A Economia do Intervencionismo

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6. Pangloss versus Procusto: um trade-off metodológico

Será que o conhecimento derivado das teorias econômicas nos fornece as bases para mudarmos o mundo para melhor? Ou seria isso uma ilusão e as tentativas fracassadas de moldar a realidade segundo nosso conhecimento revelariam apenas a pobreza das teorias diante da complexidade do mundo real? Neste capítulo, exploraremos um dilema metodológico relacionado a essa dúvida.A Economia é uma ciência que trata de fenômenos complexos. Suas variáveis explanatórias fundamentais são de natureza não observável (como valorações, planos de ação e expectativas), os fenômenos estudados (como competição, padrões de alocação, preços e flutuações econômicas) são influenciados sempre por um número muito grande de fatores, que além de não serem controláveis pelo cientista, formam estruturas que não são capturáveis por modelos que postulam apenas variáveis agregadas homogêneas (como PIB e nível de preços). Além disso, seu objeto de pesquisa (o ser humano) com frequência tem seu comportamento alterado pela influência da própria explicação teórica. Isso tudo gera uma série de peculiaridades relativas ao método das ciências sociais, em especial no que tange a capacidade preditiva dos modelos, peculiaridades essas que, se ignoradas, geram uma série de confusões, como o dilema que exploraremos em seguida.

Considere em particular o grau de especificidade das hipóteses. Frustrados com a natureza tipicamente genérica das hipóteses econômicas, vários pesquisadores procuraram adotar hipóteses mais específicas. Mas, como mostrou Hayek[1], embora seja desejável tornar nossas hipóteses o mais falseáveis possível, como quer Popper, quanto maior a complexidade de um problema, menor será o conteúdo empírico das explicações, independente do grau de dogmatismo do pesquisador. Se o objeto estudado for suficientemente complexo, a adoção de uma hipótese muito específica é imediatamente refutada pela observação e teremos então que escolher entre estar possivelmente certos, usando hipóteses gerais, ou errados, com certeza, usando hipóteses específicas.

Isso nos leva ao dilema mencionado no título deste texto: ao transitarmos entre os diversos graus de especificidade das hipóteses, nos expomos a dois perigos opostos, representados por dois personagens: Procusto e Pangloss. Como na história do bandido grego, que decepava as pernas dos passantes altos e esticava os corpos dos baixos, ajustando o tamanho de todos ao seu leito de ferro, a adoção de hipóteses muito restritivas nas ciências sociais nos leva a condenar a realidade, por não se ajustar ao ideal imposto pela nossa teoria. Um exemplo clássico é a fúria regulatória de um aluno que completa um curso de microeconomia. Para ele, os mercados reais devem ser deitados no leito de Procusto da teoria da competição perfeita, como sugere a legislação antitruste.

No outro extremo, como no Cândido de Voltaire, que satiriza o otimismo leibiniziano do doutor Pangloss, segundo o qual “Tudo que acontece é para o melhor nesse melhor dos mundos”, a adoção de hipóteses muito amplas carrega consigo o perigo oposto, que considera qualquer situação como ótima. Segundo esse ponto de vista, se alguém considera que algum agente não está fazendo o melhor possível, é porque não levamos em conta algum custo existente no mundo real, não contemplado no modelo. Sendo assim, tanto falhas de mercado quanto falhas de governo não existiriam e estaríamos sempre, por definição, em uma alocação eficiente. Vejamos agora mais de perto o trade-off metodológico que leva ao dilema.

Os defeitos do vício procustiano e as vantagens de se adotar hipóteses mais genéricas são ilustrados pelo exame dos pressupostos comportamentais utilizados ao longo do desenvolvimento da teoria econômica. A adoção da figura do Homo economicus durante a economia clássica restringiu desnecessariamente o escopo da disciplina, limitada ao estudo de um comportamento específico: a busca pela aquisição de riqueza material. Além disso, a adoção dessa hipótese restritiva abriu desnecessariamente o flanco da teoria para a tola crítica moralista dos economistas heterodoxos, que achavam que os economistas supunham (ou mesmo defendiam!) a ideia de que as pessoas se preocupam apenas com motivações menos nobres. Mas, como nos mostraram autores como Robbins, Machlup e Mises, a teoria moderna é mais ampla: a economia deixou de ser uma disciplina que diz algo sobre os fins da atividade humana, para se concentrar na relação entre meios e fins, não importando a natureza desses últimos: se o tempo for escasso, mesmo um santo se depara com a escolha a respeito da alocação de seu precioso tempo, entre as diferentes tarefas que pretende realizar.

Embora a teoria tenha expurgado o conceito de Homo economicus, a crítica precisava manter seu espantalho, de modo que a referida espécie passou a representar os restritivos pressupostos sobre racionalidade adotados pela teoria neoclássica. Mas nesse assunto, assim como no anterior, a adoção de uma interpretação muito estrita de tais pressupostos nos levam à falácia procustiana: toda vez que um agente faz escolhas que aparentemente divergem daquilo previsto pelos axiomas de racionalidade, o analista tende a desconsiderar a explicação segundo a qual a lógica da situação enfrentada pelo agente pode ser mais complexa do que supunha o modelo do analista. Em vez disso, o cientista tende a deitar a realidade no leito de Procusto da teoria, seja para condenar o agente por sua irracionalidade e defender alguma medida paternalista que o tutele, seja para condenar a teoria, que teria sido refutada experimentalmente.

A literatura nos mostra inúmeros exemplos de paradoxos de escolha que sofrem desse defeito. Vejamos apenas dois deles, como ilustração. O primeiro é o “paradoxo de Machina”[2]. Nele, as pessoas são expostas a seguinte escolha: uma viagem a Veneza, ganhar um DVD com um filme sobre Veneza e, como última opção, ficar em casa. Todo mundo prefere a primeira a segunda e esta à terceira alternativa. Mas, diante da escolha entre um sorteio A, que resulta na primeira alternativa com 99,9% de probabilidade e na segunda com 0,1% e um sorteio B, que resulta na viagem com a mesma probabilidade, mas com 0,1% chance de ficar em casa, as pessoas preferem B a A, violando um axioma da escolha sob incerteza.

O segundo exemplo é o “jogo do ultimato”. É oferecida certa quantia em dinheiro para um indivíduo, que escolhe quanto repartir entre si e outra pessoa. Esta última, caso não fique satisfeita com a divisão, pode recusar a proposta e ninguém recebe nada. Usando a noção de indução reversa, o primeiro indivíduo, se imaginando na posição do último, preferiria um centavo a nada, de forma que a proposta de partilha inicial deveria oferecer de fato apenas um centavo ao segundo jogador, retendo para si quase a totalidade do valor. Na prática, porém, as pessoas frequentemente sugerem uma divisão igualitária do prêmio.

Diante desses resultados, a reação muito comum entre os críticos da teoria econômica é a seguinte: “Veja! As pessoas não são frias e egoístas máquinas de cálculo de prazer. O Homo economicus foi refutado!” Nos dois exemplos, porém, é evidente o caráter procustiano da interpretação dos experimentos.

No segundo caso, evidentemente a função utilidade do indivíduo não precisa necessariamente conter apenas o ganho monetário. A satisfação derivada de se considerar uma pessoa justa, a reputação junto ao experimentador, a hipótese de que o segundo jogador possa contemplar na sua função utilidade a noção de vingança como algo mais importante do que o prêmio, a expectativa de reciprocidade futura, a falta de entendimento das regras do jogo, entre outros fatores, poderiam explicar os resultados observados. Não se segue portanto a conclusão de que os agentes não seriam racionais. A conclusão de que não são egoístas, por sua vez, não contraria hipótese alguma, uma vez que nunca a teoria econômica supôs que o comportamento altruísta não exista.

No primeiro caso, a acusação de irracionalidade é fruto de uma postura insuficientemente subjetivista sobre o problema econômico. Para essa postura “materialista” de economia, um bem é definido objetivamente, como “um DVD sobre Veneza”. Se adotarmos uma postura consistentemente subjetivista, como aquela defendida por Ludwig von Mises, não poderíamos dissociar o que define um bem da estrutura de fins e meios considerada pelo agente. Assim, assistir um “filme sobre uma possível viagem maravilhosa” é um bem totalmente diferente do que assistir um “filme frustrante sobre a viagem que perdi”. Isso dissolve o paradoxo, tornando perfeitamente racional a preferência por ficar em casa e não ouvir mais falar em Veneza.

Esses exemplos ilustram a superioridade da definição mais ampla de racionalidade adotada por Mises, que considera toda ação humana não reflexa como racional, na medida em que essa ação reflete a avaliação, possivelmente errônea, da situação problema efetuada pelo próprio agente. De posse dessa interpretação mais ampla, podemos lidar com o principal problema colocado pela teoria econômica: que instituições promovem de melhor maneira o uso da troca e da produção como meios para lidar com o problema da escolha sobre os usos alternativos dos recursos escassos?

A adoção de hipóteses específicas sobre racionalidade em modelos de escolha, por outro lado, é sempre refutada. Existem de fato anomalias observadas no que diz respeito às hipóteses de escolha sob risco e as pessoas não entendem muito bem o conceito de porcentagem e probabilidade, cometendo erros de cálculo em suas escolhas. O que resta a ser feito pelos entusiastas por esses fatos, no entanto, é mostrar que tipo de problema de natureza econômica tais estudos ajudariam a resolver.

A escolha por hipóteses mais genéricas, adequada para a natureza dos problemas econômicos conhecidos, pode no entanto nos levar a outro tipo de erro: cientes de que os modelos não refletem muitos aspectos da situação modelada, podemos incorrer no erro panglossiano de considerar qualquer desvio da hipótese de maximização como uma falha do modelo e não da situação em si. Dessa forma, a maximização de lucros, a minimização de custos e a inexistência de erros sistemáticos de avaliação se transformam em tautologias e a ideia de ineficiência perde seu significado.

Tomemos como exemplo a reação negativa suscitada pelo conceito de ineficiência-X[3]. Para a microeconomia, os custos não se alteram diante de estruturas de mercado diferentes: empresas competitivas, oligopolistas e monopolistas trabalhariam com a mesma estrutura de custos, derivadas das restrições técnicas de produção. Leibenstein, no entanto, formulou a hipótese de que a ineficiência alocativa derivada da teoria tradicional não seria tão importante quanto a ineficiência gerada pelos estímulos ambientais: sob monopólio, por exemplo, a pressão para minimizar custos seria menor. George Stigler[4], percebendo que essa hipótese contraria uma das pedras fundamentais da teoria ortodoxa – o comportamento maximizador – rejeitou o conceito. Se uma secretária pode digitar dez cartas por dia, mas digita cinco porque passa parte do expediente jogando Angry Birds, não existiria ineficiência, pois cinco cartas por dia seria de fato o máximo que ela poderia produzir, levando-se em conta que a atividade lúdica faz parte de sua natureza. Afirmar que um agente não maximiza desconsidera a função objetivo do empresário, que não se resumiria a gerar lucro monetário: o lazer da moça poderia estar incluído.

Levado as suas últimas consequências, esse argumento nos leva à negação do conceito de ineficiência. De forma panglossiana, a ineficiência seria apenas fruto da nossa negligência em considerar certos custos. Um “erro” empresarial, na verdade, não seria um erro, pois os custos de aquisição da informação que permitiriam evitá-lo seriam, na margem, superiores ao seu benefício, de modo que o empresário opera sempre sob ignorância ótima. Some de vista com isso a possibilidade de erro derivado de concepções empresariais diversas, possivelmente equivocadas, sobre a mesma situação de mercado ou a possibilidade de descoberta derivada da atividade empresarial. Em última análise, a postura panglossiana é fruto de uma teoria econômica que se recusa a considerar a hipótese de que a economia não esteja por algum instante em equilíbrio. Em equilíbrio, todas as concepções errôneas já foram eliminadas e erros aparentes são atribuídos ao desconhecimento temporário de dados que alimentam o modelo correto do agente.

A hipótese de que a seleção natural nos mercados opera sempre no ponto de ótimo levou o mesmo autor a duvidar da existência de falhas de governo. Stigler[5] considera que os subsídios à indústria de algodão nos Estados Unidos seriam na verdade eficientes, já que essa política persiste por meio século e por todo esse tempo não surgiu na arena política uma alternativa que a substituísse. Se levássemos em conta todos os custos do processo de escolha política, a lei seria eficiente[6].

Ao contrário do erro procustiano, que, ao adotar hipóteses muito restritas, ignora complexidades do mundo real, o erro panglossiano, ao adotar hipóteses muito amplas, corre o risco de que essas se transformem em tautologias que justifiquem qualquer coisa. Evitar esses perigos, por sua vez, envolve a) escolher um grau de especificidade das hipóteses o mais alto possível, dada a restrição de que a complexidade do problema requer hipóteses mais genéricas, b) reconhecer que explicações de fenômenos complexos não implicam em previsões exatas e possibilidade de testes conclusivos, na medida em que destacamos o efeito de apenas alguns poucos fatores que influenciam o fenômeno estudado e c) levar sempre em conta tanto o aspecto subjetivo das explicações, ou seja, considerar as opiniões dos agentes sobre a realidade, quanto as maneiras como essa realidade limita aquilo que os agentes podem pensar sobre ela. Dessa forma, a realidade não fica definida nem pela imaginação humana, nem pelas restrições materiais que limitam a ação. Dessa forma, Procusto e Pangloss saem de cena.



[1] Hayek (1967).

[2] Mas-Collel, Whinston e Green (1995), capítulo 6.

[3] Leibenstein (1966).

[4] Stigler, (1976).

[5] Stigler (1992).

[6] Para uma crítica a essa posição, ver Boettke, Coyne e Leeson (2007) e DiLorenzo (2002).

 

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