III – A HISTÓRIA E O CONTEXTO DO BITCOIN
É COM A ANÁLISE DO CONTEXTO em que o Bitcoin surgiu que podemos entender a sua razão de ser. Ainda que possa ser considerada uma mera coincidência o fato de a moeda digital ter surgido em meio à maior crise financeira desde a Grande Depressão de 1930, não podemos deixar de notar o avanço do estado interventor, as medidas sem precedentes e arbitrárias das autoridades monetárias na primeira década do novo milênio e a constante perda de privacidade que cidadãos comuns vêm enfrentando em grande parte dos países desenvolvidos e emergentes.
Esses fatores são certamente responsáveis por parte do ímpeto da criação do Bitcoin. E, enquanto os reais motivos de seu surgimento podem ser apenas intuídos, não há dúvidas quanto ao que possibilitou o seu desenvolvimento: a era da computação, a revolução digital.
1.
A Grande Crise Econômica do século XXI e a Perda de Privacidade Financeira
A quebra do banco Lehman Brothers, em setembro de 2008 – um dos grandes marcos da atual crise econômica e a maior falência da história dos Estados Unidos –, ocorreu há pouco mais de cinco anos. E, até hoje, seguimos sentindo as repercussões dessa grande crise.
No mainstream da ciência econômica, muito ainda se debate sobre as reais causas da débâcle financeira. A ganância, a desregulamentação do setor financeiro, os excessos dos bancos ou, simplesmente, o capitalismo, são todos elementos apontados como os causadores da crise. Mas é justamente o setor financeiro, aquele em que a intervenção dos governos é mais presente e marcante, seja em países desenvolvidos, seja em países em desenvolvimento. Assim, e como veremos adiante, o mais correto seria apontar o socialismo aplicado ao âmbito monetário como o real culpado e não o livre mercado.
O atual arranjo monetário[1] do Ocidente baseia-se em dois grandes pilares: 1) monopólio da emissão de moeda com leis de curso legal forçado[2]; e 2) banco central, responsável por organizar e controlar o sistema bancário. Em grande parte dos países, a tarefa de emissão de moeda é delegada pelo estado ao próprio banco central. É, portanto, patente a interferência governamental no âmbito monetário. Tal arranjo é a antítese de livre mercado; considerá-lo um exemplo de capitalismo exige uma boa dose de elasticidade intelectual.
Além disso, as moedas hoje emitidas pelos governos não têm lastro algum, senão a confiança dos governos. Ao longo de centenas de anos, o arranjo monetário desenvolveu-se de tal forma que não há mais vestígios de qualquer vínculo ao ouro ou à prata, ambos metais preciosos que serviram como dinheiro por milênios. O chamado padrão-ouro hoje não passa de um fato histórico com remotas possibilidades de retornar. E não porque não funcionava, mas porque impunha restrições ao ímpeto inflacionista dos governos. Quando estes emitiam moeda em demasia, acabavam testemunhando a fuga de ouro das fronteiras nacionais, sendo obrigados a depreciar a paridade cambial com o metal precioso.
Desde 1971, quando o então presidente Richard Nixon suspendeu a conversibilidade do dólar em ouro, vivemos na era do papel-moeda fiduciário, em que bancos centrais podem imprimir quantidades quase ilimitadas de dinheiro, salvo o risco de que os cidadãos percam toda a confiança na moeda, recusando-se a usá-la em suas transações, como costuma ocorrer em episódios de hiperinflação[3].
A realidade é que recorrer à impressão de dinheiro é algo que os governos naturalmente fizeram ao longo da história para financiar seus déficits, para custear suas guerras ou para sustentar um estado perdulário incapaz de sobreviver apenas com os impostos cobrados da sociedade. O poder de imprimir dinheiro é tentador demais para não ser usado.
Mas, nos últimos cem anos, o mecanismo de impressão de dinheiro foi, de certa maneira, sofisticado. Antigamente, diluía-se o conteúdo do metal precioso de uma moeda, adicionando um metal de mais baixa qualidade. Na República de Weimar, as impressoras de papel-moeda operavam a todo o vapor 24 horas por dia. Atualmente, entretanto, o processo inflacionário é um pouco mais indireto e envolve não somente um Banco Central ou um órgão de governo imprimindo cédulas de dinheiro, mas também todo o sistema bancário.
Inflação é o aumento na quantidade de moeda em uma economia, e a eventual elevação dos preços é a consequência inevitável[4]. Mas, em uma economia moderna, a oferta de moeda não é composta apenas por cédulas e moedas de metal; os depósitos bancários também fazem parte da oferta monetária, uma vez que desempenham a mesma função que a moeda física. Ainda que não “existam” materialmente, os depósitos constituem parte da oferta monetária total. Assim, quando se emite moeda ou se criam depósitos bancários do nada, está ocorrendo inflação. E quanto maior a quantidade de dinheiro (oferta monetária) em uma economia, menor o poder de compra de cada unidade monetária. Ou, o seu corolário, mais caros se tornam os produtos e serviços.
Mas e como se multiplicam os depósitos bancários? Por meio de um mecanismo chamado reservas fracionárias. Em suma, significa que os bancos podem guardar nos seus cofres apenas uma fração do dinheiro que foi depositado e emprestar o restante ao público – daí o nome reservas fracionárias[5]. E o impacto desse arranjo no sistema financeiro é monumental, porque esse simples mecanismo concede aos bancos o poder de criar depósitos bancários por meio da expansão do crédito. E como depósitos bancários são considerados parte da massa monetária, os bancos criam moeda de fato – por isso, diz-se que os bancos são “criadores de moeda”.
Além de aumentar a quantidade de moeda, a expansão do crédito pelo sistema bancário tem outro efeito nocivo na economia: a formação de ciclos econômicos[6]. Para que haja investimento, é preciso haver poupança. É o investimento que permite o acúmulo de capital, que, por sua vez, possibilita uma maior produtividade da economia. Mas sem poupança prévia não é possível investir. A expansão do crédito pelo sistema bancário sob um regime de reservas fracionárias permite que os bancos concedam empréstimos às empresas e indivíduos como se houvesse poupança disponível, quando, na verdade, isso não ocorreu. Logo, os empresários investem como se houvesse recursos disponíveis para levar a cabo seus empreendimentos, criando um auge econômico que contém as sementes de sua própria ruína. Cedo ou tarde, alguns investimentos não poderão ser concluídos (pois simplesmente não há recursos suficientes para que sejam completados lucrativamente), devendo ser liquidados o quanto antes. Esse é o momento da recessão, quando os excessos cometidos durante o boom precisam ser sanados para que a estrutura produtiva da economia retome o seu rumo de forma sustentável. Normalmente, o sinal que antecede um ciclo de auge é a redução artificial dos juros pelo banco central. Por meio da manipulação da taxa de juros, o banco central injeta moeda no sistema bancário, propiciando uma maior expansão do crédito.
As crises financeiras deste início de milênio são uma ilustração perfeita da teoria explicada, chamada de Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos. Foi a redução artificial dos juros pelo Federal Reserve que deu início ao boom no setor imobiliário americano logo após o estouro da bolha da internet, em 2001 – que, por sua vez, foi também precedida por um período de expansão monetária orquestrada pelo Federal Reserve. Anos de crédito farto e barato levaram a um superaquecimento da economia americana, em especial no setor da construção civil, inflando uma bolha imobiliária[7] de proporções catastróficas. E para piorar ainda mais o cenário, os principais bancos centrais do mundo seguiam a mesma receita de juros baixos para estimular a economia, formando bolhas imobiliárias em outros países também.
Cegados pelos baixos índices de inflação ao consumidor – enquanto os preços dos ativos imobiliários e financeiros disparavam –, os banqueiros centrais acreditavam piamente terem domado os ciclos econômicos; entráramos na chamada “Era da Grande Moderação”. Infelizmente, a realidade logo veio à tona, e, com ela, todas as consequências perversas de um sistema monetário e bancário sujeito a mais absoluta intervenção.
Começando em 2007 com o imbróglio das hipotecas de alto risco (os subprimes) e o consequente “aperto da liquidez” (o liquidiy crunch), o setor financeiro logo congelou, os preços dos ativos despencaram – em especial os do setor imobiliário – e os grandes bancos do mundo ocidental viram-se praticamente insolventes.
No ano seguinte, a crise seria intensificada. Bancos e fundos de investimento buscavam desesperadamente sacar seus depósitos de instituições problemáticas. Era a versão moderna da velha corrida bancária. A interconectividade, a interdependência, a exposição mútua e os riscos de contraparte (o “counterparty risk”) eram de tal magnitude e complexa mensuração que o sistema financeiro estava simplesmente à beira do colapso. Depois de seguidos resgates de bancos em dificuldades, fusões forçadas pelo Federal Reserve, acordos de “troca de liquidez” entre os principais bancos centrais do mundo (“liquidity swap”), legislações apressadas e desesperadas, o impensável ocorria: no dia 15 de setembro de 2008, um banco considerado “grande demais para quebrar” viria a falir. O Lehman Brothers entrava para a história como a maior falência dos Estados Unidos até então.
A queda do Lehman foi certamente um ponto de inflexão na crise. A partir daquele momento, os bancos centrais passaram a atuar com uma discricionariedade e arbitrariedade sem precedentes no mundo desenvolvido. A teoria econômica já não seria suficiente para justificar as medidas extraordinárias. Somente argumentos contrafatuais poderiam embasar o pleito dos banqueiros centrais: “Se adotarmos a medida X, o resultado pode ser ruim, mas se não fizermos nada, será ainda pior”. A despeito de jamais terem previsto a crise de 2007/08, as autoridades monetárias ainda gozavam de enorme confiança perante os políticos e a opinião pública. E, dessa forma, carta branca era dada pelos governos aos bancos centrais. A cautela era preterida, e o caminho estava livre para o grande experimento monetário do novo milênio.
Desde setembro de 2008, o rol de medidas extremas e imprevistas empregadas pelas principais autoridades monetárias globais é realmente assombroso. Resgate de bancos, seguradoras e montadoras; nacionalização de instituições financeiras; trocas de liquidez entre bancos centrais; monetização de dívida soberana; redução das taxas de juros a zero – aliada à promessa de que nesse nível permanecerão por um bom tempo; e compras maciças de ativos financeiros e hipotecas, quase ilimitadas e sem fim predeterminado, os notórios “afrouxamentos quantitativos” (quantitative easing, ou QE). E qual foram os resultados desse experimento? Quadruplicar o balanço do Federal Reserve; incitar uma guerra cambial[8] mundial, em que bancos centrais historicamente prudentes – como o Banco Nacional da Suíça – passaram a imprimir dinheiro desesperadamente, com o intuito de evitar uma apreciação abrupta de suas moedas; gerar imposição de controle de capitais, muitas vezes de forma velada; e reinflar os preços dos ativos financeiros (ações e bônus) e imobiliários, formando uma renovada bolha com potencial de destruição ainda maior.
Ao cidadão comum, resta assistir ao valor do seu dinheiro esvair-se, enquanto banqueiros centrais testam suas teorias, ora para salvar bancos, ora para resgatar governos quebrados, mas sempre sob o pretexto da inatingível estabilidade de preços. Na prática, a única estabilidade que existe é a da perda do poder de compra da moeda, e quanto a esta, a impotência da sociedade é absoluta.
E é precisamente este ponto que ficou claro na atual crise: o cidadão não tem controle algum sobre seu dinheiro[9] e está à mercê das arbitrariedades dos governos e de um sistema bancário cúmplice e conivente. Além do imenso poder na mão dos bancos centrais, a conduta destes – envoltas por enorme mistério, reuniões a portas fechadas, atas indecifráveis, critérios escusos, decisões intempestivas e autoritárias – causa ainda mais consternação e desconfiança, justamente o oposto do que buscam. O que, nos dias de hoje, é uma grande ironia, pois, enquanto as autoridades monetárias se esquivam do escrutínio público, exigem cada vez mais informações da sociedade, invadindo a privacidade financeira dos cidadãos.
Isso nos traz a outro desdobramento do paradigma atual que vivemos: a crescente perda de privacidade financeira, frequentemente justificada pela ameaça do terrorismo, real ou imaginário, a qual foi intensificada depois dos ataques às torres gêmeas do World Trade Center em setembro de 2001.
Sob a alegação de impedir o financiamento de atividades terroristas e lavagem de dinheiro, quem acaba sofrendo as consequências da supervisão e espionagem são os cidadãos de bem, que encontram cada vez mais dificuldade para proteger seus ativos e movê-los a qualquer jurisdição fora do alcance dos governos. Em países emergentes, cujo histórico de estritos controles de capitais é bastante notório, a falta de liberdade financeira não é novidade. Mas aos cidadãos de países de primeiro mundo, esse novo paradigma não é nada bem-vindo.
É provável que nenhum país desenvolvido tenha avançando tanto a agenda contra a privacidade financeira como os Estados Unidos. Seguidos acordos secretos[10] com a União Europeia, Suíça e outros portos financeiros tidos como seguros têm levado o cidadão americano a ser um cliente altamente indesejado, quando não rejeitado em primeira instância. Muitos bancos europeus e suíços têm preferido declinar esses clientes, para não ter que obedecer a todas as exigências do governo dos EUA, como aquelas impostas pela infame legislação FATCA[11] (Foreign Account Tax Compliance Act). Aprovada pelo Congresso em 2010, a FATCA simplesmente concede à Receita Federal dos EUA (Internal Revenue Service, ou IRS) o poder de violar o direito de privacidade de cidadãos que detenham investimentos ou contas bancárias no exterior. Além disso, recruta instituições financeiras como se agentes do IRS fossem, exigindo que monitorem e reportem clientes americanos, arcando com a totalidade dos custos para obedecer à legislação, sob pena de retaliações no caso de descumprimento.
Até mesmo a Suíça – cujo setor bancário tem sido historicamente um dos principais destinos para quem busca discrição e sigilo financeiro – tem sucumbido às demandas norte-americanas. As famosas contas numeradas – que permitem mais privacidade ao titular, por não ser necessário vincular seu nome à conta – tampouco estão livres dessa nova realidade. Pouco a pouco o governo dos EUA aperta o cerco à livre movimentação de capitais, pressionando governos ao redor do globo a adotar medidas prudenciais e cumprir as imposições das autoridades americanas.
Este é o paradigma do atual milênio: crescente perda de privacidade financeira; autoridades monetárias centralizadas e opressivas que abusam do dinheiro isentas de qualquer responsabilidade; e bancos cúmplices e coadjuvantes no desvario monetário.
Entretanto, se por um lado o cenário é desalentador, por outro, o terreno é fértil para a busca de novas soluções. Coincidência ou não, um mês após a quebra do Lehman Brothers, era lançada a pedra fundamental de uma possível solução à instabilidade do sistema financeiro mundial.
2.
O bloco gênese
Precisamente no dia 31 de outubro de 2008, Satoshi Nakamoto publicava o seu paper, “Bitcoin: a Peer-to-Peer Electronic Cash System[12]”, em uma lista de discussão online de criptografia[13]. Baseado na simples ideia de um “dinheiro eletrônico totalmente descentralizado e peer-to-peer, sem a necessidade de um terceiro fiduciário”, o sistema desenhado por Satoshi surgia como um novo experimento no campo financeiro e bancário.
A ideia em si não era nova. Na verdade ela já havia sido brevemente explicitada por Wei Dai, membro da lista de discussão cypherpunk[14], em 1998. Em seu texto, Wei Dai expunha as principais características do protocolo de uma criptomoeda e como ela poderia funcionar na prática[15]. O próprio Satoshi, reconhecendo as origens conceituais do Bitcoin, cita o texto de Wei Dai como a primeira referência em seu paper.
A um mero leigo no assunto, o paper de Satoshi pode ser pouco esclarecedor. Pode parecer um tanto técnico e pouco conceitual. E quase nada revela sobre as razões ideológicas por trás do Bitcoin. Por sorte, após tornar pública a ideia do Bitcoin, Satoshi pôs-se a responder as perguntas dos demais participantes da lista de discussões, esclarecendo desde temas técnicos e conceituais até questões políticas e econômicas; é exatamente lá que encontramos os indícios do pensamento político-filosófico de Satoshi.
Várias postagens suas ilustram a visão de mundo e o conhecimento econômico do criador do Bitcoin. Por exemplo, quando confrontado com a afirmação de que “não seria encontrada uma solução aos problemas políticos na criptografia”, Satoshi concordou, mas ressaltou que “podemos vencer uma grande batalha na corrida armamentista e ganhar um novo território de liberdade por vários anos. Governos são bons em cortar a cabeça de redes centralmente controladas, como o Napster, mas redes puramente P2P, como Gnutella e Tor, parecem seguir em frente inabaladas[16]”.
Em uma postagem posterior, um membro do grupo conclui que o protocolo do Bitcoin garante uma inflação de 35%, ao que Satoshi o corrige, atentando para a regra de que a oferta de bitcoins ao longo do tempo é sabida com antecedência por todos os participantes. “Se a oferta de moeda aumenta à mesma taxa de crescimento de pessoas que a usam, os preços permanecem estáveis”, destaca Satoshi, concluindo que “se ela não cresce tão rápido quanto a demanda, haverá deflação, e os primeiros detentores da moeda verão seu valor aumentar”[17].
Mas talvez o vestígio mais interessante sobre a visão crítica de Satoshi acerca dos sistemas monetário e bancário vigentes esteja gravado justamente no bloco gênese[18], o primeiro bloco do blockchain. Às 18h15 do dia 3 de janeiro de 2009, nascia oficialmente o Bitcoin, com a primeira transação de sua história, transmitida à rede por Satoshi, registrada no bloco gênese e acompanhada da seguinte mensagem:
The Times 03/Jan/2009 Chancellor on brink of second bailout for banks
A alusão à manchete do jornal britânico The Times daquele dia não é acidental. É, na verdade, um claro indicativo da visão crítica de Satoshi sobre o sistema bancário e a desordem financeira reinante. Nesse contexto, o projeto Bitcoin vinha a ser uma tentativa de resposta à instabilidade financeira causada por décadas de monopólio estatal da moeda e por um sistema bancário de reservas fracionárias.
Poucos dias após a transmissão do bloco gênese, era disponibilizado aberta e gratuitamente para download o cliente Bitcoin v0.1. Era o início do grande experimento monetário e bancário do novo milênio.
3.
O que possibilitou a criação do Bitcoin
Os motivos fundamentais que impulsionaram a criação do Bitcoin são, portanto, evidentes: um sistema financeiro instável e com elevado nível de intervenção estatal e a crescente perda de privacidade financeira. Mas esse estado de coisas não é novidade. A intervenção dos governos no âmbito monetário é milenar, assim como a cumplicidade e conivência do sistema bancário. A diferença entre o sistema financeiro mundial atual e o de cem anos atrás é meramente de grau; na sua essência, a intervenção estatal prevalece tanto hoje como no início do século XX. Por que então algo como o Bitcoin não surgiu antes? Por que precisamos assistir ao sistema financeiro mundial tornar-se tão vulnerável, a ponto de quase testemunharmos o seu mais absoluto colapso em 2008? Simplesmente porque, antes, uma tecnologia como a internet não estava disponível e madura como hoje está; de fato, a rede mundial de computadores foi o que viabilizou a criação do Bitcoin. A era da informação revolucionou diversos aspectos da cooperação social, e não poderia ser diferente com uma das instituições mais importantes para o convívio em sociedade, o dinheiro.
Aparentemente surgido do nada, o Bitcoin é, em realidade, resultado de mais de duas décadas de intensa pesquisa e desenvolvimento por pesquisadores praticamente anônimos. No seu âmago, o sistema é um avanço revolucionário em ciência da computação, cujo desenvolvimento foi possibilitado por 20 anos de pesquisa em moedas criptográficas e 40 anos de pesquisa em criptografia por milhares de pesquisadores ao redor do mundo[19].
Mas para entendermos melhor como a ciência da computação e a internet possibilitaram a criação do experimento Bitcoin, é preciso ir mais além e compreender as principais tecnologias intrínsecas ao sistema. Basicamente, o Bitcoin é a junção de duas tecnologias: a distribuição de um banco de dados por meio de uma rede peer-to-peer e a criptografia. A primeira foi somente possível com o advento da internet. Já a segunda é bastante antiga, mas seu potencial não poderia ter sido devidamente explorado antes da era da computação.
Ao contrário das redes usuais, em que há um servidor central e os computadores (clientes ou nós, nodes, em inglês) se conectam a ele, uma rede peer-to-peer não possui um servidor centralizado. Nessa arquitetura de redes, cada um dos pontos ou nós da rede funciona tanto como cliente quanto como servidor – cada um dos nós é igual aos demais (peer traduz-se como “par” ou “igual”) –, o que permite o compartilhamento de dados sem a necessidade de um servidor central. Por esse motivo, uma rede peer-to-peer é considerada descentralizada, em que a força computacional é distribuída.
A ideia de redes distribuídas não é nova e vem se desenvolvendo desde 1960 nos Estados Unidos. Mas foi com o surgimento da internet que as redes peer-to-peer realmente ganharam terreno e notoriedade. No final da década de 90, com a criação do Napster[20], essas redes se tornaram ainda mais populares, atraindo dezenas de milhões de pessoas dedicadas a trocar arquivos de áudio entre si. Desde então, diversas variantes de redes descentralizadas surgiram[21], frequentemente visando a troca de arquivos digitais.
No caso do Bitcoin, a rede peer-to-peer desempenha uma função fundamental: a de garantir a distribuição do blockchain a todos os usuários, assegurando que todos os nós da rede detenham uma cópia atual e fidedigna do histórico de transações do Bitcoin a todo instante. Dessa forma, novas transações são transmitidas a todos os nós, registradas no log de transações único e compartilhado, tornando redundante a existência de um servidor central. Em um mundo pré-digital, seria simplesmente inconcebível levar a cabo tal logística.
A criptografia, entretanto, não é uma tecnologia nova. O estudo da arte de cifrar mensagens – em que somente o remetente e o destinatário têm acesso ao conteúdo – remonta aos tempos passados: os primeiros registros datam ao redor de 2.000 a.C., no Egito. Historicamente, a criptografia foi utilizada por estados em assuntos ligados às guerras e à diplomacia com objetivo de interceptar mensagens e desvendar comunicações encriptadas.
É na era da computação, contudo, que a criptografia atinge seu apogeu. Antes do século XX, a criptografia preocupava-se principalmente com padrões linguísticos e análise de mensagens, como a própria etimologia sugere (criptografia, do grego kryptós, “escondido”, e gráphein, “escrita”). Hoje em dia, a criptografia é também uma ramificação da matemática, e seu uso no mundo moderno se estende a uma gama de aplicações presentes no nosso cotidiano, sem que sequer a percebamos, como em sistemas de telecomunicações, comércio online ou para proteção de sites de bancos. A criptografia moderna permite a criação de comprovações matemáticas que oferecem um altíssimo nível de segurança.
Aplicada ao Bitcoin, a criptografia desempenha duas funções essenciais: a de impossibilitar que um usuário gaste os bitcoins da carteira de outro usuário (autenticação e veracidade das informações) e a de impedir que o blockchain seja violado e corrompido (integridade e segurança das informações, evita o gasto duplo). Além disso, a criptografia também pode ser usada para encriptar uma carteira, de modo que ela só possa ser utilizada com uma senha definida por seu proprietário.
Assim, a aliança das duas tecnologias, uma rede descentralizada e a criptografia moderna, torna realidade o que há alguns anos era absolutamente inconcebível na prática e que, há alguns séculos, nem mesmo em teoria poderia ter sido imaginado.
[1] Para uma breve análise do colapso da ordem monetária do Ocidente, ver ROTHBARD, Murray N. O que o governo fez com o nosso dinheiro? São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2013.
[2] Leis de curso legal forçado (legal tender laws em inglês) são leis que obrigam os cidadãos em um determinado país a aceitar o dinheiro emitido pelo estado como meio de pagamento.
[3] Os brasileiros viveram alguns episódios hiperinflacionários nas décadas de 1980 e 90.
[4] Infelizmente, o conhecimento convencional define inflação como o aumento de preços, quando, na verdade, isso é a consequência da inflação, e não inflação per se. Ver MISES, Ludwig von. A verdade sobre a inflação, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 27 mai. 2008. Disponível em: <http://mises.org.br/Article.aspx?id=101>. Acesso em: 16 dez. 2013.
[5] No Brasil, esse mecanismo se confunde com o conceito do “compulsório”, o qual é determinado pelo Banco Central. Atualmente, o percentual de “compulsório” para os depósitos à vista está estabelecido em 10%. Dessa forma, com um depósito hipotético de R$ 1.000, um banco pode expandir o crédito em R$ 9.000, criando do nada R$ 9.000 de depósitos à vista, pelo simples registro contábil (débito de R$ 9.000 em empréstimos contra crédito de R$ 9.000 em depósitos à vista).
[6] MISES, Ludwig von. Ação Humana: Um Tratado de Economia. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.
[7] Não foram as únicas razões, mas foi condição sine qua non à atividade econômica insustentável. Para mais detalhes, ver WOODS Jr., Thomas E. Meltdown. Washington: Regnery Publishing, 2009.
[8] RICKARDS, James. Currency Wars. New York: Penguin, 2011.
[9] Talvez no Brasil isso fosse diferente, mas no exterior é inédito.
[10] Another Loss of Personal & Financial Privacy, The Sovereign Society, 13 jul. 2010. Disponível em: <http://sovereignsociety.com/2010/07/13/another-loss-of-personal-financial-privacy/>. Acesso em: 20 dez. 2013.
[11] Foreign Account Tax Compliance Act, Internal Revenue Service, 2010. Disponível em: <http://www.irs.gov/Businesses/Corporations/Foreign-Account-Tax-Compliance-Act-%28FATCA%29>. Acesso em: 20 dez. 2013.
[12] NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin: a Peer-to-Peer Electronic Cash System, 2008. Disponível em: <http://article.gmane.org/gmane.comp.encryption.general/12588/>. Acesso em: 20 dez. 2013.
[13] Recomento fortemente ler na íntegra as trocas de mensagens entre os participantes e o próprio Satoshi Nakamoto após a publicação de seu paper. Disponível em: <http://www.mail-archive.com/[email protected]/msg09959.html>. Acesso em: 20 dez. 2013.
[14] Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Cypherpunk>. Acesso em: 21 dez. 2013.
[15] Nas palavras de Wei Dai, uma criptomoeda teria impactos extraordinários: “Eu estou fascinado com a cripto-anarchia do Tim May [membro fundador da lista de discussão Cypherpunk]. Ao contrário das comunidades tradicionalmente associadas à palavra ‘anarquia’, em uma cripto-anarquia o governo não é temporariamente destruído, mas permanentemente proibido e permanentemente desnecessário. É uma comunidade em que a ameaça de violência é impotente porque é impossível, e a violência é impossível porque os participantes não podem ser vinculados aos seus nomes verdadeiros ou às localidades físicas… Até agora não está claro, até mesmo teoricamente, como tal comunidade poderia operar. Uma comunidade é definida pela cooperação de seus participantes e cooperação eficiente requer um meio de troca (dinheiro) e uma forma de fazer cumprir contratos. Tradicionalmente esses serviços têm sido providos pelo governo ou por instituições patrocinadas pelo governo e somente a entidades jurídicas. Neste artigo eu descrevo um protocolo pelo qual esses serviços podem ser providos para e por entidades não rastreáveis… O protocolo proposto neste artigo permite que entidades pseudônimas não rastreáveis cooperem umas com as outras mais eficientemente, por meio da provisão de um meio de troca e um método de fazer cumprir contratos. Provavelmente o protocolo pode ser aprimorado, mas espero que isso seja um passo à frente do sentido de tornar a cripto-anarquia uma possibilidade prática e teórica”. Disponível em: <http://www.weidai.com/bmoney.txt>. Acesso em: 21 dez. 2013.
[16] Disponível em: <http://www.mail-archive.com/[email protected]/msg09971.html>. Acesso em: 21 dez. 2013.
[17] Disponível em: <http://www.mail-archive.com/[email protected]/msg09979.html>. Acesso em: 21 dez. 2013. Aqui Satoshi emprega o conceito de inflação e deflação no sentido de aumento ou redução dos preços, e não no sentido de aumento ou redução da oferta monetária (conforme o conceito da Escola Austríaca de Economia).
[18] Disponível em: <https://en.bitcoin.it/wiki/Genesis_block>. Acesso em: 21 dez. 2013.
[19] Ver artigo de Marc Andreessen, sócio-fundador da empresa de venture capital Andreessen Horowitz, investidora de algumas empresas dedicadas ao desenvolvimento do Bitcoin, Why Bitcoin Matters, 22 jan. 2014. Disponível em: <http://blog.pmarca.com/2014/01/22/why-bitcoin-matters/>. Acesso em: 26 jan. 2014.
[20] Em realidade, o Napster era uma rede semicentralizada, pois ainda que os computadores intercambiassem arquivos entre si, de forma peer-to-peer, os usuários conectavam-se a um servidor central – que continha os dados dos usuários, bem como o endereço de suas pastas e arquivos de música –, para a busca de arquivos. Devido a sua natureza semicentralizada, o Napster foi facilmente encerrado pelas autoridades americanas em 2001.
[21] Por exemplo, a Gnutella e o BitTorrent, ambos ativos e operantes.