Juros, preferência temporal e ciclos econômicos

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indecision2O que você prefere: ter uma televisão LCD agora ou só daqui a cinco anos?  Um laptop hoje ou só daqui a sete anos?  Uma barra de ouro agora ou daqui a uma década?  Caso você saiba dirigir e goste da liberdade de viajar segundo seu próprio horário, você preferiria ter um carro hoje ou só daqui a dez anos, e ficar andando de ônibus até lá?

Embora as respostas para as perguntas acima pareçam muito óbvias, sua implicação para toda a teoria econômica é incomparável.  Trata-se da manifestação de um princípio básico da ação humana: o homem prefere o usufruto de um bem no presente ao usufruto desse mesmo bem no futuro.  Esse é conceito da preferência temporal.

É esse fenômeno natural que explica por que os bens presentes possuem um valor maior, um prêmio, em relação aos bens futuros – e é esse fenômeno que fornece a origem e a justificativa para o pagamento de juros.

O fenômeno da preferência temporal, que é observável em inúmeros aspectos da vida humana, é na verdade uma simples questão de bom senso: o homem prefere uma dada quantia de um bem no presente à mesma quantia desse bem no futuro.  Mais ainda: somente uma maior quantia desse bem no futuro pode persuadir o homem a abrir mão desse bem no presente.

Afinal, as pessoas não tratam uma dada quantia de um bem no presente e a mesma quantia desse mesmo bem daqui a alguns anos como sendo o mesmo bem.  Por exemplo, mesmo que não houvesse inflação, as pessoas não consideram 100 reais hoje e 100 reais daqui a dez anos como sendo o mesmo bem.  Do ponto de vista econômico, são dois bens diferentes.

Qualquer um que se recuse a reconhecer o fenômeno da preferência temporal está absolutamente incapacitado para entender fenômenos econômicos básicos.  Por exemplo, uma indústria pode aumentar sua produtividade e a qualidade de seus produtos caso ela adote um processo de produção mais longo, mais metódico e, consequentemente, mais demorado.  Se a preferência temporal não existisse, todas as indústrias poderiam optar por esse procedimento, preferindo o processo de produção que gerasse a maior quantidade de produtos sem se preocupar com quanto tempo isso iria levar.  O fato de as indústrias nem sempre procederem assim é um exemplo da preferência temporal em ação.  Como explicou Mises, é a preferência temporal que

“explica por que métodos de produção menos demorados são escolhidos, não obstante o fato de que métodos mais demorados gerariam um maior produto por unidade de insumo”.

Outro exemplo prático da preferência temporal em ação, e do qual poucas pessoas se dão conta, é o preço de um pedaço de terra.  Se a preferência temporal não existisse, o preço de qualquer pedaço de terra produtivo seria infinito.  Por quê?  Porque se não levássemos em conta a existência da preferência temporal, esse pedaço de terra teria de ter hoje o mesmo valor que teria no futuro, após ter produzido várias colheitas.  Assim, o preço da terra hoje teria de ser igual à soma de toda a sua produção durante todo o período futuro até o fim dos tempos.  Assim, se fosse estimado que um determinado pedaço de terra pode gerar uma produção de 100.000 reais por ano, alguém que fosse comprar essa terra teria de pagar um valor equivalente a 100.000 multiplicado pelo tanto de anos que ele estimasse que faltaria para o mundo acabar a partir do momento da sua compra.  O fato de ninguém precificar as coisas dessa forma indica a existência de preferência temporal.

Aplicações

Tendo entendido a inevitabilidade da preferência temporal, o fenômeno dos juros fica mais claro.  Como um bem futuro tem menos valor pra você do que esse mesmo bem no presente, você só irá aceitar abrir mão desse bem no presente caso lhe seja prometida uma quantia maior desse mesmo bem no futuro.

Por exemplo, suponha que você é o único habitante de uma pequena cidade a ter um laptop, o qual você usa diariamente.  Eis que surge um empreendedor local e lhe pede emprestado esse laptop por, digamos, três anos, para que ele possa utilizá-lo como capital para fazer algum investimento.  Você só vai aceitar abrir mão do seu laptop por três anos caso esse empreendedor lhe prometa pagar, após esse período de três anos, um valor que seja maior do que o valor presente do seu laptop.  O mais natural é que você exija, além da devolução do laptop, o pagamento de um valor adicional (se ele vai pagar em dinheiro ou qualquer outro bem que você queira é o de menos).  O fato é que você quer ser recompensado por ter de abrir mão do seu laptop no presente.

Agora, suponha que você tenha dois laptops e esse empreendedor lhe peça emprestado apenas um.  Nesse cenário, é provável que a recompensa que você cobre por esse empréstimo seja menor que no primeiro caso – afinal, você tem um laptop sobressalente, e não vai ficar de todo desprovido de seu capital.  Ou seja, como havia uma maior abundância de capital (laptop) a ser emprestado, o preço cobrado pelo empréstimo de uma unidade foi menor.  O custo de se abrir mão dessa segunda unidade é menor do que no primeiro caso.  Consequentemente, quanto maior for seu capital disponível para ser emprestado, menor o valor que você exigirá por abrir mão de cada unidade.

Expandindo esse exemplo para a economia de toda a cidade, fica mais fácil perceber como a preferência temporal coordena os juros e como isso se reflete no processo de crescimento econômico.  Por exemplo, imagine que os habitantes da cidade são indivíduos poupadores – isto é, são indivíduos que consomem muito pouco.  O fato de eles consumirem pouco significa que eles estão mais voltados para o futuro.  Logo, a preferência temporal deles é menor.  Eles não são tão ávidos para desfrutar bens no presente.  Estão dispostos a algum sacrifício (poupança sempre é sacrifício) para adiar o usufruto desses bens.

Justamente por consumirem pouco, por terem uma preferência temporal baixa, eles permitem que haja mais bens disponíveis para ser emprestados e aplicados em processos de investimento.  Uma preferência temporal baixa gera uma maior abundância de bens livres para ser emprestados.

Assim, suponhamos que uma grande empresa dessa cidade queira iniciar um grande empreendimento – por exemplo, a construção de um shopping.  Para fazer esse investimento, a empresa vai precisar de uma grande disponibilidade de capital: desde cimento, argamassa e tijolo até tratores, escavadeiras, caminhões, maquinário pesado etc.  Quanto maior for a poupança das pessoas desta cidade, isto é, quanto menos elas tiverem consumido, maior será a disponibilidade desses elementos (afinal, aquilo que não é consumido é poupado).  E quanto maior essa disponibilidade, menor o preço cobrado pelo uso de cada unidade deles.  Logo, a baixa preferência temporal das pessoas dessa cidade gerou uma maior poupança – isto é, mais capital disponível para empréstimo -, o que fez com que fossem menores os juros exigidos por cada unidade de capital.

Nesse cenário – observe que ainda não estamos lidando com dinheiro – a poupança disponível é genuína.  A empresa que vai fazer o empreendimento sabe com antecedência qual a real quantidade de capital disponível para ela utilizar em sua obra, bem como quanto terá de pagar pelo uso desse capital.  O cenário observado é o cenário real; não houve manipulações.  A quantidade de capital disponível (poupado) é aquela realmente observada.  Assim, a empresa estará apta a calcular corretamente quanto capital está disponível para ser usado e quanto irá gastar para adquiri-lo.  Caso esteja dentro do orçamento, a obra será empreendida sem sustos e, ao ser finalizada, haverá consumidores aptos para consumir os bens gerados por ela, pois pouparam para isso.

Agora imagine que essa cidade, contrariamente ao exemplo anterior, seja povoada por pessoas com alta preferência temporal – ou seja, voltadas para o presente.  São pessoas consumistas, avessas à poupança.  Querem o máximo possível para hoje.  Nesse caso, o capital disponível foi quase todo exaurido (quase todos os tijolos e cimentos já foram usados, os tratores e as escavadeiras estão gastos, os caminhões estão dilapidados, há poucos laptops disponíveis para rodar os programas de cálculo estrutural etc.).  É óbvio que, nesse cenário, não há capital disponível para sustentar um investimento vultoso como a construção de um shopping.  A empresa que fosse fazer tal empreendimento rapidamente seria demovida da ideia ao ver a escassez de capital disponível.  Essa escassez de capital – consequência natural da alta preferência temporal das pessoas – se traduziria em um alto preço (juros) cobrado pelo uso do pouco capital que ainda resta, pois a empresa estaria disputando o uso desse escasso capital com os moradores consumistas, que cobram um preço muito alto para deixar de usá-los.

Em ambos os casos, a introdução do dinheiro em nada muda o raciocínio.  O fato de as pessoas terem baixa preferência temporal, como no primeiro caso, se traduz em mais dinheiro disponível para empréstimo.  O fato de haver mais dinheiro disponível para empréstimo é consequência de ter havido pouco consumo.  Logo, há uma relação direta entre a quantidade de dinheiro poupada (disponível para empréstimos) e quantidade de bens disponíveis no mercado.  Portanto, nesse caso, a empresa que quer construir o shopping não precisa ir a campo para pesquisar qual a real disponibilidade de bens capital (ferramentas) para sua obra – tudo o que ela precisa fazer é ver qual a taxa de juros monetários cobrada para empréstimos.  Essa taxa de juros será um retrato fiel da real disponibilidade de poupança (bens de capital).

O mesmo é válido para o segundo caso.  A alta preferência temporal das pessoas resulta em mais consumo e menos dinheiro disponível na poupança, o que consequentemente significa menos bens de capital disponíveis para serem utilizados em investimentos.  Por haver menos dinheiro na poupança, os juros cobrados para empréstimos serão altos, sinalizando a inviabilidade do investimento.

Ambos os cenários relatados acima mostram como os juros funcionariam num ambiente de genuíno livre mercado, onde não há manipulações monetárias, não há criação de dinheiro e não há manipulação de juros por parte de alguma autoridade governamental.  Os juros monetários vigentes na economia representariam fielmente a real disponibilidade de bens de capital que podem ser utilizados em investimentos.  Da mesma forma, os juros também sinalizariam o poder de consumo da população: uma baixa taxa de juros estaria indicando que as pessoas têm dinheiro poupado e, consequentemente, poderão consumir mais no futuro (o que tornam viáveis investimentos de longo prazo).  Uma alta taxa de juros estaria indicando que as pessoas não têm dinheiro poupado e, consequentemente, não poderão consumir muito no futuro (o que inviabilizaria os investimentos de longo prazo.  Afinal, quem iria consumi-los?).

Assim, em um livre mercado, a taxa de juros – que é formada pela preferência temporal das pessoas – coordena automaticamente a alocação de recursos na economia.  Não haveria como haver investimentos errôneos simplesmente porque estes seriam caros demais para ser iniciados.  Um investimento de longo prazo só seria empreendido se os juros vigentes indicassem haver uma possibilidade de lucros futuros.

Como explicou Rothbard,

“Em um mercado livre e desimpedido, a taxa de juros é determinada puramente pelas preferências temporais de todos os indivíduos que compõem a economia de mercado. A essência de um contrato de empréstimo é que um “bem presente” (dinheiro que pode ser usado no momento) está sendo trocado por um “bem futuro” (um título de dívida que só poderá ser utilizado em um dado momento futuro).  Como as pessoas sempre preferem ter o dinheiro agora ao invés da perspectiva de receber a mesma quantia em algum momento futuro, o bem presente sempre exige um prêmio no mercado em relação ao bem futuro.  Este prêmio é a taxa de juros, e seu valor irá variar de acordo com o grau em que as pessoas preferem o presente em relação ao futuro, ou seja, o grau de suas preferências temporais.”

Como atrapalhar tudo

Insatisfeitos com a baixa taxa de poupança da população do segundo exemplo, os políticos locais criam uma entidade poderosa o suficiente para fazer parecer com que haja mais capital disponível para o empreendimento do que realmente há.

Essa entidade, que vamos chamar aqui de banco central, é dotada do monopólio da criação de moeda, sendo que ela pode alterar toda quantidade de dinheiro da economia a bel-prazer.

Assim, para evitar que a empresa que quer construir o shopping desista da ideia por causa da escassez de poupança (e dos juros altos, que é a consequência natural), o banco central imprime dinheiro e o injeta no sistema bancário.  Essa maior oferta de dinheiro irá fazer com que o preço dele (os juros) caia.

Consequentemente, animada com essa queda nos juros, a empresa agora passa a achar que vale a pena fazer a construção do shopping – afinal, o investimento ficou barato e certamente trará lucros futuros.  As obras começam.

Mas há aí um severo desequilíbrio econômico: a preferência temporal dos habitantes continua alta e eles continuam consumindo muito no presente – logo, há menos bens de capital do que os juros fazem supor e, de quebra, a empresa terá de disputar com a população consumista esses bens de capital.

No início do processo, a sensação é de prosperidade.  A empresa está contratando, empregando gente, pagando salários e consumido bens de capital.  Os fornecedores ficam animados, pois veem um aumento das encomendas e de sua renda.  O crescimento econômico parece sustentável.

Com o passar do tempo, os desequilíbrios vão ficando evidentes.  A escassez de bens de capital começa a ficar aparente.  Os preços deles sobem.  Essa subida de preços faz com que a empresa tenha de obter mais empréstimos para continuar adquirindo esses bens de capital.  Com isso, os juros sobre os empréstimos sobem.  O empreendimento vai ficando cada vez mais inesperadamente caro.  Os bens de capital estão cada vez mais escassos.  A espiral escassez de bens/aumento dos juros vai se tornando mais intensa.  Até que a empresa desiste e interrompe o investimento.  Os trabalhadores são demitidos e os fornecedores são dispensados.  A aparente prosperidade econômica revelou-se insustentável.  Capital e mão-de-obra foram desviados para um investimento que não deveria estar ocorrendo.  O aumento do desemprego é inevitável.  Instala-se a recessão, que é o período de se corrigir esse desequilíbrio.

A fonte do problema é que a empresa iniciou um investimento voltado para o longo prazo na crença de que havia capital suficiente para finalizá-lo.  Os juros artificialmente baixos levaram-na a crer que havia poupança disponível tanto para financiar as obras quanto para permitir que os consumidores futuramente pudessem consumir o produto final.  Mas não havia nem uma coisa nem outra.

Tudo que havia era mais papel-moeda na economia.  Mas aumentar o dinheiro na economia não faz com que surjam mais bens de capital para se fazer os investimentos.  O aumento do volume de dinheiro apenas faz com que os juros monetários caiam sem que tenha havido um simultâneo aumento na poupança.  O desequilíbrio econômico passa a ser inevitável.

Não tivesse havido essa manipulação monetária, não teria por que se iniciar tal investimento.

Finalizando

Como vimos, os juros são fenômenos naturalmente oriundos da preferência temporal dos indivíduos.  Em um genuíno livre mercado, os juros sinalizam a quantidade de poupança genuinamente disponível.  Por ‘poupança’ entenda a quantidade de bens que não foram consumidos e que, portanto, estão disponíveis para serem utilizados em investimentos.  Mesmo em uma economia monetária os juros continuam sendo oriundos da preferência temporal das pessoas.  Quanto maior a poupança, maior a disponibilidade de bens e menor os juros monetários.  A quantidade de dinheiro poupada passa a ser um reflexo da abundância de bens.  A existência do dinheiro facilita em muito a questão da contabilidade – ao invés de ir a campo pesquisar quantos bens existem no mercado, basta olhar a taxa de juros vigente.

Quando uma entidade como o banco central é criada, os juros passam a ser manipulados.  Não há mais um livre mercado na oferta de poupança e os juros monetários não mais são determinados pela preferência temporal das pessoas.  A manipulação dos juros por um banco central nada mais é do que um controle de preços, gerando escassez de capital da mesma forma que o controle do preço do arroz faz com que esse produto suma das prateleiras.  Os ciclos econômicos tornam-se recorrentes.

Por fim, apenas uma consideração técnica adicional: no nosso atual arranjo econômico, no qual transacionamos com dinheiro e há incertezas futuras, embora a preferência temporal sozinha não determine os juros de mercado (juros de mercado são os juros bancários e não a taxa SELIC), ela é um ponto de partida.  Segundo Hayek, a preferência temporal determina o quanto as pessoas irão poupar, mas não determina a taxa de juros de mercado.  Além da preferência temporal, coisas como produtividade marginal, risco, oferta monetária, demanda por dinheiro, demanda por empréstimos etc., todas elas têm um papel determinante na formação dos juros de mercado.

Mas se a taxa básica da economia, que é a taxa SELIC, é manipulada pelo banco central, as chances de as taxas de juros de mercado refletirem adequadamente a disponibilidade de capital é praticamente nula.  Daí a recorrência dos ciclos econômicos.

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