O STF revogou a exigência de diploma para o exercício da profissão de jornalista, uma excrescência imposta pela ditadura em 1969 com o intuito de controlar com mais rigor a divulgação de informações. Esse decreto de 69, não obstante tenha sido criado pelos militares para proteger seus próprios interesses, acabou agradando aos comunistas — que assim finalmente conseguiram proibir a livre expressão de ideias — e aos corporativistas da classe jornalística — que agora podiam repousar sobre seus diplomas sem preocupação alguma com a concorrência ou com o fornecimento de serviços de qualidade.
Não se trata aqui de elogiar a recente ação estatal. Afinal, o estado simplesmente retirou um empecilho — ou regulamentação, se preferir — que sequer deveria estar ali. É como se o Congresso votasse uma lei aprovando a regulamentação de blogs, dizendo que só pode criar um blog um indivíduo com curso superior em determinada área. Derrubar tal idiotice seria apenas um ato de correção.
Porém, como era de se esperar, a guilda foi às ruas protestar em defesa de sua reserva de mercado. Sob a atual legislação brasileira, qualquer diploma é justamente isso: a garantia de uma reserva de mercado. Falaremos sobre isso mais adiante.
Estudantes, professores e graduados em jornalismo ameaçaram protestar queimando seus diplomas, pois “estavam se sentindo desprestigiados pelo governo”. Mas os reais motivos do esperneio são dois: 1) a perda da reserva de mercado e o concomitante aumento da concorrência; e 2) a sensação de terem sido enganados pelo governo.
A primeira razão, embora moralmente condenável, é compreensível. Afinal, as pessoas simplesmente não gostam de concorrência. Se você é o dono da única padaria do seu bairro, você ficaria muito preocupado se algum concorrente abrisse outra padaria perto da sua. Caso fosse possível, você faria de tudo para impedir que esse concorrente se estabelecesse ali, roubando sua clientela. Em um livre mercado, você tem duas armas com as quais lutar contra seu rival: ou você diminui seus preços ou você melhora seus serviços. No extremo, você pode escolher uma combinação dos dois. O que é garantido é que nesse cenário quem se beneficiaria seria o consumidor — o verdadeiro patrão em um livre mercado. Qualquer empreendedor que queira ter sucesso no livre mercado sabe perfeitamente bem que isso só será possível caso ele trate seu patrão, o consumidor, com bastante consideração. Aliás, essa é a beleza do livre mercado. Não importa se o sujeito é o empregado de uma empresa ou se ele é o dono dela: no final, ambos têm o mesmo patrão, o consumidor; e a ele devem gratidão e trabalho duro, como qualquer empregado deve a seu patrão.
Porém, em um mercado regulamentado, sempre existe a opção mais fácil: correr para o governo e utilizá-lo como meio de coerção para impedir a concorrência. A obrigatoriedade do diploma — para qualquer profissão — faz justamente isso. Após 4, 5 ou 6 anos de faculdade, você imagina que, uma vez obtido o canudo, o futuro será brilhante. Nada de se preocupar com a concorrência dos “lá de baixo”, aquela casta ignorante e inferior que se pretende alguma sapiência. De agora em diante, você é um ser diferenciado. Aquele canudo vai-lhe abrir todas as portas e garantir-lhe bons proventos. Quem não passou pelo mesmo processo que você simplesmente deve ser proibido da ousadia de querer ofertar o mesmo serviço que o seu.
Desnecessário dizer que a livre concorrência não apenas é algo eficaz e saudável, como também é, do ponto de vista moral, um arranjo intrinsecamente superior a qualquer outro. E isso é assim desde tempos imemoriais — basta ler o episódio bíblico de Marta e Maria (ou mesmo o de Esaú e Jacó). Portanto, por se tratar de um processo antigo e extremamente natural, qualquer tentativa de coibi-lo não tem como resultar em um arranjo mais salutar para todos. Sempre alguns poucos privilegiados irão ganhar em detrimento dos vários outros desafortunados. É assim que se criam “as desigualdades sociais”, se for para usar um termo mais populista e bem na moda.
Já o segundo motivo do esperneio — o fato de essas pessoas terem se sentido enganadas pelo governo — é mais complexo. De certa forma, elas estão corretas. O governo, ao decretar que você é obrigado a ter um diploma para trabalhar em determinadas áreas, está de fato obrigando-lhe a cursar mecanicamente alguma faculdade. As pessoas hoje não buscam um curso superior porque estão atrás de cultura (o que, aliás, dificilmente encontrarão em uma universidade); elas buscam o ensino superior justamente porque o estado decretou que elas só poderão trabalhar em troca de um bom salário se tiverem obtido algum diploma em uma área qualquer.
Faça o leitor uma pesquisa informal: observe as pessoas bem sucedidas à sua volta. As chances de elas estarem trabalhando em uma área diferente daquela em que elas se formaram são enormes. É raro encontrar uma pessoa bem sucedida — isso é, que goste daquilo que faz e que viva bem em decorrência disso — que trabalhe justamente naquilo em que se formou.
Ou seja: o estado impôs a perda de tempo e dinheiro em detrimento do aprendizado verdadeiro. E o pior: mal acostumou toda a atual geração, que se acostumou a exigir “direitos”.
Funciona assim: o estado determina que você tem de ter um diploma caso queira seguir uma determinada carreira. Você, então, passa a ser obrigado a perseguir um curso superior. Inevitavelmente serão entre 4 e 6 anos de bons momentos, festas, muita farra e muitos pileques. O seu objetivo é apenas ser aprovado nas matérias (em sua maioria, inúteis) e pôr as mãos no sonhado diploma. A esperança é que, dali pra frente, o futuro será promissor, uma vez que sua reserva de mercado estará garantida. E então o futuro chega e, surpresa!, a coisa não é nada auspiciosa. Todas as regulamentações e tributações governamentais criaram um mercado de trabalho rígido. Você, no máximo, encontra um emprego que paga um pouco melhor que um estágio, porém que exige muito mais; e, na maioria das vezes, você descobre que não é bem aquilo que queria. Você se sente enganado. Começa então a gritar por “direitos”. Começa a achar que, só porque cursou faculdade e tem um diploma, tem “direito” a emprego e salário bons. Porém, assim como você, há vários outros na mesma situação. E o mercado de trabalho é regulado demais para conseguir absorver toda essa mão-de-obra. Solução: você tenta encontrar maneiras de restringir o acesso da concorrência não diplomada. A maioria desiste e vai tentar concurso público — afinal, o indivíduo reage a incentivos; e os incentivos salariais do setor público são tentadores demais para ser rejeitados.
No caso dos estudantes de jornalismo, a decepção é maior. Além de um mercado com poucas vagas, eles perderam a reserva de mercado que o estado havia lhes prometido — que, em última instância, foi o que os levou a investir tempo e dinheiro nesse curso. Aqueles que estudaram em faculdade particular, então, foram ainda mais prejudicados. Além dos dois contratempos acima, também tiveram de custear seus estudos.
O que praticamente ninguém — independente do curso que faz — ainda entendeu é que, a partir do momento em que um bem (educação superior) é decretado obrigatório pelo estado, tem-se o cenário perfeito para a formação de cartéis. E o que temos no Brasil é isso: um cartel universitário mantido pelo estado. O serviço de educação superior — ao contrário de um restaurante, por exemplo — tornou-se algo obrigatório. Você só se torna alguém se tiver perdido no mínimo quatro anos de sua vida sendo estupidificado por aqueles estabelecimentos chancelados pelo estado. As universidades não precisam se esforçar para conseguir atrair alunos. Elas sabem que, de um jeito ou de outro, eles terão de procurá-las. Agora então com a expansão do ProUni a situação ficou ainda melhor para elas. O lucro é garantido, mesmo que os serviços prestados estejam em queda livre. Não há a disciplina imposta pelo livre mercado — aquela disciplina que garante a qualidade da comida dos restaurantes.
É por isso que está errada a discussão que alguns pretensos liberais gostam de travar sobre a privatização de universidades públicas. A discussão não deve ser sobre universidade pública versus universidade privada. Não. Os reais defensores da liberdade devem defender o fim da obrigatoriedade do diploma para o exercício de todasas profissões. Fazendo isso, a imensa maioria dos cursos universitários perderá seu sentido. Ninguém vai perder tempo e dinheiro sendo doutrinado e estupidificado em cursos de ciências humanas, por exemplo. O diploma será apenas um acessório adicional, que pode ou não fazer a diferença. Hoje, com a quase universalização da internet, qualquer um está preparado para estudar por conta própria, desde que esteja munido do impulso genuíno para tal.
Cursos que exigem aulas práticas, como engenharia, medicina, odontologia, agronomia e veterinária continuariam sendo ofertados privadamente por universidades. A concorrência entre elas garantiria preços baixos e alta qualidade de ensino. Nada impediria também que profissionais experientes e já treinados pelo real mercado oferecessem cursos particulares em determinadas matérias de determinadas áreas. Por exemplo, se um indivíduo está estudando autonomamente engenharia e estivesse com dificuldades em análise estrutural, ele poderia procurar especialistas no assunto para sanar suas dúvidas, sendo que esses especialistas — justamente por estarem em busca do lucro — teriam de ter instalações adequadas para ministrarem suas aulas. Esse arranjo seria perfeitamente organizado pelo mercado, da mesma forma que pessoas que querem aprender mandarim procuram centros especializados no ensino do idioma.
“Ah, mas esse cenário seria uma catástrofe! Na ausência da obrigatoriedade do ensino superior, teríamos cirurgiões operando pessoas sem diploma, engenheiros construindo pontes e edifícios sem nenhum preparo e dentistas manuseando perigosamente seus boticões! Imagina o perigo!”
Em primeiro lugar, é bom deixar claro que pessoas diplomadas também cometem erros crassos, principalmente em medicina e engenharia. Em segundo, as pessoas que querem seguir essas áreas podem sim obter um diploma e utilizá-lo como diferencial no mercado. Mas nada impediria que os não diplomados também tentassem mostrar sua competência. A chave de tudo, mais uma vez, chama-se concorrência. É isso que determinaria a qualidade dos serviços. Ademais, as próprias entidades de classe poderiam — no interesse da defesa de sua própria imagem — criar registros com os nomes das pessoas de fato capacitadas para determinados serviços. Seria do interesse dela fazer com que os profissionais da sua área fossem os melhores. Afinal, um profissional ruim mancharia toda a reputação da classe. Essa solução privada já existe hoje em várias áreas — a Microsoft solta certificados de qualificação de programação que o mercado exige; a SAP também. Da mesma forma, o CREA e seus concorrentes provavelmente teriam de instituir certificações para engenheiros, arquitetos, etc. Na área médica, hospitais e empresas de seguro saúde também seriam forçadas pelo mercado a instituir suas certificações próprias.
Sim, hoje existem os conselhos federais. Porém, estas são também entidades coercivas, pois utilizam o estado para impedir justamente os não diplomados de exercerem sua profissão.
Já aqueles cursos “puramente teóricos”, como filosofia, direito, economia, psicologia, ciências sociais, matemática, estatística, história, geografia, física, fonoaudiologia e até mesmo ciência da computação, dificilmente seriam ofertados em grande escala como são hoje, pois não é necessário ter um exército de professores cuja única função é escrever no quadro e indicar livros-texto. Não haveria demanda para um serviço tão básico. Os interessados poderiam perfeitamente se virar para conseguir a educação necessária, seja através de cursos particulares, seja através do autodidatismo. De novo: com a expansão da internet, o indivíduo não tem desculpa para não ser capaz de montar sua própria bibliografia.
Há também o fato de que a maioria das pessoas hoje freqüenta universidades sem ter a mínima noção do que querem. Estão lá ou porque são obrigados ou porque a educação é “gratuita”, no caso das universidades públicas. Dinheiro público e recursos escassos estão sendo desperdiçados em pessoas que estão lá apenas para matar o tempo e farrear — tudo por causa de uma estúpida imposição estatal. E mesmo para as que se formam, fica a pergunta: formaram-se em quê? Muito provavelmente ganharam um diploma para nada, pois dificilmente a universidade fornece o treino necessário exigido pelo mercado. O indivíduo fica lá por anos e sai sem saber fazer absolutamente nada de prático. Seria muito mais negócio se essas pessoas abandonassem a universidade e fossem trabalhar direto na área de que gostam. O aprendizado seria muito melhor, mais rápido e mais proveitoso. No caso específico do jornalismo, não é raro ouvirmos relatos de um foca que aprendeu mais em três meses de redação do que nos quatro anos do curso.
Finalmente, outro empecilho que deve ser abolido é a proibição do homeschooling (o ensino em casa). É do ambiente familiar que nasce o genuíno impulso para a educação; se os pais não conseguem estimular seus filhos para tal, não serão os burocratas do Ministério da Educação (que, em última instância, são quem determinam os currículos) que o farão. Educação é uma conquista pessoal e ninguém se educa por mera obrigação, contra a própria vontade e sob pressão externa. Com o homeschooling, as escolas, principalmente as particulares, ficariam mais vazias. Essa queda na demanda levaria a uma queda nos preços, possibilitando a matrícula de alunos filhos de pais menos endinheirados. Vale deixar claro que as mensalidades escolares são caras hoje porque as escolas também são um serviço que foi tornado obrigatório pelo estado. Se um serviço tem demanda obrigatória, é natural que os preços subam constantemente. Liberando-se o homeschooling, as escolas teriam de concorrer mais entre si em busca dos alunos remanescentes. Maior concorrência é igual a preços menores e serviços melhores.
Enfim, haveria várias maneiras de o mercado fazer uma triagem, passar um pente-fino, nos pretensos profissionais de cada área. O que se pode garantir é que, sem o protecionismo estatal, tal seleção seria muito mais eficiente que a atual. Como Lucas Mafaldo explicou cristalinamente:
Não é preciso provar a importância da competição. Quando abrimos as portas de entrada de um mercado, abrimos também a porta para a inovação e produtividade. Sem a proteção do Estado, os empreendedores precisam competir para melhor servir o cliente, e melhorar o processo de certificação, o que invariavelmente passa por uma combinação de dois mecanismos: melhorar a qualidade do serviço e baixar seu custo.
Remover a obrigatoriedade do diploma para o exercício de determinadas profissões abriria a porta para os diplomados competirem com os não-diplomados. Isso forçaria os portadores de diploma a mostrar resultados, impedindo-os de descansar sobre seus títulos. Isso também criaria um incentivo para os alunos escolherem apenas as universidades que realmente os preparassem para o mercado de trabalho de trabalho. As universidades teriam um incentivo para cortar toda a “gordura” de seus currículos, deixando apenas aquilo que realmente aumentasse a eficiência profissional dos seus alunos.
E, principalmente, com o aumento da competição, os consumidores veriam a qualidade dos serviços subirem e os preços caírem. Precisamos de diplomas, mas eles não precisam ser obrigatórios. Se alguém realmente quiser ajudar o consumidor, o primeiro passo é abolir as reservas de mercado criadas pelas licenças dos conselhos profissionais — e a obrigatoriedade do diploma é apenas uma delas.
A pergunta a ser respondida pelos protecionistas: por que temem tanto a liberdade e a concomitante responsabilidade própria que esta impõe?