Os pobres, o livre mercado, e a moralidade deste arranjo

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1307389732118_fSe uma determinada atividade econômica sempre foi socializada, praticamente todas as pessoas concluem que é assim que tem de ser e que não poderia ser de outra maneira.
Com efeito, à primeira vista, imaginar como o livre mercado faria funcionar um setor até então estatizado é difícil. Décadas de doutrinação estatista nas escolas (públicas e privadas) geraram essa incapacidade de raciocínio. Murray Rothbard certa vez comentou que se o governo fosse o único fabricante de sapatos, a maioria das pessoas seria incapaz de imaginar como o mercado poderia ser capaz de produzi-los. Disse ele:

Se o governo, e somente o governo, tivesse o monopólio da fabricação de sapatos e fosse o dono de todas as revendedoras, como será que a maioria das pessoas iria reagir a quem advogasse que o governo saísse do setor de calçados e o abrisse para empresas privadas? Sem dúvida nenhuma as pessoas iriam bradar: “Como assim? Você não quer que as pessoas, e principalmente os pobres, usem sapatos! E quem iria fornecer sapatos ao povo se o governo saísse do setor? Quais pessoas? Quantas lojas de sapato haveria em cada cidade? Em cada município? Como isso seria definido? Como as empresas de sapato seriam financiadas? Quantas marcas existiriam? Qual material elas iriam usar? Quanto tempo os sapatos durariam? Qual seria o arranjo de preços? Não seria necessário haver regulamentação da indústria de calçados para garantir que o produto seja confiável? E quem iria fornecer sapatos aos pobres? E se a pessoa não tiver o dinheiro necessário para comprar um par?”

Troque a expressão “fabricação de sapatos” por qualquer outra e o raciocínio continua idêntico. Sem uma educação socializada, como os pobres conseguiriam pagar por seus estudos? Se os Correios não fossem estatais, como as pessoas que moram naqueles rincões mais afastados receberiam suas cartas? Sem a Previdência Social estatal e compulsória, os idosos morreriam na miséria! Se o sistema elétrico não estivesse sob o controle do estado, milhares de famílias estariam hoje às escuras! Se a extração de Petróleo não fosse de competência do estado, não haveria gasolina e diesel nas bombas!

Pavorosamente, quando se aceita a “necessidade da socialização”, a ideia do absolutismo estatal passa a ser vista com naturalidade. Afinal, se o estado é visto como essencial em várias áreas, por que ele deixaria de ser essencial em outras?

Para entender essa confusão mental não é necessário muito esforço.

Tão logo uma atividade foi socializada, torna-se impossível demonstrar, por meio de exemplos práticos, como os indivíduos agindo em um mercado livre e irrestrito poderiam efetuar esta mesma atividade de maneira mais eficiente, mais abundante e mais barata. Por exemplo, como seria possível comparar os Correios estatais a um Correio privado quando a existência deste último é proibida por decreto estatal? Como explicar que o mercado de telefonia seria melhor caso a entrada de concorrência estrangeira fosse liberada, quando sempre tivemos o estado regulando o setor e especificando quem pode e quem não pode entrar?

É como tentar explicar para um povo que sempre viveu na escuridão como as coisas seriam caso houvesse luz. A única coisa que você pode fazer é recorrer a construções imaginárias.

Para ilustrar esse dilema: durante as últimas décadas, homens e mulheres praticando trocas livres e voluntárias (isso se chama livre mercado) descobriram como fazer a entrega da voz humana ao redor do globo em bem menos de um segundo; descobriram como transmitir um evento, como uma partida de futebol ou uma corrida de automóveis, e exibi-lo ao vivo e a cores na casa de qualquer pessoa em qualquer ponto da terra; descobriram como transportar mais 300 passageiros de um continente a outro em questão de horas; descobriram como transportar gás de uma mina remota ao aconchegante lar de alguém em outra cidade a preços inacreditavelmente baixos e sem subsídio; descobriram como entregar vários barris de petróleo do Golfo Pérsico ao oeste americano — meia volta ao mundo — por menos do que o governo cobra para entregar uma carta de 50 gramas ao outro lado da rua!

No entanto, e ainda assim, esses e tantos outros fenômenos rotineiros que o livre mercado nos proporciona ainda não são capazes de convencer a maioria das pessoas de que “os Correios” poderiam ficar a cargo da livre concorrência sem que isso causasse sofrimento aos usuários.

Agora, imagine este outro cenário: suponha que o governo federal, desde seu surgimento, tenha decretado uma lei ordenando que todos os meninos e meninas, desde o nascimento até a maioridade, recebam sapatos e meias “gratuitamente” do governo federal. Imagine que essa prática de receber “sapatos e meias gratuitamente” estivesse em prática desde o descobrimento do país. Por fim, imagine que um de nossos contemporâneos — alguém que acredite nas maravilhas que podem ser alcançadas quando as pessoas são livres para empreender — dissesse: “Não creio que dar meias e sapatos para as crianças deveria ser uma responsabilidade do governo. Isso deveria ser uma responsabilidade das famílias. Tal atividade jamais deveria ter sido socializada. Ela seria muito mais adequadamente efetuada pelo livre mercado”.

Quais seriam as reações a essa declaração? Baseando-se em tudo o que ouvimos tão logo uma atividade é estatizada — mesmo que apenas por um curto período de tempo —, a resposta-padrão a essa desestatização seria algo assim: “Ah, mas aí você traria sofrimento para as crianças pobres, que ficariam completamente descalças!”

No entanto, neste exemplo, como se trata de uma atividade que ainda não foi estatizada, somos capazes de mostrar que as crianças pobres estão mais bem calçadas naqueles países em que sapatos e meias são de responsabilidade da família do que naqueles países em que sapatos e meias são responsabilidade do governo. Somos capazes de demonstrar que as crianças pobres estão mais bem calçadas em países que são mais livres do que em países que são menos livres.

Sim, é verdade que o livre mercado ignora os pobres — só que ele ignora os pobres justamente porque ele não reconhece os ricos. O livre mercado não é um “respeitador de pessoas”. O livre mercado é simplesmente uma maneira organizacional de criar bens e serviços por meio da livre concorrência. Ou seja, trata-se de um arranjo em que a entrada na arena da produção e da comercialização é livre, não dependendo de autorizações ou permissões estatais. Trata-se de um arranjo que permite que milhões de pessoas cooperem e compitam sem que seja necessário exigir autorizações preliminares de pedigree, nacionalidade, cor, raça, religião ou riqueza.

Livre mercado significa transações voluntárias; significa uma justiça impessoal na esfera econômica. Livre mercado não tolera protecionismo, subsídios e favores especiais concedidos por aqueles que estão no poder. Por isso, o livre mercado é, em sua essência, contra a coerção, a espoliação, o roubo e todos os outros métodos anti-mercado criados por governos para privilegiar alguns poucos poderosos em detrimento de todo o resto. O livre mercado é o único arranjo que permite que qualquer indivíduo possa concorrer em qualquer área da economia (mas que não dá garantia nenhuma de sucesso). O livre mercado, por fim, permite que os mortais ajam moralmente porque eles são livres para agir moralmente.

Sim, é necessário admitir que a natureza humana é defeituosa, e que essas imperfeições muitas vezes serão refletidas no mercado (e muito mais no governo, setor cujos integrantes detêm o poder e não estão submetidos à concorrência). Porém, o livre mercado é o único arranjo que possibilita a cada indivíduo agir de acordo com sua melhor moral e ser recompensado por isso, ao passo que o estatismo e a abolição da concorrência é o arranjo que premia (ou não pune) os imorais e desleixados.

Nenhum defensor do livre mercado nega a existência de empreendedores salafrários; nós apenas acreditamos — e para isto baseamo-nos na sólida teoria econômica — que, quanto mais livre e concorrencial for o mercado, mais restritas serão as chances de sucesso de vigaristas, e mais honestas as pessoas serão forçadas a se manter. E elas terão de ser honestas não por benevolência ou moral religiosa, mas sim por puro temor de que, uma vez descobertas suas trapaças, elas serão devoradas pela concorrência, podendo nunca mais recuperar sua fatia de mercado e indo a uma irrecuperável falência.

Por outro lado, quanto maior for a regulamentação estatal sobre um setor, mais incentivos existirão para a corrupção, para o suborno, para os favorecimentos e para os conchavos. Em vez de se concentrar em oferecer bons serviços e superar seus concorrentes no mercado, as empresas mais poderosas poderão simplesmente se acertar com os burocratas responsáveis pelas regulamentações, oferecendo favores e, em troca, recebendo agrados como restrições e vigilâncias mais apertadas para a concorrência.

Não há absolutamente nenhum motivo para crer que homens dotados com o poder da coerção — como são os políticos e os empresários que atuam em um mercado fechado pelo governo — irão se comportar mais moralmente do que as pessoas em um ambiente de livre concorrência.

Por isso, o livre mercado é a única opção moral concebível.

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