Capítulo XIX. A taxa de juros
1. O fenômeno do juro
Já foi mostrada que a preferência temporal é uma categoria inerente a toda ação humana. A preferência temporal se manifesta no fenômeno do juro original, isto é, no menor valor de bens futuros em relação a bens presentes.
Juro não é apenas juro sobre capital. Juro não é apenas o ganho decorrente da utilização de capital. A correspondência, a que aludiam os economistas clássicos, entre os três fatores de produção — trabalho, capital e terra — e as três classes de renda — salários, juros e aluguel — não resiste a uma análise. O aluguel não é a renda específica da terra; é um fenômeno catalático geral. Representa na renda do trabalho e dos bens de capital o mesmo papel que na renda da terra. Além disso, não há nenhuma fonte homogênea de renda que possa ser chamada de lucro no sentido com que os economistas clássicos empregaram este termo. Lucro (no sentido de lucro empresarial) e juros não são mais características do capital do que o são da terra.
Os preços dos bens de consumo são, pela interação das forças que operam no mercado, rateados entre os vários fatores complementares que intervêm na sua produção. Como os bens de consumo são bens presentes, enquanto os fatores de produção são meios para produção de bens futuros, e como bens presentes têm um valor maior do que bens futuros de mesmo tipo e quantidade, a soma total rateada entre os diversos fatores de produção — mesmo no caso da construção imaginária da economia uniformemente circular — é menor do que o valor presente dos correspondentes bens de consumo. Essa diferença é o juro originário. Não tem nenhuma conexão específica com qualquer das três classes de fatores de produção que os economistas clássicos distinguiam. O lucro e a perda empresarial têm sua origem nas mudanças das condições de mercado e das consequentes mudanças nos preços que ocorrem durante o período de produção.
Para um observador superficial, a renda regular decorrente da caça, pesca criação de gado, exploração florestal e agrícola não suscita qualquer dúvida ou problema. A natureza produz os veados, os peixes e os bezerros e os faz crescer; graças a ela, as vacas dão leite e as galinhas põem ovos, as árvores produzem madeira e frutos e as sementes germinam as espigas. Quem detivesse o direito de se apropriar dessa riqueza recorrente gozaria de uma renda segura. Como um manancial de onde a água brota continuamente, o “fluxo de renda” fluiria sem cessar e proporcionaria, ininterruptamente, novas riquezas. O processo como um todo seria, para o nosso observador, um fenômeno natural. Mas, para o economista, estas coisas não são tão simples e suscitam o problema da determinação do preço da terra, do gado e de tudo o mais. Se os bens futuros não fossem comprados e vendidos com um desconto em relação aos bens presentes, o comprador da terra teria de pagar um preço igual à soma de todas as futuras receitas líquidas e este preço não deixaria margem alguma para uma renda corrente e reiterada.
As receitas anuais dos proprietários de terra e de gado não apresentam qualquer característica especial que as distingam, do ponto de vista cataláctico, das receitas decorrentes dos fatores de produção existentes que serão usados mais cedo ou mais tarde nos processos de produção. O poder de dispor sobre uma extensão de terra significa poder desfrutar de quantos frutos possam dela ser obtidos; o poder de dispor de uma mina significa poder desfrutar de todos os minerais que dela puderem ser extraídos. Da mesma maneira, a propriedade de uma máquina ou de um fardo de algodão significa o ato de decidir sobre qual será a sua cooperação na fabricação de todos os bens que com os mesmos podem ser fabricados. O erro fundamental implícito na abordagem do problema do juro a partir da produtividade ou do uso foi considerar o fenômeno do juro como decorrente dos serviços prestados pelos fatores de produção. Entretanto, a utilidade dos fatores de produção determina os preços a serem pagos por eles e não o juro. Esses preços exaurem completamente a diferença entre a produtividade de um processo que recebe a cooperação de um determinado fator e a produtividade de outro processo que não recebe essa cooperação. A diferença entre a soma dos preços dos fatores complementares de produção e os preços dos produtos, diferença essa que aparece mesmo na ausência de mudanças nos dados de mercado, resulta da maior valoração dos bens presentes em relação aos bens futuros. À medida que a produção segue o seu curso, os fatores de produção são transformados em bens presentes de maior valor. Esse incremento de valor, que é a fonte de ganhos específicos em favor dos proprietários dos fatores de produção, é à base do juro originário.
Os proprietários dos fatores materiais de produção — entendidos como distintos do puro empresário da construção imaginária de uma integração de funções catalácticas — colhem dois frutos cataliticamente diferentes: por um lado, os preços que se lhes pagam pela cooperação produtiva dos fatores que controlam e, por outro, o juro. Essas duas coisas não devem ser confundidas. Não tem sentido, para explicar o que seja juros, recorrer aos serviços prestados pelos fatores de produção no curso da produção.
O juro é um fenômeno homogêneo. Não existem diferentes fontes de juro. Juro auferido sobre um financiamento de bens duráveis ou sobre crédito para consumo são, como qualquer outro tipo de juro, uma consequência do maior valor atribuído aos bens presentes em comparação com os bens futuros.
2. Juro originário
Juro originário é a relação entre o valor atribuído à satisfação de uma necessidade no futuro imediato e o valor atribuído à sua satisfação em períodos mais distantes no tempo. Manifesta-se na economia de mercado pelo menor valor dos bens futuros em relação aos bens presentes. É uma relação entre preços da mesma mercadoria, e não um preço em si mesmo. Prevalece uma tendência de equalização dessa relação, para todas as mercadorias. Na construção imaginária da economia uniformemente circular, a taxa de juro originário é a mesma para todas as mercadorias.
O juro originário não é “o preço pago pelo serviço do capital”.[1] A maior produtividade dos métodos indiretos de produção que consomem mais tempo, a que se referem Böhm-Bawerk e alguns economistas mais recentes, para explicar o juro, não elucida o fenômeno. Ao contrário, é o fenômeno do juro originário que explica por que métodos de produção que consomem menos tempo são preferidos em relação a métodos que consomem mais tempo, apesar de estes terem uma maior produtividade por unidade de insumo. Além disso, é o fenômeno do juro originário que explica por que uma extensão de terra pode ser comprada e vendida a preços finitos. Se os serviços futuros que uma terra pode prestar fossem valorados da mesma maneira com que os seus serviços presentes são valorados, não haveria preço finito que fosse suficientemente alto para fazer o seu proprietário vendê-la. A terra não poderia ser comprada ou vendida por montantes definidos de moeda, nem trocada por bens que prestam apenas uma quantidade finita de serviços. Uma extensão de terra só poderia ser trocada por outra extensão de terra. Uma edificação que possa render uma renda anual de cem dólares, durante dez anos, teria por preço (sem computar o terreno onde foi construída) mil dólares no início do período, novecentos dólares no início do segundo ano e assim por diante. O juro originário não é um preço determinado no mercado pela interação da demanda e da oferta de capital ou de bens de capital. Seu nível não depende do volume dessa demanda e oferta. Ao contrário, é a taxa de juro originário que determina tanto a oferta quanto a demanda de capital e de bens de capital. Determina que parcela dos bens disponíveis deva ser consagrada ao consumo no futuro imediato, e que parcela deve ser provisionada para períodos mais remotos do futuro.
As pessoas não poupam e acumulam capitais porque existe o juro. O juro não é nem o impulso que faz poupar nem a recompensa ou a compensação concedida pela abstenção do consumo imediato. É a relação entre o valor atribuído aos bens presentes e o valor atribuído aos bens futuros. O mercado de empréstimos não determina a taxa de juros. Ajusta a taxa de juros dos empréstimos à taxa do juro originário manifestada no desconto de bens futuros.
O juro originário é uma categoria da ação humana. Intervém em qualquer valoração de coisas exteriores e não pode jamais desaparecer. Se algum dia se reproduzir a situação do fim do primeiro milênio da era cristã, quando algumas pessoas acreditavam que o fim do mundo estava iminente, os homens deixariam de fazer provisões para futuras necessidades materiais. Os fatores de produção, para essas pessoas, perderiam todo valor e se tornariam inúteis. A taxa de desconto de um bem futuro em relação a um presente não desapareceria; ao contrário, aumentaria acima de qualquer medida. Por outro lado, o desaparecimento do juro originário significaria que as pessoas não atribuem nenhuma importância ao fato de que uma necessidade seja satisfeita mais cedo ou mais tarde. Significaria que, a ter uma maçã hoje, amanhã, ou no próximo ano ou daqui a dez anos, preferem ter duas maçãs daqui a mil ou dez mil anos.
Não é sequer concebível um mundo no qual o juro originário não exista como um elemento inexorável de todo e qualquer tipo de ação. Haja ou não divisão do trabalho e cooperação social, e seja a sociedade organizada com base na propriedade privada ou pública dos meios de produção, o juro originário está sempre presente. Numa comunidade socialista, o seu papel não seria diferente do que é numa economia de mercado.
Böhm-Bawerk desmascarou de uma ver por todas as falácias que tentam ingenuamente explicar o juro como sendo decorrente da produtividade, isto é, a ideia de que o juro é a expressão da produtividade física dos fatores de produção. Apesar disso, Böhm- Bawerk, também, de certa forma, baseou sua própria teoria no conceito de produtividade. Ao se referir à superioridade tecnológica dos processos indiretos de produção que consomem mais tempo, Böhm-Bawerk evita o simplismo ingênuo da explicação com base na produtividade. Mas, de fato, retorna, embora de maneira mais sutil, à abordagem produtivista. Os economistas mais recentes que, negligenciando a ideia da preferência temporal, enfatizaram apenas a ideia de produtividade contida na teoria de Böhm-Bawerk, não podem deixar de concluir que o juro originário terá que desaparecer se os homens algum dia alcançarem um estado de coisas no qual nenhum alongamento do período de produção puder acarretar um aumento de produtividade.[2] Entretanto, esta seria uma conclusão inteiramente errada. O juro originário não pode desaparecer enquanto houver escassez e, portanto, ação.
Enquanto o mundo não se tornar o País da Fantasia, os homens se defrontarão com a escassez e precisarão agir e economizar; serão forçados a escolher entre satisfazer-se em um futuro mais próximo ou mais remoto, porque nem no primeiro e nem no segundo caso a satisfação plena poderá ser atingida. Portanto, uma mudança no emprego de fatores de produção — retirando tais fatores do seu uso para satisfação de necessidade no futuro próximo, a fim de empregá-los na satisfação de necessidade no futuro mais remoto — deverá, necessariamente, prejudicar o estado de satisfação no futuro próximo e melhorá-lo no futuro remoto. Se pretendermos que as coisas não se passem dessa maneira, ficaremos embaraçados em contradições insolúveis. Podemos, na melhor das hipóteses, imaginar uma situação na qual o conhecimento tecnológico tenha atingido tal nível, além do qual não haja mais progresso possível para os mortais. Nenhum novo processo que aumente a produção por unidade de aporte pode ser inventado. Mas, se supusermos que alguns fatores de produção são escassos, termos de admitir que nem todos os processos mais produtivos — independentemente do tempo que absorvam — estão sendo plenamente utilizados, e que, se processos de menor produtividade são utilizados, é simplesmente porque produzem o seu resultado em tempo menor do que outros processos de maior produtividade física. Escassez de fatores de produção significa que temos a possibilidade de fazer planos para melhorar o nosso bem estar, cuja realização não é viável em decorrência da insuficiência dos meios disponíveis. A escassez consiste precisamente nessa impossibilidade de realizar todas as melhorias desejáveis. As conotações da expressão de Böhm-Bawerk métodos indiretos de produçãoe a ideia de progresso tecnológico nela implícita confundiram o raciocínio dos que modernamente dão ênfase exagerada à produtividade. Entretanto, se há escassez, deve haver sempre oportunidades tecnológicas de melhorar o bem estar pelo prolongamento do período de produção de alguns setores da atividade industrial, oportunidades essas que não são aproveitadas, independentemente do progresso dos nossos conhecimentos tecnológicos. Se os meios são escassos, se persiste correlação praxeológica de meios e fins, logicamente terá de existir necessidades não satisfeitas em relação tanto ao futuro mais próximo quanto ao mais remoto. Existirão sempre bens aos quais teremos de renunciar porque a única maneira de produzi-los é muito demorada e nos impediria de satisfazer outras necessidades mais urgentes. O fato de não provermos mais amplamente para o futuro resulta do fato de ponderarmos e preferirmos atender a necessidades no futuro próximo, em vez de atender a necessidades do futuro mais remoto. A relação decorrente dessa valoração é o juro originário.
Num mundo em que o conhecimento tecnológico seja perfeito, imaginemos que um empresário faça um plano A, segundo o qual pretendesse erguer um hotel num local pitoresco, numa montanha de difícil acesso, cuja estrada tivesse de ser construída. Ao examinar a viabilidade do plano, ele se dá conta de que os meios disponíveis não são suficientes para executá-lo. Calculando as perspectivas de lucratividade do investimento, chega à conclusão de que a receita esperada não é suficientemente grande para cobrir os custos com o material e mão de obra a serem gastos e com os juros sobre o capital investido. Em consequência, renuncia ao projeto A e se propõe a realizar outro plano, B. Segundo esse plano B, o hotel deveria ser construído num local de mais fácil acesso, que não é tão pitoresco como o local anterior, do plano A, mas que permite uma construção por um custo menor ou num tempo mais curto. Se o juro sobre o capital investido não fosse considerado no cálculo, poderia advir a ilusão de que, no estado atual do mercado — disponibilidade de bens de capital e interesse da clientela -, seria justificável e execução do plano A. Sua realização, entretanto, implicaria em retirar fatores escassos de produção de empregos onde poderiam satisfazer necessidades consideradas mais urgentes pelos consumidores. Seria, claramente, um mau investimento, um desperdício dos meios disponíveis.
Um prolongamento do período de produção pode aumentar a quantidade produzida por unidade aportada ou produzir bens que não poderiam ser produzidos num período de produção menor. Mas imputar o valor dessa riqueza adicional aos bens de capital necessários ao prolongamento do período de produção não é uma explicação correta para o fenômeno do juro. Quem supuser que assim seja estará recaindo no mais crasso dos erros da abordagem produtivista, já irrefutavelmente desmascarado por Böhm-Bawerk. A contribuição dos fatores complementares de produção ao resultado do processo é a razão para que lhes seja atribuído um valor; essa contribuição justifica o preço pago por eles e está plenamente considerada nos mesmos. Não sobra nenhum resíduo que possa ser considerado como uma explicação para o juro.
Tem sido afirmado que, na construção imaginária da economia uniformemente circular, não haveria juro.[3]Entretanto, pode ser demonstrado que essa afirmativa é incompatível com as premissas em que está baseada a construção da economia uniformemente circular.
Comecemos por distinguir entre duas classes de poupança: poupança simples e poupança capitalista. Poupança simples consiste meramente em acumular bens de consumo para consumi-los mais tarde. Poupança capitalista consiste na acumulação de bens destinados a melhorar os processos de produção. O objetivo da poupança simples é o consumo futuro; é um mero adiamento do consumo. Mais cedo ou mais tarde os bens acumulados serão consumidos e não restará nada. O objetivo da poupança capitalista é, primeiro, aumentar a produtividade do esforço. Acumula bens de capital que serão empregados mais tarde na produção e não meramente reservados para consumo posterior. A vantagem decorrente da poupança simples é o consumo posterior da quantidade que não foi consumida. A vantagem decorrente da poupança capitalista é o aumento da quantidade de bens produzidos ou a produção de bens que não poderiam ser produzidos sem sua existência. Ao imaginarem uma economia uniformemente circular (estática), os economistas não levam em conta o processo de acumulação de capital; os bens de capital são um dado invariável, uma vez que, por definição, não ocorrem mudanças nos dados. Não há nem acumulação de novo capital através da poupança, nem consumo do capital disponível através de um excedente de consumo sobre a renda, ou seja, sobre a produção corrente menos os fundos necessários para a manutenção do capital. Cabe-nos, agora, demonstrar que essas premissas são incompatíveis com a ideia da inexistência de juro.
Não precisamos nos deter muito na poupança simples. O objetivo da poupança simples é prover para um futuro em que o poupador possivelmente estará menos bem suprido do que no presente. Contudo, uma das premissas básicas que caracterizam a construção imaginária da economia uniformemente circular é que o futuro não difere em nada do presente, que os atores têm plena consciência disso e agem consequentemente. Assim sendo, nesse contexto não há lugar para o fenômeno da poupança simples.
O mesmo não ocorre com a poupança capitalista, ou seja, com o correspondente aumento do estoque de bens de capital. Não há, na economia uniformemente circular, nem poupança e acumulação de adicionais bens de capital nem consumo dos já existentes bens de capital. Ambos os fenômenos equivaleriam a uma mudança nos dados e, portanto, perturbariam o giro uniforme desse sistema imaginário. Ora, o volume de poupança e de acumulação de capital no passado — isto é, no período precedente ao estabelecimento da economia uniformemente circular — corresponde a uma determinada taxa de juro. Se — tendo sido estabelecida a economia uniformemente circular — os proprietários dos bens de capital deixassem de receber qualquer juro, as condições que determinaram a alocação dos estoques disponíveis de bens para satisfação de necessidades nos vários períodos do futuro ficariam transtornadas. O novo estado de coisas requereria uma nova alocação. Mesmo na economia uniformemente circular, a diferença na valoração da satisfação de necessidades nos vários períodos do futuro não pode desaparecer. Mesmo no contexto dessa construção imaginária, as pessoas atribuirão um maior valor a uma maçã disponível hoje do que a uma maçã disponível em dez ou cem anos. Se o capitalista deixar de receber juros, rompe-se o equilíbrio entre a satisfação de necessidades em períodos do futuro mais próximo ou do mais remoto. O fato de que um capitalista tenha mantido seu capital em 100.000 dólares está condicionado pelo fato de que 100.000 dólares hoje equivalem a 105.000 dólares daqui a um ano. Esses 5.000 dólares seriam, para o capitalista, suficientes para superar as vantagens advindas de um consumo instantâneo de uma parte dessa soma. A supressão dos pagamentos de juros provocaria o consumo do capital.
Esta é a principal deficiência do sistema estático que Schumpeter descreve. Não basta supor que o equipamento de capital de tal sistema tenha sido acumulado no passado, que esteja agora disponível na mesma quantidade de sua prévia acumulação e que, portanto, se tenha mantido inalterado nesse nível. É preciso também indicar as forças que mantêm essa inalterabilidade. O papel do capitalista como recebedor de juros, se for eliminado, será substituído pelo papel do capitalista como consumidor de capital. Deixaria de haver qualquer razão para que o proprietário de bens de capital se abstivesse de consumi-los imediatamente.
Nas premissas implícitas na construção imaginária de uma situação estática (a economia uniformemente circular), não há necessidade de manter reserva para dias piores. Mas, mesmo se quiséssemos admitir, com evidente inconsistência lógica, que uma parte desses bens fosse destinada a constituir uma reserva e, portanto, fosse retirada do consumo corrente, pelo menos a parte do capital que corresponde ao excedente de poupança capitalista sobre poupança comum será consumida.[4]
Se não houvesse o juro originário, os bens de capital não seriam destinados ao consumo imediato e tampouco o capital seria consumido. Ao contrário, em tal situação inconcebível e inimaginável não haveria consumo, mas, apenas, poupança, acumulação de capital e investimento. O que, na realidade, provocaria o consumo do capital existente seria não o impossível desaparecimento do juro originário, mas a abolição do pagamento de juros aos proprietários de capital. Neste caso, os capitalistas consumiriam os seus bens de capital precisamente porque existe o juro originário e a satisfação presente é preferida à satisfação futura.
Portanto, é inadmissível supor que o juro possa ser abolido por qualquer instituição, lei ou manipulações bancárias. Quem pretender “abolir” o juro terá de convencer as pessoas de que uma maçã disponível daqui a cem anos terá o mesmo valor de hoje. O que pode ser abolido pelas leis e decretos é apenas o direito de os capitalistas receberem juros. Mas tais decretos provocariam o consumo de capital e rapidamente reconduziriam a humanidade à sua originária e natural pobreza.
3. O nível da taxa de juros
Na poupança simples e na poupança capitalista praticada por atores econômicos isolados, o distinto valor atribuído à satisfação de necessidades nos vários períodos do futuro se manifesta pela proporção entre o que as pessoas provêm para o futuro mais próximo e o que elas provêm para o futuro mais remoto. Numa economia de mercado, e supondo-se existirem as condições para o estabelecimento da construção imaginária de uma economia uniformemente circular, a taxa de juro originário é igual a relação entre uma determinada quantidade de moeda disponível e a quantidade disponível mais tarde, que lhe seja considerada como equivalente.
A taxa de juro originário direciona as atividades de investimento dos empresários. Determina o tamanho do período de espera e do período de produção de cada setor da indústria.
As pessoas frequentemente levantam a questão sobre qual taxa de juro, alta ou baixa, estimularia mais a poupança e a acumulação de capital, e qual a estimularia menos. Essa questão não faz sentido. Quanto menor o desconto atribuído aos bens futuros, menor a taxa de juro originário. As pessoas não poupam porque a taxa de juro originário aumentou, e a taxa de juro originário não baixa porque aumentou o volume de poupança. As mudanças na taxa de juro originário e no volume de poupança são — tudo o mais, especialmente as condições institucionais, sendo igual — dois aspectos do mesmo fenômeno. O desaparecimento do juro originário seria equivalente ao desaparecimento do consumo. O aumento ilimitado do juro originário seria equivalente ao desaparecimento da poupança e de qualquer provisão para o futuro.
A quantidade disponível de bens de capital não influencia nem a taxa de juro originário nem a poupança futura. Mesmo a maior abundância de capital não produz, necessariamente, uma diminuição da taxa de juro originário nem uma queda na propensão para poupar. O aumento da acumulação de capital e da quota de capital investido per capita, que é a marca característica das nações mais avançadas economicamente, não diminui, necessariamente, a taxa de juro originário nem enfraquece a propensão dos indivíduos para aumentar sua poupança. Ao lidarem com esses problemas, são muitas as pessoas que se confundem ao comparar meramente as taxas de juros de mercado, determinadas pelo mercado financeiro. Entretanto, essas taxas brutas não exprimem apenas o nível do juro originário. Elas contêm como serão mostrado mais tarde, outros elementos, cujos efeitos explicam por que as taxas brutas são, em geral, maiores nos países mais pobres do que nos países mais ricos.
Costuma-se dizer que, tudo o mais sendo igual, quanto melhor os indivíduos estejam fornidos para o futuro imediato, melhor proveriam as necessidades do futuro mais remoto. Consequentemente, acrescentar o volume total de poupança e de acumulação de capital num sistema econômico dependeria da distribuição da população pelos grupos com diferentes níveis de renda. Numa sociedade em que haja uma razoável igualdade de renda, dizem ainda, haveria menos poupança do que numa sociedade em que haja maior desigualdade Tais observações contêm um grão de verdade. Entretanto, são afirmativas sobre fatos psicológicos, faltando-lhes, por isso mesmo, a validade e necessidade universais, inerentes às afirmativas praxeológicas. Além disso, o “tudo o mais” cuja igualdade se pressupõe compreende as várias valorações individuais, ou seja, os julgamentos de valor subjetivos que ponderam os prós e os contras do consumo imediato ou de sua postergação. Certamente muitos indivíduos se comportarão da maneira descrita, mas outros agirão de maneira diferente. Os camponeses franceses, embora de renda e fortuna modestas, eram, no século XIX, amplamente reconhecidos como pessoas de hábitos parcimoniosos, enquanto que os ricos membros da aristocracia, herdeiros de grandes fortunas amealhadas no comércio e na indústria, eram não menos reconhecidos por sua prodigalidade.
Portanto, é impossível formular qualquer teorema praxeológico que relacione a quantidade de capital disponível pela nação como um todo ou pelos indivíduos pessoalmente, de um lado, com a quantidade de poupança ou de capital consumido, ou o nível da taxa de juro original, de outro. A alocação de recursos escassos para satisfação de necessidades em vários períodos do futuro é determinada por julgamentos de valor e indiretamente por todos aqueles fatores que constituem a individualidade do agente homem.
4 — O juro originário numa economia mutável
Até agora abordamos o problema do juro originário sobre certas premissas: que as operações mercantis sejam efetuadas com base no emprego de moeda neutra; que a poupança, a acumulação de capitais e a determinação da taxa de juros não sejam deformadas por interferências institucionais; e que a economia funcione como uma economia uniformemente circular. No próximo capítulo, abordaremos as duas primeiras premissas. Por ora nos ocuparemos do juro originário numa economia mutável.
Quem desejar prover para a satisfação de futuras necessidades precisará definir corretamente e com antecipação quais serão essas necessidades. Se a sua compreensão de como serão as coisas no futuro não se revelar acertada, sua provisão será insatisfatória ou até totalmente inútil. Não há o que se possa chamar de uma poupança abstrata que pudesse atender a qualquer tipo de necessidade, e que, ao mesmo tempo, permanecesse neutra em relação às mudanças de circunstâncias e de valorações. O juro originário, portanto, não poderá jamais apresentar-se, numa economia mutável, de uma forma pura e perfeita. Somente na hipótese da construção imaginária da economia uniformemente circular é que o juro originário decorre da mera passagem do tempo; com a passagem do tempo e com o progresso do processo de produção, um valor cada vez maior se agrega, como se assim fosse, aos fatores complementares de produção; ao término do processo de produção, o lapso de tempo incorporou ao preço do produto a sua quota de juro originário. Na economia mutável, durante o período de produção, ocorrem, no mesmo tempo, outras mudanças nas valorações. Alguns bens são mais valorados do que antes, outros menos. Essas alterações são a fonte do lucro e da perda empresarial. Somente os empresários que no seu planejamento prognosticaram corretamente a situação futura do mercado conseguem, ao vender seus produtos, colher um excedente sobre o custo de produção (no qual está incluído o juro originário líquido). Um empresário cuja compreensão do futuro não se revelar acertado só poderá vender seus produtos por preços que não chegam a cobrir os seus custos, inclusive o juro originário sobre o capital investido.
O juro não é um preço, como tampouco não o são o lucro e a perda empresarial; é uma grandeza que precisaria ser separada, por algum modo especial do cálculo, do preço dos produtos de uma operação comercial bem-sucedida. A diferença bruta entre o preço pelo qual uma mercadoria é vendida e os custos incorridos para sua produção (exclusive o juro sobre o capital investido) foi denominada de lucro na terminologia dos economistas clássicos ingleses.[5] A ciência econômica moderna concebe essa grandeza como um conjunto de elementos catalácticos diferentes. O excedente da receita bruta sobre as despesas que os economistas clássicos denominavam lucro inclui o preço do trabalho do próprio empresário utilizado no processo de produção, o juro sobre o capital investido e, finalmente, o lucro empresarial propriamente dito. Se tal excedente não existir, o empresário, além de não ter lucro propriamente dito, também não recebe a remuneração correspondente ao seu trabalho ao valor de mercado, nem o juro sobre o capital investido.
A decomposição do lucro bruto (no sentido clássico do termo) em remuneração salarial do empresário, juro e lucro empresarial não é mero expediente da teoria econômica. Tal distinção adquiriu importância nas práticas e rotinas comerciais pelo aperfeiçoamento dos sistemas de contabilidade e cálculo econômico, que evoluíram com total independência do raciocínio dos economistas. O empresário judicioso e sensível não atribui importância prática ao conceito de lucro, confuso e deturpado como o empregavam os economistas clássicos. Sua noção de custo de produção inclui o valor potencial de mercado para os seus próprios serviços, o juro pago sobre capital emprestado e o juro potencial que poderia ganhar, se aplicasse, no mercado financeiro, o capital investido na empresa. Somente o que exceder os custos assim calculados é considerado como lucro pelo empresário.[6]
Separar o salário do empresário do conjunto representado pelo conceito de lucro dos economistas clássicos não oferece nenhuma dificuldade especial. É mais difícil separar o lucro empresarial do juro originário. Na economia mutável, o juro estipulado em contratos de empréstimo é sempre o juro bruto a partir do qual a taxa do juro originário puro deve ser computada por um processo especial de cálculo e repartição analítica. Já foi mostrado que em toda operação de empréstimo, mesmo sem considerar o problema das mudanças no poder aquisitivo da unidade monetária, há um componente de risco empresarial. A concessão de crédito é sempre, necessariamente, uma especulação empresarial que possivelmente pode resultar em fracasso e na perda de uma parte do total emprestado. Todo juro estipulado e pago nas operações de empréstimo inclui não apenas o juro originário, como também o lucro empresarial.
Esse fato, durante muito tempo, dificultou a formulação de uma teoria do juro. A elaboração da construção imaginária da economia uniformemente circular tornou possível distinguir, com precisão, o juro originário do lucro e perda empresarial.
5 — O cálculo do juro
O juro originário é uma consequência de valorações que variam e flutuam incessantemente. Ele varia e flutua com elas. O costume de adotar taxas anuais é simplesmente uma prática comercial e um critério mais fácil para o cálculo. Não afeta o nível das taxas de juros determinadas pelo mercado.
As atividades dos empresários tendem a provocar o estabelecimento de uma taxa uniforme de juro originário na economia de mercado como um todo. Quando, num determinado setor do mercado, a margem entre os preços dos bens presentes e dos bens futuros se afasta da margem prevalecente em outros setores, a propensão dos homens de negócio para atuar nos setores em que a margem é maior e evitar os setores em que é menor provoca uma tendência de equalização. A taxa final de juro originário é a mesma em todos os setores do mercado, numa economia uniformemente circular.
As pessoas, ao preferirem satisfazer uma determinada necessidade num período mais próximo do futuro do que satisfazê-la num período mais remoto, estão emitindo valorações que provocam o surgimento do juro originário. Não há nada que justifique a suposição de que esse desconto de satisfação aumente de forma contínua e uniforme ao longo de períodos do futuro cada vez mais remotos. Se fosse assim, o período de provisão seria infinito. Ora, o simples fato de os indivíduos serem diferentes quanto ao grau de provisão para suas futuras necessidades e de até mesmo o mais providente dos homens considerar inútil prover para além de um determinado período nos impede de considerar que o período de provisão possa ser infinito.
Não nos devemos confundir com os usos e costumes do mercado financeiro. É comum que os contratos de empréstimo estipulem uma taxa uniforme de juro, vigente durante toda a duração do contrato,[7] e que adotem uma taxa uniforme para cálculo dos juros compostos. A efetiva determinação das taxas de juros não depende desses ou de outros dispositivos aritméticos usados para calcular juros. Se a taxa de juros está fixada em contrato de forma inalterável por um período de tempo, as mudanças que ocorrerem na taxa de mercado estão refletidas nas correspondentes mudanças nos preços pagos pelo principal, levando-se na devida conta o fato de que o montante do principal a ser pago no vencimento do empréstimo está estipulado de forma inalterável. O resultado não se altera pelo fato de calcularmos com uma taxa de juro invariável e preços variáveis para o principal, ou com uma taxa de juro variável e um montante invariável para o capital, ou com a variação de ambas as grandezas.
Os termos de um contrato de empréstimo não são independentes da duração do mesmo. Não só porque os componentes da taxa bruta de juros do mercado, que fazem com que esta se desvie da taxa de juro originário, são afetados pela sua duração, como também, em decorrência de fatores que provocam mudanças na taxa de juro originário, os contratos de empréstimo são valorados e avaliados diferentemente segundo a sua duração.
[1] Essa é a definição corrente de juro como, por exemplo, dada por Ely, Adams, Lorenz e Young, em Outlines of Economics, 3. ed., Nova Iorque, 1920, p. 493.
[2] Ver Hayek, “The Mythology of Capital”. The Quarterly Journal of Economics, L, 1936, p. 223 e segs. Embora o professor Hayek tenha, depois disso, mudado em parte seu ponto de vista (ver artigo “Time-Preference and Productivity, a Reconsideration” Economica, vol.12, 1945, p. 22-25), a ideia criticada no texto ainda é largamente defendida por economistas.
[3] Ver J. Schumpeter, The Theory of Economic Development. Trad. R. Opie, Cambridge, 1934, p. 34-46,54.
[4] Ver Robbins, “On a Certain Ambiguity in the Conception of Stationary Equilibrium”, The Economic Journal, vol.40, 1930, p. 211 e segs.
[5] Ver R. Whately, Elements of Logic, 9. ed., Londres, 1848, p. 354 e segs; E. Cannan, A History of the Theories of Production and Distribution in English Political Economy from 1776 to 1843, 3. ed., Londres, 1924, p. 189.
[6] A confusão intencional que hoje em dia se faz em relação a todos os conceitos econômicos conduz ao obscurecimento dessa distinção. Assim, nos Estados Unidos, ao se referirem aos dividendos pagos pelas companhias, as pessoas falam de “lucros”.
[7] Também existem, é claro, os desvios em relação a essa prática habitual.