Não pode haver felicidade sem constância e prudência.[1]
– LÚCIO ANNAEU SÊNECA
Na frase indiscutivelmente verdadeira que não pode ser negada sem contradição, “Os humanos agem”, algo é assumido, algo é pressuposto, que merece uma atenção muito especial, mas muitas vezes é negligenciado ou mesmo questionado, e isso é propriedade – entendida como a propriedade de cada um sobre seu próprio corpo (autopropriedade) e a propriedade de bens externos adquiridos de maneira não agressiva. Essa afirmação será explicada e justificada com mais detalhes a seguir, com referência à argumentação a priori formulada pelos filósofos Karl-Otto Apel (1922-2017) e Jürgen Habermas (n. 1929).[2]
Argumentar significa afirmar algo com a intenção de convencer o interlocutor da veracidade ou falsidade de um fato.[3] Exemplos disso são “eu estou certo sobre isso” ou “tudo é incerto, e isso é certo”. Argumentar é uma forma particular e especial de ação humana. O que há de especial na frase “Os humanos argumentam” é que ela não pode ser contestada sem contradição. Aplica-se a priori; é evidente: qualquer um que diga: “Os humanos não argumentam”, está argumentando e assim contradiz o que foi dito.
A argumentação, como toda forma de ação humana, requer o uso de recursos escassos. No caso mais simples, quem argumenta tem que usar o corpo: para abrir a boca e fazer vibrar as cordas vocais. Portanto, qualquer um que discuta precisa pelo menos ser dono de seu próprio corpo, ser dono de si mesmo. Sem controlar seu próprio corpo, o ator não pode argumentar. A ação humana pressupõe necessariamente fisicalidade.
Mas aqueles que argumentam não pressupõem apenas autopropriedade para si mesmos. Eles também assumem isso para a pessoa com quem argumentam. Qualquer um que argumenta supõe que sua contraparte compartilha seus argumentos, os aprova em parte ou talvez até os rejeite. A pessoa com quem alguém argumenta também deve ter autopropriedade, pois, caso contrário, ela não pode argumentar – e já reconhecemos que alguém não pode não argumentar.
Se não podemos negar que o ator tem autopropriedade de seu próprio corpo sem cair em contradição, então a necessidade do ator de preservar seu corpo (como criado pela natureza) decorre diretamente disso. Para tanto, o ator deve ser capaz de adquirir bens externos, como alimentos, roupas e moradia. A propriedade – autopropriedade e posse de bens externos necessários para preservar o próprio corpo – pode, portanto, ser considerada sem contradição como uma categoria a priori da ação humana.
Nesse ponto, surge outra questão: como julgar a propriedade – a propriedade do próprio corpo e a propriedade de bens externos – do ponto de vista ético? A ética – também conhecida como filosofia moral – lida com a questão: o que é uma ação correta e como ela pode ser justificada? Pode ser uma surpresa, mas a economia tem mais a contribuir para a ética do que se poderia supor inicialmente. A ética encontra seu ponto de partida em uma constatação econômica irrevogável: que a vida humana ocorre na escassez.
Se não houvesse escassez de recursos a serem usados para ajudar esses ator a alcançar seus objetivos, questões éticas – como o que é certo, o que é errado – não surgiriam em primeiro lugar. Em tal mundo não haveria conflitos interpessoais. Por exemplo, se não houvesse escassez e o Sr. A consumisse uma banana, ele não diminuiria seu suprimento presente ou futuro de banana. O fato de consumir a banana também não limitaria o consumo atual e futuro de bananas pelo Sr. B e pela Sra. C. Mas a ação humana sempre ocorre – e isso é necessariamente assumido – sob escassez.
Num mundo de escassez, como pode o ator obter os bens necessários para que não haja conflito com a propriedade alheia? Isso só é possível de três maneiras não agressivas: (1) domesticação de recursos naturais que não foram previamente reivindicados por ninguém (“apropriação original”); (2) produção, ou seja, “misturar” o próprio trabalho com recursos naturais; e (3) troca voluntária, incluindo presentes. Qualquer um que se aproprie de bens de uma dessas três maneiras adquire propriedade sem violar a propriedade de seus semelhantes.
A ação humana caracterizada pelo respeito incondicional pela propriedade é eticamente aceitável? Para responder a essa pergunta, devemos primeiro considerar os requisitos a serem atendidos por uma regra ética da ação.[4] Em primeiro lugar, uma regra ética da ação deve aplicar-se igualmente a todos, em todos os momentos e em todos os lugares. Essa exigência é expressa, por exemplo, no imperativo categórico de Kant: “Aja apenas de acordo com aquela máxima pela qual você pode ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal”.[5] Além desse requisito de universalidade (“universalizabilidade”), uma regra ética deve, em segundo lugar, garantir que sua observância preserve a existência humana em princípio. Se isso não fosse garantido, mais cedo ou mais tarde não haveria necessidade de ética. Um exemplo: a regra “Todo mundo bebe cinco garrafas de schnapps por dia” pode, em princípio, se tornar o padrão para todos. Mas certamente não garantiria a sobrevivência de quem segue essa regra, mas sim a colocaria em perigo. Mas como, precisamente, pode e deve ser uma regra ética?
O economista e filósofo social norte-americano Murray N. Rothbard (1926-1995) tratou dessa questão. Com referência à argumentação da lei natural de John Locke (1632-1704), Rothbard desenvolve a seguinte linha de pensamento. Assumimos que existe o Sr. A e o Sr. B. No primeiro caso, o Sr. A é dono do Sr. B. Então, o Sr. A é o mestre e o Sr. B é seu escravo. Esta regra não pode ser ética. O Sr. A e o Sr. B podem muito bem sobreviver sob esta regra. Mas a regra não pode ser ética, porque obviamente há uma regra diferente para o Sr. A e para o Sr. B.
No segundo caso, o Sr. A e o Sr. B são proprietários um do outro: o Sr. A é proprietário do Sr. B ao mesmo tempo, o Sr. B é proprietário do Sr. A. Isso também não pode ser uma regra ética. Na verdade, aplica-se igualmente a ambos. Mas esta regra não pode garantir a sobrevivência dos Srs. A e B. Para poder fazer qualquer coisa, o Sr. A deve ter o consentimento do Sr. B. Mas o Sr. A não pode obtê-lo, porque o Sr. B, para que ele mesmo possa agir, deve primeiro obter e receber a aprovação do Sr. A. A regra de que cada um pertence ao outro, de que todos pertencem uns aos outros, leva à ruína de todos.
No terceiro caso, o Sr. A e o Sr. B são proprietários de si mesmos. Esta regra prova ser eticamente aceitável. Pode ser usada por qualquer pessoa, a qualquer hora e em qualquer lugar. Ela também garante, em princípio, a consideração de quem a ela adere. A ação humana, que se caracteriza pelo respeito absoluto à propriedade – entendida como autopropriedade e propriedade adquirida de forma não agressiva – preenche, assim, os requisitos da ação ética.
Rothbard deriva sua ética racional de uma consideração da lei natural. Não é de surpreender que essa “linha de argumentação” não tenha sido isenta de críticas. Hans-Hermann Hoppe (nascido em 1949) subsequentemente forneceu a posição de Rothbard, de que o respeito incondicional pela propriedade se qualifica como uma regra ética de ação, com uma justificativa a priori. Foi Hoppe quem – como explicado no início deste capítulo – conceituou a propriedade como uma categoria a priori da ação humana por meio de um raciocínio a priori. Que consequências epistemológicas isso tem nos ocuparão nos próximos capítulos. Antes disso, porém, queremos esclarecer a lógica da ação humana no sentido de uma metateoria. Isso é feito no capítulo seguinte.
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Notas
[1] Francis e Henry Hazlitt, The Wisdom of the Stoics (Lanham, MD: University Press of America, 1984), p. 15.
[2] Ver Karl-Otto Apel, “Das Apriori der Kommunikationsgemeinschaft und die Grundlagen der Ethik,” em Transformation der Philosophie, 2 vols. (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1973); e Jürgen Habermas, Moralbewußtsein und kommunikatives Handeln (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1983).
[3] Sobre esta questão, veja Hans-Hermann Hoppe, “Sobre a Justificação Última da Ética da Propriedade Privada,” em A Economia e a Ética da Propriedade Privada — Estudos em Economia Política e Filosofia (Auburn, AL: Ludwig von Mises Institute, 2006), pp. 339– 45, esp. 339 e segs. e “A Justiça da Eficiência Econômica”, em A Economia e a Ética da Propriedade Privada, pp. 331–38, esp. 331 e segs.
[4] Ver Murray N. Rothbard, A ética da liberdade (Nova York: New York University Press, 1998), pp. 45-50; veja também a introdução de Hoppe, esp. pp. xvi–xvii.
[5] Immanuel Kant, Crítica da Razão Prática (Stuttgart: Philipp Reclam jun., 1961), pp. 50, 54-55. Tradução em Kant, Fundamentos da Metafísica dos Costumes, trad. James W. Ellington (Indianapolis, IN: Hackett Publishing Company, 1993), p. 30