Imediatamente após a autorização da ONU — sob intenso lobby americano — para uma intervenção militar (leia-se chacina) na Líbia, o regime homicida do Coronel Kadafi disse imediatamente que iria parar com toda a matança dos rebeldes. Ao que tudo indica, o desequilibrado coronel já aprendeu algumas coisas sobre a política externa americana — se você fingir que vai apoiar os objetivos do império e obedecer às suas ordens, você poderá fazer exatamente aquilo que todo governo do mundo gostaria de fazer: ficar no poder a todo custo.
Kadafi aprendeu essa lição há aproximadamente duas décadas, quando, com muita fanfarra, anunciou que iria interromper seu programa de armas nucleares e se aliar às potências na guerra contra o terror. Ato contínuo, a ONU decidiu colocar seu regime na lista dos “bons”, e passou a exibi-lo como um exemplo de sábio estadista. E então o coronel, que de fato não é bobo, utilizou essa chancela para ir ainda mais a fundo e intensificar seu domínio despótico sobre os cidadãos líbios, com toda a benção implícita dos EUA.
Durante as últimas semanas, os burocratas americanos vêm condenando os ataques sanguinolentos promovidos por Kadafi sobre seu povo, mas será que os EUA realmente vêem algum problema com ditaduras ao estilo kadafiano? Esse fato é desconhecido dos americanos, mas no Oriente Médio, e nas nações árabes em particular, os interesses comerciais americanos são considerados uma força de liberação, mas não o governo americano. Os EUA têm sido o sustentáculo do poder das ditaduras do Oriente Médio durante décadas, dentre as quais a Arábia Saudita, a Jordânia e o Iêmen.
Assim, é uma piada dizer que os EUA fariam uma guerra contra a Líbia com o intuito de salvar aquele país de uma ditadura. O mais provável é que o real motivo em questão seja o mesmo que inspirou as guerras contra o Iraque: o controle do petróleo. E mesmo que a liberdade fosse de fato a principal motivação, fica a pergunta: quando, na história moderna, a guerra de fato trouxe liberdade às pessoas? Todas as guerras feitas por estados-nações sempre terminam em massacre de civis, destruição da infraestrutura do país atacado, baderna política sem fim (veja o Afeganistão e o Iraque), gastos maciços e crueldade e amargura intermináveis.
A guerra não irá atingir seus objetivos alegados. Ela pode até acabar fortalecendo o poder de Kadafi. Mas digamos que o ditador, assim como Saddam Hussein, termine morto. E aí? O novo governo será escolhido meticulosamente pelo lado vencedor, e jamais terá credibilidade alguma, assim como no Iraque. As pessoas abominam conquistadores estrangeiros com ainda mais intensidade do que abominam seus déspotas locais, e esse ressentimento não é um bom pilar para o futuro da liberdade.
Tudo indica que Obama encara as guerras de maneira ainda mais entusiasmada que seus antecessores Bush II, Clinton, Bush I, Reagan et al. Afinal, vejamos: Obama expandiu a presença americana — iniciada por Bush — no Afeganistão, intensificou o bombardeio de “terroristas” no Paquistão e no Iêmen e, agora, o vencedor do Nobel da Paz resolve atacar outro país que não atacou os EUA — em nome, obviamente, de estar “ajudando” os civis daquele país. (É interessante observar que os EUA jamais impõem uma zona de exclusão aérea quando o governo israelense envia jatos para bombardear os civis palestinos — talvez porque os caças utilizados para massacrar os palestinos sejam jatos americanos comprados pelo governo israelense).
Porém, agora, há um problema. Os EUA simplesmente não podem se dar ao luxo de atacar mais um país muçulmano (embora seja exatamente isso que ele esteja fazendo) em um momento em que todo o mundo sabe que a política externa americana se baseia fundamentalmente em excitar globalmente sentimentos anti-islâmicos, além de seu interesse em controlar o petróleo daqueles países.
Por essa razão, o governo Obama precisa se esconder sob o manto da ONU e pedir a cooperação de outros estados árabes. Inglaterra e França têm sido aliados confiáveis, mas não a Alemanha e outros países árabes, de modo que toda a operação pode acabar sendo ainda mais ardilosa e complicada do que o presidente inicialmente imaginou.
Mas suponhamos por alguns momentos que o governo americano realmente queira libertar o povo da Líbia do jugo de um tirano. Qual a maneira certa de se fazer isso? Existe a opção do assassinato puro e simples, à qual eu me oponho, mas que ainda assim seria uma escolha muito melhor do que a guerra. E os lendários assassinos secretos da CIA que, seguindo ordens de alguns burocratas do alto escalão, podem matar qualquer pessoa em qualquer lugar do planeta? Onde eles estão agora?
Lembre-se de que durantes os dias que antecederam o início da guerra do Iraque, um porta-voz de Saddam de fato propôs um duelo entre Saddam (ou seu vice) e Bush (ou Dick Cheney). Não foi uma sugestão jocosa. Teria sido uma opção muito melhor tanto para o Iraque quanto para os EUA, mas aí o governo americano não iria obter o que ele realmente quer em todas as suas guerras: a chance de explodir coisas (e subsequentemente garantir contratos para suas empreiteiras favoritas), gastar montanhas de dinheiro (e favorecer o complexo industrial-militar), incitar um frenesi belicoso na população e inspirar mais um surto de nacionalismo, o que sempre ajuda a consolidar o poder do regime.
É possível se opor a Kadafi e, ao mesmo tempo, se opor a uma guerra contra Kadafi? É claro que sim. Esta é uma posição que todos deveriam adotar, principalmente os americanos, que pagarão a conta. Da mesma forma, é possível se opor ao governo do seu país e, ao mesmo tempo, se opor a uma intervenção militar estrangeira com o intuito de derrubá-lo do poder.
Nos dias iniciais dos protestos na Líbia contra Kadafi, os manifestantes exibiram cartazes mostrando que se opunham a qualquer intervenção estrangeira. Esta ainda é a maneira correta de se protestar. Na Líbia, não deveriam iniciar uma guerra, nem criar embargos, bloqueios, zonas de exclusão aérea, nem nada do tipo. Os EUA apoiaram e sustentaram o regime de Kadafi durante a última década. O estrago já foi feito. Fazer uma guerra iria apenas piorar tudo.
Pelo bem da liberdade e dos direitos humanos, temos de dizer não à guerra. Temos também de dizer não a todas as formas de intervenção estrangeira que apóiam ditaduras até o momento em que estas se tornam embaraçosas demais para o poder das grandes potências.