08. Relações inter-pessoais: propriedade e agressão
Consideremos a alternativa (2); aqui, uma pessoa ou um grupo de pessoas, G, são intitulados possuidores não somente deles mesmos, mas também do restante da sociedade, R. Mas, à parte de tantos outros problemas e dificuldades deste tipo de sistema, nós não podemos ter aqui um ética universal ou de lei natural para a raça humana. Podemos ter apenas uma ética parcial e arbitrária, similar à visão de que os Hohenzollerns têm o direito de governar os não-Hohenzollerns por natureza. Na verdade, a ética que declara que a classe G tem o direito de governar a Classe R implica que a última, R, é formada por seres sub-humanos que não possuem o direito de participar, como humanos na íntegra, dos direitos de autopropriedade desfrutados por G — mas isso obviamente viola a suposição inicial de que estamos modelando uma ética para seres humanos como eles são.
E quanto a alternativa (1)? Esta é a visão de que, considerando indivíduos A, B, C . . ., nenhum homem tem 100 por cento de direito de propriedade sobre sua própria pessoa. Ao invés disso, uma parte igual da propriedade do corpo de A deveria ser conferida a B, C . . ., e o mesmo deveria valer para cada um dos outros. Esta visão, ao menos, possui o mérito de ser uma regra universal, aplicável a todas as pessoas da sociedade, mas ela padece de numerosas outras dificuldades.
Em primeiro lugar, na prática, se houvesse mais do que algumas poucas pessoas na sociedade, esta alternativa sucumbiria e se reverteria para a Alternativa (2), o governo parcial de uns sobre os outros. Pois é fisicamente impossível que todo mundo controle ininterruptamente todos os outros, e, portanto, que se exerça a sua parte igual de propriedade parcial sobre cada um dos outros homens. Na prática, então, este conceito de propriedade universal e igual de um sobre o outro é utópica e impossível, e a supervisão e, portanto, a propriedade dos outros necessariamente se tornam atividades especializadas de uma classe dominante. Consequentemente, nenhuma sociedade que não conceda a autopropriedade total para todos pode desfrutar de uma ética universal. Tão somente por esta razão, 100 por cento de autopropriedade para todo homem é a única ética política viável para a humanidade.
Mas, apenas para prosseguir a argumentação, suponha que esta Utopia pudesse ser sustentada. E então? Em primeiro lugar, com certeza é absurdo afirmar que nenhum homem tem propriedade sobre si mesmo e ainda assim afirmar que todos os homens têm propriedade sobre uma parte de todos os outros homens! Mas, mais do que isso, será que esta Utopia seria desejável? Será que podemos imaginar um mundo onde nenhumhomem é livre para empreender qualquer ação de qualquer tipo sem a prévia aprovação de todos os outrosda sociedade? Evidentemente, nenhum homem seria capaz de fazer algo e a raça humana rapidamente pereceria. Mas, se um mundo de zero ou de quase -zero autopropriedade representa a morte para a raça humana, então qualquer passo nesta direção também se opõe à lei do que é melhor para o homem e para a sua vida na terra. E, como vimos acima, qualquer ética em que se dá a um grupo total propriedade sobre outro grupo viola a regra mais elementar de qualquer ética: que ela se aplique a todos os homens. Nenhuma ética parcial é melhor, embora possa parecer mais plausível à primeira vista, do que a teoria que defende todo-o-poder-para-os-Hohenzollerns.
Em contraste, a sociedade de autopropriedade absoluta para todos apoia-se no fato primordial da autopropriedade natural que todo homem tem sobre si, e no fato de que cada homem só pode viver e prosperar enquanto exercer sua liberdade de escolha natural, adotar valores, aprender como alcançá-los etc. Em virtude de ser um homem, ele tem que usar sua mente para selecionar fins e meios; se alguém agredi-lo para que mude seu caminho livremente escolhido, isto viola a sua natureza; isto viola a forma como ele deve agir. Resumindo, um agressor interpõe violência para impedir o curso natural das ideias e dos valores livremente adotados por um homem e para impedir suas ações baseadas nestes valores.
Não podemos explicar completamente as leis naturais da propriedade e da violência sem expandir nossa discussão para que abranja a propriedade tangível. Pois os homens não são espectros flutuantes; eles são seres que apenas sobrevivem ao manejar e ao transformar objetos materiais. Retornemos à nossa ilha de Crusoé e de Sexta-feira. Crusoé, que foi o primeiro a chegar na ilha desabitada, usou seu livre-arbítrio e sua autopropriedade para aprender sobre suas vontades e seus valores e sobre como satisfazê-los transformando recursos naturais através da “mistura” deles com o seu trabalho. Por meio disso, ele produziu e criou propriedade. Agora suponha que Sexta-feira aporte em outra parte desta ilha. Ele se confronta com duas possíveis linhas de ação: ele pode, como Crusoé, tornar-se um produtor, transformar terra não usada por meio de seu trabalho, e, muito provavelmente, trocar seu produto pelo produto do outro homem. Em resumo, ele pode se empenhar em produzir e em trocar, e também em criar propriedade. Ou ele pode decidir por outra linha: ele pode se poupar do esforço da produção e da troca, e apoderar-se, através da violência, dos frutos do trabalho de Crusoé. Ele pode atacar o produtor.
Se Sexta-feira escolher a linha do trabalho e da produção, então ele, como fato natural, igualmente ao caso de Crusoé, possuirá a extensão territorial que desbravar e utilizar, assim como os frutos que ela produzir. Mas, como destacamos acima, suponha que Crusoé decida reivindicar mais do que sua área natural de propriedade e declarar que, simplesmente por ter aportado primeiro na ilha, ele “de fato” possui toda a ilha, mesmo que ele ainda não a tenha usado. Se ele assim o fizer, então ele estaria, em nossa visão, forçando ilegitimamente sua reivindicação por mais propriedade, ultrapassando suas delimitações de lei natural da apropriação original (homesteading), e, se ele usar esta reivindicação para tentar expulsar Sexta-feira à força, então ele estaria ilegitimamente agredindo a pessoa e a propriedade do segundo apropriador original.
Alguns teóricos têm afirmado — no que podemos chamar de “complexo de Colombo” — que o primeiro descobridor de uma ilha ou de um continente novo e sem dono pode possuir legalmente toda a área simplesmente por declarar sua reivindicação. (Neste caso, se Colombo realmente tivesse aportado no continente Americano — e se não houvesse nenhum índio vivendo lá — , ele poderia ter declarado legalmente sua “posse” privada de todo o continente.) Na realidade natural, no entanto, já que Colombo só teria sido capaz de usar verdadeiramente, de “misturar seu trabalho com”, uma pequena parte do continente, o resto então continuaria a não ter dono até que os próximos colonos chegassem e estabelecessem suas propriedades legítimas em partes do continente. [2]
Vamos sair do caso Crusoé e de Sexta-feira e considerar a questão de um escultor que acabou de criar uma obra de escultura transformando argila e outros materiais (e vamos por enquanto deixar de lado a questão dos direitos de propriedade sobre a argila e sobre as ferramentas). A questão agora se torna a seguinte: quem deve ser o autêntico proprietário desta obra de arte que surge a partir do trabalho de modelagem do escultor? Mais uma vez, como no caso da propriedade do corpo das pessoas, só existem três posições lógicas: (1) que o escultor, o “criador” da obra de arte, deveria ter o direito de propriedade sobre sua criação; (2) que um outro homem ou grupo de homens tem o direito sobre esta criação, i.e., que podem expropriá-la por meio de força sem o consentimento do escultor; ou (3) a solução “comunista” — que todo indivíduo do mundo tem direito a compartilhar uma quota igual de propriedade da escultura.
Colocando de maneira mais direta, existem pouquíssimas pessoas que negariam a monstruosa injustiça que acontece quando um grupo ou a comunidade mundial se apodera da propriedade da escultura. Pois na verdade o escultor “criou” esta obra de arte — obviamente não no sentido de que ele tenha criado a matéria, mas no sentido de que ele produziu a obra de arte ao transformar a matéria dada pela natureza (a argila) em outra forma, de acordo com suas próprias ideias e seu próprio trabalho e energia. Certamente, se todo homem tem o direito de possuir seu próprio corpo, e se ele precisa usar e transformar objetos materiais naturais a fim de sobreviver, então ele tem o direito de possuir o produto que fabricou através de sua energia e de seu esforço, em uma genuína extensão de sua própria personalidade. Assim é o caso do escultor, que estampou a marca de sua própria pessoa no material bruto, ao “misturar seu trabalho” com a argila. Mas se o escultor assim o fez, também o fez todo produtor que se apropriou originalmente ou que misturou seu trabalho com os objetos da natureza.
Qualquer grupo de pessoas que expropriasse a obra do escultor estaria sendo claramente agressivo e parasitário — beneficiando-se às custas do expropriado. Como a maioria das pessoas concordaria, eles estariam claramente violando o direito do escultor sobre seu produto — sobre a extensão de sua personalidade. E isto seria verdade quer um grupo ou a “comuna universal” fizesse a expropriação — exceto esta última, como no caso da propriedade comunal das pessoas. (Na prática, esta expropriação teria que ser realizada por um grupo de homens em nome da “comunidade mundial.”) Mas, como nós indicamos, se o escultor tem o direito sobre seu próprio produto, ou sobre os materiais da natureza transformados por ele, então os outros produtores também os têm. Quem também tem esses direitos são os homens que extraíram a argila do solo e que a venderam ao escultor, ou os homens que produziram as ferramentas com que ele trabalhou a argila. Pois estes homens também eram produtores; eles também misturaram suas ideias e seus conhecimentos tecnológicos com o solo dado pela natureza para emergir com um produto valorizado. Eles também misturaram seus trabalhos e suas energias com a terra. E, assim, eles também têm o direito de propriedade sobre os bens que produziram. [3]
Se todo homem tem o direito de possuir sua própria pessoa e, portanto, seu próprio trabalho, e se, por extensão, ele possui qualquer propriedade que ele tenha “criado” ou coletado da condição natural previamente sem dono nem uso, então quem tem o direito de possuir ou de controlar a própria terra? Em suma, se o coletor tem o direito de possuir as frutas que coleta, ou o fazendeiro sua colheita de trigo, quem tem o direito de possuir a terra em que essas atividades ocorreram? Novamente, a justificação para a propriedade da área da terra é a mesma daquela de qualquer outra propriedade. Pois nenhum homem jamais “cria” realmente um material: o que ele faz é pegar matéria dada pela natureza e transformá-la por meio de suas ideias e de sua força de trabalho. Mas isto é precisamente o que o pioneiro — o apropriador original — faz quando ele desbrava e usa terras previamente virgens e sem uso e as transforma em sua propriedade privada. O apropriador original — assim como o escultor ou o minerador — transforma o solo dado pela natureza por meio de seu trabalho e de sua personalidade. O apropriador original é tanto um “produtor” quanto os outros e, portanto, é legitimamente o dono de sua propriedade. Como no caso do escultor, é difícil enxergar alguma moralidade caso algum outro grupo exproprie o produto e o trabalho do apropriador original. (E, como em todos os outros casos, a solução do “mundo comunista” resume-se, na prática, a um grupo dominante). Ademais, os defensores da terra comunitária, que reivindicam que toda a população mundial de fato possui a terra em comum, defrontam-se com a realidade natural de que, antes do apropriador original, ninguém realmente usava e controlava a terra, e, consequentemente, ninguém a possuía. O pioneiro, ou o apropriador original, é o homem que, pela primeira vez, coloca os objetos naturais, não usados e sem valor, em produção e em uso.
E, deste modo, existem apenas dois caminhos para que o homem adquira propriedade e riqueza: a produção ou a expropriação coercitiva. Ou, como diz de maneira perspicaz o grande sociólogo alemão Franz Oppenheimer, existem apenas duas maneiras de aquisição de riqueza. Uma é o método da produção, geralmente acompanhado da troca voluntária de tais produtos: isto é aquilo que Oppenheimer denominou deo meio econômico. O outro método é a apreensão unilateral dos produtos de outro homem: a expropriação da propriedade de outro homem através da violência. Oppenheimer sagazmente denominou este método predatório de se obter riqueza de o meio político.[4]
Assim sendo, o homem que captura a propriedade de outro está vivendo em uma contradição elementar com a sua própria natureza enquanto homem. Pois vimos que o homem só pode viver e prosperar através de sua própria produção e da troca de produtos. O agressor, por outro lado, não é de nenhuma maneira um produtor, mas sim um predador; ele vive do trabalho e do produto de outros como um parasita. Consequentemente, ao invés de viver de acordo com a natureza do homem, o agressor é um parasita que se alimenta unilateralmente ao explorar o trabalho e a energia de outros homens. Aí está claramente uma violação completa de qualquer tipo de ética universal, pois o homem evidentemente não pode viver como um parasita; os parasitas precisam de produtores não-parasitas para se alimentar. O parasita não só deixa de contribuir com o total social de bens e serviços, ele depende completamente da produção do corpo hospedeiro. E, ainda, qualquer aumento do parasitismo coercitivo diminui ipso facto a quantidade e o rendimento dos produtores, até que, finalmente, se os produtores extinguirem-se, os parasitas irão rapidamente ter o mesmo destino.
Portanto, o parasitismo não pode ser uma ética universal, e, na verdade, o crescimento do parasitismo fere e deprecia a produção por meio da qual tanto o hospedeiro quanto o parasita sobrevivem. A exploração coercitiva, ou o parasitismo, prejudica o processo de produção para todos que integram a sociedade. De todas as maneiras possíveis consideradas, a ação predatória e o roubo parasíticos violam não apenas a natureza da vítima que tem a sua própria pessoa e seus produtos violados, mas também a natureza do próprio agressor, que abandona a maneira natural de produção — de usar sua mente para transformar a natureza e para trocar com outros produtores — e a troca pela maneira da expropriação parasitária do trabalho e do produto de outros. Num sentido mais profundo, o agressor prejudica a si mesmo assim como a sua infeliz vítima. Isto é completamente verdadeiro tanto para a complexa sociedade moderna quanto para a ilha de Crusoé e de Sexta-feira.
[1] O professor George Mayrodes, do departamento de filosofia da Universidade de Michigan, alega que existe uma alternativa lógica: a saber, “que ninguém possui ninguém, nem ele mesmo, nem alguma outra pessoa, nem nenhum parte de ninguém”. No entanto, já que propriedade significa área de controle, isto significaria que ninguém poderia fazer coisa alguma e a raça humana rapidamente desapareceria.
[2] Uma variante modificada deste “complexo de Colombo” diz que o primeiro descobridor de uma nova ilha ou continente poderia convenientemente fazer uma reivindicação sobre todo o continente ao percorrer ele mesmo o território (ou contratar outros que o façam), traçando assim uma fronteira para a área. Em nossa visão, no entanto, esta reivindicação de propriedade só teria validade para a própria fronteira, pois apenas ela teria sido transformada e usada pelo homem.
[3] Cf. John Locke, Dois tratados sobre o governo civil, págs. 307–8
[4]Franz Oppenheimer, em seu livro The State (New York: Free Life Editions, 1975), pág. 12, disse:
Existem apenas duas maneiras fundamentalmente opostas pelas quais o homem, necessitado de sustento, é impelido a obter os meios necessários para satisfazer seus desejos. São elas o trabalho e o roubo, o trabalho próprio e a apropriação forçosa do trabalho de outros. . . . Eu proponho . . . chamar o trabalho próprio e a troca equivalente deste trabalho pelo trabalho de outros de o “meio econômico” para a satisfação das necessidades, enquanto a apropriação não correspondida do trabalho dos outros será chamada de “o meio político”.