, o preço do produto será mais alto e sua qualidade inferior do que seriam sob livre concorrência.
  2. A produção da lei e da ordem, ou seja, da segurança, é a função primária do Estado (como acabamos de definir). A segurança é aqui entendida no sentido amplo adotado na Declaração de Independência Americana: como a proteção da vida, da propriedade e da busca da felicidade contra a violência doméstica (crime), bem como a agressão externa (estrangeira) (guerra).

Ambas as proposições são aparentemente incompatíveis entre si. No entanto, isso raramente causou preocupação entre filósofos e economistas e, na medida em que causou, a reação típica tem sido a de contestar a primeira proposição em vez da segunda. No entanto, existem razões teóricas fundamentais (e montanhas de evidências empíricas) de que é de fato a segunda proposição que está errada.

Como monopolista territorial da tomada de decisão final e aplicação da lei, o Estado não é apenas como qualquer outro monopólio, como um monopólio de leite ou carro que produz leite e carros de qualidade comparativamente mais baixa e preços mais altos. Em contraste com todos os outros monopolistas, o Estado não apenas produz bens inferiores, mas também “males” (não-bens). Na verdade, ele deve primeiro produzir males (como impostos) antes de poder produzir qualquer coisa que possa ser considerada um bem (inferior).

Se uma agência é o juiz final em todos os casos de conflito, então também é juiz em todos os conflitos envolvendo a si mesma. Consequentemente, em vez de meramente prevenir e resolver o conflito, um monopolista da tomada de decisão final também causará e provocará o conflito para resolvê-lo em seu próprio benefício. Isto é, se apenas se pode apelar ao Estado por justiça, a justiça será pervertida em favor do Estado, não obstante as constituições e os tribunais supremos.

Essas constituições e tribunais são constituições e tribunais estatais, e quaisquer limitações à ação estatal que possam estabelecer ou encontrar são invariavelmente determinadas por agentes da mesma instituição em consideração. Previsivelmente, a definição de propriedade e proteção será continuamente alterada e o alcance da jurisdição será expandido para a vantagem do Estado. A ideia de alguma lei eterna e imutável “dada” que deve ser descoberta desaparecerá e será substituída pela ideia de lei como legislação – como lei arbitrária, feita pelo Estado.

Além disso, como juiz final, o Estado também é monopolista da tributação, ou seja, pode unilateralmente, sem o consentimento de todos os afetados, determinar o preço que seus súditos devem pagar pela provisão estatal (pervertida) da lei. No entanto, uma agência de proteção à vida e à propriedade financiada por impostos é uma contradição em termos: uma protetora da propriedade expropriadora. Motivados, como todo mundo, pelo interesse próprio e pela desutilidade do trabalho, mas equipados com o poder único de tributar, os agentes do Estado invariavelmente se esforçarão para maximizar os gastos com proteção – e quase toda a riqueza de uma nação pode ser consumida pelo custo de proteção – e ao mesmo tempo para minimizar a produção real de proteção. Quanto mais dinheiro se pode gastar e quanto menos se deve trabalhar para isso, melhor será.

 

V. O erro composto: o Estado democrático

Além do erro fundamental do estatismo em geral, erros adicionais estão envolvidos no caso especial de um Estado democrático. Um tratamento detalhado deste assunto foi fornecido em outro lugar, mas é válido fazer uma breve menção.

A forma tradicional de estado pré-moderno é a de uma monarquia (absoluta). No entanto, a monarquia foi criticada, em particular também pelos liberais clássicos, por ser incompatível com o princípio básico da “igualdade perante a lei”. A monarquia, em vez disso, baseava-se no privilégio pessoal. Por isso, argumentavam os críticos da monarquia, o estado monárquico tinha de ser substituído por um estado democrático. Ao abrir a participação e o ingresso no governo estatal a todos em igualdade de condições, não apenas a uma classe hereditária de nobres, pensava-se que o princípio da igualdade de todos perante a lei havia sido satisfeito.

No entanto, essa igualdade democrática perante a lei é algo totalmente diferente e incompatível com a ideia de uma lei universal, igualmente aplicável a todos, em todos os lugares e em todos os momentos. De fato, a cisão indesejável e a desigualdade de uma lei superior dos reis versus uma lei subordinada dos súditos comuns é totalmente preservada sob a democracia na separação do direito “público” versus “privado” e a supremacia do primeiro sobre o último.

Sob a democracia, todos são iguais na medida em que a entrada no governo é aberta a todos em igualdade de condições. Todos podem se tornar reis, por assim dizer, não apenas um círculo privilegiado de pessoas. Assim, em uma democracia não existem privilégios pessoais ou pessoas privilegiadas. No entanto, existem privilégios funcionais e funções privilegiadas. Os funcionários públicos, desde que atuem em suas funções públicas, são regidos e protegidos pelo direito público e, assim, ocupam uma posição privilegiada em relação às pessoas que atuam sob a mera autoridade do direito privado.

Em particular, os funcionários públicos podem financiar ou subsidiar suas próprias atividades por meio de impostos. Ou seja, eles não obtêm, como todos os sujeitos ao direito privado devem obter, sua renda por meio da produção e posterior venda de bens e serviços para consumidores que compram ou deixam de comprar voluntariamente. Em vez disso, como funcionários públicos, eles têm permissão para se envolver e viver do que em relações privadas entre os sujeitos ao direito privado é considerado “roubo” e “pilhagem”. Assim, privilégio e discriminação legal – e a distinção entre governantes e súditos – não desaparecerão sob a democracia. Ao contrário. Em vez de ser restrito a príncipes e nobres, sob a democracia, os privilégios estarão disponíveis para todos: todos podem se envolver em roubos e viver do produto do roubo se ele se tornar um funcionário público.

Previsivelmente, então, sob condições democráticas, a tendência de todo monopólio da tomada de decisão final de aumentar o preço da justiça e diminuir sua qualidade e substituir justiça por injustiça não é diminuída, mas agravada. Como monopolista hereditário, um rei ou príncipe considera o território e as pessoas sob sua jurisdição como sua propriedade pessoal e se engaja na exploração monopolista de sua “propriedade”.

Sob a democracia, o monopólio e a exploração monopolista não desaparecem. Pelo contrário, o que acontece com a democracia é o seguinte: em vez de um príncipe e uma nobreza que consideram o país como sua propriedade privada, um zelador temporário e substituível é colocado no comando monopolista do país. O zelador não é dono do país, mas enquanto estiver no cargo, é permitido usá-lo em seu benefício e de seus protegidos. Ele é dono de seu uso atual – usufruto – mas não seu capital social. Isso não elimina a exploração. Ao contrário, torna a exploração menos calculista e realizada com pouca ou nenhuma consideração pelo capital social. A exploração torna-se imediatista e o consumo de capital será sistematicamente promovido.

 

VI. A solução: Sociedade de leis privadas em vez de estatais

Se o Estado, e especialmente o Estado democrático, é comprovadamente incapaz de criar e manter a ordem social; se, em vez de ajudar a evitar o conflito, o Estado for fonte de conflito permanente; e se, em vez de garantir segurança e previsibilidade jurídicas, o próprio Estado continuamente gera insegurança e imprevisibilidade por meio de sua legislação e substitui a lei constante por capricho “flexível” e arbitrário, então inevitavelmente surge a questão da solução correta – obviamente não-estatista – para o problema da ordem social.

A solução é uma sociedade de leis privadas, ou seja, uma sociedade em que cada indivíduo e instituição está sujeito a um único e mesmo conjunto de leis. Nenhuma lei pública concedendo privilégios a pessoas ou funções específicas (e nenhuma propriedade pública) existe nesta sociedade. Existe apenas a lei privada (e propriedade privada), igualmente aplicável a todos e a todos. Ninguém tem permissão para adquirir propriedade por qualquer meio que não seja através da apropriação original, produção ou troca voluntária, e ninguém possui o privilégio de tributar e expropriar. Além disso, em uma sociedade de leis privadas, ninguém pode proibir outra pessoa de usar sua propriedade para entrar em qualquer linha de produção que desejar e competir com quem quiser.

Especificamente em relação ao problema em questão: em uma sociedade de leis privadas, a produção de segurança – da lei e da ordem – será realizada por indivíduos e agências voluntariamente financiados que competem por uma clientela voluntariamente paga (ou não paga), da mesma forma que a produção de todos os outros bens e serviços.

Seria presunçoso prever a forma precisa da indústria de segurança emergente dentro da estrutura de uma sociedade de leis privadas. No entanto, não é difícil prever algumas mudanças centrais que fundamentalmente – e favoravelmente – distinguiriam uma indústria de segurança competitiva da atual produção estatista tão conhecida de (in)justiça e (des)ordem.

Em primeiro lugar, enquanto em uma sociedade complexa baseada na divisão do trabalho a autodefesa terá apenas um papel secundário (por razões ainda a serem explicadas), deve-se enfatizar desde o início que em uma sociedade de leis privadas o direito de cada um de se defender da agressão contra a pessoa e a propriedade é absolutamente indiscutível. Em nítido contraste com a atual prática estatista, que torna as pessoas cada vez mais desarmadas e indefesas contra agressores, em uma sociedade de leis privadas não existem restrições à propriedade privada de armas de fogo e outras armas. O direito elementar de todos de se engajar em autodefesa para proteger sua vida e propriedade contra invasores seria sacrossanto, e como se sabe pela experiência do Não tão Selvagem Oeste Selvagem bem como numerosas investigações empíricas recentes sobre a relação entre a frequência de posse de armas e taxas de criminalidade, mais armas implicam menos crime.

Assim como na complexa economia de hoje não produzimos nossos próprios sapatos, ternos e telefones, mas participamos das vantagens da divisão do trabalho, é de se esperar que também o façamos quando se trata de produção de segurança, especialmente quanto mais propriedade uma pessoa possui e mais rica a sociedade como um todo. Assim, a maioria dos serviços de segurança será sem dúvida fornecida por agências especializadas que competem por clientes que pagam voluntariamente: por várias agências privadas de polícia, seguros e arbitragem.

Se alguém quisesse resumir em uma palavra a diferença e a vantagem decisiva de uma indústria competitiva de segurança em comparação com a prática estatista atual, seria esta: contrato. O Estado, como último decisor e juiz, opera em um vácuo jurídico sem contrato. Não existe nenhum contrato entre o Estado e seus cidadãos. Não é contratualmente determinado o que realmente pertence a quem e o que, consequentemente, deve ser protegido. Não é determinado, qual serviço o Estado deve prestar, o que acontecerá se o Estado não cumprir seu dever, nem qual é o preço que o “cliente” de tal “serviço” deve pagar.

Em vez disso, o Estado determina unilateralmente as regras do jogo e pode alterá-las, por legislação, durante o jogo. Obviamente, tal comportamento é inconcebível para provedores de segurança financiados voluntariamente. Imagine um provedor de segurança, seja polícia, seguradora ou árbitro, cuja oferta consistisse em algo assim:

Eu não vou garantir nada contratualmente. Não lhe direi quais coisas específicas considerarei como sua propriedade a ser protegida, nem lhe direi o que me obrigo a fazer se, de acordo com sua opinião, não cumprir meu serviço a você – mas em qualquer caso, reservo-me o direito de determinar unilateralmente o preço que você deve me pagar por tal serviço indefinido.

Qualquer provedor de segurança desse tipo desapareceria imediatamente do mercado devido à completa falta de clientes. Em vez disso, cada produtor de segurança privado e financiado voluntariamente deve oferecer um contrato a seus clientes em potencial. E esses contratos devem, para parecer aceitáveis ​​para os consumidores que pagam voluntariamente, conter descrições claras da propriedade, bem como serviços e obrigações mútuos claramente definidos. Além disso, cada parte de um contrato, pela duração ou até o cumprimento do contrato, estaria vinculada aos seus termos e condições; e cada mudança de termos ou condições exigiria o consentimento unânime de todas as partes envolvidas.

Especificamente, para parecerem aceitáveis ​​para os compradores de segurança, esses contratos devem conter disposições sobre o que será feito em caso de conflito ou disputa entre o protetor ou seguradora e seus próprios clientes protegidos ou segurados, bem como em caso de conflito entre diferentes protetores ou seguradoras e seus respectivos clientes. E, a esse respeito, existe apenas uma solução mutuamente aceitável: nesses casos, as partes conflitantes concordam contratualmente com a arbitragem por um terceiro mutuamente confiável, mas independente.

E quanto a este terceiro, também é financiado voluntariamente e concorre com outros árbitros ou agências de arbitragem. Seus clientes, ou seja, as seguradoras e os segurados, esperam que ela chegue a um veredicto que seja reconhecido como justo e correto por todos os lados. Somente árbitros capazes de formar tais julgamentos terão sucesso no mercado de arbitragem. Árbitros incapazes e vistos como tendenciosos ou parciais desaparecerão do mercado.

Desta vantagem fundamental de uma sociedade de leis privadas decorrem todas as outras vantagens.

Em primeiro lugar, a competição entre policiais, seguradoras e árbitros por clientes pagantes traria uma tendência à queda contínua do preço da proteção (por valor segurado), tornando a proteção cada vez mais acessível, enquanto em condições monopolísticas o preço da proteção aumentará constantemente e será cada vez mais inacessível.

Além disso, como já indicado, proteção e segurança são bens e serviços que competem com outros. Se mais recursos são alocados para proteção, menos podem ser gastos em carros, férias, comida ou bebida, por exemplo. Além disso, os recursos destinados à proteção do grupo A (pessoas que vivem na parte leste do território) competem com os recursos despendidos na proteção do grupo B (pessoas que vivem na parte oeste).

O Estado, como monopolista de proteção financiado por impostos, necessariamente alocará recursos de forma arbitrária. Haverá superprodução (ou subprodução) de segurança em comparação com outros bens e serviços concorrentes, e haverá superproteção de alguns indivíduos, grupos ou regiões e subproteção de outros.

Em distinto contraste, em um sistema de agências de proteção que competem livremente, toda arbitrariedade de alocação (toda superprodução e subprodução) desapareceria. A proteção receberia a importância relativa que tem aos olhos dos consumidores que pagam voluntariamente, e nenhuma pessoa, grupo ou região receberia proteção à custa de qualquer outro. Cada um receberia proteção de acordo com seus próprios pagamentos.

A vantagem mais importante de uma produção privada da lei e da ordem baseada em contratos, no entanto, é de natureza qualitativa.

Em primeiro lugar, há o combate ao crime. O Estado é notoriamente ineficiente nesse aspecto, pois os agentes estatais incumbidos dessa tarefa são pagos com impostos, ou seja, independentemente de sua produtividade. Por que alguém deveria trabalhar se também é pago para não fazer nada?

De fato, pode-se esperar que os agentes do Estado tenham interesse em manter uma taxa de criminalidade moderadamente alta, pois assim podem justificar o financiamento cada vez maior. Pior ainda, para os agentes do Estado, as vítimas do crime e a indenização e compensação de tais vítimas desempenham um papel, na melhor das hipóteses, insignificante. O Estado não indeniza as vítimas do crime. Ao contrário, as vítimas prejudicadas são ainda mais humilhadas ao fazê-las, enquanto contribuintes, pagar pelo encarceramento e “reabilitação” do criminoso (caso ele seja capturado).

A situação em uma sociedade de leis privadas é inteiramente diferente. Provedores de segurança, seguradoras em particular, têm que indenizar seus clientes em caso de danos reais (caso contrário, eles não encontrariam clientes) e, portanto, devem operar com eficiência. Eles devem ser eficientes na prevenção do crime, pois a menos que possam prevenir um crime, eles teriam que pagar. Além disso, mesmo que um ato criminoso não pudesse ser impedido, eles devem ser eficientes na detecção e recuperação de coisas roubadas, pois caso contrário eles devem pagar para repor esses bens. Em particular, devem ser eficientes na detecção e apreensão do criminoso, pois somente se o criminoso for apreendido é possível fazê-lo pagar a indenização devida à vítima e, assim, reduzir seus custos.

Além disso, uma indústria de segurança privada, competitiva e baseada em contratos tem um efeito geral de promoção da paz. Os Estados são, como já explicado, agressivos por natureza. Eles podem causar ou provocar conflitos para depois “resolvê-los” em benefício próprio.

Ou, em outras palavras, como monopolistas da tomada de decisão final financiados por impostos, os Estados podem externalizar os custos associados ao comportamento agressivo para outros, ou seja, os infelizes contribuintes e, consequentemente, tenderão a ser mais agressivos em relação a seus própria população, bem como em relação aos “estrangeiros”.

Em distinto contraste, as seguradoras privadas concorrentes são, por natureza, defensivas e pacíficas. Por um lado, isso ocorre porque todo ato de agressão custa caro, e uma seguradora envolvida em conduta agressiva exigiria prêmios comparativamente mais altos, envolvendo a perda de clientes para concorrentes não agressivos mais baratos.

Por outro lado, não é possível assegurar-se contra todos os “riscos” concebíveis. Pelo contrário, só é possível assegurar-se contra “acidentes”, ou seja, riscos sobre cujos resultados o segurado não tem controle e para os quais ele não contribui. Assim, é possível fazer um seguro contra o risco de morte e incêndio, por exemplo, mas é impossível fazer um seguro contra o risco de cometer suicídio amanhã ou incendiar a própria casa.

Da mesma forma, é impossível assegurar-se contra o risco de falência do negócio, de desemprego ou de não gostar dos vizinhos, pois em cada caso se tem algum controle sobre o evento em questão. Mais significativamente, a não-segurabilidade de ações e sentimentos individuais (em contraste com acidentes) implica que também é impossível assegurar-se contra o risco de danos resultantes de sua própria agressão ou provocação prévia.

Em vez disso, cada seguradora deve restringir as ações de seus clientes para excluir toda agressão e provocação por parte deles. Ou seja, qualquer seguro contra desastres sociais, como o crime, deve depender da submissão do segurado a normas específicas de conduta civilizada e não agressiva.

Além disso, pelas mesmas razões e preocupações financeiras, as seguradoras tenderão a exigir que seus clientes se abstenham de todas as formas de justiça vigilante (exceto talvez em circunstâncias bastante extraordinárias), pois a justiça vigilante, mesmo se justificada, invariavelmente causa incerteza e provoca possível intervenção de terceiros. Ao obrigar os seus clientes a submeterem-se a procedimentos regulares anunciados sempre que se considerem vitimizados, estes distúrbios e custos associados podem ser amplamente evitados.

Por fim, vale a pena ressaltar que, embora os Estados, como agências financiadas por impostos, possam – e de fato – se engajam na prossecução em larga escala de crimes sem vítimas, como uso de “drogas ilegais”, prostituição ou jogos de azar, esses “crimes” tenderiam a ser de pouca ou nenhuma preocupação dentro de um sistema de agências de proteção voluntariamente financiadas. A “proteção” contra esses “crimes” exigiria prêmios de seguro mais altos, mas como esses “crimes” – ao contrário dos crimes genuínos contra pessoas e propriedades – não criam vítimas, muito poucas pessoas estariam dispostas a gastar dinheiro com tal “proteção”.

Mais ainda: enquanto os Estados, como já observamos, estão sempre e em todos os lugares ansiosos para desarmar suas populações e, assim, privá-las de um meio essencial de autodefesa, as sociedades de leis privadas são caracterizadas por um direito irrestrito à autodefesa e, portanto, por uma ampla posse privada de arma. Imagine um produtor de segurança que exigisse de seus clientes em potencial que eles primeiro precisassem se desarmar completamente antes de estar disposto a defender a vida e a propriedade dos clientes. Corretamente, todos pensariam nisso como uma piada de mau gosto e recusariam tal oferta.

As companhias de seguros voluntariamente financiadas que exigissem que seus clientes potenciais abrissem mão todos os seus meios de autodefesa como pré-requisito de proteção imediatamente levantariam a maior suspeita sobre seus verdadeiros motivos e rapidamente faliriam. Por seu próprio interesse, as companhias de seguros recompensariam os clientes armados, em particular aqueles capazes de certificar algum nível de treinamento no manuseio de armas, cobrando-lhes prêmios mais baixos refletindo o menor risco que representam. Assim como as seguradoras cobram menos se os proprietários tiverem um sistema de alarme ou um cofre instalado, um proprietário de armas treinado representaria um risco de seguro menor.

Por último e mais importante, um sistema de agências de proteção concorrentes teria um impacto duplo no desenvolvimento da lei. Por um lado, permitiria uma maior variabilidade da lei. Em vez de impor um conjunto uniforme de padrões para todos (como em condições estatistas), as agências de proteção poderiam competir umas com as outras não apenas pelo preço, mas também pela diferenciação do produto. Poderiam existir lado a lado, por exemplo, agências de proteção católicas ou seguradoras aplicando a lei canônica, agências judaicas aplicando a lei mosaica, agências muçulmanas aplicando a lei islâmica e agências aplicando lei secular de uma variedade ou de outra, todas elas sustentadas por uma clientela pagando voluntário. Os consumidores podiam escolher a lei aplicada a eles e à sua propriedade. Ninguém teria que viver sob lei “estrangeira”.

Por outro lado, o mesmo sistema de produção privada da lei e da ordem promoveria uma tendência à unificação e harmonização da lei. A lei “doméstica” — católica, judaica, romana, etc. — aplicar-se-ia apenas à pessoa e à propriedade daqueles que a escolheram. O direito canônico, por exemplo, se aplicaria apenas a católicos professos e trataria apenas de conflitos e resolução de conflitos intracatólicos.

No entanto, também é possível, é claro, que um católico entre em conflito com o contratante de algum outro código de lei, por exemplo, um muçulmano. Se ambos os códigos de lei chegaram à mesma conclusão ou a uma conclusão semelhante, não há problema. No entanto, se os códigos de lei concorrentes chegarem a conclusões distintamente diferentes (como chegariam pelo menos em alguns casos), surge um problema.

Nesse caso, a lei “doméstica” (intragrupo) seria inútil, mas naturalmente todo segurado também desejaria proteção contra a contingência de conflitos intergrupais. Nesta situação, não se pode esperar que uma seguradora e os contratantes de seu código de lei simplesmente subordinem seu julgamento ao de outra seguradora e sua lei. Pelo contrário, como já expliquei, nesta situação só existe uma saída viável e aceitável para esta situação: desde o início, cada seguradora teria de ser contratualmente obrigada a submeter-se a si e aos seus clientes à arbitragem por um terceiro independente. Este terceiro não seria apenas independente, mas ao mesmo tempo a escolha unânime de ambas as partes.

Seria acordado por causa de sua capacidade comumente percebida de encontrar soluções mutuamente aceitáveis ​​(justas) em casos de desacordo entre grupos. Se um árbitro falhasse nessa tarefa e chegasse a conclusões que fossem percebidas como “injustas” ou “tendenciosas” por qualquer uma das seguradoras ou seus clientes, essa pessoa ou agência provavelmente não seria escolhida como árbitro no futuro.

Como resultado da cooperação constante de várias seguradoras e árbitros, então, uma tendência à unificação do direito de propriedade e contratual e à harmonização das regras de procedimento, provas e resolução de conflitos seria desencadeada. Assim, ao adquirir um seguro de proteção, cada seguradora e segurado torna-se participante de um sistema integrado de prevenção de conflitos e manutenção da paz. Cada queixa de conflito e dano, independentemente de onde e por quem ou contra quem, cairia sob a jurisdição de uma ou mais agências de seguros específicas e seria tratada pela lei “doméstica” de uma seguradora individual ou pelas disposições legais e procedimentos da lei “internacional” ou “universal” acordadas por todos com antecedência.

Portanto, em vez de conflito permanente, injustiça e insegurança jurídica – como nas atuais condições estatistas – em uma sociedade de leis privadas, a paz, a justiça e a segurança jurídica prevaleceriam.

 

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