I – A Ordem natural da Sociedade
Para definir e delimitar a função do governo, é necessário investigar a essência e o objetivo da sociedade.
A que impulso natural os homens obedecem quando eles se unem, formando uma sociedade? Eles estão obedecendo ao impulso — ou, para falar de maneira mais exata, ao instinto — da sociabilidade. A raça humana é essencialmente social. Como os castores e as espécies animais de ordem mais alta em geral, os homens têm uma inclinação instintiva a viver em sociedade.
Qual é a razão do surgimento desse instinto?
O homem tem muitas necessidades, cuja satisfação promove a sua felicidade depende e cuja não satisfação provoca o seu sofrimento. Sozinho e isolado, ele poderia satisfazer apenas de forma incompleta e insuficiente essas incessantes necessidades. O instinto da sociabilidade o aproxima dos seus semelhantes e o leva a se comunicar com eles. Portanto, impelida pelo interesse próprio dos indivíduos que se aproximaram, uma certa divisão do trabalho é estabelecida, necessariamente seguida pelo comércio. Em suma, vemos umaorganização emergir, por meio da qual o homem pode mais completamente satisfazer as suas necessidades do que poderia ao viver em isolamento.
Tal organização natural é chamada de sociedade.
O objetivo da sociedade, portanto, é a mais completa satisfação das necessidades do homem. A divisão do trabalho e o comércio são os meios pelos quais isso é atingido.
Entre as necessidades do homem, há um tipo particular que tem um papel enorme na história da humanidade — a saber, a necessidade de segurança.
Que necessidade é essa?
Vivendo em isolamento ou em sociedade, os homens estão, sobretudo, interessados na preservação da sua existência e dos frutos do seu trabalho. Se o senso de justiça fosse universalmente prevalente na Terra; se, consequentemente, cada homem se restringisse a trabalhar e a comerciar os frutos do seu trabalho, sem desejar tomar, por meio da violência ou da fraude, os frutos do trabalho dos outros homens; se todos possuíssem, em suma, um horror instintivo a qualquer ato danoso às outras pessoas, é certo que a segurança existiria naturalmente sobre a Terra e que nenhuma instituição artificial seria necessária para estabelecê-la. Infelizmente, as coisas não são dessa maneira. O senso de justiça parece ser o pré-requisito de apenas alguns poucos temperamentos eminentes e excepcionais. Entre as classes inferiores, ele existe apenas em um estado rudimentar. Daí os inumeráveis atentados criminosos, desde o começo do mundo, desde os dias de Caim e Abel, contra a vida e a propriedade dos indivíduos.
Daí também o porquê da criação de estabelecimentos cuja finalidade é a de garantir a todos a posse pacífica da sua pessoa e dos seus bens.
Esses estabelecimentos foram chamados de governos.
Em todo lugar, mesmo entre as tribos menos esclarecidas, nós encontramos um governo, tão universal e urgente é a necessidade por segurança provida por um governo.
Em todo lugar, os homens se sujeitam aos mais extremos sacrifícios para não viver sem um governo — e, portanto, sem segurança —, sem perceberem que, ao fazer isso, eles não analisam adequadamente as suas alternativas.
Suponha-se que um homem encontrasse a sua pessoa e os seus meios de sobrevivência incessantemente ameaçados; a sua primeira e constante preocupação não seria a de proteger-se dos perigos que o cercam? Essa preocupação, esses esforços, esse trabalho, necessariamente, absorveriam grande porção do seu tempo, assim como as faculdades mais energéticas e ativas da sua inteligência. Em consequência, tendo a sua atenção dividida, ele poderia apenas dedicar insuficientes e incertos esforços à satisfação de outras necessidades.
Se a esse homem for solicitado que abra mão de uma porção considerável do seu tempo e do seu trabalho para alguém que assuma a responsabilidade de garantir a posse pacífica da sua pessoa e dos seus bens, não seria vantajoso que ele aceitasse essa barganha?
Entretanto, não seria menos do que o seu interesse procurar a sua segurança ao menor preço possível.