6. Pangloss versus Procusto: um trade-off metodológico
Considere em particular o grau de especificidade das hipóteses. Frustrados com a natureza tipicamente genérica das hipóteses econômicas, vários pesquisadores procuraram adotar hipóteses mais específicas. Mas, como mostrou Hayek[1], embora seja desejável tornar nossas hipóteses o mais falseáveis possível, como quer Popper, quanto maior a complexidade de um problema, menor será o conteúdo empírico das explicações, independente do grau de dogmatismo do pesquisador. Se o objeto estudado for suficientemente complexo, a adoção de uma hipótese muito específica é imediatamente refutada pela observação e teremos então que escolher entre estar possivelmente certos, usando hipóteses gerais, ou errados, com certeza, usando hipóteses específicas.
Isso nos leva ao dilema mencionado no título deste texto: ao transitarmos entre os diversos graus de especificidade das hipóteses, nos expomos a dois perigos opostos, representados por dois personagens: Procusto e Pangloss. Como na história do bandido grego, que decepava as pernas dos passantes altos e esticava os corpos dos baixos, ajustando o tamanho de todos ao seu leito de ferro, a adoção de hipóteses muito restritivas nas ciências sociais nos leva a condenar a realidade, por não se ajustar ao ideal imposto pela nossa teoria. Um exemplo clássico é a fúria regulatória de um aluno que completa um curso de microeconomia. Para ele, os mercados reais devem ser deitados no leito de Procusto da teoria da competição perfeita, como sugere a legislação antitruste.
No outro extremo, como no Cândido de Voltaire, que satiriza o otimismo leibiniziano do doutor Pangloss, segundo o qual “Tudo que acontece é para o melhor nesse melhor dos mundos”, a adoção de hipóteses muito amplas carrega consigo o perigo oposto, que considera qualquer situação como ótima. Segundo esse ponto de vista, se alguém considera que algum agente não está fazendo o melhor possível, é porque não levamos em conta algum custo existente no mundo real, não contemplado no modelo. Sendo assim, tanto falhas de mercado quanto falhas de governo não existiriam e estaríamos sempre, por definição, em uma alocação eficiente. Vejamos agora mais de perto o trade-off metodológico que leva ao dilema.
Os defeitos do vício procustiano e as vantagens de se adotar hipóteses mais genéricas são ilustrados pelo exame dos pressupostos comportamentais utilizados ao longo do desenvolvimento da teoria econômica. A adoção da figura do Homo economicus durante a economia clássica restringiu desnecessariamente o escopo da disciplina, limitada ao estudo de um comportamento específico: a busca pela aquisição de riqueza material. Além disso, a adoção dessa hipótese restritiva abriu desnecessariamente o flanco da teoria para a tola crítica moralista dos economistas heterodoxos, que achavam que os economistas supunham (ou mesmo defendiam!) a ideia de que as pessoas se preocupam apenas com motivações menos nobres. Mas, como nos mostraram autores como Robbins, Machlup e Mises, a teoria moderna é mais ampla: a economia deixou de ser uma disciplina que diz algo sobre os fins da atividade humana, para se concentrar na relação entre meios e fins, não importando a natureza desses últimos: se o tempo for escasso, mesmo um santo se depara com a escolha a respeito da alocação de seu precioso tempo, entre as diferentes tarefas que pretende realizar.
Embora a teoria tenha expurgado o conceito de Homo economicus, a crítica precisava manter seu espantalho, de modo que a referida espécie passou a representar os restritivos pressupostos sobre racionalidade adotados pela teoria neoclássica. Mas nesse assunto, assim como no anterior, a adoção de uma interpretação muito estrita de tais pressupostos nos levam à falácia procustiana: toda vez que um agente faz escolhas que aparentemente divergem daquilo previsto pelos axiomas de racionalidade, o analista tende a desconsiderar a explicação segundo a qual a lógica da situação enfrentada pelo agente pode ser mais complexa do que supunha o modelo do analista. Em vez disso, o cientista tende a deitar a realidade no leito de Procusto da teoria, seja para condenar o agente por sua irracionalidade e defender alguma medida paternalista que o tutele, seja para condenar a teoria, que teria sido refutada experimentalmente.
A literatura nos mostra inúmeros exemplos de paradoxos de escolha que sofrem desse defeito. Vejamos apenas dois deles, como ilustração. O primeiro é o “paradoxo de Machina”[2]. Nele, as pessoas são expostas a seguinte escolha: uma viagem a Veneza, ganhar um DVD com um filme sobre Veneza e, como última opção, ficar em casa. Todo mundo prefere a primeira a segunda e esta à terceira alternativa. Mas, diante da escolha entre um sorteio A, que resulta na primeira alternativa com 99,9% de probabilidade e na segunda com 0,1% e um sorteio B, que resulta na viagem com a mesma probabilidade, mas com 0,1% chance de ficar em casa, as pessoas preferem B a A, violando um axioma da escolha sob incerteza.
O segundo exemplo é o “jogo do ultimato”. É oferecida certa quantia em dinheiro para um indivíduo, que escolhe quanto repartir entre si e outra pessoa. Esta última, caso não fique satisfeita com a divisão, pode recusar a proposta e ninguém recebe nada. Usando a noção de indução reversa, o primeiro indivíduo, se imaginando na posição do último, preferiria um centavo a nada, de forma que a proposta de partilha inicial deveria oferecer de fato apenas um centavo ao segundo jogador, retendo para si quase a totalidade do valor. Na prática, porém, as pessoas frequentemente sugerem uma divisão igualitária do prêmio.
Diante desses resultados, a reação muito comum entre os críticos da teoria econômica é a seguinte: “Veja! As pessoas não são frias e egoístas máquinas de cálculo de prazer. O Homo economicus foi refutado!” Nos dois exemplos, porém, é evidente o caráter procustiano da interpretação dos experimentos.
No segundo caso, evidentemente a função utilidade do indivíduo não precisa necessariamente conter apenas o ganho monetário. A satisfação derivada de se considerar uma pessoa justa, a reputação junto ao experimentador, a hipótese de que o segundo jogador possa contemplar na sua função utilidade a noção de vingança como algo mais importante do que o prêmio, a expectativa de reciprocidade futura, a falta de entendimento das regras do jogo, entre outros fatores, poderiam explicar os resultados observados. Não se segue portanto a conclusão de que os agentes não seriam racionais. A conclusão de que não são egoístas, por sua vez, não contraria hipótese alguma, uma vez que nunca a teoria econômica supôs que o comportamento altruísta não exista.
No primeiro caso, a acusação de irracionalidade é fruto de uma postura insuficientemente subjetivista sobre o problema econômico. Para essa postura “materialista” de economia, um bem é definido objetivamente, como “um DVD sobre Veneza”. Se adotarmos uma postura consistentemente subjetivista, como aquela defendida por Ludwig von Mises, não poderíamos dissociar o que define um bem da estrutura de fins e meios considerada pelo agente. Assim, assistir um “filme sobre uma possível viagem maravilhosa” é um bem totalmente diferente do que assistir um “filme frustrante sobre a viagem que perdi”. Isso dissolve o paradoxo, tornando perfeitamente racional a preferência por ficar em casa e não ouvir mais falar em Veneza.
Esses exemplos ilustram a superioridade da definição mais ampla de racionalidade adotada por Mises, que considera toda ação humana não reflexa como racional, na medida em que essa ação reflete a avaliação, possivelmente errônea, da situação problema efetuada pelo próprio agente. De posse dessa interpretação mais ampla, podemos lidar com o principal problema colocado pela teoria econômica: que instituições promovem de melhor maneira o uso da troca e da produção como meios para lidar com o problema da escolha sobre os usos alternativos dos recursos escassos?
A adoção de hipóteses específicas sobre racionalidade em modelos de escolha, por outro lado, é sempre refutada. Existem de fato anomalias observadas no que diz respeito às hipóteses de escolha sob risco e as pessoas não entendem muito bem o conceito de porcentagem e probabilidade, cometendo erros de cálculo em suas escolhas. O que resta a ser feito pelos entusiastas por esses fatos, no entanto, é mostrar que tipo de problema de natureza econômica tais estudos ajudariam a resolver.
A escolha por hipóteses mais genéricas, adequada para a natureza dos problemas econômicos conhecidos, pode no entanto nos levar a outro tipo de erro: cientes de que os modelos não refletem muitos aspectos da situação modelada, podemos incorrer no erro panglossiano de considerar qualquer desvio da hipótese de maximização como uma falha do modelo e não da situação em si. Dessa forma, a maximização de lucros, a minimização de custos e a inexistência de erros sistemáticos de avaliação se transformam em tautologias e a ideia de ineficiência perde seu significado.
Tomemos como exemplo a reação negativa suscitada pelo conceito de ineficiência-X[3]. Para a microeconomia, os custos não se alteram diante de estruturas de mercado diferentes: empresas competitivas, oligopolistas e monopolistas trabalhariam com a mesma estrutura de custos, derivadas das restrições técnicas de produção. Leibenstein, no entanto, formulou a hipótese de que a ineficiência alocativa derivada da teoria tradicional não seria tão importante quanto a ineficiência gerada pelos estímulos ambientais: sob monopólio, por exemplo, a pressão para minimizar custos seria menor. George Stigler[4], percebendo que essa hipótese contraria uma das pedras fundamentais da teoria ortodoxa – o comportamento maximizador – rejeitou o conceito. Se uma secretária pode digitar dez cartas por dia, mas digita cinco porque passa parte do expediente jogando Angry Birds, não existiria ineficiência, pois cinco cartas por dia seria de fato o máximo que ela poderia produzir, levando-se em conta que a atividade lúdica faz parte de sua natureza. Afirmar que um agente não maximiza desconsidera a função objetivo do empresário, que não se resumiria a gerar lucro monetário: o lazer da moça poderia estar incluído.
Levado as suas últimas consequências, esse argumento nos leva à negação do conceito de ineficiência. De forma panglossiana, a ineficiência seria apenas fruto da nossa negligência em considerar certos custos. Um “erro” empresarial, na verdade, não seria um erro, pois os custos de aquisição da informação que permitiriam evitá-lo seriam, na margem, superiores ao seu benefício, de modo que o empresário opera sempre sob ignorância ótima. Some de vista com isso a possibilidade de erro derivado de concepções empresariais diversas, possivelmente equivocadas, sobre a mesma situação de mercado ou a possibilidade de descoberta derivada da atividade empresarial. Em última análise, a postura panglossiana é fruto de uma teoria econômica que se recusa a considerar a hipótese de que a economia não esteja por algum instante em equilíbrio. Em equilíbrio, todas as concepções errôneas já foram eliminadas e erros aparentes são atribuídos ao desconhecimento temporário de dados que alimentam o modelo correto do agente.
A hipótese de que a seleção natural nos mercados opera sempre no ponto de ótimo levou o mesmo autor a duvidar da existência de falhas de governo. Stigler[5] considera que os subsídios à indústria de algodão nos Estados Unidos seriam na verdade eficientes, já que essa política persiste por meio século e por todo esse tempo não surgiu na arena política uma alternativa que a substituísse. Se levássemos em conta todos os custos do processo de escolha política, a lei seria eficiente[6].
Ao contrário do erro procustiano, que, ao adotar hipóteses muito restritas, ignora complexidades do mundo real, o erro panglossiano, ao adotar hipóteses muito amplas, corre o risco de que essas se transformem em tautologias que justifiquem qualquer coisa. Evitar esses perigos, por sua vez, envolve a) escolher um grau de especificidade das hipóteses o mais alto possível, dada a restrição de que a complexidade do problema requer hipóteses mais genéricas, b) reconhecer que explicações de fenômenos complexos não implicam em previsões exatas e possibilidade de testes conclusivos, na medida em que destacamos o efeito de apenas alguns poucos fatores que influenciam o fenômeno estudado e c) levar sempre em conta tanto o aspecto subjetivo das explicações, ou seja, considerar as opiniões dos agentes sobre a realidade, quanto as maneiras como essa realidade limita aquilo que os agentes podem pensar sobre ela. Dessa forma, a realidade não fica definida nem pela imaginação humana, nem pelas restrições materiais que limitam a ação. Dessa forma, Procusto e Pangloss saem de cena.
[1] Hayek (1967).
[2] Mas-Collel, Whinston e Green (1995), capítulo 6.
[3] Leibenstein (1966).
[4] Stigler, (1976).
[5] Stigler (1992).
[6] Para uma crítica a essa posição, ver Boettke, Coyne e Leeson (2007) e DiLorenzo (2002).