Ação Humana – Um Tratado de Economia

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Capitulo XX. O juro, a expansão de crédito e o ciclo econômico

 1 — Os problemas

 

Na economia de mercado, na qual todas as trocas interpessoais se efetuam por intermédio de moeda, a categoria juro originário se manifesta primordialmente no juro dos empréstimos monetários.

Já foi salientado que na construção imaginária da economia uniformemente circular a taxa de juro originário é uniforme. Prevalece, em todo o sistema como um todo em uma única taxa de juros. A taxa de juros para empréstimos coincide com a taxa de juro originário manifestado pela relação entre os preços de bens futuros e bens presentes. Podemos denominá-la taxa de juros neutros.

A economia uniformemente circular pressupõe a neutralidade da moeda. Mas, não podendo a moeda ser neutra, surge alguns problemas especiais.

Se a relação monetária — isto é, a relação entre a demanda por moeda para aumentar os encaixes individuais e a oferta de moeda para reduzir os encaixes individuais — varia, todos os preços de bens e serviços são afetados. Essas mudanças, entretanto, não afetam os preços dos vários bens e serviços ao mesmo tempo e nem na mesma proporção. Em consequência disso, ocorrem modificações na riqueza e na renda de vários indivíduos, as quais podem alterar os dados determinantes do nível de juro originário. O estado final da taxa de juro originário para o qual tende o sistema após as mudanças na relação monetária já não é o mesmo estado final para o qual tendia antes. Assim sendo, a moeda em si tem o poder de provocar mudanças duradouras na taxa de juro originário e de juro neutro.

Surge então um segundo problema, ainda mais importante, e que, certamente, também pode ser considerado como uma variante do mesmo problema anterior. As mudanças na relação monetária podem, em certas circunstâncias, afetar primeiramente o mercado de empréstimos, no qual a demanda e a oferta de empréstimos influenciam a taxa de mercado de juro para empréstimos; denominaremos essa relação de taxa bruta de juro (ou taxa de mercado). Pode tais mudanças na taxa bruta fazer com que a taxa líquida de juro, nela contida, se desvie de forma duradoura do nível que corresponde à taxa de juro originário, isto é, da diferença de valor entre bens presentes e bens futuros? Podem eventos no mercado de empréstimo eliminar, parcial ou totalmente, o juro originário? Nenhum economista hesitaria em responder negativamente a estas questões. Mas então surge outro problema: como é que a interação dos fatores de mercado reajusta a taxa bruta de juro à taxa de juro originário?

São problemas importantes. São estes problemas que os economistas tentam resolver ao estudar a atividade bancária, os meios fiduciários e o crédito comercial, a expansão de crédito, a gratuidade ou a não gratuidade do crédito, os ciclos econômicos e todos os outros problemas de troca indireta.

 

2 — O componente empresarial na taxa bruta de juro do mercado

 

As taxas de juro do mercado para empréstimos não são taxas de juro puro. Entre os componentes que contribuem para sua determinação existem elementos que não são juro. O emprestador de moeda é sempre um empresário. Toda concessão de crédito é um risco especulativo empresarial, cujo sucesso ou fracasso é incerto. O emprestador corre sempre o risco de perder uma parte ou todo o principal emprestado ou parte dele. A avaliação que faz desse risco determina a sua conduta na negociação das condições do empréstimo com o tomador.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Não pode haver, jamais, segurança total em operações de empréstimo ou em qualquer outro tipo de operação de crédito e de pagamentos futuros. Os devedores, garantidores e avalistas podem tornar-se insolventes; as garantias colaterais e as hipotecas podem perder o valor. O credor é sempre uma espécie de sócio do devedor ou um virtual proprietário dos bens que garantem a operação. Qualquer variação no valor desses bens pode afetá-lo. Sua sorte está ligada à do devedor ou às mudanças que ocorram no preço das garantias colaterais. O capital em si não rende juros; precisa ser empregado e investido não só para que renda juros, mas também para que não desapareça inteiramente. Nesse sentido, é muito verdadeiro o ditadopecunia pecuniam parere non potest (dinheiro não cria dinheiro), embora não fosse esse o sentido que lhe atribuíam os filósofos da Idade Média. O juro bruto só pode ser recebido por quem for bem-sucedido na concessão de crédito. Se efetivamente auferir algum juro líquido, este estará incluído numa renda que contém mais do que apenas o juro líquido. O juro líquido é uma grandeza que só pode ser separada da receita bruta do credor por meio de raciocínio analítico.

O componente empresarial incluído na receita bruta do credor é determinado pelos mesmos fatores que afetam qualquer atividade empresarial. Além disso, é co-determinado pelo quadro legal e institucional. Os contratos que colocam o devedor e sua fortuna ou as garantias colaterais como um amortecedor entre o credor e as consequências desastrosas de uma operação de empréstimo malfeita são condicionados pelas leis e pelas instituições. O credor está menos exposto a perdas do que o devedor, somente na medida em que o quadro legal e institucional lhe dê condições de forçar o devedor recalcitrante a pagar o seu débito.

Entretanto, não há necessidade de a ciência econômica entrar numa análise detalhada dos aspectos legais envolvidos em títulos e debêntures, ações preferenciais, hipotecas e outros tipos de operações de crédito.

O componente empresarial está presente em todos os tipos de empréstimo. Costuma se distinguir entre empréstimo pessoal ou para consumo, de um lado, e comercial ou produtivo, de outro. O traço característico do primeiro tipo consiste em permitir que o tomador gaste receitas esperadas futuras. Ao adquirir o direito a uma parte dessas receitas futuras, o emprestador torna-se virtualmente um empresário, como se tivesse adquirido um direito nas receitas futuras de um negócio. O risco específico quanto ao resultado do seu empréstimo consiste na incerteza em relação a essas receitas futuras.

Costuma-se também distinguir entre empréstimos privados e públicos, servindo esta última qualificação para designar empréstimos a governos ou a repartições governamentais. O risco específico reside na duração do poder temporal. Impérios podem entrar em colapso e governos podem ser derrubados por movimentos revolucionários que não estejam dispostos a se responsabilizar por débitos contraídos por seus predecessores. Além disso, como já foi assinalado anteriormente, 1 há, em todos os tipos de dívida pública de longo prazo, alguma coisa intrinsecamente malsã.

Sobre todos os tipos de pagamentos a prazo pende, como uma espada de Dámocles, o perigo da interferência governamental. A opinião pública sempre teve preconceito em relação aos credores; identifica-os com o rico ocioso, e aos devedores com o trabalhador pobre.  Abomina os primeiros como exploradores gananciosos e apieda-se dos últimos como vítimas inocentes da opressão. Considera a ação do governo que visa a reduzir os direitos dos credores como uma medida extremamente benéfica para a imensa maioria, à custa de uma pequena minoria de usurários insensíveis. A opinião pública ainda não percebeu que as inovações capitalistas do século XIX mudaram completamente a composição das classes credoras e devedoras. Na Atenas de Sólon, na Roma das leis agrárias e na Idade Média, os credores de um modo geral eram os ricos e os devedores, os pobres. Mas, nesta nossa época de títulos e debêntures, de bancos hipotecários, sociedades de poupança, apólices de seguro de vida e instituições de previdência social, as massas populares de menor renda são muito mais credoras do que devedoras. Por outro lado, os ricos, na qualidade de proprietários de ações, de fábricas, de fazendas e de imóveis, são muito mais devedores do que credores. Ao pedir a expropriação dos credores, as massas inadvertidamente estão indo contra os seus próprios interesses.

Sendo essa a opinião dominante no público, a possibilidade de o credor ser atingido por medidas anticredor não é contrabalançada pela possibilidade de ser ele beneficiado por medidas antidevedor. Esse desequilíbrio provocaria uma tendência unilateral de aumento do componente empresarial contido na taxa bruta de juros, se o risco político estivesse limitado ao mercado de empréstimos, e não afetasse da mesma maneira todos os tipos de propriedade privada dos meios de produção. Hoje, do jeito que as coisas estão, qualquer investimento corre o risco de sofrer as consequências de medidas anticapitalistas. Um capitalista não diminui a vulnerabilidade de sua riqueza por preferir investir diretamente na empresa em vez de emprestar seu capital ao governo ou a particulares.

Os riscos políticos implícitos nos empréstimos de dinheiro não afetam o nível de juro originário; afetam o componente empresarial incluído na taxa bruta de juros. No caso extremo — isto é, quando fosse iminente a anulação de todos os contratos que envolvem pagamentos a prazo — o componente empresarial cresceria ilimitadamente. 2

 

3 — O prêmio compensatório3 como um componente da taxa bruta de juros de mercado

 

A moeda seria neutra se as mudanças no poder aquisitivo da unidade monetária provocadas por variações dos encaixes afetassem, ao mesmo tempo e na mesma medida, os preços de todas as mercadorias e serviços. Com uma moeda neutra, seria concebível uma taxa de juros neutra, desde que não houvesse pagamentos a prazo. Se existem pagamentos a prazo e se não consideramos a condição empresarial do credor — e a consequente componente empresarial da taxa bruta de juros -, temos ainda assim que admitir, ao se estabelecerem os termos de um contrato de empréstimo, a possibilidade de futuras variações no poder aquisitivo da moeda. O principal deveria ser multiplicado periodicamente por um número índice que refletisse as mudanças ocorridas, para mais ou para menos, no poder aquisitivo.

Com o ajuste do principal, o montante sobre o qual o juro é calculado também mudaria. Sendo assim, a taxa de juro seria neutra.

Com uma moeda neutra, a neutralização da taxa de juros também poderia ser obtida com outro tipo de ajuste, sempre que as partes pudessem prever corretamente as futuras mudanças do poder aquisitivo. Assim sendo, elas poderiam estipular uma taxa bruta de juros que contivesse uma provisão para essas mudanças, uma percentagem de acréscimo ou redução da taxa de juro originário. Podemos denominar essa provisão — positiva ou negativa — de prêmio compensatório. No caso de uma deflação pronunciada, o prêmio compensatório negativo poderia não só absorver totalmente a taxa de juro originário, como até mesmo transformar a taxa bruta numa taxa negativa, num montante a ser debitado ao credor. Se o prêmio compensatório for corretamente calculado, nem o credor nem o devedor terão suas posições afetadas por possíveis variações no poder aquisitivo da moeda. A taxa de juros é neutra.

Entretanto, todas essas hipóteses são imaginárias; não podem ser consideradas sem que se incorra em contradição. Numa economia real, a taxa de juros não pode ser neutra; na economia real não há taxa uniforme de juro originário; existe apenas uma tendência para que se estabeleça essa uniformidade. Antes de o juro originário atingir o seu estado final, surgem novas mudanças que desviam outra vez as taxas de juro para um novo estado final. Onde tudo está permanentemente em mudança e movimento, não pode haver taxa de juro neutra.

No mundo real, todos os preços flutuam e os agentes homens são obrigados a se ajustar a essas mudanças. Os empresários só iniciam novos empreendimentos e os capitalistas só mudam os seus investimentos porque antecipam as mudanças que ocorrerão e se preparam para lucrar com isso. A economia de mercado caracteriza-se essencialmente como um sistema social no qual prevalece um incessante estímulo para o progresso. Os indivíduos mais empreendedores e mais previdentes procuram obter lucro ajustando constantemente as atividades de produção, de forma a atender, da melhor maneira possível, às necessidades dos consumidores, tanto as conscientes como as latentes que ainda nem tenham sido sequer cogitadas. Essas atividades especulativas dos promotores alteram, permanentemente, todos os dias, a estrutura de preços e, consequentemente, também, o nível da taxa bruta de juro de mercado.

Quem antecipa uma alta de certos preços entra no mercado como um tomador de empréstimo e está disposto a pagar uma taxa bruta de juros maior do que aquela que aceitaria pagar se sua expectativa fosse a de um aumento menor, ou de nenhum aumento. Por outro lado, o emprestador, esperando também uma alta de preços, só concederá empréstimos caso a taxa bruta de juros seja maior do que seria se a expectativa fosse de uma alta menor, ou se não houvesse expectativa de alta. O tomador não é desencorajado por uma taxa elevada, se acredita que o seu projeto tem uma rentabilidade que compense esse maior custo. O emprestador se abstém de emprestar e entra ele mesmo no mercado, como empresário e comprador de bens e serviços, se a taxa bruta de juros não for compensadora em face dos lucros que poderá colher dessa outra maneira. A expectativa de uma alta de preços, portanto, gera uma tendência de aumento da taxa bruta de juro, enquanto a expectativa de uma baixa de preços gera uma tendência de diminuição. Quando a expectativa de mudança na estrutura de preços se limita a um grupo de mercadorias e serviços, e quando ainda essa expectativa é compensada por outra, em direção oposta, em relação a outros bens e serviços – quando portanto não houve variação na relação monetária — essas duas tendências opostas geralmente se anulam. Mas, se a relação monetária se altera sensivelmente e há uma expectativa de aumento ou diminuição geral nos preços de todas as mercadorias e serviços, uma das tendências prevalece sobre a outra. Surge, então, em todas as transações que implicam pagamentos a prazo, um prêmio compensatório, positivo ou negativo. 4

O papel que esse prêmio desempenha numa economia real, em movimento, é diferente daquele que lhe atribuímos na hipótese irrealizável formulada anteriormente. Ele não poderá anular inteiramente, nem mesmo quando se consideram apenas as operações de crédito, os efeitos das mudanças na relação monetária; ele não pode jamais fazer com que as taxas de juro sejam neutras. Não pode alterar o fato de a moeda ser dotada de uma força motriz própria. Mesmo se todos os atores pudessem conhecer correta e completamente os dados quantitativos das mudanças da quantidade de moeda (no sentido amplo) no sistema econômico como um todo, com as datas em que tais mudanças ocorreriam e quais os indivíduos que seriam primeiramente afetados por elas, nem assim poderiam saber de antemão como, e em que medida, variaria a demanda por moeda para encaixe, nem qual a sequencia temporal, ou em que medida variaria os preços das diversas mercadorias. O prêmio compensatório só poderia contrabalançar os efeitos das mudanças na relação monetária sobre as operações creditícias se precedesse as mudanças de preços provocadas pela alteração na relação monetária. Teria de ser o resultado de um raciocínio em virtude do qual os atores tentassem conhecer de antemão a data e a intensidade das mudanças de preço em relação a todas as mercadorias e serviços que, direta ou indiretamente, interessassem ao seu próprio bem estar.

Entretanto, tal conhecimento é impossível de ser alcançado porque implicaria em poder prever perfeitamente todas as futuras condições e valorações.

 

 

 

A existência do prêmio compensatório não significa que possamos conhecer o futuro, ou eliminar sua incerteza, por meio de uma operação aritmética. Ele é fruto da compreensão que os promotores têm sobre o futuro, e dos seus cálculos, baseados nessa compreensão. Vai paulatinamente ganhando corpo, à medida que primeiramente alguns e depois, sucessivamente, um número cada vez maior de atores toma conhecimento do fato de que o mercado está diante de mudanças na relação monetária provocadas por variações nos encaixes e, consequentemente, diante de uma tendência numa determinada direção. Somente quando as pessoas começam a comprar e a vender para se aproveitar dessa tendência, é que começa a existir o prêmio compensatório.

É necessário que se compreenda que esse prêmio é uma consequência das especulações quanto a previsíveis mudanças na relação monetária. O que provoca o surgimento do prêmio compensatório, no caso de haver expectativa de uma tendência inflacionária, são as primeiras manifestações daquele fenômeno que, mais tarde, quando generalizado, é conhecido por “fuga para os valores reais”, e que acaba provocando uma alta de pânico (crack-up boom) e a derrocada do sistema monetário em questão. Como em todos os casos de prognósticos sobre circunstâncias futuras, é possível que os especuladores errem, que o movimento inflacionário ou deflacionário seja interrompido ou diminuído, e que os preços resultantes sejam diferentes dos previstos.

O aumento da propensão para comprar ou vender, que gera o prêmio compensatório, geralmente afetam primeiro e em maior grau o mercado de empréstimos de curto prazo. Sendo assim, o prêmio compensatório atinge inicialmente o mercado de empréstimos de curto prazo e, somente mais tarde, em virtude da concatenação que existe entre todas as partes do mercado, atinge também o mercado de empréstimos de longo prazo. Entretanto, existem casos em que o prêmio compensatório aparece nos contratos de longo prazo independentemente do que esteja ocorrendo no mercado de curto prazo. Era esse o caso, especialmente no mercado internacional, na época em que ainda havia um ativo mercado internacional de capitais.

Ocorria, ocasionalmente, que os emprestadores tinham confiança na evolução em curto prazo de uma moeda estrangeira; nos contratos de curto prazo, feitos com base nessa moeda, não havia nenhum ou quase nenhum prêmio compensatório. Mas, como havia menos confiança na evolução da moeda em longo prazo, nos contratos de longo prazo se incluía um prêmio compensatório considerável. Consequentemente, os contratos de longo prazo feitos com base nessa moeda estabeleciam uma taxa maior do que a dos contratos do mesmo devedor feitos com base em ouro ou em outra moeda estrangeira.

Vimos uma das razões pelas quais o prêmio compensatório pode, no máximo, atenuar, mas nunca eliminar inteiramente as repercussões das mudanças na relação monetária, provocadas por variações dos encaixes, sobre o conteúdo das transações de crédito. (Uma segunda razão será apresentada na próxima seção.) O prêmio compensatório está sempre defasado em relação às mudanças no poder aquisitivo porque é gerado não pela mudança na quantidade de dinheiro (no sentido amplo), mas pelos — necessariamente posteriores – efeitos dessas mudanças sobre a estrutura de preços. Somente no estágio final de uma inflação continuada é que essa ordem se altera. O pânico da catástrofe monetária, a alta de pânico, não se caracteriza apenas por uma tendência de todos os preços aumentarem acima de qualquer medida, mas também por um aumento igualmente desmesurado do prêmio compensatório positivo. Para um eventual emprestador, nenhuma taxa bruta de juros, por maior que seja, será suficientemente grande para compensar as perdas que provavelmente ocorrerão em decorrência da queda do poder aquisitivo da unidade monetária. Ele se absterá de emprestar e preferirá comprar bens “reais” para si mesmo. O mercado de crédito fica completamente paralisado.

 

 

 

4 — O mercado de crédito

 

As taxas brutas de juros que se formam no mercado de crédito não são uniformes. O componente empresarial nelas contido varia segundo as características particulares de cada transação específica. Uma das maiores deficiências de todos os estudos históricos e estatísticos dedicados ao exame dos movimentos das taxas de juro consiste precisamente em negligenciar essa realidade. É inútil ordenar cronologicamente as taxas de juro do open market ou as taxas de redesconto dos bancos centrais. Os vários dados disponíveis para elaboração dessas séries são incomensuráveis. A taxa de redesconto do mesmo banco central tem significados diferentes conforme a época. As condições institucionais que afetam as atividades dos bancos centrais das várias nações, seus bancos privados e a organização de seus mercados de crédito são tão diferentes, que seria inteiramente ilusório comparar as taxas de juros nominais sem ponderar devidamente todas as diferenças específicas de cada caso. Sabemos a priori que, sendo iguais as demais circunstâncias, os emprestadores preferem taxas de juros maiores e os devedores, taxas menores. Mas as demais circunstâncias nunca são iguais. Prevalece no mercado de crédito uma tendência para equalização das taxas brutas de juros para empréstimos em que os fatores que determinam o componente empresarial e o prêmio compensatório sejam iguais. Esse conhecimento serve como ferramenta mental para interpretação dos fatos relativos à história das taxas de juro. Sem a ajuda desse conhecimento, o vasto material histórico e estatístico disponível seria apenas um conjunto de cifras sem significado. Ao ordenar cronologicamente os preços de certas mercadorias de primeira necessidade, o empirismo tem pelo menos uma aparente justificativa no fato de estar lidando com preços que se referem ao mesmo objeto físico. Na verdade, essa desculpa é improcedente, uma vez que os preços não se referem às propriedades imutáveis das coisas, e sim aos valores variáveis que o agente homem lhes atribui. Mas, no caso das taxas de juro, nem mesmo essa desculpa esfarrapada pode ser usada. As taxas brutas de juro, tal como ocorrem na realidade, só têm em comuns àquelas características apontadas pela teoria cataláctica. São fenômenos complexos; seus registros históricos não podem ser usados para formular uma teoria empírica ou a posteriori do juro. Não confirmam nem negam o que a teoria econômica ensina sobre esses problemas. Constituem, quando analisados cuidadosamente à luz dos ensinamentos da economia, um conjunto de documentos preciosos para a história econômica; para a teoria econômica são desprovidos de qualquer utilidade.

Costuma-se distinguir o mercado de empréstimos de curto prazo (mercado de dinheiro) do mercado de empréstimos de longo prazo (mercado de capitais). Uma análise mais rigorosa deveria ir além da mera classificação dos empréstimos segundo a sua duração. Ademais, as condições contratuais são bastante diferentes num caso e no outro. Em resumo: o mercado de crédito não é homogêneo. Mas a diferença mais importante decorre do componente empresarial incluído nas taxas brutas de juros. É a isso que as pessoas se referem quando afirmam que crédito é uma questão de confiança.

A conexão entre todos os setores do mercado de crédito e as taxas brutas de juro que nele se formam é provocada pela tendência em direção a uma taxa final de juro originário, tendência essa que é inerente às taxas líquidas de juro, que estão compreendidas nas taxas brutas. Tendo em vista essa tendência, a teoria cataláctica pode tratar a taxa de juro de

 

mercado como se fosse um fenômeno uniforme, abstraindo-se, portanto, não só do componente empresarial que está sempre e necessariamente incluído nas taxas brutas de juro, como também do prêmio compensatório que às vezes também está incluído nas referidas taxas brutas.

Os preços de todas as mercadorias e serviços tendem constantemente para um estado final. Se esse estado final algum dia fosse atingido, mostraria na relação entre os preços dos bens presentes e dos bens futuros o estado final da taxa de juro originário. Entretanto, a economia real, em permanente mudança, nunca atinge esse imaginário estado final. Surgem continuamente novos dados, desviando o movimento dos preços que vinham tendendo para certo estado final e que passam a tender para outro estado final, ao qual corresponde uma taxa de juro originário diferente. Não há na taxa de juro originário, maior constância do que nos preços e salários.

Os empresários e os promotores que por sua ação previdente procuram ajustar o emprego dos fatores de produção às mudanças das condições de mercado baseiam seus cálculos nos preços, salários e taxas de juro determinados pelo mercado. Descobrem diferenças entre os preços atuais dos fatores complementares de produção e o preço previsto para o produto acabado menos a taxa de juro de mercado, e querem realizar o lucro que essa diferença representa. O papel da taxa de juros no planejamento do empresário é óbvio. Indica lhe até que ponto pode retirar fatores de produção a serem empregados para satisfação de necessidades no futuro mais próximo e utilizá-los para satisfação de necessidades no futuro mais remoto. Mostra-lhe, em cada caso, o período de produção compatível com a diferença que o público atribui ao valor dos bens presentes em relação aos bens futuros. Evita que o empresário se lance em projetos cuja execução não seja compatível com a limitada quantidade de bens de capital efetivamente poupado pelo público.

É influenciando essa função primordial da taxa de juro que a força motriz da moeda pode, de certa maneira, tornar-se operativa. As mudanças na relação monetária provocadas por variações nos encaixes podem, em certas circunstâncias, afetar o mercado de crédito antes de afetar os preços das mercadorias e da mão de obra. O aumento ou diminuição na quantidade de moeda (no sentido amplo) pode aumentar ou diminuir a quantidade de moeda ofertada no mercado de crédito e, portanto, aumentar ou diminuir a taxa bruta de juros do mercado, embora não tenha havido nenhuma alteração na taxa de juro originário. Se isso ocorrer, a taxa de mercado afasta-se daquela que corresponde à taxa de juro originário e à quantidade de bens de capital disponíveis para produção. Nesse caso, a taxa de juro de mercado deixa de exercer a função de guia da atividade empresarial. Transtorna os cálculos dos empresários e desvia suas ações das atividades que poderiam melhor atender as necessidades mais urgentes dos consumidores.

Há ainda um segundo fato importante a considerar. Se, mantidas iguais às demais circunstâncias, a quantidade de moeda (no sentido amplo) aumenta ou diminui, provocando assim uma tendência geral de alta ou de baixa dos preços, deveria surgir um prêmio compensatório, positivo ou negativo, que elevaria ou reduziria a taxa bruta de juro do mercado. Mas, se essas mudanças na relação monetária afetam primeiro o mercado de crédito, o efeito sobre as taxas brutas de juro do mercado é exatamente o oposto. Embora seja necessário um prêmio compensatório, positivo ou negativo, para ajustar as taxas de mercado às mudanças na relação monetária, na realidade, as taxas brutas de juro baixam ou sobem, em sentido contrário. Essa é a segunda razão pela qual não se pode, por meio do prêmio compensatório, eliminar inteiramente as repercussões das mudanças na relação monetária, provocadas por variações nos encaixes, sobre o conteúdo dos contratos que contêm estipulações de pagamentos a prazo. Seus efeitos só ocorrem quando já é tarde demais, depois de já terem ocorrido às mudanças no poder aquisitivo, como foi mostrado acima. Vemos assim que, em certas circunstâncias, as forças que atuam em sentido contrário se manifestam no mercado antes que o prêmio compensatório possa manifestar-se de forma adequada.

 

5 — Os efeitos das mudanças na relação monetária sobre o juro originário

 

Como qualquer outra mudança nos dados de mercado, as mudanças na relação monetária podem afetar a taxa de juro originário. Os adeptos da visão inflacionista da história supõem que a inflação, de um modo geral, tende a aumentar os ganhos dos empresários. Raciocinam da seguinte maneira: os preços das mercadorias aumentam antes e mais do que os salários. Por um lado, os assalariados, que gastam a maior parte de sua renda no consumo e poupam pouco, são prejudicados e têm de restringir suas despesas. Por outro lado, as classes proprietárias, cuja propensão para poupar uma parte considerável de sua renda é muito maior, são favorecidas; não aumentam proporcionalmente o seu consumo, e sim a sua poupança. Desta forma, na comunidade como um todo, surge uma tendência para acumulação de novos capitais. O corolário da restrição de consumo imposto sobre a parte da população que consome a maior parte da produção anual do sistema econômico é a ocorrência de novos investimentos adicionais. Essa poupança forçada diminui a taxa de juro originário; acelera o ritmo de progresso econômico e o aperfeiçoamento de métodos tecnológicos.

Convém salientar que essa poupança forçada pode efetivamente ter sua origem num processo inflacionário, o que, aliás, já ocorreu algumas vezes no passado. Ao se lidar com os efeitos das mudanças na relação monetária sobre o nível da taxa de juros, não se deve esquecer de que tais mudanças podem realmente, em certas circunstâncias, alterar a taxa de juro originário. Mas há muitas outras coisas que também precisam ser consideradas. Em primeiro lugar, é preciso se dar conta de que a inflação pode provocar uma poupança forçada, mas não necessariamente. Conforme as circunstâncias particulares de cada situação inflacionária, o aumento dos salários poderá ou não atrasar-se em relação ao aumento dos preços das mercadorias. Uma diminuição do poder aquisitivo da unidade monetária não implica, necessariamente, numa queda dos salários reais. Pode ocorrer que os salários nominais subam mais, ou antes, do que os preços das mercadorias. 5

Além disso, é necessário lembrar que a maior propensão, das classes mais ricas, para poupar e para acumular capital é meramente um fato psicológico e não um fato praxeológico. Poderia ocorrer que essas pessoas, para as quais o processo inflacionário proporciona uma renda adicional, ao invés de poupar, prefiram aumentar o seu consumo. Não é possível prever, com a certeza apodítica que caracteriza todos os teoremas da economia, como agirão os que se beneficiam da inflação. A história nos pode dizer como eles agiram no passado. Mas não pode garantir que essa maneira de agir se repetirá no futuro.

Seria um erro grave esquecer que a inflação também gera forças que podem provocar consumo de capital. Um dos efeitos da inflação é falsear o cálculo econômico e a realidade; é fazer com que surjam lucros aparentes ou ilusórios. Se as quotas anuais de depreciação são determinadas sem se levar em conta o fato de que a substituição do equipamento desgastado exigirá um gasto superior ao montante pelo qual foi comprado, tais depreciações são obviamente insuficientes. Se, ao se venderem estoques e produtos, considera-se como superávit a totalidade da diferença entre o preço gasto na sua aquisição e o preço obtido na sua venda, o erro é o mesmo. Se o aumento nos preços de ações e de imóveis é considerado como um ganho, a ilusão também é evidente. O que faz com que as pessoas pensem que a inflação provoca uma prosperidade geral são precisamente esses ganhos ilusórios. As pessoas acham que estão sendo bem-sucedidas e gastam generosamente para aproveitar a vida; embelezam suas casas, constroem novas mansões e patrocinam espetáculos musicais.

 

 

Ao gastar seus ganhos aparentes, o imaginário resultado de cálculos equivocados está, na verdade, consumindo o próprio capital. Pouco importa que sejam perdulários; podem ser homens de negócios ou especuladores da bolsa; podem ser assalariado cuja demanda por maiores salários seja atendida por empregadores complacentes que pensam estar ficando cada dia mais rico; podem ser pessoas sustentadas por impostos cuja arrecadação geralmente absorve boa parte desses ganhos aparentes.

Finalmente, à medida que aumenta a inflação, um número cada vez maior de pessoas começa a perceber a queda do poder aquisitivo. Para aqueles que não estão engajados em negócios nem familiarizados com as operações da bolsa de valores, os principais veículos de poupança são a caderneta de poupança, a compra de títulos e de seguro de vida. Todos esses tipos de poupança são prejudicados pela inflação. Assim sendo, desencoraja-se a poupança e incentiva-se o gasto extravagante. A reação final do público, a “fuga para valores reais”, é uma tentativa desesperada de salvar alguma coisa da ruína inevitável. Do ponto de vista da preservação de capital, não é um remédio, mas apenas uma medida de emergência que pode, no máximo, salvar parte dele.

O principal argumento dos defensores do inflacionismo e do expansionismo é, portanto, muito fraco. Pode-se admitir que, no passado, a inflação — às vezes, mas não sempre — tenha provocado uma poupança forçada e um aumento do capital disponível. Entretanto, isso não significa que esse mesmo efeito deva repetir-se no futuro. Ao contrário, é mais provável que nas condições atuais prevaleça a tendência para consumir capital e não para acumulá-lo.

De qualquer forma, o efeito final dessas mudanças sobre a poupança, o capital e o juro originário depende das circunstâncias específicas de cada caso.

O mesmo é válido, mutatis mutandis, em relação às consequências e efeitos análogos de um processo deflacionário ou restricionista.

 

6 — Os efeitos da inflação e da expansão de crédito sobre a taxa bruta de juros do mercado.

 

Quaisquer que sejam os efeitos finais de um processo inflacionário sobre o nível de taxa de juro originário, não existem qualquer relação entre esses efeitos e as alterações temporárias que uma mudança na relação monetária provocada por variação dos encaixes possa produzir na taxa bruta de juro do mercado. A injeção ou a retirada de moeda e de substitutos de moeda no mercado, ao afetar em primeiro lugar o mercado de crédito, perturba temporariamente a correlação entre as taxas brutas de mercado e a taxa de juro originário. A taxa de mercado aumenta ou diminui em função da diminuição ou do aumento da quantidade de moeda oferecida para empréstimos, sem qualquer ligação com as mudanças na taxa de juro originário que, possivelmente, ocorrerão mais tarde em consequência das mudanças na relação monetária. A taxa de mercado se afasta do nível que corresponde ao da taxa de juro originário, fazendo com que comecem a atuar as forças que tendem a provocar novamente o ajuste da taxa de mercado à taxa de juro originário. Pode ocorrer que, durante o período de tempo necessário a esse ajustamento, o nível do juro originário varie, e essa variação possa também ser causada pelo processo inflacionário ou deflacionário, que havia dado origem ao aludido afastamento. Neste caso, a taxa final de juro originário, determinante da taxa final de mercado para a qual, por meio desse ajustamento, tende a taxa de mercado, não é a mesma que prevalecia antes de se iniciar o processo inflacionário ou deflacionário. Tal ocorrência pode afetar alguns aspectos do ajustamento, mas não afeta a sua essência.

 

 

 

 

O fenômeno com o qual devemos ocupar-nos é o seguinte: a taxa de juro originário é determinada pelo desconto de bens futuros em relação a bens presentes. Na sua essência, não depende da quantidade de moeda e de substitutos de moeda, se bem que mudanças nessa quantidade possam, indiretamente, afetar o seu nível. Mas a taxa bruta de juro do mercado é afetada pelas variações na relação monetária, fazendo com que um reajustamento deva, forçosamente, ocorrer. Qual é a natureza do processo que provoca esse reajustamento?

Na presente seção estamo-nos ocupando apenas da inflação e da expansão de crédito.

Para simplificar a questão, suponhamos que a quantidade adicional de moeda e de substitutos de moeda seja injetada através do mercado de crédito e atinja o resto do mercado, via empréstimos concedidos. Tal hipótese corresponde precisamente às condições de uma expansão do crédito circulante. 6 Assim sendo, nosso exame equivale a uma análise do processo provocado pela expansão do crédito.

Ao proceder a essa análise, precisamos novamente fazer referência ao prêmio compensatório. Já foi mencionado que, quando uma expansão de crédito está apenas começando, o correspondente prêmio compensatório positivo ainda não se manifesta. Um prêmio compensatório só pode surgir quando a quantidade adicional de moeda (no sentido amplo) já começou a afetar os preços das mercadorias e serviços. Mas, na medida em que a expansão de crédito prossegue e que quantidades adicionais de meios fiduciários são  injetados no mercado de crédito, aumenta a pressão sobre a taxa bruta de juro do mercado. A taxa bruta de mercado deveria aumentar em decorrência do contínuo aumento do prêmio compensatório positivo, provocado pelo progresso do processo expansionista. Mas, enquanto subsistir a expansão do crédito, a taxa bruta de mercado continua atrasada em relação ao valor que seria necessário para cobrir o juro originário e o prêmio compensatório positivo.

É necessário acentuar esse ponto para evidenciar a inconsistência dos critérios habitualmente adotados pelas pessoas para distinguir entre o que consideram taxas de juro altas ou baixas. É comum considerar apenas o valor numérico das taxas ou a tendência que as mesmas apresentam. A opinião pública considera como “normal” uma taxa entre 3% e 5%. Quando a taxa de mercado passa desse nível, ou quando as taxas de mercado — independentemente de sua relação aritmética — aumentam em relação ao nível anterior, as pessoas acreditam estar expressando-se corretamente ao falar de juros altos ou em alta. Diante desses erros, é necessário enfatizar que, numa situação de aumento geral de preços (queda no poder aquisitivo da unidade monetária), para que se possa considerar que a taxa bruta de juros do mercado não se tenha alterado, é preciso que ela contenha um adequado prêmio compensatório positivo. Nesse sentido, no outono de 1923 a taxa de desconto do Reichsbank alemão, de 90%, era uma taxa baixa — na verdade uma taxa ridiculamente baixa -, uma vez que era consideravelmente menor que o prêmio compensatório e não deixava nenhuma margem para os outros componentes da taxa bruta de juro do mercado. Essencialmente, esse mesmo fenômeno se manifesta em todos os casos de expansão creditícia prolongada. As taxas brutas de juro do mercado aumentam ao longo do curso da expansão, mas não acompanham o correspondente aumento dos preços em geral.

Ao analisar o processo de expansão do crédito, suponhamos que o processo de ajustamento do sistema econômico aos dados do mercado e o movimento em direção ao estabelecimento dos preços finais e das taxas de juro finais sejam perturbados por um novo dado, a saber, uma quantidade adicional de meios fiduciários ofertada no mercado de crédito. Pela taxa bruta de juro prevalecente no mercado na véspera dessa perturbação, todos os que quisessem tomar empréstimos, devidamente considerado o componente empresarial, poderiam obter todo o crédito que desejassem. Empréstimos adicionais só poderiam ser colocados a uma menor taxa bruta de mercado. Não importa se essa queda na taxa bruta de mercado se revele através de uma redução numérica na percentagem estipulada nos contratos de empréstimos. Poderia ocorrer que as taxas de juro nominais permanecessem inalteradas e que a expansão se manifestasse no fato de que, a essas taxas, fossem feitos empréstimos que não o seriam anteriormente, graças ao valor da componente empresarial a ser incluída. Esse resultado também equivale a uma queda nas taxas brutas de mercado e produz as mesmas consequências.

Uma queda na taxa bruta de juro do mercado afeta os cálculos do empresário no que diz respeito à lucratividade de seus projetos. O homem de negócios considera nos seus cálculos, quando planeja algum empreendimento, não só os fatores materiais de produção, os salários e os futuros preços dos produtos que irá produzir, mas também as taxas de juros. O resultado desses cálculos mostra ao homem de negócios se um determinado projeto será lucrativo ou não. Mostra-lhe que investimentos podem ser feitos no presente estágio da relação entre a valoração que o público faz dos bens futuros e a dos bens presentes.

Compatibiliza suas ações com essa valoração. Impede-lhe de realizar projetos que o público não aprovaria por causa da correspondente extensão do período de espera. Força-o a empregar os bens de capital disponíveis de maneira a melhor satisfazer as necessidades mais urgentes dos consumidores.

Mas uma queda na taxa de juro decorrente de uma expansão do crédito falseia o cálculo empresarial. Embora a quantidade de bens de capital disponíveis não tenha aumentado, o cálculo emprega parâmetros que só seriam utilizáveis se esse aumento tivesse ocorrido. O resultado, portanto, é enganador. Esses cálculos fazem com que alguns projetos pareçam viáveis e exequíveis, quando um cálculo correto, baseados numa taxa de juro não deformada pela expansão de crédito, mostraria a sua inviabilidade. Os empresários se lançam na realização desses projetos; a atividade empresarial fica estimulada. Tem início um boom. 0

A demanda adicional provocada pelos empresários que estão expandindo os seus negócios tende a aumentar os preços dos bens de produção e dos salários. Com o aumento dos salários, o preço dos bens de consumo também aumenta. Além disso, os empresários também contribuem para o aumento dos bens de consumo, uma vez que, iludidos pelos falsos ganhos que a sua contabilidade indica, dispõe-se a consumir mais. A alta geral de preços espalha otimismo. Se pelo menos os preços dos bens de produção tivessem aumentado e os dos bens de consumo não tivessem sido afetados, os empresários seriam mais cautelosos. Teriam dúvidas quanto à viabilidade de seus planos, uma vez que o aumento no custo de produção perturbaria os seus cálculos. Mas a expansão da demanda por bens de consumo, possibilitando uma expansão de vendas apesar dos preços maiores, tranquiliza os  empresários. Mantém-lhes a confiança na ideia de que a produção será lucrativos apesar dos maiores custos envolvidos; decidem, então, ir adiante.

Evidentemente, para poderem continuar a produzir nesta maior escala provocada pela expansão do crédito, todos os empresários, tanto os que expandiram suas atividades como os que continuam produzindo o mesmo que antes, precisam de mais recursos, uma vez que os custos de produção são agora maiores. Se a expansão de crédito consiste numa única injeção, não repetida, de uma determinada quantidade de moeda fiduciária no mercado de crédito, o boom não poderá durar muito tempo. Os empresários não conseguem obter os recursos de que necessitam para dar continuidade aos seus projetos. A taxa bruta de juro do mercado aumenta porque a maior demanda por empréstimos não é contrabalançada por um correspondente aumento na quantidade de moeda disponível para empréstimo. Os preços das mercadorias caem porque alguns empresários vendem seus estoques e outros se abstêm de comprar. A atividade empresarial se contrai novamente. A alta termina porque as forças que a provocaram deixaram de atuar. A quantidade adicional de crédito circulante esgotou a sua capacidade de influir sobre preços e salários. Os preços, os salários e os vários encaixes

 

 

 

individuais ajustam-se à nova relação monetária; deslocam-se em direção ao estado final que corresponde a essa nova relação monetária, sem serem desviados por novas injeções de meios fiduciários adicionais. A taxa de juro originário correlativo a essa nova estrutura do mercado age, com todo o seu peso, sobre a taxa bruta de juro do mercado. A taxa bruta de juro já não está mais sujeita às influências perturbadoras das mudanças na quantidade de moeda (no sentido amplo) provocadas por variações dos encaixes.

A principal falha de todas as tentativas de explicar o boom — tendência geral de expansão da produção e de aumento de todos os preços — consiste precisamente em não levar na devida conta as mudanças na quantidade de moeda ou dos meios fiduciários Um aumento geral dos preços só pode ocorrer se houver uma queda na oferta de todas as mercadorias ou um aumento na quantidade de moeda (no sentido amplo). Admitamos, só para argumentar, que essas explicações não monetárias do período de alta e do ciclo econômico estejam corretas: os preços sobem e a atividade econômica se expande, sem que tenha havido qualquer aumento na quantidade de moeda. Se fosse assim, surgiria logo uma tendência de queda nos preços, a demanda por empréstimo aumentaria, as taxas brutas de juro do mercado subiriam e o boom teria vida curta. Na verdade, todas as teorias não monetárias do ciclo econômico supõem tacitamente — ou deveriam logicamente fazê-lo — a ideia de que a expansão do crédito é um fenômeno concomitante ao período de alta. 7 São forçadas a admitir que, na ausência de uma expansão do crédito, nenhuma alta poderia emergir e que o aumento da quantidade de moeda (no sentido amplo) é uma condição necessária da alta geral dos preços.

Daí resulta, pois, que, examinadas mais de perto, tais explicações não monetárias das flutuações cíclicas limitam-se a afirmar que a expansão do crédito, embora seja um requisito indispensável para que pudesse ocorrer um boom, não constitui, por si só, uma condição suficiente para provocá-lo, sendo necessária a ocorrência de outras circunstâncias.

Mesmo nesse sentido mais restrito, os ensinamentos das teorias não monetárias são inúteis. é evidente que toda expansão do crédito deverá provocar um período de alta como o já descrito acima. Isso só não ocorrerá se a expansão do crédito for contrabalançada simultaneamente por outro fator. Se, por exemplo, enquanto os bancos expandirem o crédito, as pessoas estiverem convencidas de que o governo irá confiscar, pela via tributária, todo lucro “excedente”, ou de que irá impedir que a expansão do crédito prosseguisse tão logo a “expansão do gasto público” (pump-priming) 8 resulte numa elevação de preços, não poderá haver um boom. Os empresários se absterão de expandir os seus negócios com a ajuda do dinheiro barato oferecido pelos bancos, porque não podem aumentar os seus ganhos. É necessário mencionar este fato porque ele explica o fracasso das medidas de expansão do investimento público adotadas ao tempo do New Deal, bem como outros eventos dos anos 30.

O boom só pode perdurar enquanto a expansão do crédito progredir num ritmo cada vez maior. O boomterminará assim que quantidades adicionais de meios fiduciários deixem de ser injetadas no mercado de crédito. Mas não poderia durar eternamente, mesmo se a inflação e a expansão do crédito prosseguissem indefinidamente. Chegaria o momento em que a ilimitada expansão do crédito não poderia mais prosseguir. Chegaria o momento da alta de pânico (crack-up boom ) e da quebra do sistema monetário.

A essência da teoria monetária consiste na percepção de que as mudanças na relação monetária provocadas por variações dos encaixes não afetam os vários preços, salários e taxas de juros, nem ao mesmo tempo, nem na mesma proporção. Se não houvesse essa desigualdade, a moeda seria neutra; as mudanças na relação monetária não afetariam a estrutura dos negócios, o tamanho e a orientação dos vários setores da indústria, o consumo, a riqueza e a renda dos vários estratos da população. Se fosse assim, a taxa bruta de juro do mercado também não seria afetada — nem transitória nem definitivamente — pelas mudanças no âmbito da moeda e do crédito circulante. O fato de que a taxa de juro originário seja afetada

por essas mudanças decorre das repercussões desiguais que as mesmas provocam na riqueza e na renda dos vários indivíduos. O fato de que, independentemente das variações na taxa de juro originário, a taxa bruta de mercado seja temporariamente afetada é, em si mesmo, uma manifestação dessa desigualdade. Se a quantidade adicional de moeda entra no sistema econômico, de maneira a só atingir o mercado de crédito após já ter provocado um aumento nos preços das mercadorias e dos salários, esses efeitos imediatos e temporários sobre a taxa bruta de mercado, se existir, serão muito pequenos. A taxa bruta de juro do mercado é tão mais violentamente afetada quanto mais cedo à injeção da quantidade adicional de moeda ou de meios fiduciários atingir o mercado de crédito.

Quando, numa expansão do crédito, a quantidade total de substitutos de moeda é utilizada para conceder empréstimos às empresas, a produção se expande. Os empresários tomam a iniciativa de expandir a produção, seja lateralmente (isto é, sem aumentar o período de produção da indústria considerada), seja longitudinalmente (isto é, estendendo o período de produção). Em ambos os casos, as instalações adicionais exigem o investimento de fatores de produção adicionais. Mas a quantidade de bens de capital disponíveis para investimento não aumentou. A expansão de crédito, por outro lado, também não provoca uma restrição do consumo. É verdade — como já foi assinalado anteriormente, ao tratarmos da poupança forçada — que, na medida em que a expansão aumenta, uma parte da população será compelida a restringir seu consumo. Mas dependerá das condições específicas de cada caso de expansão do crédito o fato de essa poupança forçada de alguns grupos de pessoas serem suficiente para compensar o aumento de consumo de outros grupos, provocando assim um aumento líquido da poupança no mercado como um todo. De qualquer modo, a consequência imediata da expansão do crédito é um aumento no consumo efetuado pelos assalariados cujos salários aumentaram graças ao acréscimo da demanda por mão de obra provocada pelos empresários que estão expandindo suas atividades. Suponhamos, só para argumentar, que o aumento de consumo daqueles assalariados favorecidos pela inflação e a poupança forçada dos outros grupos que se viram prejudicados por ela fossem iguais e que, portanto, o consumo total não se tivesse alterado. Nesse caso, a situação seria a seguinte: a alteração na produção teria sido efetuada pelo aumento do período de espera. Mas a demanda por bens de consumo não teria diminuído, o que teria sido necessário para que as reservas consumíveis durassem por um período maior. Evidentemente, este fato resultaria num aumento dos preços dos bens de consumo, o que provocaria uma tendência à poupança forçada. Entretanto, esse aumento nos preços dos bens de consumo fortaleceria a tendência de expansão da atividade econômica. Os empresários, a partir do fato de que a demanda e os preços estão subindo, concluiriam que vale a pena investir e produzir mais. Seguiriam adiante, e a intensificação de suas atividades provocaria novo aumento nos preços dos bens de consumo. Os negócios se expandiriam enquanto os bancos continuassem a expandir o crédito.

Ao se iniciar a expansão creditícia, já estão em operação todos os processos de produção que são considerados rentáveis, nas condições vigentes no mercado. O sistema caminha para um estado no qual todos os que quisessem ganhar salário encontrariam emprego e todos os fatores de produção não conversíveis seriam empregados na medida em que a demanda dos consumidores e a quantidade disponível de fatores materiais não específicos e de mão de obra o permitissem. A produção só pode continuar a se expandir se a quantidade de bens de capital for aumentada por uma poupança adicional, isto é, por um excedente da produção sobre o consumo. O traço característico da alta provocada pela expansão do crédito consiste no fato de que esses bens de capital adicionais ainda não estão disponíveis. Os bens de capital necessários à expansão das atividades empresariais terão de ser retirados de outras linhas de produção.

 

 

 

 

Denominemos de p a quantidade de bens de capital disponíveis ao se iniciar a expansão de crédito, e de g a quantidade total de bens de consumo que p poderia, num certo período de tempo, colocar à disposição dos consumidores, sem prejuízo da produção futura.

Nesse momento, os empresários, seduzidos pela expansão de crédito, se lançam na produção de uma quantidade adicional g3 de bens de consumo do mesmo tipo que os anteriormente produzidos, e de uma quantidade g4 de bens de uma espécie que até então não havia sido produzida. Para a produção de g3 é necessária uma quantidade p3 de bens de capital, e para a produção de g4, uma quantidade p4. Mas como, segundo a hipótese que formulamos, a quantidade de bens de capital disponíveis não se alterou, as quantidades p3 e p4 não existem.

É precisamente este fato que distingue a alta “artificial” provocada pela expansão do crédito de uma expansão “normal” da produção que só pode ser provocada pela existência real de p3 e p4.

Denominemos de r a quantidade de bens de capital que precisa ser subtraída da produção total, num determinado período de tempo, a fim de ser reinvestida para repor aquelas partes de p que foram usadas durante o processo de produção. Se a quantidade r for usada para essa reposição, estaremos em condições de produzir de novo g no período seguinte; se r deixa de ser empregado com esse propósito, p será reduzido de r, e p-r produzirá, no período seguinte, apenas g-a. Podemos ainda supor que o sistema econômico afetado pela expansão de crédito seja um sistema em crescimento. Produziria “normalmente”, por assim dizer, no período de tempo precedente à expansão de crédito, um excedente de bens de capital p1+p2. Se não houvesse expansão de crédito, p1 seria empregado na produção de uma quantidade adicional g1 do mesmo tipo de bens produzidos anteriormente, e p2 na produção de uma quantidade g2 de bens que até então não eram produzidos. A quantidade total de bens de capital que está à disposição dos empresários e com a qual podem contar nos seus planos é r + p1 + p2. Entretanto, iludidos pelo dinheiro barato, eles agem como se r + p1+ p2 + p3 + p4 estivessem disponíveis e como se tivessem condições de produzir não apenas g +g1 + g2, mas, além disso, g3 + g4. Disputam entre si, oferecendo preços cada vez maiores, para obter uma parte do total de bens de capital, que é insuficiente para a realização de seus planos excessivamente ambiciosos.

Essa alta dos preços dos bens de produção pode, no início, superar o aumento nos preços dos bens de consumo. Pode, assim, provocar uma tendência de queda na taxa de juro originário. Mas, com o progresso do movimento expansionista, o aumento nos preços dos bens de consumo ultrapassará o aumento nos preços dos bens de produção. A elevação dos salários e os ganhos adicionais dos capitalistas, empresários e fazendeiros, embora sejam em grande parte meramente aparentes, intensificam a demanda por bens de consumo. Não há necessidade de analisar a afirmação dos defensores da expansão do crédito, segundo a qual um boom pode, realmente, por meio da poupança forçada, aumentar a quantidade total de bens de consumo. De qualquer modo, é certo que a intensificação da demanda por bens de consumo afeta, o mercado num momento em que os investimentos adicionais ainda não estão em condições de produzir. Aumenta a diferença entre os preços dos bens presentes em relação aos bens futuros. Uma tendência de aumento na taxa de juro originário substitui a tendência em sentido contrário que possivelmente teria vigorado nos estágios anteriores da expansão.

Essa tendência de alta da taxa de juro originário e o surgimento de um prêmio compensatório positivo explicam algumas características do período de alta. Os bancos se veem diante de uma maior demanda por empréstimos e adiantamentos. Os empresários estão dispostos a tomar empréstimos a taxas brutas de juros maiores. Continuam tomando emprestado, apesar de os bancos cobrarem juros cada vez maiores. Numericamente as taxas brutas de juro são

 

 

 

 

superiores às que vigoravam no início da expansão. Não obstante, do ponto de vista cataláctico, são insuficientes para cobrir o juro originário mais o componente empresarial e o prêmio compensatório. Os bancos, ao concederem empréstimos em condições mais onerosas, acreditam ter feito o necessário para terminar com a especulação “malsã”. Pensam que os críticos que os condenam por atiçar as chamas da alta frenética do mercado estão equivocados. Não percebem que ao injetar cada vez mais meios fiduciários no mercado, estão de fato alimentando o fogo. É o aumento continuado da quantidade de meios fiduciários que produz, alimenta e acelera o boom. O valor da taxa bruta de juro do mercado é apenas uma consequência do aumento dos meios fiduciários. Se quisermos saber se está havendo ou não expansão de crédito, devemos examinar a quantidade existente de meios fiduciários e não a expressão numérica da taxa de juros.

Costuma-se descrever o boom como um período de excesso de investimento. Entretanto, só é possível haver investimento adicional na medida em que haja uma quantidade adicional disponível de bens de capital. Como, exceção feita à poupança forçada, o período de alta em si não resulta numa restrição, mas, ao contrário, num aumento do consumo, é impossível que por seu intermédio surjam os bens de capital necessários aos novos investimentos. A essência da expansão do crédito não é o excesso de investimento; é o investimento no setor errado, isto é, o mau investimento. Os empresários empregam a quantidade disponível r + p1 + p2 +p3 + p4. Aumentam seus investimentos numa escala superior a que os bens de capital disponíveis permitiriam. Seus projetos são irrealizáveis por causa da insuficiência de bens de capital. Fracassarão, mais cedo ou mais tarde. O inevitável final da expansão de crédito torna visíveis os erros cometidos. Há indústrias que não podem ser utilizadas porque lhes faltam fatores complementares que ainda nem são produzidos; há mercadorias que não podem ser vendidas porque os consumidores estão mais interessados em comprar outros bens que, por sua vez, não são produzidos em quantidade suficiente; há instalações cuja construção está paralisada por ter ficado óbvio que são antieconômicas.

O erro de crer que a característica essencial do boom é o excesso de investimento e não o mau investimento se deve ao hábito de julgar a situação apenas pelos seus aspectos perceptíveis e tangíveis. O observador percebe apenas os maus investimentos, que são visíveis, e não chega a perceber que são inviáveis porque faltam outros — aqueles necessários à produção dos fatores complementares de produção e à produção de bens de consumo de que o público necessita com mais urgência. As condições tecnológicas obrigam a que a expansão da produção só tenha início após a expansão das instalações que produzem bens de uma ordem mais afastada dos bens de consumo acabados. Para expandir a produção de calçados, roupas, automóveis, móveis, casas, é preciso, primeiro, expandir a produção de ferro, aço, cobre e outros bens do mesmo gênero. Ao empregar a quantidade de r + p1 + p2, que seria suficiente para produzir a + g1 + g2, como se fosse r + p1 +p2 + p3 + p4 e, portanto, suficiente para produzir a + g1 + g2 + g3 + g4, é preciso, em primeiro lugar, aumentar a produção de produtos e estruturas que, por razões físicas, são necessários antes dos demais. A classe empresarial globalmente considerada está, por assim dizer, na posição de um mestre de obras cuja tarefa é construir uma casa com uma quantidade limitada de materiais de construção. Se o nosso mestre de obras superestimar a quantidade disponível, elaborará um projeto para o qual os meios ao seu dispor não são suficientes. Superdimensiona as fundações e, só mais tarde, ao prosseguir a construção, percebe que faltam materiais para terminar a estrutura da casa. É claro que o erro do nosso mestre de obras não foi fazer um excesso de investimento, mas empregar inadequadamente os meios que tinha à sua disposição.

 

Não menos errado é acreditar que a crise teria sido provocada por excessiva conversão de capital “circulante” em capital “fixo”. O empresário, quando chega à crise, e a correspondente restrição ao crédito tem razão em lamentar o fato de ter gasto muito na ampliação de suas instalações e na compra de equipamento durável; estaria melhor se tivesse usado os seus recursos na gestão normal do seu negócio. Entretanto, não são as matérias primas, os produtos básicos, os semi acabados e os alimentos que estão escassos no momento em que a alta se transforma em depressão. Ao contrário, a crise se caracteriza, precisamente, pelo fato de que esses bens são ofertados em tais quantidades, que seus preços caem acentuadamente.

As afirmativas acima explicam por que uma expansão nas instalações de produção, na capacidade de produção das indústrias pesadas e na fabricação de bens de produção durável constitui o traço mais marcante do boom. Os jornalistas especializados em economia e finanças estavam certos quando — por mais de cem anos — consideraram as cifras de produção dessas indústrias, assim como as da construção, como índice da flutuação da atividade econômica. Erraram apenas ao falar de um alegado excesso de investimento.

É claro que o boom afeta também as indústrias de bens de consumo; elas também investem mais e expandem sua capacidade de produção. Entretanto, as novas fábricas e as novas ampliações não produzem necessariamente os produtos mais intensamente desejados pelo público. Provavelmente foram construídas segundo o plano geral que visava a produzir r+ g1 + g2 + g3 + g4. O fracasso desse plano superdimensionado torna evidente a sua inviabilidade.

Nem sempre o boom é acompanhado por uma alta acentuada dos preços das mercadorias. O aumento da quantidade de meios fiduciários tem sempre a capacidade potencial de fazer os preços subirem. Mas pode ocorrer que, ao mesmo tempo, forças atuando em sentido oposto sejam suficientemente fortes para manter o aumento dentro de certos limites ou até mesmo suprimi-los completamente. O período da história durante o qual o funcionamento suave e tranquilo do mercado foi repetido vezes perturbado por iniciativas expansionistas não deixou de ser uma época de contínuo progresso econômico. O constante aumento da acumulação de novos capitais tornou possível o avanço tecnológico. A produção por unidade de aporte aumentou e as empresas encheram as prateleiras com quantidades crescentes de mercadorias baratas. Se o concomitante aumento na quantidade de moeda (no sentido amplo) tivesse sido menor do que realmente foi, teria havido uma baixa nos preços de todas as mercadorias. A expansão do crédito dos nossos tempos tem estado sempre inserida num contexto em que fatores poderosos contrabalançam sua tendência de aumentar os preços.

Em geral, nesse choque de forças opostas houve uma preponderância daquelas que provocavam aumento dos preços. Mas, em alguns casos excepcionais, o movimento de alta foi apenas ligeiro. O exemplo mais notável nos foi proporcionado pelo boom americano de

1926-1929.9

As características essenciais de uma expansão de crédito não variam por existirem esses casos particulares. O que induz um empresário a se lançar num determinado projeto não são os preços altos ou os preços baixos em si, mas uma diferença entre os custos de produção, inclusive juros sobre o capital necessário, e os preços previstos para os produtos a serem produzidos. Uma diminuição da taxa bruta de mercado como a que é provocada pela expansão de crédito faz com que certos projetos passem a ser considerados lucrativos, quando anteriormente não o eram. Faz com que r + p1 + p2 sejam empregados como se fossem r + p1

+ p2 + p3 + p4. Faz surgir uma estrutura de investimentos e de atividades produtoras que não é compatível com a quantidade real de bens de capital, e que mais cedo ou mais tarde entrará em colapso. Às vezes, as mudanças de preço de que estamos tratando são compensadas por uma tendência geral de aumento do poder aquisitivo, resultando dessa interação de forças contrárias o que geralmente se denomina de estabilização de preços; tal circunstância  modifica apenas alguns aspectos acessórios do processo.

É evidente que, quaisquer que sejam as condições, nenhuma manipulação dos bancos poderá prover o sistema econômico com bens de capital. O que é necessário para uma saudável expansão da produção são bens de capital adicionais e não moeda ou meios fiduciários. O boom provocado pela expansão do crédito é um castelo de cartas construído com notas e depósitos bancários. Não consegue ficar de pé.

O colapso surge quando os bancos, assustados com o ritmo acelerado do boom, começam a se abster de continuar expandindo o crédito. O boom só pode continuar enquanto os bancos estejam dispostos a conceder generosamente às empresas todos os créditos necessários à execução de seus projetos ambiciosos, em completo desacordo com a real disponibilidade de fatores de produção e com as valorações dos consumidores. Esses planos ilusórios, que parecem viáveis graças à deformação do cálculo econômico provocada pela política de dinheiro barato, só podem ser levados adiante se novos créditos forem concedidos a taxas brutas de mercado, artificialmente baixas em relação ao valor que teriam num mercado de crédito isento dessas manipulações. É essa margem que lhes dá uma falsa aparência de lucratividade. A mudança no comportamento dos bancos não cria a crise; apenas torna visíveis os danos provocados pelos equívocos cometidos pelas empresas durante o período de boom.

Mesmo que os bancos insistissem em manter teimosamente suas políticas expansionistas, o boom não poderia durar eternamente. Qualquer tentativa de substituir bens de capital não existente (especificamente às quantidades p3 e p4) por meios fiduciários está fadada ao fracasso. Se a expansão do crédito não for interrompida a tempo, o boom se transforma numa alta de pânico (crack-up boom); começa a fuga para os valores reais e o sistema monetário desmorona. Todavia, como regra geral, no passado os bancos não deixaram as coisas chegarem a esse extremo. Ficaram alarmados quando a catástrofe final ainda estava longe.10

Tão logo seja interrompido o fluxo de meios fiduciários adicionais, o castelo de cartas do boom desmorona. Os empresários veem-se obrigados a restringir suas atividades porque lhes faltam os fundos para manter a escala exagerada em que se engajaram. Os preços caem abruptamente porque essas empresas em dificuldades tentam fazer caixa vendendo seus estoques a qualquer preço. Fábricas são fechadas, construções são paralisadas antes de seu término, trabalhadores são dispensados. Como, de um lado, muitas empresas necessitam desesperadamente de dinheiro para evitar a insolvência e, de outro, nenhuma empresa inspira confiança, o componente empresarial da taxa bruta de juro do mercado sobe para níveis  demasiadamente altos.

São circunstâncias acidentais, de ordem institucional e psicológica, que acabam transformando a crise em pânico. Podemos deixar para os historiadores a tarefa de descrever esses acontecimentos lamentáveis. Não é tarefa de a teoria cataláctica descrever em detalhe as calamidades dos dias e semanas de pânico, nem alongar-se sobre seus aspectos por vezes grotescos. A economia não tem interesse no que é acidental e dependente das circunstâncias históricas específicas de cada caso. Ao contrário, seu propósito é distinguir o que é essencial e necessário daquilo que é meramente adventício. Não está interessada nos aspectos psicológicos do pânico, mas apenas no fato de que um boom provocado por uma expansão de crédito conduzirá inevitavelmente a um processo vulgarmente denominado de depressão.

Cabe à economia reconhecer que a depressão, na realidade, é um processo de ajuste, uma tentativa de recolocar as atividades produtoras em consonância com as condições do mercado: a quantidade de fatores de produção disponíveis, as valorações dos consumidores e, sobretudo, a taxa de juro originário resultante das valorações dos consumidores.

 

 

Esses dados, entretanto, não são os mesmos que prevaleciam ao iniciar-se o processo expansionista. Muitas coisas mudaram desde então. A poupança forçada e, num grau ainda maior, a poupança voluntária habitual podem ter proporcionado novos bens de capital que  não foram totalmente desperdiçados pelo mau investimento e pelo sobreconsumo induzido pelo boom. As mudanças na riqueza e na renda de vários indivíduos e grupos de indivíduos serão provocadas pelas particularidades de cada movimento inflacionário. Independentemente de terem qualquer relação causal com a expansão do crédito, os números e as características populacional podem ter mudado; o conhecimento tecnológico pode ter evoluído, a demanda por certos bens pode ter-se alterado. O estado final a que tende o mercado já não é o mesmo para o qual tendia antes das perturbações provocadas pela expansão creditícia.

Alguns investimentos feitos no período do boom, quando avaliados com o julgamento sóbrio do período de ajustamento, não mais obscurecido pela ilusão do período de alta revelam-se fracassos irremediáveis. Terão simplesmente de ser abandonados porque os meios correntes necessários à sua exploração não poderão ser recuperados com a venda de seus produtos; esse capital “circulante” é mais urgentemente necessário para satisfazer outras necessidades; a prova disso é que podem ser empregados de uma maneira mais lucrativa em outros setores. Há outros maus investimentos cujas perspectivas são menos desfavoráveis.

Certamente, se não fosse o cálculo malfeito, não se teriam realizado. Os investimentos que forem inconversíveis estão perdidos. Mas, como são inconversíveis, são um fait accompli que coloca um novo problema para a ação futura. Se as receitas obtidas com a venda de seus produtos forem superiores aos custos de operação, é vantajoso continuar a produção. Embora os preços que o público comprador esteja disposto a pagar pelos produtos não sejam suficientes para tornar lucrativo o investimento inconversível como um todo, podem ser suficientes para remunerar pelo menos uma fração, por menor que seja do investimento. Nesse caso, o resto do investimento deve ser considerado como despesa sem contrapartida, como capital desperdiçado e perdido.

Se olharmos esse resultado do ponto de vista dos consumidores, a conclusão é, certamente, a mesma. Os consumidores estariam mais bem servidos se as ilusões criadas pela política de dinheiro fácil não tivessem seduzido os empresários a desperdiçar bens de capital escassos, investindo-os para satisfazer necessidades menos urgentes e, desta forma, impedindo que necessidades mais urgentes fossem atendidas. Agora, não há mais nada a fazer; a situação é irrevogável. Por ora, terão de renunciar a certas amenidades que poderiam desfrutar, se o boom não tivesse gerado o mau investimento. Mas, por outro lado, podem encontrar uma compensação parcial no fato de poderem desfrutar agora de uma satisfação que estaria fora de seu alcance se o curso regular da economia não tivesse sido perturbado pela orgia do boom. É uma compensação apenas superficial, uma vez que os bens que não chegaram a ser fabricados, por causa do emprego inadequado dos bens de capital, eram muito mais desejados do que esses que, por assim dizer, os “substituíram”. Mas, nas circunstâncias e condições atuais, não lhes resta outra escolha.

O resultado final da expansão do crédito é um empobrecimento geral. Alguns podem ter aumentado sua riqueza; não deixaram que a histeria coletiva ofuscasse a sua razão, e se aproveitaram das oportunidades proporcionadas pela mobilidade dos investidores. Outros indivíduos ou grupos de indivíduos podem ter sido favorecidos, sem qualquer mérito próprio, pelo simples fato de que os bens que vendiam aumentaram de preço antes dos bens que compravam. Mas a imensa maioria terá de pagar a conta do mau investimento e do sobreconsumo ocorridos durante o boom.

 

 

 

 

Devemos evitar que o termo empobrecimento seja mal interpretado. Não significa, necessariamente, que tenha havido um empobrecimento em relação às condições que prevaleciam antes de iniciar-se a expansão do crédito. A ocorrência ou não de um empobrecimento nesse sentido depende das circunstâncias específicas de cada caso; não pode ser apoditicamente previsto pela cataláxia. A cataláxia, quando afirma que o empobrecimento é uma consequência inevitável da expansão do crédito, refere-se ao empobrecimento em relação ao estado de coisas que haveria de resultar se não tivesse havido a expansão de crédito e o boom. O traço característico da história econômica do capitalismo é o de ter havido, nesse período, um progresso econômico ininterrupto, um aumento constante na quantidade de bens de capital disponíveis e uma tendência permanente de melhoria do padrão de vida em geral. O ritmo desse progresso é tão rápido que, mesmo durante um período de boom, pode ser suficiente para compensar as perdas que estão, simultaneamente, sendo causadas pelo mau investimento e pelo excesso de consumo. Neste caso, o sistema econômico em geral prosperou durante o boom; terá empobrecido se comparado com a maior prosperidade que poderia ter havido, não fosse o desperdício.

 

A alegada ausência de depressões numa organização totalitária

 

Muitos autores socialistas afirmam que a recorrência de depressões e de crises econômicas é um fenômeno inerente ao sistema capitalista de produção. Por outro lado, dizem eles, num sistema socialista isso não ocorreria.

Como já ficou evidente, e serão novamente mostradas mais adiante, as flutuações cíclicas da atividade econômica não é uma decorrência do livre funcionamento do mercado, mas uma consequência da interferência do governo com o objetivo de reduzir a taxa de juro abaixo do nível que o mercado livre a fixaria. 11 Por ora, vamos examinar apenas a alegada estabilidade prometida pelo planejamento socialista.

Antes de tudo é essencial compreender que o que faz a crise surgir é o processo democrático de mercado. Os consumidores não aprovam a utilização que os empresários deram aos fatores de produção; manifestam sua desaprovação comprando ou deixando de comprar. Os empresários, seduzidos pelas ilusões de uma taxa bruta de juro do mercado artificialmente baixa, deixaram de fazer os investimentos que melhor atenderiam às necessidades mais urgentes do público. Tão logo termine a expansão do crédito, esses erros ficarão evidentes. As atitudes dos consumidores forçam os empresários a ajustar novamente suas atividades para que as necessidades sejam atendidas da melhor maneira possível. Esse processo de depuração dos erros cometidos no boom, e de realinhamento com os desejos dos consumidores, é o que habitualmente se denomina de depressão.

Numa economia socialista, só são considerados os julgamentos de valor do governo; as pessoas não têm meios de fazer prevalecer os seus julgamentos de valor. Um ditador não se preocupa em saber se as massas aprovam sua decisão sobre quanto deve ser consagrado ao consumo e ao investimento adicional. Se o ditador investir mais e assim restringir os meios disponíveis para consumo, o povo deve comer menos e calar a boca. Não há crise porque os indivíduos não têm oportunidade de manifestar sua insatisfação. Onde não há nenhuma atividade empresarial, esta não pode ser nem boa nem má. Pode haver escassez e fome, mas não depressão no sentido com que esse termo é usado na economia de mercado. Onde os indivíduos não têm liberdade de escolher, não há como protestar contra os métodos usados por aqueles que dirigem as atividades de produção.

 

 

 

 

 

 7 — Os efeitos da deflação e da contração do crédito sobre a taxa bruta de juro do mercado

 

 

Suponhamos que durante um processo deflacionário a quantia total pela qual se reduzirá a quantidade de moeda (no sentido amplo) seja retirada do mercado de crédito. Assim sendo, o mercado de crédito e a taxa bruta de juro do mercado são afetados, desde o primeiro instante, pela mudança ocorrida na relação monetária, antes mesmo que tenha ocorrido qualquer mudança nos preços das mercadorias e serviços. Podemos, por exemplo, imaginar que um governo, ao desejar provocar uma deflação, coloque títulos da dívida pública no mercado e destrua o papel-moeda assim recebido. Esse procedimento foi adotado inúmeras vezes nos últimos duzentos anos. A ideia era, depois de um período prolongado de inflação, fazer com que a unidade monetária nacional voltasse a ter a sua paridade metálica. Na maior parte dos casos, esses projetos deflacionários foram logo abandonados em virtude da crescente oposição à sua execução e, mais ainda, do ônus que representavam para o Tesouro Nacional. Podemos também supor que os bancos, assustados com a crise provocada pela expansão do crédito, procurem aumentar as suas reservas em relação ao seu próprio passivo, restringindo, portanto o crédito circulante. Uma terceira possibilidade consistiria em supor que a crise resultou na falência de bancos que concediam crédito circulante, e que a supressão dos meios fiduciários emitidos por esses bancos reduziria a quantidade de crédito disponível no mercado.

Em todos esses casos, segue-se uma tendência temporária de alta na taxa bruta de juro do mercado. Projetos que antes pareciam lucrativos deixam de sê-lo. Surge uma tendência de queda nos preços dos fatores de produção e, mais tarde, também nos preços dos bens de consumo. O mercado fica frouxo. O impasse só termina quando os preços e salários se ajustam à nova relação monetária. Quando isso ocorre, o mercado de crédito também se adapta ao novo estado de coisas e a taxa bruta de juro do mercado deixa de ser perturbada pela falta de oferta de empréstimos. Assim, uma alta na taxa bruta de juro do mercado, provocada por variações nos encaixes, produz uma temporária estagnação da atividade econômica. A deflação e a contração do crédito, tanto quanto a inflação e a expansão do crédito, são elementos perturbadores do funcionamento normal da atividade econômica. Não obstante, constituiria um erro grave considerar a deflação e a contração como se fossem simplesmente uma contrapartida da inflação e da expansão.

A expansão, no início, gera uma ilusória sensação de prosperidade. Faz com que a maioria, ou até mesmo todos, sintam-se melhor de vida. É sedutora; é preciso um esforço moral pouco comum para resistir à tentação. Por outro lado, a contração gera imediatamente situações que todos consideram desagradáveis. Sua impopularidade ultrapassa até mesmo a popularidade da expansão. Suscita uma oposição muito forte; as forças que a combatem logo se tornam irresistíveis.

A moeda fiat e os empréstimos baratos ao governo enchem as arcas do Tesouro; a deflação esvazia os seus cofres. A expansão do crédito é vantajosa para os bancos; a contração é uma punição. A inflação e a expansão são tentadoras enquanto que a deflação e a contração são desagradáveis.

Mas a diferença entre esses dois modos opostos de manipular a moeda e o crédito não consiste apenas no fato de um ser popular e o outro ser universalmente detestado. A deflação e a contração têm menos possibilidades de causar danos do que a inflação e a deflação, não apenas porque raramente se recorre a elas. São também menos desastrosas graças aos efeitos

que lhes são inerentes. A expansão desperdiça fatores escassos de produção ao engendrar maus investimentos e excesso de consumo. Quando termina, é preciso um penoso processo de recuperação para eliminar o empobrecimento que provocou. A contração, entretanto, não provoca mau investimento nem excesso de consumo. A restrição temporária da atividade econômica coincide geralmente com uma queda no consumo por parte dos trabalhadores que foram dispensados e dos proprietários de fatores materiais de produção cujas vendas diminuíram. Não deixa sequelas. Quando a contração termina, o processo de recuperação não tem que repor as perdas ocorridas por consumo de capital.

A deflação e a restrição do crédito nunca representaram um papel digno de nota na história econômica. Os exemplos mais salientes nos foram proporcionados pela Inglaterra ao pretender retornar, depois das Guerras Napoleônicas e depois da Primeira Guerra Mundial, à paridade que prevalecia antes dessas guerras. Em ambos os casos, o Parlamento e o governo adotaram a política deflacionista, sem ponderar devidamente os prós e os contras dos dois métodos existentes para um retorno ao padrão-ouro. É compreensível que assim tenham agido no segundo decênio do século XIX, já que naquele tempo a teoria monetária não tinha ainda esclarecido essas questões. Fazer o mesmo cem anos depois foi simplesmente uma demonstração de imperdoável ignorância da teoria econômica, assim como da história econômica. 12

A ignorância manifestou-se também ao se confundir deflação e contração com o processo de ajuste ao qual todo boom expansionista conduz. Se a crise vai provocar ou não uma restrição dos meios fiduciários em circulação é algo que depende da estrutura institucional do sistema de crédito que deu origem ao boom. Tal restrição pode ocorrer quando a crise resulta na falência de bancos que concediam crédito circulante, desde que essa restrição não seja compensada por uma correspondente expansão por parte dos bancos remanescentes. Mas esse não é um fenômeno que necessariamente tenha de acompanhar a depressão; é fora de dúvida que não ocorreu nos últimos oitenta anos na Europa, e a extensão com que ocorreu nos Estados Unidos depois do Federal Reserve Act de 1913 tem sido grandemente exagerada. A escassez de crédito que caracteriza a crise não é causada pela contração, mas pela abstenção em se continuar expandindo o crédito. Prejudica todas as empresas, não só as que estão condenadas a desaparecer, como também aquelas cujos negócios são estáveis e que poderiam florescer se houvesse disponibilidade de crédito. Como os débitos vincendos não são pagos, os bancos ficam sem recursos para conceder créditos até mesmo para as empresas sólidas. A crise se generaliza e força todos os setores e todas as firmas a reduzirem suas atividades. Não há como evitar essas consequências secundárias do boom que as precedeu.

Logo que a depressão começa, ouve-se por toda parte um lamento contra a deflação e um clamor popular pedindo a continuação da política expansionista. Ora, é verdade que, mesmo que não tenha havido redução na quantidade de moeda propriamente dita e dos meios fiduciários disponíveis, a depressão ocasiona um aumento no poder aquisitivo da unidade monetária provocado pelo aumento nos encaixes. Toda empresa procura aumentar seus encaixes e esses esforços afetam a relação entre a oferta e a procura de moeda (no sentido amplo) para encaixe. Esse fenômeno pode ser efetivamente denominado deflação. Mas seria um erro grave pensar que a queda dos preços das mercadorias seja causada por esse empenho em aumentar os encaixes. A relação causal é no sentido inverso. Os preços dos fatores de produção — tanto materiais como humanos — atingiram um nível extremamente alto durante o período do boom. Precisam baixar para que os negócios se tornem novamente rentáveis. Os empresários aumentam seus encaixes porque se abstêm de comprar bens e contratar  trabalhadores enquanto a estrutura de preços e salários não se ajustar à verdadeira situação do mercado. Assim sendo, qualquer tentativa do governo ou dos sindicatos para evitar ou retardar esse ajuste simplesmente prolonga a estagnação.

Até mesmo economistas, frequentemente, não conseguem compreender essa concatenação. Eles argumentam assim: a estrutura de preços que se desenvolveu durante o boom foi uma consequência da pressão expansionista. Se a expansão dos meios fiduciários terminasse, os preços e salários se estabilizariam. Desde que não haja deflação, não haveria uma queda nos preços e salários.

Esse raciocínio estaria certo se a pressão inflacionária não tivesse afetado primeiro o mercado de crédito, antes de produzir seus efeitos diretamente sobre os preços das mercadorias. Suponhamos que um governo de um país isolado emita uma quantidade adicional de papel-moeda com o propósito de distribuí-la entre os cidadãos de baixa renda. O aumento nos preços das mercadorias daí decorrente transtornaria a produção; tenderia a deslocar a produção, dos bens de consumo habitualmente adquiridos pelos grupos não subvencionados para os bens que os grupos subvencionados consomem. Se essa política de subvencionar certos grupos for mais tarde abandonada, os preços dos bens demandados pelos grupos até então subvencionados diminuirão, e os preços dos bens demandados pelos grupos não subvencionados aumentarão rapidamente. Mas isso não quer dizer que a unidade monetária voltaria a ter o mesmo poder aquisitivo que tinha no período pré-inflacionário. A estrutura de preços ficará para sempre afetada pela aventura inflacionária, a não ser que o governo retire do mercado a quantidade adicional de papel-moeda que injetou sob a forma de subvenções.

As coisas são diferentes quando a expansão do crédito afeta em primeiro lugar o mercado de empréstimos. Nesse caso, os efeitos inflacionários são agravados pelas consequências do capital mal investido e do excesso de consumo. Na disputa por uma parcela maior dos limitados bens de capital e mão de obras disponíveis, os empresários empurram o preço para um nível onde só podem manter caso a expansão continue em ritmo acelerado. Uma queda forte nos preços de todas as mercadorias e serviços é inevitável tão logo cesse o fluxo crescente de meios fiduciários.

Enquanto o boom prossegue, prevalece uma tendência geral de comprar a maior quantidade de mercadorias porque se espera que os preços vão subir ainda mais. Na depressão, por outro lado, as pessoas se abstêm de comprar porque esperam que os preços continuem a cair. A recuperação e o retorno à “normalidade” só começam quando os preços e salários estão tão baixos que um número de pessoas suficientemente grande presume que eles não baixarão mais. Portanto, a única maneira de abreviar o período de maus negócios é evitar qualquer tentativa de atrasar ou impedir a queda nos preços e salários.

Somente quando a recuperação começa a ganhar impulso é que a mudança na relação monetária, causada pelo aumento na quantidade de meios fiduciários, começa a se refletir na estrutura de preços.

 

A diferença entre expansão do crédito e inflação simples

 

Ao analisar as consequências da expansão do crédito, supusemos que os meios fiduciários adicionais entram no sistema de mercado via mercado de crédito, sob a forma de empréstimos às empresas. Tudo o que foi dito em relação aos efeitos da expansão de crédito refere-se a essa hipótese.

Existem situações, entretanto, nas quais os métodos técnicos e legais da expansão do crédito são usados com um propósito completamente diferente da verdadeira expansão de crédito do ponto de vista cataláctico. Considerações de natureza política e institucional às vezes fazem com que seja conveniente, para o governo, aproveitar-se das facilidades do sistema bancário como alternativa à emissão de moeda fiat. O Tesouro toma emprestado dos bancos e os bancos conseguem os recursos necessários ou através da emissão de notas bancárias adicionais ou creditando o governo numa conta corrente. Legalmente os bancos tornam-se credores do Tesouro; na realidade, a operação se resume a um caso típico da inflação provocada pela emissão de moeda fiat. Os meios fiduciários adicionais entram no mercado através do Tesouro, que os utiliza para pagar despesas do governo. São estes gastos públicos adicionais que estimulam a expansão das atividades econômicas. A emissão dessa moeda fiat recém-criada não interfere diretamente na taxa bruta de juro do mercado, qualquer que seja a taxa de juro que o governo pague ao banco. Só afetará o mercado de crédito e a taxa bruta de juro do mercado, não considerando o surgimento de um prêmio compensatório positivo, se uma parte dessa moeda fiat adicional chegar ao mercado de crédito num momento em que seus efeitos sobre os preços das mercadorias e sobre os salários ainda não se tiverem consumado.

Foi essa, por exemplo, a situação nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. Independentemente da política de expansão creditícia que já vinha sendo adotado antes do início da guerra, o governo contraiu pesadas dívidas com o sistema bancário. Do ponto de vista técnico, tais operações podiam ser consideradas como expansão creditícia; na realidade, foi uma forma de emitir papel-moeda. Outros países recorreram a técnicas ainda mais complicadas. O Reich alemão, por exemplo, durante a Primeira Guerra Mundial, vendeu títulos ao público. O Reichsbank financiava essas compras emprestando a maior parte dos recursos de que os compradores necessitavam, e recebendo os mesmos títulos como garantia colateral. Exceção feita à fração que o comprador pagava com seus próprios recursos, o papel que o banco e o público representavam na transação era meramente formal. Virtualmente as notas bancárias adicionais eram papel-moeda inconversível.

É importante prestar atenção a esses fatos para não confundir as consequências da expansão do crédito propriamente dita com a inflação provocada pelo governo mediante emissão de moeda fiat.

 

8 — A teoria monetária, ou do crédito circulante, relativa ao ciclo econômico

 

A teoria das flutuações cíclicas da atividade econômica, tal como foi elaborada pela Escola Monetária Inglesa (Currency School), era insatisfatória sob dois aspectos.

Em primeiro lugar, não chegava a perceber que o crédito circulante pode ser concedido não apenas pela emissão de notas bancárias em excesso sobre as reservas do banco, mas também pela criação de depósitos em conta corrente, sacáveis por meio de cheques, em excesso sobre as mesmas reservas (moeda-cheque, moeda-bancária). Consequentemente, não se dava conta de que depósitos à vista também podem ser usados como instrumento para expandir o crédito. Esse erro não é grave porque pode ser facilmente corrigido. Basta mostrar que tudo o que se refere à expansão de crédito é válido também para qualquer modalidade de expansão creditícia, pouco importando se os meios fiduciários adicionais são notas bancárias ou depósitos. Entretanto, as teorias da Escola Monetária, que inspiraram a legislação inglesa, foram elaboradas com o propósito de evitar que houvesse booms provocados por expansão de crédito e sua inevitável consequência, a depressão, numa época em que essa consequência fundamental ainda não era largamente compreendida. OPeel Act de 1844 e as normas legais que, seguindo seus passos, foram promulgadas em diversos países não atingiram os objetivos desejados; e esse fracasso abalou o prestígio da Escola Monetária. A Escola Bancária (Banking School) triunfou imerecidamente.

O segundo ponto fraco da Escola Monetária foi mais grave. Seus defensores limitaram-se a considerar o problema da drenagem de capitais para o exterior. Lidaram apenas com um caso particular, qual seja a expansão do crédito em um país, enquanto em outros não havia nenhuma, ou apenas uma pequena expansão. Isso foi suficiente para  explicar, grosso modo, as crises inglesas do início do século XIX; mas era uma abordagem meramente superficial do problema. A questão essencial não chegou a ser levantada. Nada foi

feito para esclarecer as consequências de uma expansão de crédito generalizada, não limitada a certo número de bancos com uma clientela restrita. As relações recíprocas entre a quantidade de moeda (no sentido amplo) e a taxa de juro não chegaram a ser analisadas. Os inúmeros projetos para diminuir, ou abolir completamente, os juros por meio de uma reforma bancária foram ridicularizados como charlatanismo, mas não chegaram a ser dissecados e refutados por meio de uma crítica consistente. A presunção ingênua da neutralidade da moeda estava sendo tacitamente ratificada. Assim sendo, o campo ficou livre para todas as tentativas inúteis de interpretação das crises e das flutuações da atividade econômica por meio da teoria da troca direta. Muitas décadas se passaram antes que o feitiço se quebrasse.

O obstáculo que a teoria monetária, ou do crédito circulante, teve de superar não consistiu apenas no erro teórico, mas também no preconceito político. A opinião pública é propensa a ver o juro simplesmente como um obstáculo institucional à expansão da produção.

Não percebe que o desconto de bens futuros em relação a bens presentes é uma necessária e eterna categoria da ação humana e não pode ser abolida por manipulações bancárias. Os excêntricos e os demagogos consideram o juro como o produto de maquinações sinistras de exploradores desalmados. Essa antiga aversão ao juro tem sido plenamente reavivada pelo intervencionismo moderno. Tem-se mantido fiel ao dogma de que uma das principais atribuições de um bom governo é diminuir a taxa de juro o mais possível, ou aboli-la inteiramente. Todos os governos de hoje estão fanaticamente comprometidos com políticas de dinheiro fácil. Como já foi mencionado antes, o próprio governo inglês declarou que a expansão do crédito conseguiu “o milagre … de transformar uma pedra em pão”.13 Um presidente do Federal Reserve Bank de Nova Iorque chegou a dizer que “todo Estado soberano onde exista uma instituição que funcione como um banco central moderno, e cuja moeda não seja conversível em ouro ou em qualquer outra mercadoria, pode libertar-se definitivamente do mercado monetário interno”.14 Muitos governos, universidades e institutos de pesquisa econômica subvencionam generosamente publicações cujo principal objetivo é louvar as virtudes da expansão creditícia desenfreada e difamar qualquer oponente como um mal-intencionado defensor dos interesses egoístas dos usurários.

Os movimentos ondulatórios que afetam o sistema econômico, a recorrência de períodos de boom seguidos de períodos de depressão, são a consequência inevitável das reiteradas tentativas de diminuir a taxa bruta de juro do mercado por meio da expansão do crédito. Não há meio de evitar o colapso final de um boomprovocado pela expansão de crédito. A única alternativa possível é entre uma crise em curto prazo, provocada pela decisão voluntária de não se expandir mais o crédito, e uma catástrofe final e total do sistema monetário, mais tarde.

A única objeção jamais levantada contra a teoria do crédito circulante é realmente muito pouco convincente. Tem sido dito que a redução da taxa bruta de juro do mercado, abaixo do nível que teria alcançado num mercado de crédito sem entraves, poderia ser não o fruto de uma política intencional dos bancos ou das autoridades monetárias, mas uma consequência indesejada do seu próprio conservadorismo. Diante de uma situação que, por si só, resultaria numa alta da taxa de mercado, os bancos não aumentariam a taxa de juro de seus empréstimos e, assim, querendo ou não, iniciariam um processo de expansão. 15 Tais afirmativas são infundadas. Mas, se admitíssemos sua procedência, só para argumentar, em nada ficaria afetada a essência da explicação monetária do ciclo econômico. Pouco importam os motivos que levam os bancos a expandirem o crédito e a cobrarem uma taxa de juro menor  do que aquela que o mercado livre estabeleceria. O que importa, na verdade, é que os bancos e as autoridades monetárias consideram que o nível das taxas de juros tal como determinado pelo livre mercado de empréstimos é um mal, que o objetivo de uma boa política econômica é reduzi-lo, e que a expansão do crédito é um meio apropriado para alcançar esse objetivo sem prejudicar ninguém, a não ser os credores parasitários. São essas aberrações que induzem as autoridades a adotarem medidas que acabam provocando o colapso.

Considerando-se esses fatos, poderia parecer mais oportuno não discutir os problemas em questão agora, no contexto da teoria da economia de mercado, e relegar esse estudo para mais tarde, quando analisaremos o intervencionismo, ou seja, a interferência do governo nos fenômenos do mercado. É fora de dúvida que a expansão do crédito é uma das principais questões do intervencionismo. Não obstante, esses problemas devem ser analisados ao tratarmos da teoria da economia de mercado e não ao estudarmos o intervencionismo. Isto porque o problema essencial a ser examinado é a relação entre a quantidade de moeda e a taxa de juro, problema esse do qual as consequências da expansão do crédito constituem apenas um caso particular.

Tudo quanto foi dito em relação à expansão do crédito é igualmente válido em relação aos efeitos de qualquer aumento na quantidade de moeda propriamente dita, desde que essa quantidade adicional chegue ao mercado de crédito num estágio anterior ao da sua entrada no sistema do mercado. Se a quantidade adicional de moeda aumenta também a quantidade que é oferecida para empréstimos quando os salários e os preços das mercadorias ainda não se ajustaram completamente à mudança na relação monetária, os efeitos não serão diferentes dos produzidos por uma expansão do crédito. Ao analisar o problema da expansão do crédito, a cataláxia completa os ensinamentos da teoria da moeda e do juro; implicitamente desmascara os velhos erros relativos ao juro e arrasa os planos fantásticos para “abolir” o juro por meio de reformas monetárias ou bancárias.

O que diferencia a expansão do crédito de um aumento na quantidade de moeda, possível de ocorrer numa economia que empregue unicamente moeda-mercadoria e não meios fiduciários dependem da quantidade do aumento e da sequencia temporal de seus efeitos sobre as várias partes do mercado. Mesmo um rápido aumento na produção de metais preciosos não pode jamais ter a amplitude que a expansão do crédito é capaz de atingir. O padrão-ouro foi um obstáculo eficaz à expansão do crédito, pois forçava os bancos a não ultrapassarem certos limites nas suas iniciativas expansionistas. 16 As potencialidades inflacionárias intrínsecas ao padrão-ouro eram mantidas dentro dos limites das possibilidades de exploração das minas de ouro. Ademais, só uma parte do ouro adicional aumentava a oferta no mercado de crédito. A maior parte agia primeiro sobre os preços das mercadorias e sobre os salários, só afetando o mercado de crédito num estágio posterior do processo inflacionário.

Entretanto, o contínuo aumento na quantidade de moeda-mercadoria exerceu uma constante pressão expansionista sobre o mercado de crédito. A taxa bruta de juro do mercado, ao longo dos últimos séculos, esteve permanentemente submetida ao impacto de um fluxo de moeda adicional no mercado de crédito. Sem dúvida alguma, essa pressão, nos últimos 150 anos nos países anglo-saxões e nos últimos cem anos na Europa continental, foi largamente ampliada pela concomitante expansão do crédito circulante concedido pelos bancos, independentemente dos seus esforços intencionais — ocasionalmente reiterados — de reduzir a taxa bruta de juros do mercado por meio de uma maior expansão do crédito. Havia, assim, três tendências de redução da taxa bruta de juro do mercado que atuavam ao mesmo tempo, uma fortalecendo a outra. A primeira resultava do aumento regular da quantidade de  moeda mercadoria; a segunda, do crescimento espontâneo dos meios fiduciários nas operações bancárias; a terceira era fruto de políticas intencionalmente antijuro, patrocinadas pelas autoridades e aprovadas pela opinião pública. Evidentemente, é impossível assegurar quantitativamente qual o seu efeito conjunto ou qual a contribuição de cada uma; uma resposta a questões desse tipo só pode ser dada pela compreensão histórica.

 

 

 

O raciocínio cataláctico pode mostrar-nos apenas que uma suave, mas contínua pressão sobre a taxa bruta de juro do mercado — provocada pelo contínuo aumento da quantidade de ouro assim como pelo moderado aumento da quantidade de meios fiduciários — que não seja superada e intensificada por uma política intencional de dinheiro fácil pode ser contrabalançada pelas forças de acomodação e ajuste inerentes à economia de mercado. A adaptabilidade da atividade econômica, desde que não seja sabotada por forças estranhas ao mercado, é suficientemente forte para anular os efeitos que possam ser provocados por ligeiras perturbações do mercado de crédito.

Os estatísticos tentaram investigar os grandes ciclos da atividade econômica por meio de métodos da sua especialidade. Tais tentativas são inúteis. A história do capitalismo moderno é um registro de contínuo progresso econômico, frequentemente interrompido por frenéticos booms e sua inevitável consequência, as depressões. Geralmente é possível discernir estatisticamente essas oscilações recorrentes da tendência geral de aumento do capital investido e da quantidade de bens produzidos. É impossível descobrir qualquer flutuação rítmica na própria tendência geral.

 

9 — Efeitos da recorrência do ciclo econômico sobre a economia de mercado

 

As reiteradas tentativas de alcançar a prosperidade pela expansão do crédito, responsáveis pelas flutuações cíclicas da atividade econômica, se devem, em última análise, à popularidade de que goza a inflação e a expansão do crédito. Essa popularidade se manifesta claramente na terminologia corrente. O boom é considerado como estímulo aos negócios, à prosperidade e ao progresso. Sua consequência inevitável, o ajuste das condições à realidade do mercado, é considerado como crise, declínio, estagnação, depressão. As pessoas se revoltam diante da evidência de que o elemento perturbador provém dos maus investimentos e do excesso de consumo no período do boom, e que esse boom artificial está condenado ao  fracasso. Ficam procurando a pedra filosofal que possa fazê-lo durar.

Já assinalamos anteriormente em que medida pode-se chamar de progresso econômico uma melhora na qualidade e um aumento na quantidade dos produtos. Se aplicássemos esse critério às várias fases das flutuações cíclicas da atividade econômica, teríamos de chamar o boom de retrocesso e a depressão de progresso. O boom desperdiça escassos fatores de produção através de maus investimentos e reduz o estoque disponível através do excesso de consumo; suas alegadas vantagens são pagas com o empobrecimento. A depressão, por outro lado, é o retorno a um estado de coisas em que todos os fatores de produção são empregados de maneira a melhor satisfazer as necessidades mais urgentes dos consumidores.

Tentativas desesperadas têm sido feitas para achar no boom alguma contribuição positiva ao progresso econômico. Tem-se dado ênfase ao papel que a poupança forçada representa na acumulação de capital. O argumento é inútil. Já foi mostrado antes que é muito discutível a afirmação segundo a qual a poupança forçada pode conseguir mais do que compensar uma parte do consumo de capital ocorrido no boom. Se aqueles que louvam os efeitos alegadamente benéficos da poupança forçada fossem coerentes, eles teriam de propugnar um sistema fiscal que subsidiasse os ricos com impostos arrecadados das pessoas de menor renda. A poupança forçada assim conseguida proporcionaria um aumento líquido do capital disponível, sem provocar simultaneamente um consumo de capital ainda maior.

 

 

 

 

Os defensores da expansão do crédito costumam também alegar que alguns dos maus investimentos feitos no boom tornam-se rentáveis posteriormente. Esses investimentos, dizem eles, foram feitos cedo demais, isto é, num momento em que a quantidade de bens de capital e as valorações dos consumidores ainda não justificavam a sua construção. Não obstante, o dano causado não foi muito grave, uma vez que esses projetos teriam de serem, de qualquer forma, executados mais tarde. Pode-se admitir que essa descrição fosse correta em relação a alguns casos de mau investimento provocado pelo boom. Mas ninguém se atreveria a dizer que essa afirmativa seja aplicável a todos os projetos cuja execução tenha sido encorajada pelas ilusões criadas por meio de uma política de dinheiro fácil. Seja como for, nada disso poderá alterar as consequências do boom nem desfazer ou atenuar a depressão que certamente virá em seguida. Os efeitos do mau investimento se fazem sentir de qualquer maneira, mesmo que esses maus investimentos possam ser considerados mais tarde, em outras condições, como investimentos saudáveis. Se, em 1845, tivesse sido construída uma estrada de ferro na Inglaterra — que não teria sido construída não fora a expansão do crédito -, a situação nos anos seguintes não seria afetada pelo fato de que em 1870 ou 1880 os bens de capital necessários à sua construção estariam disponíveis. O fato de que tenha sido mais tarde vantajoso poder dispor da estrada de ferro sem novos gastos de capital e trabalho não compensa de modo algum as perdas incorridas em 1847 em virtude de sua construção prematura.

O boom produz empobrecimento. Mas muito mais desastrosos são os seus danos morais. As pessoas ficam desanimadas e deprimidas. Quanto mais otimistas estão durante a prosperidade ilusória do boom, maior é o seu desespero e a sua sensação de frustração depois. O indivíduo está sempre pronto a atribuir a boa sorte à sua própria eficiência, e a considerá-la uma recompensa bem merecida pelo seu talento, dedicação e probidade. Mas a reviravolta da sorte ele a atribui a outras pessoas e, sobretudo à absurdidade das instituições políticas e sociais. Não culpa as autoridades por terem provocado o boom; condena-as pelo inevitável colapso. Na opinião do público, mais inflação e mais expansão do crédito são os únicos remédios contra os males que a inflação e a expansão do crédito provocam.

Vejam, dizem eles, aí estão às fábricas e as fazendas cuja capacidade de produzir não está sendo usada ou, pelo menos, não a plena capacidade. Vejam as pilhas de mercadorias invendáveis e as multidões de trabalhadores desempregados. E vejam também as massas populares que ficariam felizes se pudessem satisfazer suas necessidades mais amplamente. Só está faltando crédito. Crédito adicional possibilitaria aos empresários prosseguir ou ampliar a produção. O desempregado encontraria emprego de novo e poderia comprar os produtos. Esse raciocínio parece plausível. No entanto é absolutamente falso.

Se as mercadorias não podem ser vendidas e os trabalhadores não conseguem achar emprego, a única razão possível é a de que os preços e os salários pedidos estão muito altos. Quem quiser vender seus estoques ou sua capacidade de trabalho terá de reduzir suas pretensões até encontrar um comprador. Essa é a lei do mercado. Esse é o expediente por meio do qual o mercado orienta a atividade dos indivíduos de forma a melhor contribuir para a satisfação das necessidades dos consumidores. Os maus investimentos do boomalocaram mal os fatores de produção não conversíveis em detrimento de outras alocações nas quais eram mais urgentemente necessários. Há uma desproporção na alocação dos fatores não conversíveis entre os vários setores da indústria. Essa desproporção só pode ser corrigida pela acumulação de novo capital e pelo seu emprego naqueles setores onde está fazendo falta. É um processo lento. Enquanto está em curso, é impossível utilizar plenamente a capacidade produtiva de algumas instalações para as quais faltam meios complementares de produção.

 

 

 

 

 

 

É inútil alegar que também existe capacidade ociosa nas fábricas que produzem bens cujo grau de especificidade é pequeno. Costuma-se dizer que o baixo nível de vendas desses bens não pode ser explicado por uma desproporcionalidade do capital fixo dos diversos setores; eles poderiam ser empregados em outros setores onde são necessários. Isso também é um erro. Se aciarias e usinas siderúrgicas de minas de cobre e serrarias não puderem funcionar a plena capacidade, a razão é uma só: não existem no mercado compradores em número suficiente para comprar toda a produção por preços que sejam superiores aos custos de exploração. Como o variável custo só pode consistir em preços de outros produtos e salários, e como o mesmo é válido em relação ao preço desses outros produtos, chegamos inevitavelmente à conclusão de que os salários são muito altos para que todos aqueles que desejam trabalhar encontrem emprego e para utilizar os equipamentos inconversíveis até o limite em que não se torne necessário retirar bens de capital não específico e mão de obra de outros empregos onde atenderiam melhor as necessidades mais urgentes.

Depois do colapso do boom, só existe uma maneira de retornar a uma situação em que haja uma firme melhoria do bem estar material: acumular capital, através de nova poupança, de modo a poder aparelhar adequada e harmoniosamente todos os setores da produção com os bens de capital necessários. É preciso prover aqueles setores indevidamente negligenciados durante o boom com os bens de capital que lhes faltam. Os salários terão de baixar; as pessoas terão de restringir o consumo temporariamente até repor o capital desperdiçado nos maus investimentos. Quem não gosta dos incômodos do período de ajustamento deve impedir, a tempo, a expansão do crédito.

Não adianta interferir no processo de ajustamento por meio de nova expansão de crédito. Na melhor das hipóteses, essas intervenções só conseguem interromper, perturbar e prolongar o processo curativo da depressão, se não chegarem a provocar um novo boom com todas as suas inevitáveis consequências.

O processo de ajustamento, mesmo que não haja uma nova expansão do crédito, se prolonga em decorrência dos efeitos psicológicos provocados pelo desapontamento e frustração. As pessoas demoram a se livrar da auto ilusão de uma prosperidade irreal. Os homens de negócio tentam continuar projetos não lucrativos; tendem a não enxergar a realidade quando esta é desagradável. Os trabalhadores não aceitam reduzir seus ganhos ao nível exigido pela situação do mercado; querem, se possível, evitar uma diminuição do seu padrão de vida; não querem mudar de emprego nem de local de residência. Quanto maior tiver sido o seu otimismo nos dias do boom, maior será a sua resistência ao ajuste. Chegam a deixar passar boas oportunidades por terem perdido momentaneamente a autoconfiança e a capacidade de iniciativa. Mas o pior é que as pessoas são incorrigíveis. Depois de alguns anos redescobrirão a expansão do crédito e a velha história, uma vez mais, se repetirá.

 

O papel dos fatores de produção disponíveis nos primeiros estágios do boom

 

Numa economia real existem sempre estoques não vendidos (além das quantidades que por razões técnicas devem ser mantidas em estoque), trabalhadores desempregados e capacidade ociosa de instalações produtivas não conversíveis. O sistema caminha para uma situação em que não haja mais nem trabalhadores desempregados nem excedentes invendáveis. 17 Mas, como o surgimento de novos dados desvia continuamente o seu curso para um novo objetivo, jamais chegam a existir as condições para que haja uma economia uniformemente circular.

 

 

 

A existência da capacidade ociosa de investimentos inconversíveis é uma consequência dos erros cometidos no passado. As previsões dos investidores, como os eventos mais tarde viriam a mostrar, não estavam corretas; o mercado desejava mais intensamente outros bens em vez daqueles que podiam ser produzidos nas suas instalações. Do ponto de vista cataláctico, a acumulação de estoques além do necessário e o desemprego dos trabalhadores são fenômenos de natureza especulativa. O proprietário dos estoques se recusa a vender a preços de mercado porque espera obter um preço maior mais tarde. O trabalhador desempregado se recusa a mudar de ocupação ou de residência, ou a se satisfazer com um salário menor, porque espera obter mais tarde um emprego, com salário maior, no local onde mora, e no setor de atividade de sua preferência. Ambos hesitam em ajustar suas pretensões à situação real do mercado, porque esperam que ocorram mudanças que lhes sejam favoráveis. Sua hesitação é uma das razões que atrasam o ajuste do sistema às condições do mercado.

Os partidários da expansão do crédito argumentam dizendo que o necessário, numa situação dessas, é aumentar os meios fiduciários. Se assim fosse feito, dizem eles, as fábricas trabalhariam a plena capacidade, os estoques seriam vendidos pelos preços que seus proprietários consideram satisfatórios e os desempregados conseguiriam emprego pelo salário que consideram suficientes. Está implícito nessa doutrina muito popular que o aumento geral de preços provocado pelos meios fiduciários adicionais afetaria ao mesmo tempo e na mesma medida todas as outras mercadorias e serviços, enquanto os proprietários dos estoques excessivos e os trabalhadores desempregados se contentariam com os preços e salários nominais que hoje solicitam, em vão. Se as coisas acontecessem dessa maneira, os preços reais e os salários reais obtidos por esses proprietários de estoques e pelos trabalhadores desempregados diminuiriam — em relação aos preços das outras mercadorias e serviços – ao nível que teriam de diminuir para encontrar compradores e empregadores.

A evolução do boom não é substancialmente afetada pelo fato de no seu início existir capacidade ociosa, estoques não vendidos e trabalhadores desempregados. Suponhamos que existam instalações de mineração de cobre ociosas, quantidades de cobre já extraídas sem comprador e mineiros desempregados. O preço do cobre está num nível tal, que não compensa explorar algumas minas; seus empregados são dispensados; existem especuladores que se abstêm de vender seus estoques. Para que essas minas voltem a ser lucrativas, voltem a dar emprego aos desempregados e possam vender seus estoques sem forçar os preços abaixo do custo de produção, é preciso que haja um incremento p na quantidade de bens de capital disponível, suficientemente grande para tornar possível tal aumento no investimento e tal ampliação da produção e do consumo, que daí resulte um adequado aumento na demanda por cobre. Se, entretanto, esse incremento pnão existe, e os empresários, iludidos pela expansão de crédito, agem como se p realmente existisse, as condições no mercado de cobre, enquanto durar o boom, serão como se os bens de capital disponíveis tivessem sido aumentados de uma quantidade p. Mas tudo que já foi dito acerca das inevitáveis consequências da expansão de crédito aplica-se também neste caso. A única diferença é que, no que diz respeito ao cobre, a inadequada expansão da produção não precisará ser feita através da retirada de capital e trabalho de outros setores onde estariam atendendo melhor os desejos dos consumidores. No que diz respeito ao cobre, o novo boom encontra um mau investimento de capital e um mau emprego de mão de obra, já efetuados no boom anterior, que ainda não foram absorvidos pelo processo de ajustamento.

 

 

 

 

 

 

Portanto, fica evidente que é inútil tentar justificar nova expansão do crédito fazendo-se referência a capacidade ociosa, a estoques não vendidos — ou, como as pessoas incorretamente dizem: invendáveis — e a trabalhadores desempregados. Uma nova expansão do crédito esbarra logo nos remanescentes dos maus investimentos anteriores, ainda não absorvidos pelo processo de ajustamento, e aparentemente conserta os erros cometidos. Na realidade, entretanto, o que ocorre é simplesmente uma interrupção do processo de ajustamento e de retorno a condições economicamente saudáveis. 18 A existência de capacidade ociosa e de desemprego não é um argumento válido contra a exatidão da teoria do crédito circulante. A crença, mantida pelos defensores da expansão do crédito e da inflação, de que a depressão se perpetuaria se não houvesse nova expansão do crédito e uma nova inflação, é inteiramente falsa. Os remédios que esses autores sugerem não fariam o boom durar para sempre; apenas perturbariam o processo de ajustamento.

 

Os erros das explicações não monetárias do ciclo econômico

 

Ao lidar com as inúteis tentativas de explicar as flutuações cíclicas da atividade econômica por meio de uma doutrina não monetária, é preciso, antes de tudo, chamar a atenção para um ponto que até agora não foi devidamente considerado.

Houve escolas de pensamento que consideravam o juro como simplesmente o preço pago para poder dispor de uma quantidade de moeda ou de substitutos de moeda. Partindo dessa convicção, essas escolas muito logicamente deduziram que, ao abolir a escassez de moeda e de substitutos de moeda, estaria abolindo inteiramente o juro, o que resultaria na gratuidade do crédito. Todavia, se não endossamos esse ponto de vista e compreendemos a natureza do juro originário, surge um problema de cujo exame não nos podemos evadir. Uma quantidade adicional de crédito, provocada por um aumento na quantidade de moeda ou de meios fiduciários, certamente tem o poder de reduzir a taxa bruta de juro do mercado. Se o juro não é apenas um fenômeno monetário e, consequentemente, não pode ser abolido ou reduzido de forma duradoura por um aumento, por maior que seja, da quantidade de moeda e de meios fiduciários, cabe à economia mostrar como se restabeleceria o nível da taxa de juro, compatível com as circunstâncias não monetárias do mercado, depois de ter sido reduzido pela expansão monetária. Cabe à economia explicar que tipo de processo é capaz de corrigir o desvio sofrido pela taxa de juro de mercado, decorrente das variações dos encaixes, daquela taxa que corresponde à relação entre as valorações que as pessoas fazem dos bens presentes e futuros. Se a economia não for capaz de fornecer essa explicação, estaria implicitamente admitindo que o juro é um fenômeno monetário, que poderia inclusive desaparecer completamente em função de mudanças que ocorressem na relação monetária.

Para as explicações não monetárias do ciclo econômico, a questão básica é a ocorrência reiterada de depressões. Entretanto, seus defensores não são capazes de apontar nas suas explicações da sequencia de eventos econômicos qualquer indício que possa sugerir uma interpretação satisfatória dessas desordens enigmáticas. Procuram desesperadamente algum artifício que lhes possa dar a aparência de uma autêntica teoria do ciclo econômico. O mesmo não ocorre com a teoria monetária ou do crédito circulante. A teoria monetária moderna já mostrou a inconsistência da suposta neutralidade da moeda. Já provou irrefutavelmente que existem na economia de mercado fatores que são inexplicáveis para uma doutrina que ignore a existência de uma força motriz própria da moeda. O sistema cataláctico que proclama a não neutralidade e a força motriz da moeda tem obrigação de se perguntar como as mudanças na relação monetária afetam a taxa de juro, primeiro no curto prazo e em  seguida no longo prazo. O sistema seria defeituoso se não pudesse responder a essas questões.

Seria contraditório se desse uma resposta que não explicasse, ao mesmo tempo, as flutuações cíclicas da atividade econômica. Mesmo que nunca tivessem existido meios fiduciários e crédito circulante, a moderna cataláxia estaria na obrigação de levantar o problema da correlação entre as mudanças na relação monetária e a taxa de juro.

Já foi mencionado antes que qualquer explicação não monetária do ciclo reconhece, necessariamente, que um aumento na quantidade de moeda ou de meios fiduciários é condição indispensável para o surgimento de um boom. É óbvio que não poderá ocorrer uma tendência de alta geral dos preços não causada por uma queda geral na produção e na quantidade de mercadoria colocada à venda, se não tiver havido um aumento na quantidade de moeda (no sentido amplo). Examinemos agora outra razão que também obriga os que combatem a explicação monetária a recorrer à teoria que eles mesmos difamam: essa teoria é a única que esclarece como uma injeção adicional de moeda e de meios fiduciária afeta o mercado de crédito e a taxa de juro do mercado. Somente aqueles que consideram a taxa de juro como mera consequência da escassez de moeda, institucionalmente imposta, pode deixar de reconhecer implicitamente a procedência da teoria do ciclo econômico baseado no crédito circulante. Isso explica por que nenhum crítico até hoje conseguiu apresentar uma objeção consistente a essa teoria.

O fanatismo com que os partidários de todas essas doutrinas não monetárias se recusam a admitir seus erros é, evidentemente, uma demonstração de preconceito político. Os marxistas foram os primeiros a interpretar a crise comercial como um mal inerente ao capitalismo, como uma consequência inevitável da sua produção “anárquica”. 19 Os socialistas não marxistas e os intervencionistas estão igualmente interessa dos em demonstrar que a economia de mercado não é capaz, por si só, de evitar o ressurgimento da recessão. São os mais ávidos em condenar a teoria monetária, uma vez que a manipulação da moeda e do crédito é hoje o principal instrumento com o qual contam os governantes anticapitalistas para estabelecer governos onipotentes. 20

As tentativas de relacionar as depressões econômicas com influências cósmicas – dos quais a mais notável é a teoria das manchas solares de William Stanley Jevons – fracassaram completamente. A economia de mercado tem conseguido de maneira bastante satisfatória ajustar a produção e as vendas a todas as condições naturais da vida humana e do seu meio ambiente. A suposição de que há pelo menos um fato natural — qual seja a alegada variação rítmica das colheitas — que o mercado não saberia enfrentar é inteiramente arbitrária. Por que os empresários seriam incapazes de reconhecer essas incertezas da agricultura e de ajustar os seus planos de modo a absorver esses efeitos desastrosos?

Influenciadas pelo slogan marxista “anarquia da produção”, as atuais doutrinas não monetárias sobre o ciclo econômico explicam essas flutuações cíclicas como decorrentes de uma tendência, alegadamente inerente à economia capitalista, a provocar uma desproporcionalidade no tamanho dos investimentos dos diversos setores da indústria.

Entretanto, até mesmo essas doutrinas da desproporcionalidade não contestam o fato de que todo empresário tem o maior interesse em evitar esse tipo de erro, que lhe acarretaria perdas financeiras consideráveis. A essência da atividade dos empresários e dos capitalistas consiste precisamente em evitar projetos que não lhes pareçam lucrativos. Supor que prevalece, entre os homens de negócio, uma tendência a fracassar nas suas tarefas implica em supor que todos os homens de negócio têm uma visão muito curta. Seria supor que são tão idiotas que não conseguem evitar certas arapucas e, por isso, frequentemente se atrapalham na condução dos seus próprios negócios; a sociedade em geral teria de pagar a conta das deficiências de especuladores, promotores e empresários incompetentes.

Ora, é óbvio que os homens são falíveis, e os homens de negócio certamente não escapam dessa fraqueza humana. Mas convém não esquecer que, no mercado, funciona ininterruptamente um processo de seleção. Prevalece uma tendência permanente de eliminar os empresários menos eficientes, isto é, aqueles que não conseguem prever corretamente as necessidades futuras dos consumidores. Se um grupo de empresários produz mercadorias em quantidade superior à demanda dos consumidores e, consequentemente, não consegue vender esses bens a preços remunerativos, sofrendo as correspondentes perdas, outros grupos que produzem as mercadorias que estão sendo disputadas pelo público têm seus lucros aumentados. Alguns setores prosperam, enquanto outros enfrentam dificuldades. Nada disso pode produzir uma depressão geral.

Mas os que propõem essas doutrinas argumentam de outra maneira. Supõem, eles que não só a classe empresarial, mas também as pessoas em geral são incapazes do mais elementar discernimento. Como a classe empresarial não é um grupo social fechado ao qual ninguém pode ter acesso, como todo homem empreendedor tem, virtualmente, condições de desafiar aqueles que já fazem parte da classe empresarial, e como a história do capitalismo nos fornece inúmeros exemplos de gente que, começando do nada, foi brilhantemente capaz de se lançar na produção daqueles bens que, a seu juízo, melhor atenderiam as necessidades mais urgentes dos consumidores, supor que todos os empresários são habitualmente vítimas de certos erros implica tacitamente em dizer que falta inteligência a todos os homens práticos. Implica em dizer que não há empresário, nem alguém que aspire a sê-lo se surgir uma oportunidade, que seja suficientemente sagaz para compreender corretamente a situação do mercado. Mas, por outro lado, os teóricos, que não têm experiência própria na condução dos negócios e que se limita a conjecturar sobre o comportamento dos outros, consideram-se suficientemente espertos para descobrir os erros que os homens de negócios cometem. Esses professores oniscientes jamais cometeriam os erros que qualquer pessoa pode cometer; sabem precisamente como resolver os problemas da empresa privada. Portanto, julgam plenamente justificável que lhes sejam atribuídos poderes ditatoriais para controlar a atividade econômica.

O mais surpreendente nessas doutrinas é que, além do mais, consideram que os homens de negócios, na sua limitada capacidade intelectual, insistem obstinadamente nos seus procedimentos errados, embora já tenham sido advertidos, há muito tempo, pelos doutos acadêmicos. Apesar de todo livro-texto explicá-los, o homem de negócios não consegue deixar de repeti-los. O único meio de impedir a recorrência da depressão econômica seria entregar aos filósofos — segundo as ideias utópicas de Platão — o poder supremo.

Examinemos brevemente as duas variedades mais populares dessas doutrinas da desproporcionalidade.

A primeira é a doutrina dos bens duráveis. Esses bens retêm sua utilidade durante certo tempo. Enquanto durar a vida útil de um bem durável, seu proprietário não cogitará substituí-lo por um novo. Assim sendo, uma vez que todos já fizeram suas compras, a demanda por esses artigos diminui. A atividade econômica se retrai. Só renasce quando, depois de algum tempo, as velhas casas, automóveis, geladeiras e similares já se desgastaram e os seus proprietários precisam comprar novas unidades.

Entretanto, os homens de negócio, em geral, são mais previdentes do que essa doutrina supõe. Procuram ajustar o volume de sua produção ao volume da demanda dos consumidores. Os padeiros consideram o fato de que uma dona de casa compra pão todos os dias e os fabricantes de caixões consideram o fato de que a venda anual de caixões não pode exceder o número de pessoas que morrem no mesmo período. A indústria de máquinas considera a “vida” média de seus produtos, tanto quanto o alfaiate, o sapateiro, o fabricante de automóveis, de rádios e de geladeiras, ou o construtor de casas. Existem sempre, certamente, empresários que num estado de espírito ilusoriamente otimista estão dispostos a expandir suas empresas além da conta. Para executar seus projetos, arrebatam fatores de produção de outras fábricas da mesma indústria e de outros setores industriais. Sua expansão resulta numa relativa redução da produção de outros campos de atividade. Um setor se expande enquanto

outro se encolhe, até que os resultados decepcionantes do último e a lucratividade do primeiro restabeleçam o equilíbrio. Tanto o boom inicial como a recessão que se segue afeta apenas uma parte da atividade econômica.

A segunda variedade dessas doutrinas da desproporcionalidade é conhecida como o princípio da aceleração. Um aumento temporário na demanda por certa mercadoria resulta num aumento da produção da mercadoria em questão. Se mais tarde a demanda cai, os investimentos feitos para expandir a produção se revelam como maus investimentos. Isto se torna especialmente pernicioso no campo dos bens de produção duráveis. Se a demanda do bem de consumo a aumenta 10%, as empresas aumentam a produção do equipamento pnecessário à sua produção em 10%. O resultante aumento na demanda por p é tão mais importante em relação à demanda anterior, quanto maior for a duração da utilidade de uma unidade p e, consequentemente, quanto menor fosse, até então, a demanda de reposição de unidades gastas de p. Se a vida útil de uma unidade p é de dez anos, a demanda anual de reposição de p é de 10% da quantidade de ppreviamente utilizada. O aumento de 10% na demanda por a duplica, portanto, a demanda por p e resulta numa expansão de 100% do equipamento r necessário à produção de p. Se, então, a demanda por a não continuar aumentando, 50% da capacidade de produção de r não serão utilizados. Se o aumento anual da demanda por a cai de 10% para 5%, 25% da capacidade de produção de r deixam de ser utilizados.

O erro fundamental dessa doutrina é o de considerar a atividade empresarial como uma resposta cega e automática a uma momentânea situação da demanda. Sempre que houvesse um aumento da demanda, tornando um setor da atividade econômica mais lucrativa, haveria um instantâneo aumento proporcional nas correspondentes instalações de produção. Essa ideia é insustentável. Os empresários erram frequentemente; e pagam pesado por seus erros. Mas quem agisse segundo o princípio da aceleração não seria um empresário, mas um autômato sem alma. O empresário, na realidade, é um especulador, 21  alguém que utiliza sua compreensão do futuro estado do mercado para realizar operações comerciais que resultem em lucros. Essa compreensão antecipadora das condições do futuro incerto não é susceptível de qualquer regra ou sistematização. Não pode ser ensinada nem aprendida. Se não fosse assim, qualquer um poderia dedicar-se à atividade empresarial com a mesma chance de ser bem-sucedido. O que distingue o empresário ou promotor bem-sucedido das outras pessoas é precisamente o fato de ele não se deixar levar pelo que foi ou pelo que é, mas de agir em função da sua opinião sobre o que será. Ele vê o passado e o presente como as outras pessoas; mas sua visão do futuro é diferente. Suas ações são dirigidas por uma opinião do futuro que não é a mesma da maioria das pessoas. O impulso que determina suas ações resulta do fato de avaliar, diferentemente das outras pessoas, os fatores de produção e os futuros preços das mercadorias que com eles se podem produzir. Se, com a estrutura vigente de preços, produzir determinados artigos é muito lucrativo sua produção só se expandirá se os empresários acreditarem que essas condições favoráveis de mercado permanecerão por um tempo suficiente para tornar rentáveis os respectivos investimentos. Se os empresários não pensassem assim, mesmo os lucros elevados das empresas em operação não seriam suficientes para justificar uma expansão. Essa relutância dos capitalistas e empresários em fazer investimentos não lucrativos é violentamente criticada por aqueles que não compreendem o funcionamento da economia de mercado. Engenheiros de mentalidade tecnocrática lamentam que a prevalência da motivação pelo lucro impeça que os consumidores sejam fartamente supridos com os bens que o conhecimento tecnológico pode proporcionar. Os demagogos clamam contra a ganância dos capitalistas supostamente empenhados em manter a escassez.

 

 

 

Uma explicação satisfatória das flutuações da atividade econômica não se pode basear na hipótese de que firmas ou grupos de firmas se equivoquem quanto ao futuro do mercado e que, portanto, façam maus investimentos. O que ocorre no ciclo econômico é um crescimento geral da atividade econômica, uma propensão para expandir a produção em todos os setores da indústria, e a consequente depressão geral. Esses fenômenos não podem ser atribuídos ao fato de que alguns setores motivados por lucros maiores, resolvam expandir-se, e ao correspondente investimento desproporcional nas indústrias que produzem os equipamentos necessários a essa expansão.

É fato bem conhecido o de que quanto mais o boom se prolonga, mais difícil se torna comprar máquinas e equipamentos. As fábricas que produzem esses bens ficam sobrecarregadas de pedidos. Seus clientes precisam esperar bastante tempo para receber suas encomendas. Isso mostra claramente que as indústrias de bens de produção não ampliam sua produção com a precipitação presumida pelo princípio da aceleração.

Mas, mesmo que, só para argumentar, admitíssemos que os capitalistas e os empresários se comportariam da maneira descrita pela doutrina da desproporcionalidade, ainda assim não teríamos como explicar de que modo poderiam fazê-lo sem que houvesse uma expansão do crédito. A própria deflagração desses investimentos adicionais aumentaria os preços dos fatores complementares de produção e a taxa de juro no mercado de crédito. Esses efeitos seriam um freio natural à tendência expansionista, se não houvesse expansão creditícia.

Os partidários das doutrinas da desproporcionalidade fazem referência a certas ocorrências na agricultura como se elas fossem uma confirmação dessa alegada falta de previsão, inerente à atividade econômica privada. Todavia, não é admissível considerar como típico da livre competição na economia de mercado o que ocorre com pequenas e médias explorações agrícolas. Em muitos países essa atividade não está mais sujeita à supremacia do mercado e dos consumidores. A interferência governamental procura proteger o agricultor das vicissitudes do mercado. Esses agricultores não operam num mercado livre; são privilegiados e protegidos de várias maneiras. Seu campo de atividade é como se fosse uma reserva na qual o atraso tecnológico, a obstinação tacanha e a ineficiência empresarial são artificialmente preservadas à custa dos estratos não agrícolas da população. Erram-se na condução de seus negócios, o governo força os consumidores, os contribuintes e os credores hipotecários a pagarem a conta.

É verdade que existe na produção agrícola o que se costuma chamar de ciclo milho suíno (corn-hog cycle) e diversos outros fenômenos da mesma natureza. Mas a recorrência de tais ciclos se deve ao fato de que as penalidades que o mercado aplica aos empresários ineficientes e ineptos não atingem a maior parte dos agricultores. Estão isentos de responsabilidade; são as crianças mimadas dos governos e dos políticos. Se assim não fosse, há muito tempo teriam falido e suas fazendas estariam sendo operadas por pessoas mais capazes.

 

NOTAS

1. Ver p. ,,,,,,,.

2. A diferença entre esse caso (caso b) e o caso do fim do mundo anteriormente aludido na p. …… (caso a) é a seguinte: no caso a, o juro originário aumenta acima de qualquer medida porque os bens futuros perdem todo valor; no caso b, o juro originário não se altera, enquanto o componente empresarial aumenta acima de qualquer medida.

3. Ver nota 13 do cap. XVII. (N.T.)

4. Ver Irving Fisher, The Rate of Interest, Nova Iorque, 1907, p.77 e segs.

5. Estamos considerando a existência de um mercado de trabalho sem intervenções. Quanto ao argumento apresentado por lorde Keynes, ver adiante p. ……..

6. Quanto às flutuações do “ciclo longo”, ver adiante p. ……..

* Ver também nota 23 na seção 11 do cap. XVII. (N.T.)

7. Ver G. V. Haberler, Prosperity and Depression, nova ed. Revista da Liga das Nações, Genebra, 1939, p.

8. Expansão do investimento público ou expansão dos gastos públicos – pumppriming — significa a tentativa do governo de aumentar o poder aquisitivo da população e, portanto, estimular a atividade econômica através de gastos ou investimentos em obras públicas ou programas sociais via déficit orçamentário, até que o déficit desapareça por força do aumento da atividade econômica. Extraído de Mises Made Easier, Percy L. Greaves, Jr., op.cit. (N.T.)

9. Ver M.N. Rothbard, America’s Great Depression, Princeton, 1963.

10. Não nos devemos iludir, pensando que essas mudanças nas políticas de crédito dos bancos foram causadas pela percepção dos banqueiros e das autoridades monetárias quanto às inevitáveis consequências de uma continuada expansão do crédito. O que fez os bancos mudarem sua conduta foram certas condições institucionais a serem analisadas mais adiante, p. ……. Sempre houve banqueiros competentes e conhecedores da ciência econômica; a própria formulação da teoria das flutuações econômicas, a teoria monetária (Escola Monetária — Currency School) foi, inicialmente, em grande parte elaborada por banqueiros ingleses. Mas a gestão dos bancos centrais e a condução das políticas monetárias dos vários governos foram, geralmente, confiadas a homens que não viam nenhum mal em expandir ilimitadamente o crédito e se consideravam ofendidos diante de qualquer crítica às suas iniciativas expansionistas.

11. Ver adiante p. ……..

12. Ver adiante p. ……..

13. Ver p. …….

14. Beardsley Ruml, “Taxes for Revenue are Obsolete”, American Affairs, 1946, vol.8, p.35-36.

15. Machlup, em The Stock Market, Credit and Capital Formation, p.248, denomina de “inflacionismo passivo” a essa conduta dos bancos.

16. Ver p. ……..

17. Na economia uniformemente circular também pode haver capacidade ociosa do equipamento não conversível. Deixar de utilizá-lo perturba tanto o equilíbrio quanto o fato de deixar terras submarginais ociosas.

 

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Ludwig von Mises
Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico. Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política. Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico. Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de 'praxeologia'.

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