2 – A Violação dos Princípios Jurídicos do Contrato de Depósito Monetário Irregular ao Longo da História
Neste capítulo vamos mostrar, usando vários exemplos, como, ao longo da história, os banqueiros foram violando os princípios tradicionais do Direito no que respeita ao depósito irregular, bem como expor as razões pelas quais os mecanismos sociais de controle não puseram fim aos abusos cometidos. Será ainda analisado o papel dos governos neste processo. Estes, em vez de procurarem a defesa escrupulosa das implicações jurídicas do direito de propriedade, apoiaram a atividade irregular dos banqueiros quase desde o princípio, concedendo-lhes isenções e privilégios de forma a poderem tirar partido dessa atividade para os próprios fins. Explica-se assim o aparecimento das tradicionais relações de cumplicidade e solidariedade existente entre as instituições estatais e as bancárias, que se mantêm até hoje. É necessário compreender adequadamente a origem juridicamente viciada da prática do depósito bancário de moeda com reserva fracionária para entender o fracasso das diversas tentativas de justificação jurídica dos abusos cometidos, que serão estudadas no capítulo III.
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Introdução
A natureza jurídica do contrato de depósito monetário irregular, exposta no primeiro capítulo, é clara e de fácil compreensão. Não há dúvida de que aqueles que recebiam em guarda e custódia o dinheiro de seus concidadãos tinham consciência das obrigações que assumiam e, concretamente, da necessidade de proteger, como um bom pai de família, o tantundem recebido, de forma que estivesse sempre à disposição do depositante. É isto, e não outra coisa, que significa a responsabilidade de custódia num contrato de depósito de um bem fungível. Contudo, assim como é clara a natureza jurídica do contrato de depósito monetário irregular, é imperfeita e débil a natureza do ser humano. Por isso, é compreensível que aqueles que receberam dinheiro em depósito se tenham visto tentados a violar a obrigação de custódia e a utilizar, para benefício próprio, o dinheiro que deveria estar disponível para os demais. A tentação era muito grande: sem que os depositantes se apercebessem, os banqueiros podiam dispor de somas consideráveis, que, bem utilizadas, podiam gerar elevados lucros ou juros, dos quais se podiam apropriar sem, aparentemente, prejudicar ninguém.[1] Esta tentação quase irresistível em que, dada a debilidade da natureza humana, caíram os banqueiros explica que, já desde as suas origens, se tenham violado, de forma encoberta, os princípios tradicionais de custódia em que se sustenta o contrato de depósito monetário irregular. Acresce que o caráter abstrato e de difícil compreensão do conteúdo das relações monetárias fez com que este fenômeno tivesse passado despercebido para a maior parte das pessoas e autoridades encarregadas de controlar o cumprimento dos princípios morais e jurídicos. E quando os abusos e fraudes começaram a ser detectados e mais bem entendidos, a instituição bancária estava funcionando há tanto tempo e já tinha um poder tal, que foi praticamente impossível pôr fim aos abusos de forma efetiva. Além disso, a descoberta gradual, por parte das autoridades, do imenso poder que os negócios bancários possuíam para gerar dinheiro explica a razão por que, em grande parte das circunstâncias, os governos tenham acabado por se tornar cúmplices das fraudes cometidas, concedendo privilégios aos banqueiros e legalizando a sua atividade irregular, em troca de poder participar direta ou indiretamente, dos grandes lucros, criando assim uma via alternativa muito importante de financiamento estatal. Esta corrupção da definição e defesa do direito de propriedade no dever público tradicional foi ainda impulsionada pela extrema necessidade de recursos que os governos enfrentaram, graças à sua histórica irresponsabilidade e falta de disciplina financeira. Desta forma, foi sendo forjada uma simbiose ou comunidade de interesses cada vez mais perfeita entre governantes e banqueiros, que, em grande medida, se mantém até hoje.
Apesar da complexidade, as circunstâncias descritas começaram, já há muito tempo, a ser compreendidas por pensadores profundos e perspicazes. O doutor Saravia de la Calle, por exemplo, na obra Instrucción de mercaderes referindo-se aos efeitos perniciosos da rede bancária, diz que: “a insaciável cobiça dos homens tirou-lhes de tal maneira o temor a Deus e o sentimento de vergonha, e acredito que isso se deve ao descuido dos que governam nos campos espiritual e temporal”.[2] Se há algo em que Saravia de la Calle peca, é, precisamente, no excesso de caridade em relação aos governantes. Atribui, corretamente, à debilidade ou cobiça dos homens a fraude no depósito irregular, mas só responsabiliza os governantes pelo seu “descuido”, ao não saberem pôr fim aos abusos. Em nossa opinião, a história mostra que, além do óbvio descuido, os governantes tiraram, clara e explicitamente, proveito dos grandes lucros do “negócio” bancário em muitas outras ocasiões. Além disso, iremos verificar que, noutras circunstâncias, as autoridades não só concederam privilégios aos banqueiros para que estes operassem impunemente em troca de favores explícitos, como até criaram bancos públicos de forma a tirarem proveito direto dos lucros correspondentes.
Embora o desenvolvimento das atividades bancárias seja muito antigo, e tenha surgido praticamente com a aparição da moeda, o alvorecer do comércio e os primeiros passos da divisão de trabalho,[3] vamos apresentar e ilustrar a violação dos princípios tradicionais do Direito no depósito irregular por parte de banqueiros e governantes em três circunstâncias históricas diferentes: a do mundo greco-romano; a das cidades comerciais mediterrâneas da baixa Idade Média e do começo do Renascimento; e, por último, a do surgimento dos primeiros bancos públicos importantes a partir do século XVII. A evolução da rede bancária nesses três períodos históricos distintos produziu resultados com características muito semelhantes, portanto há um evidente paralelismo entre eles. Com efeito, em cada um desses períodos é possível verificar a forma como começam a ser violados os princípios tradicionais do Direito e os efeitos perversos daí decorrentes, não só a falência dos bancos, mas também profundas crises financeiras e econômicas. Nos exemplos históricos seguintes repetem-se as mesmas fraudes e as mesmas fases e características típicas, bem como as mesmas tentativas fracassadas de impor o cumprimento dos princípios tradicionais de custódia, o que, inexoravelmente, dá azo, mais uma vez, às mesmas consequências perniciosas, num processo que se foi repetindo até aos dias de hoje. Passemos agora, sem mais delongas, a ilustrar a violação dos princípios tradicionais do Direito e a intervenção cúmplice dos governantes nos casos de fraude e de abusos bancários cometidos ao longo da história.
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os sistemas bancários na Grécia e em Roma
Na Grécia antiga, os templos funcionavam como bancos, emprestando dinheiro a particulares e monarcas. Por razões religiosas, os templos eram considerados invioláveis, portanto se tornaram um refúgio relativamente seguro para o dinheiro. Além disso, possuíam uma milícia própria que os defendia, bem como a riqueza dos templos dava confiança aos depositantes. Assim, do ponto de vista financeiro, os templos gregos mais importantes eram o de Apolo em Delfos, o de Artemisa em Éfeso e o de Hera em Samos.
Os trapezitas ou banqueiros gregos
Felizmente, temos à nossa disposição fontes documentais sobre o sistema bancário na Grécia. A primeira, e talvez mais importante, é a Trapezitica,[4] escrita por Isócrates no ano de 393 a.C.[5] Trata-se de um discurso forense em que Isócrates defende os interesses do filho de um representante de Sátiro, rei de Bósforo, que acusa Passio, um banqueiro de Atenas, de ter se apropriado indevidamente de um depósito de dinheiro que aquele lhe confiara. Passio era um antigo escravo de outros banqueiros (Antístenes e Arquetratos), cuja confiança foi capaz de ganhar e cuja prosperidade chegou até a superar, conseguindo assim receber cidadania ateniense. O discurso forense de Isócrates relata uma tentativa de Passio se apropriar de depósitos confiados ao seu banco, tirando proveito das dificuldades do depositante e não hesitando em enganar pessoas, falsificar e roubar contratos, fazer subornos, etc. É um discurso tão importante para nossos objetivos, que vale a pena que nos detenhamos em algumas das passagens.
Isócrates começa a argumentação assinalando que é arriscado processar um banqueiro, porque “os acordos com os bancários são celebrados sem testemunhas e as partes prejudicadas têm por força de se arriscar perante tais pessoas, que têm muitos amigos, manejam muito dinheiro e parecem de confiança pela profissão que exercem”.[6] É interessante realçar que já desde o princípio os banqueiros faziam uso de toda a sua influência e poder social (enorme, dada a quantidade e qualidade das figuras a quem faziam empréstimos ou que lhes deviam favores), para defender os seus privilégios e manter a atividade fraudulenta.[7]
Isócrates explica que seu cliente, que planejava uma viagem, depositou uma grande quantidade de dinheiro no banco de Passio. Depois de uma série de peripécias, quando o cliente foi levantar o dinheiro, o banqueiro alegou que “estava sem fundos naquele momento e que não podia devolvê-lo”. Contudo, publicamente, em vez de admitir a situação, negou a existência de qualquer depósito ou dívida em favor do cliente de Isócrates. O cliente nos diz que, muito surpreendido pelo comportamento do banqueiro, volta a reclamar o pagamento a Passio, e que este:
Depois de cobrir a cabeça, começou a chorar e disse que tinha sido forçado a negar o meu depósito por dificuldades econômicas, mas que iria em breve tentar devolver-me o dinheiro; pediu-me que tivesse compaixão e mantivesse em segredo a sua pobre situação para ninguém descobrisse que ele tinha cometido fraude.[8]
É, pois, claro que, na prática bancária grega, e de acordo com o que Isócrates diz no seu discurso, os banqueiros que recebiam o dinheiro em guarda ou custódia deviam protegê-lo e mantê-lo ao dispor dos clientes, pelo que se considerava fraude o uso em benefício próprio. Além disso, é muito significativa a tentativa de manter em segredo este tipo de fraude para que a confiança nos banqueiros não se quebrasse e para que pudessem, assim, prosseguir com a atividade fraudulenta. Por outro lado, é possível deduzir do discurso de Isócrates que a atividade de Passio não foi um caso isolado de dolo realizado com o objetivo de apropriação do dinheiro de um cliente em circunstâncias favoráveis. Na verdade, as dificuldades em devolver o dinheiro se deveram ao fato de não ter mantido um coeficiente de caixa de 100% e de ter utilizado em negócios particulares a quantia do depósito, deixando-o sem outra “saída” que não fosse a negação pública da existência do depósito.
Isócrates continua o discurso com as palavras do cliente, que diz:
Pensando eu que ele estava arrependido, condescendi e disse-lhe para encontrar uma forma de recuperar o meu dinheiro que permitisse que ele salvasse a reputação. Três dias depois nos reunimos e demos a nossa palavra de que o ocorrido seria mantido em segredo; (palavra que ele quebrou, como verão mais adiante no meu discurso). Concordou em ir de barco comigo até Ponto e em devolver-me o ouro lá, para que o contrato fosse rescindido o mais longe possível desta cidade; assim, ninguém daqui saberia do modo da rescisão e, após voltarmos, poderia dizer o que quisesse.
No entanto, Passio negou tal acordo, fez desaparecer os escravos que tinham sido testemunhas do mesmo, falsificou e roubou documentos com o intuito de mostrar que o que o cliente tinha era uma dívida e não um depósito. Dado o segredo com que os banqueiros realizavam a maioria das atividades, e, concretamente, o caráter secreto de muitos depósitos[9] (não eram utilizadas testemunhas), Isócrates se viu obrigado a apresentar testemunhas indiretas que sabiam que o depositante tinha ganho muito dinheiro e utilizado o banco de Passio e que, além disso, na altura em que efetuou o depósito, tinha trocado mais de mil estateres[10] por ouro. Isócrates acrescenta que o argumento fundamental para convencer os juízes da existência do depósito e da tentativa de Passio de ficar com o dinheiro foi o fato de este nunca ter querido “entregar o escravo que tinha conhecimento do depósito para interrogatório sob tortura. Haverá prova mais forte do que esta nos contratos com banqueiros? Não usamos testemunhas com eles.”[11] Ainda que não tenhamos evidência documental do resultado deste processo, é certo que Passio foi condenado ou chegou a acordo com o acusador. Em todo o caso, aparentemente, começou a partir de então a atuar com correção e voltou a ganhar a confiança da cidade. Sua casa foi herdada por um antigo escravo, Formião, que lhe sucedeu com êxito.
É precisamente em favor de Formião que existe um discurso forense de Demóstenes que nos fornece também informações interessantes sobre a atividade dos banqueiros na Grécia. Demóstenes refere-se à forma como Passio tinha, na altura de sua morte, cinquenta talentos[12] concedidos sob a forma de empréstimos, dos quais “onze procediam de depósitos do banco”. Embora não seja claro se se tratava de depósitos a prazo ou à vista, Demóstenes acrescenta que o rendimento que o banqueiro recebe de sua atividade comercial é “inseguro e procedente de dinheiro alheio” e conclui que é “admirável que entre os homens que trabalham com dinheiro, a mesma pessoa goze da fama de ser trabalhadora e honrada”, uma vez que “o crédito é de todos e o capital mais importante nos negócios”. Em suma, o sistema bancário se baseava na confiança dos depositantes na honestidade dos banqueiros, em que estes manteriam o dinheiro que lhes tinha sido entregue à vista sempre à disposição daqueles e o que lhes tinha sido concedido em empréstimo para obter lucros seria utilizado da forma mais prudente e sensata possível. Em todo o caso, há muitos indícios de que os banqueiros não agiram sempre dessa forma e usaram em benefício próprio o dinheiro de depósitos à vista e que, portanto, se arruinaram, como no caso descrito por Isócrates na Trapezitica e no caso de outros banqueiros mencionados por Demóstenes no discurso a favor de Formião. É o caso de Aristolocos, que tinha um campo que “comprou numa ocasião em que devia dinheiro a muita gente” e também os casos de Sosínomo e Timodeno e de outros que se arruinaram e “quando foi necessário pagar àqueles a quem deviam, todos eles suspenderam os pagamentos e cederam os bens aos credores.”[13]
Existem outros discursos de Demóstenes que nos dão mais algumas informações importantes sobre o sistema bancário na Grécia. Por exemplo, em “Contra Olimpiodoro, por danos”,[14] onde diz expressamente que um tal de Como “colocou algum dinheiro à vista no banco de Heráclides, que foi gastando no enterro e em outras cerimônias rituais e na construção do monumento funerário”. Trata-se, pois, de um depósito à vista efetuado pelo defunto e levantado pelos herdeiros logo que faleceu para fazerem frente aos gastos do enterro. Ainda mais dados sobre as práticas bancárias podem ser encontrados no discurso “Contra Timóteo, por uma dívida”, no qual Demóstenes afirma que “os banqueiros têm por costume registrar as quantidades que entregam e o fim a que serviram, bem como os depósitos feitos, para que mais tarde fosse possível fazer o balanço”.[15] Este discurso, feito no ano de 362 a.C., é o primeiro documento a referir os registos de contabilidade que os banqueiros efetuam dos depósitos e levantamentos de dinheiro feitos pelos clientes.[16] Demóstenes explica, ainda, como funcionava o contrato de conta corrente, pelo qual “recebiam o dinheiro dos bancos aqueles a quem o depositante tinha ordenado entregá-lo”,[17] o que, para efeitos de prova jurídica, obrigava a que “se levassem os livros do banco, se exigissem cópias e, depois de os ter exibido a Frasiérides, que se inspecionassem os livros e se fizesse cópia de quanto devia este indivíduo”.[18] Por fim, Demóstenes termina o discurso manifestando a preocupação com o caráter habitual das falências dos banqueiros e a grande indignação dos cidadãos em relação aos banqueiros que faliam. Demóstenes atribui, erradamente, a falência dos bancos aos homens que “em situações de apuros, pedem empréstimos, acreditando que pela reputação lhes deve ser concedido crédito, todavia, uma vez restabelecidos economicamente, em vez de pagarem, tentam cometer fraude”.[19] Este comentário de Demóstenes deve ser interpretado no contexto do discurso jurídico no qual apresenta os argumentos e que tem como objetivo, precisamente, processar Timóteo pela não devolução do empréstimo que um banco lhe tinha concedido. Seria exigir demais que Demóstenes tivesse mencionado no discurso que a razão da maior parte das falências dos banqueiros era a violação da obrigação de custódia dos depósitos à vista recebidos e o uso do dinheiro em benefício próprio e em negócios particulares até ao momento em que, por alguma razão, o público perdia a confiança que tinha neles e ao levantar os depósitos, via com grande indignação que não estavam disponíveis.
Há diversas pesquisas que sugerem que, em geral, os banqueiros gregos sabiam que deviam manter um coeficiente de caixa de 100% nos depósitos à vista, o que explica que não existam evidências de pagamento de juros e o fato provado de que em Atenas os bancos não eram considerados fontes normais de crédito.[20] Os clientes efetuavam depósitos por razões de segurança, e esperavam que os bancos cumprissem o dever de guarda e custódia, tendo a vantagem adicional de obter serviços de caixa e de pagamento a terceiros facilmente documentáveis. Ainda assim, o fato de estes terem sido os princípios básicos do sistema bancário legítimo não obstou a que um grande número de banqueiros tenha cedido à muito lucrativa tentação de se apropriar dos depósitos, uma atividade fraudulenta relativamente segura enquanto a confiança nos bancos fosse mantida, mas que no longo prazo estava destinada a terminar em falência. Acresce que, como nos propomos mostrar neste livro, ilustrando com diferentes exemplos históricos, a existência de uma rede de banqueiros fraudulentos que opera, contra os princípios gerais do Direito, com um coeficiente de caixa fracionário gera uma expansão de crédito[21] sem resguardo de poupança real, o que dá lugar a um pico econômico artificial e inflacionário que acaba por reverter na forma de crise e recessão econômica, em que os bancos tendem, inevitavelmente, a falir.
Raymond Bogaert fez referência às crises periódicas que afetavam os bancos na Grécia clássica, concretamente as recessões econômicas e financeiras que se produziram nos anos 377-376 a.C. e, pouco depois, em 371 a.C., nas quais faliram os banqueiros Timodemo, Sosínomo e Aristolocos, entre outros. Embora tenham sido espoletadas pelo ataque de Esparta, primeiro, e pela vitória de Tebas, depois, estas crises surgiram depois de um claro processo de expansão inflacionista, na qual os bancos fraudulentos tiveram um papel preponderante.[22] Está também documentada a grave crise bancária que teve lugar em Éfeso, depois da revolta contra Mitrídates, e que levou a que as autoridades concedessem o primeiro privilégio expresso documentado historicamente, em virtude do qual se estabeleceu uma moratória de dez anos para a devolução dos depósitos.[23]
Apesar de tudo, a “rentabilidade” da atividade fraudulenta dos banqueiros era elevadíssima, enquanto não fosse descoberta e os bancos não falissem. Sabemos, por exemplo, que o rendimento do banqueiro Passio era superior a 100 minas, ou seja, um talento e dois terços. O professor Trigo Portela estimou que este valor em quilos de ouro equivaleria, na moeda atual, a mais de um milhão e oitocentos euros anuais, o que parece ser uma quantidade demasiado elevada e que poderia ser vista como fabulosa, tendo em conta que a maioria da população vivia ao nível da mera subsistência, comia apenas uma vez por dia e tinha uma dieta composta de cereais e legumes. Na ocasião de sua morte, a fortuna ascendia a sessenta talentos, o que tendo em conta o valor constante do ouro, superaria os quarenta e dois milhões de euros.[24]
O sistema bancário no mundo helenístico
A particularidade mais importante do sistema bancário do mundo helenístico, concretamente, no Egito dos Ptolomeus, é que nesta oportunidade apareceu, pela primeira vez na história, e com predominante caráter, um banco de tipo estatal. De fato, os Ptolomeus cedo se aperceberam de que os banqueiros privados obtinham rendimentos elevados com o exercício das atividades, portanto decidiram, em vez de impedir a atividade fraudulenta dos banqueiros privados, constituir um banco público que tirasse proveito dessa atividade usando todo o “prestígio” do estado.
Embora o banco estatal não se tenha constituído como um monopólio, uma vez que continuaram a existir bancos privados, cuja maior parte estava nas mãos de banqueiros gregos, a prosperidade do Egito fez com que a atividade do banco público tivesse um papel importante. Além disso, como assinala Rostovtzeff, os negócios bancários ptolemaicos desenvolveram uma “contabilidade refinada baseada numa terminologia profissional bem definida, que substituiu a contabilidade bastante primitiva da Atenas do século IV a.C.”[25] Diversos estudos arqueológicos mostraram que o sistema bancário no Egito helenístico era muito alargada: o fragmento de um documento encontrado em Tebtunis com extratos das contas diárias de um banco rural da província de Heracleópolis mostra o surpreendente número de aldeões, agricultores ou não, que faziam negócios por intermédio dos bancos e que tinham depósitos ou contas correntes no banco, as utilizando para efetuar os pagamentos. Havia poucos homens relativamente ricos, sendo que o grosso de clientes do banco eram varejistas e artesãos nativos, comerciantes de tecidos em linho, tecelões, alfaiates, ourives e um caldeireiro. Foi ainda possível verificar que, em muitos casos, as dívidas eram pagas em prata bruta e em ouro, de acordo com a antiga tradição egípcia. Provou-se também que negociavam com o banco comerciantes de grão, de azeite e de gado, um açougueiro e muitos hospedeiros. A custódia de depósitos de classes distintas era uma atividade desenvolvida pelo banco ptolemaico do estado, pelos bancos privados e também pelos templos. De acordo com Rostovtzeff, os banqueiros aceitavam depósitos de tipos diferentes, fossem à vista, fossem a prazo, e sujeitos ao pagamento de juros. Estes eram investidos, em teoria, em operações de crédito de tipos distintos: empréstimos com garantia, hipotecas, e um tipo muito especial e popular de empréstimo — o empréstimo marítimo.[26] Os bancos privados guardavam o dinheiro dos clientes em depósito, ao mesmo tempo que depositavam o próprio dinheiro no banco do estado.
A principal inovação dos negócios bancários no Egito foi, portanto, a centralização, ou seja, a criação de um banco central do estado de Alexandria, com sucursais nas capitais de província e nas povoações mais importantes, de forma que os bancos particulares, quando existiam, tinham um papel secundário na vida econômica do país. De acordo com Rostovtzeff, este banco custodiava o dinheiro recolhido sob a forma de impostos e também aceitava fundos privados e depósitos de clientes particulares, revertendo a favor do estado os fundos que não eram gastos. Portanto, é quase certo, que se manteve um coeficiente de reserva fracionário e que os grandes lucros obtidos eram apropriados pelos reis ptolemaicos. Temos bastante informação sobre a forma como o dinheiro dos clientes era recebido e guardado em custódia graças à correspondência de Zenão, por meio da qual sabemos que Apolônio, diretor do banco central de Alexandria, tinha depósitos como pessoa particular em diferentes sucursais do banco real. Todos esses documentos demonstram que os particulares faziam muito uso do banco para depositar o próprio dinheiro e para fazer pagamentos. Além disso, e graças à desenvolvida contabilidade, os bancos se converteram num sistema muito conveniente para pagar dívidas, uma vez que constituíam um registo oficial das transações e eram uma prova importante em caso de litígio.
O sistema bancário helenístico não desapareceu com o governo dos Ptolomeus; conservou-se com pequenas modificações durante a administração romana do Egito. De fato, esta organização centralizada dos negócios bancários ptolemaica não deixou de ter influência no próprio Império Romano, pelo que é curioso observar como Dião Casio, no conhecido discurso de Mecenas, defendia a criação de um Banco do Estado romano que emprestasse dinheiro a todos a juros moderados, especialmente aos proprietários agrícolas. O capital de tal banco seria constituído com o dinheiro produzido pelos rendimentos obtidos de todas as propriedades do estado.[27] A proposta de Dião Casio nunca foi posta em prática.
O sistema bancário em Roma
Não temos documentação tão detalhada sobre o sistema bancário romano com tínhamos em relação às insituições gregas graças aos escritos de Isócrates e Demóstenes. No entanto, sabemos, via Direito Romano, que as movimentações bancárias e o depósito monetário irregular estavam muito desenvolvidos, e já estudamos no capítulo I do presente livro a regulação que os juristas clássicos de Roma nos deixaram sobre tal tipo de atividade. Podemos, portanto, afirmar que em Roma se considerava que os argentarii não adquiriam a disponibilidade do tantundem dos depósitos de dinheiro recebidos, os quais deviam custodiar e guardar com a máxima diligência. Era por este motivo que os depósitos de moeda não pagavam juros, nem, em teoria, deviam ser utilizados para fazer empréstimos, embora o depositante pudesse ordenar os banqueiros no sentido de fazerem pagamentos em seu nome. Os banqueiros aceitavam, igualmente, “depósitos” a prazo, que não eram senão empréstimos ao banco ou contratos de mútuo, sobre os quais pagavam juros, tendo os bancos o direito de os usar de acordo com as próprias conveniências durante o prazo fixado. Existem referências a tais práticas que remontam o ano de 350 a.C. em algumas comédias, como por exemplo, Captivi, Asinaria e Mostellaria, de Plauto, e Formião de Terêncio, em que podem ser lidos deliciosos diálogos com as descrições de operações financeiras, compensações, balanços de contas, envio de cheques e outras atividades afins.[28] Em todo o caso, aparentemente, em Roma, o sistema bancário estava mais bem regulado e, pelo menos, existia uma consciência mais clara do que era justo ou injusto, graças à atividade dos juristas profissionais. Temos, contudo, menos garantias de que os banqueiros se comportavam honradamente e não usavam em benefício próprio o dinheiro depositado à vista pelos clientes. Existe, nesse sentido, um escrito de Adriano aos comerciantes de Pérgamo que se queixavam das exações legais e do mau comportamento dos bancos. Há, ainda, outro escrito da cidade de Mylasa dirigido ao imperador Sétimo Severo com um decreto do conselho e do povo da cidade para regular a atividade dos banqueiros locais.[29] Tudo isto indica que, embora fossem talvez menos frequentes do que no mundo helênico, existiram, de fato, banqueiros com poucos escrúpulos que se apropriaram indevidamente dos fundos dos depositantes e, em última instância, acabaram por falir.
A falência do banco do cristão Calisto
Um exemplo curioso de atividade bancária fraudulenta é o de Calisto I, papa e santo (217-222 d.C.), que, quando era escravo do cristão Carpóforo, atuou como banqueiro em seu nome e aceitou depósitos dos cristãos. No entanto, entrou em falência e foi detido por seu amo quando tentava escapar, tendo sido perdoado graças aos pedidos dos cristãos que tinha defraudado.[30]
A falência do banqueiro Calisto, narrada detalhadamente na obra Refutatio omnium haeresium,[31] descoberta num convento do monte Athos em 1844 e atribuída a Hipólito, deu-se, tal como as crises recorrentes que, como vimos, se verificaram na Grécia, depois de um período de forte expansão inflacionária seguido de uma grave crise de confiança, perda de poder de compra do dinheiro e falência de várias empresas comerciais e financeiras, que teve lugar sob a governação do imperador Cômodo de 185 a 190 da nossa era.
Hipólito conta que Calisto, sendo escravo do também cristão Carpóforo, empreendeu por conta deste uma atividade bancária, dando preferência à captação de depósitos das viúvas e dos irmãos cristãos, que, na altura, já começava a ser um grupo numeroso e influente em Roma. No entanto, Calisto apropriou-se de forma fraudulenta dos depósitos recebidos e, não sendo capaz de os devolver atempadamente, tentou fugir por mar e até se suicidar. Depois de várias peripécias, foi castigado e condenado a trabalhos forçados nas minas da Sardenha, de onde foi milagrosamente libertado graças aos bons ofícios da cristã Márcia, concubina do imperador Cômodo. Trinta anos depois, no ano de 27 e já livre, é eleito papa, tendo morrido como mártir ao ser atirado a um poço pelos pagãos numa revolta popular que teve lugar no dia 14 de Outubro de 222.[32]
Percebemos agora a razão por que até os Santos Padres tenham feito referência à profissão dos banqueiros, cujas grandes tentações mostram conhecer muito bem quando os exortam nas Constituições Apostólicas dizendo: “Banqueiros, sede honrados!”,[33] uma admoestação de moralidade para os banqueiros que houve já quem pretendesse remontar até às Sagradas Escrituras e que os primeiros cristãos usavam constantemente para recordar os banqueiros das suas debilidades e não os deixar cair em tentação.
As “sociates argentarie”
Uma peculiaridade do sistema bancário no mundo romano foi o aparecimento das chamadas sociedades de banqueiros (sociates argentarie). Estas sociedades eram constituídas com base na contribuição de bens por parte dos sócios banqueiros para o capital social que servia de garantia para as dívidas. Contudo, uma vez que os bancos eram instituições de interesse público especial, ficou estabelecido, no Direito Romano, que os sócios das sociedades bancárias deviam garantir os depósitos com todo o seu patrimônio.[34] A responsabilidade ilimitada e solidária dos sócios foi, portanto, um princípio geral do Direito Romano, estabelecido com a finalidade de minorar os efeitos dos abusos e das fraudes que estes cometiam e de reforçar a capacidade de os depositantes recuperarem os seus bens em caso de comportamentos irregulares.[35]
Os argentarii desenvolviam a sua atividade num local especial ou taverna. Registavam nos livros os diferentes débitos e créditos das contas correntes dos seus clientes. Os livros dos banqueiros romanos faziam fé ante os juízes e deviam ser mantidos em conformidade com o estabelecido pela editio rationum, que estipulava a forma como os banqueiros deviam datar e gerir as contas.[36] Os banqueiros eram também conhecidos como mensarii (de mensa ou balcão, lugar onde, inicialmente, levavam a cabo as atividades de câmbio). Tal como hoje a licença bancária, a mensa era transmissível, sendo que aquilo que se cedia numa venda era o direito de operar outorgado pelo estado, o proprietário dos locais em que a atividade bancária ocorria. Na transmissão podia ser cedido o mobiliário e os instrumentos da taverna, bem como o ativo e o passivo financeiro da entidade. Além disso, os banqueiros constituíram um grêmio para a defesa dos interesses comuns e consta que conseguiram privilégios importantes dos imperadores, sobretudo na época de Justiniano, alguns dos quais se encontram reunidos no Corpus iuris civilis.[37]
A desintegração econômica e social do Império Romano, resultado das políticas inflacionistas dos imperadores, que desvalorizaram o poder aquisitivo da moeda e da fixação de preços máximos para os produtos de primeira necessidade, que determinaram a sua escassez generalizada, a ruína dos comerciantes e o desaparecimento dos fluxos comerciais entre as diferentes zonas do Império, acabou com o negócio dos banqueiros, a maior parte dos quais se arruinou nas sucessivas crises econômicas que tiveram lugar nos séculos III e IV da nossa era. Para travar a queda social e econômica do Império, foram adotadas medidas de coação e intervenção estatal, que acabaram por acelerar o processo generalizado de desintegração, o que fez com que fosse possível que os bárbaros, que desde há séculos vinham sendo contidos e derrotados por legiões romanas na fronteira, acabassem por arrasar e conquistar o que não eram já senão despojos do antigo e florescente Império Romano. A queda do mundo clássico romano dá início ao período da Idade Média, e foi preciso esperar quase oitocentos anos para se descobrir de novo o sistema bancário nas cidades italianas da baixa Idade Média.[38]
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Os banqueiros na Baixa Idade Média
A queda do Império Romano provocou o desaparecimento da maior parte dos fluxos comerciais e contribuiu para a feudalização das relações econômicas e sociais. A tremenda contração do comércio e da divisão do trabalho deu golpe definitivo nas atividades financeiras em geral e no sistema bancário em particular durante vários séculos. Só os mosteiros, como centros de florescimento econômico e cultural dotados de uma maior segurança, serviram como meios de custódia e de guarda de recursos econômicos, com destaque para a atividade desenvolvida neste campo pelos templários, cuja ordem foi criada em Jerusalém em 1119 para proteger os peregrinos. Os templários chegaram a dispor de recursos financeiros significativos obtidos a saque nas campanhas militares ou como legado de príncipes e senhores feudais. A natureza internacional (dispunham de mais de nove mil centros de atuação com duas sedes principais), em conjunto com o seu aspecto de ordem militar e religiosa, conferia-lhes uma grande segurança na custódia dos depósitos, bem como uma grande autoridade moral, fato que lhes permitia gozar de confiança generalizada. Isto explica que tenham começado a receber depósitos de particulares, tanto regulares como irregulares, mediante cobrança de direitos de custódia, e a se ocuparem também da transferência de fundos, atividade pela qual cobravam uma determinada quota de transporte e proteção. Além disso, fizeram empréstimos com os próprios recursos, ou seja, sem violar o princípio de custódia sobre o que lhes tinha sido depositado à vista. Desta forma, a ordem foi adquirindo uma prosperidade cada vez maior, que suscitou o temor e a inveja de muitos, até que o rei de França, Filipe, o Belo, decidiu dissolvê-la, condenando à fogueira os principais responsáveis (incluindo o Grande Mestre Jacques de Molay) com o objetivo primordial de apropriar-se de todas as riquezas da ordem.[39]
No final do século XI e começo do século XII começou a se notar um certo ressurgimento comercial e mercantil, sobretudo à volta de Veneza e das cidades italianas do Adriático, Pisa e, mais tarde, Florença, que se especializaram no comércio com Constantinopla e o Oriente. A prosperidade destas cidades levou-as a alcançar um importante desenvolvimento financeiro que motivou um ressurgimento dos bancos, reproduzindo assim o esquema que já estudamos para o mundo clássico. De fato, no princípio os banqueiros respeitavam os princípios jurídicos herdados de Roma, e que estudamos no capítulo I, desenvolvendo a atividade corretamente do ponto de vista jurídico e não fazendo uso indevido do dinheiro que lhes era depositado à vista para guarda e custódia (ou seja, sob a forma de contratos de depósito irregular). Só o dinheiro que lhes era entregue sob a forma de empréstimo ou mútuo (ou seja, como “depósitos” a prazo) era objeto de uso ou empréstimo por parte dos banqueiros enquanto não acabava o prazo acordado.[40] Mais tarde, e de forma gradual, os banqueiros voltaram a ser tentados a usar em benefício próprio o dinheiro depositado à vista nos bancos, o que levou ao ressurgimento da atividade bancária com reserva fracionária e constituiu fraude. As autoridades, em geral, não se mostraram capazes de controlar e de fazer cumprir os princípios do Direito e, em muitas circunstâncias, chegaram a conceder privilégios e licenças para que os banqueiros atuassem dessa forma irregular, tirando proveito da atividade fraudulenta dos bancos para obter empréstimos e receitas fiscais e chegando, até, a criar bancos públicos (como a Taula de Canvi ou Banco de Depósito de Barcelona e outros que estudaremos mais adiante).[41]
O ressurgimento dos bancos de depósito na Europa mediterrânea
Abbott Payson Usher, na sua monumental obra The Early History of Deposit Banking in Mediterranean Europe,[42] estuda o surgimento gradual dos negócios bancários com reserva fracionária durante a Baixa Idade Média, um processo que se baseia na violação do princípio geral do Direito segundo o qual deve ser mantida a completa disponibilidade do tantundem a favor do depositante. De acordo com Usher, é só a partir do século XIII que alguns bancos privados começam a utilizar em benefício próprio o dinheiro dos depositantes, dando origem à movimentação financeira da reserva fracionária e à capacidade expansiva de geração de créditos daí advinda. Usher considera ainda que este é o fenômeno mais importante e significativo na história do sistema bancário, e não o surgimento dos bancos de emissão, que só aconteceu muito tempo depois, no final do século XVII. Apesar de, como veremos no capítulo IV, os efeitos econômicos advindos da emissão de notas bancárias sem reserva, ou da concessão de empréstimos com fundos dos depósitos à vista, serem exatamente os mesmos, a história dos negócios bancários se caracteriza por ter surgido basicamente em torno desta segunda atividade, e não da primeira. Por isso, Usher afirma que: “the history of banks of issue has, until lately, obscured the importance of due deposit banking in all its forms, whether primitive or modern”. E conclui, numa referência irônica à desmesurada importância que os economistas deram aos problemas que punham os bancos de emissão, quando comparada com a muito mais antiga e igualmente prejudicial atividade dos bancos de depósito, que:
The demand for currency, and the theoretical interests created by the problem, did much to foster misconceptions on the relative importance of notes and deposits. Just as French diplomats “discovered” the Pyrenees in the diplomatic crisis of the eighteenth century, so banking theorists “discovered” deposits in the mid-nineteenth century.[43]
De forma circunstanciada, Usher demonstra que é a partir do surgimento das atividades bancárias com reserva fracionária (resultado da atividade fraudulenta dos banqueiros e da cumplicidade dos governos correspondentes, como Usher ilustra em pormenor com o exemplo do sistema bancário catalão da Baixa Idade Média) que nasce o sistema bancário moderno, e não a partir dos chamados bancos de emissão, que apareceram historicamente muito mais tarde.
Usher aponta que nos primeiros bancos que surgem na Gênova do século XII se indicava claramente caso se efetuasse um depósito à vista ou um “depósito” a prazo, especificando-se, no segundo caso, que se tratava de um verdadeiro empréstimo ou mutuum.[44] Mais tarde, os bancos começaram, gradualmente, a fazer uso, em benefício próprio, do dinheiro depositado à vista, dando origem à capacidade expansiva do sistema bancário, que consistia no poder de criar depósitos e conceder créditos a partir do nada. Concretamente, e no caso do Banco de Depósito de Barcelona, Usher estima que as reservas em moeda ascendiam a 29 por cento do total de depósitos, portanto, a capacidade de expansão de crédito era 3,3 vezes o dinheiro que o caixa do banco tinha ao seu dispor.[45]
Usher destaca também a incapacidade revelada pelas diferentes autoridades públicas na hora de tentar controlar o funcionamento do sistema bancário, particularmente a manutenção em custódia de 100% dos depósitos recebidos à vista. Acresce que as autoridades acabaram por conceder um privilégio (ius privilegium), na forma de licença do governo, que permitia que os bancos operassem com o coeficiente de reserva fracionário, sendo que eram obrigados a apresentar avais.[46] Em todo o caso, os governantes foram, na maior parte das circunstâncias, os primeiros a tirar proveito do sistema bancário fraudulento, obtendo financiamento público com mais facilidade (na forma de empréstimos dos bancos). Era como se os banqueiros tivessem o privilégio de poder usar o dinheiro dos depositantes em benefício próprio a troco do acordo tácito de que esse uso basicamente assumia a forma de financiamento e empréstimos concedidos às autoridades públicas. Em diversas ocasiões, até mesmo ocorre o caso de os próprios governantes decidirem criar um banco de caráter público que lhes permitia tirar proveito direto dos lucros resultantes do sistema bancário. Como veremos adiante, este foi o objetivo que motivou a criação da Taula de Canvi ou Banco de Depósito de Barcelona.
A proibição canônica da usura e o “depositum confessatum”
Um fator característico que acrescentou um alto grau de complexidade e confusão à prática financeira da Idade Média foi a proibição da usura nas três grandes religiões monoteístas: a judaica, a maometana e a cristã. Marjorie Grice-Hutchinson analisou ao pormenor o conteúdo e as implicações da proibição desse tipo de juros durante o período medieval,[47] realçando que, no caso da religião judaica, a proibição não se estendia aos empréstimos realizados aos gentios, o que explica o fato de, pelo menos durante a primeira metade da Idade Média, a atividade financeira e bancária do mundo cristão estar nas mãos dos judeus.[48]
Esta proibição canônica de juros acrescentou um alto grau de complexidade à questão da atividade bancária durante a Idade Média, o que não se deveu, como quiseram fazer crer muitos teóricos d até agora, ao fato de esta desenvolver uma atividade útil e necessária, procurando sempre alcançar fórmulas para encobrir o necessário pagamento de juros nos contratos de empréstimo e de mútuo. Não há dúvida, visto que concediam empréstimos usando outros empréstimos, (“depósitos” a prazo) recebidos previamente dos clientes, atuando como verdadeiros intermediários financeiros, os bancos levavam a cabo um negócio legítimo que trazia óbvios benefícios para a economia produtiva da época. Contudo, o reconhecimento tardio da legitimidade econômica e jurídica dos juros por parte da Igreja não deve ser visto como um reconhecimento global da legitimidade do sistema bancário, mas apenas da parte do mesmo que trata da concessão de empréstimos previamente recebidos de terceiros, ou seja, na atividade bancária de mera intermediação financeira. A evolução histórica da doutrina da Igreja sobre a legitimidade dos juros não pressupõe, de forma alguma, o reconhecimento da atividade bancária baseada num coeficiente de reserva fracionário, ou seja, na utilização em benefício próprio dos banqueiros (geralmente por meio da concessão de créditos) do dinheiro que lhes tenha sido depositado à vista pelos clientes.[49]
E a verdade é que, em grande medida, a notável confusão conceitual em relação a tal tema surge precisamente ao longo da Idade Média tem origem na na proibição canônica de juros. Um dos principais artifícios[50] engendrados pelos agentes econômicos de então, para encobrir verdadeiros empréstimos e o correspondente pagamento de juros, foi a utilização da figura do contrato de depósito à vista. Vejamos como o fizeram. Primeiramente, lembremo-nos do tratamento do contrato de depósito monetário irregular que fizemos no capítulo I. Uma das disposições mais características a esse respeito no Corpus iuris civilis estabelecia que no caso de o depositário não poder devolver imediatamente o depósito, além da ação de furto por apropriação indébita, deveria começar a pagar juros de mora ao depositante (Digesto, 16, 3, 25, 1). Não será, pois, de estranhar que durante a Idade Média e com o fim de contornar a proibição de juros, muitos contratantes tenham confessado ou declarado expressamente que o contrato realizado tinha sido um depósito monetário irregular, e não um verdadeiro empréstimo ou mútuo. A este procedimento jurídico de ocultação do empréstimo deu-se o nome de depositum confessatum. Tratava-se de um depósito simulado, que, apesar da declaração das partes, não era, de forma alguma, um verdadeiro depósito, mas simplesmente um empréstimo ou mútuo. Findo o prazo fixado, a parte supostamente depositante reclamava o dinheiro, o suposto depositário não lhe devolvia, e, assim, era, “condenado” a pagar juros por um conceito aparente (mora ou suposto atraso na devolução do depósito) que não tinha qualquer relação com o motivo real (a existência de um empréstimo). Assim, ao disfarçar os empréstimos de depósitos, era possível contornar muito eficazmente a proibição canônica de juros, evitando as terríveis sanções que daí advinham tanto secular com espiritualmente.
A prática do depositum confessatum acabou por incidir de forma muito negativa na doutrina jurídica sobre o depósito monetário irregular, retirando-lhe a clareza e a pureza de conteúdo com que havia sido construída na Roma clássica e introduzindo alguma confusão, que se manteve praticamente até nossos dias. De fato, independentemente da posição teórica no que diz respeito ao empréstimo com juros (estritamente contrária, ou “favorável” na medida do possível), o tratamento do depositum confessatum fez com que os estudiosos tivessem deixado de distinguir de forma clara o depósito monetário irregular do contrato de mútuo ou empréstimo. Assim, os canonistas mais exigentes e empenhados em descobrir todos os empréstimos reais e em condená-los a pagar os respectivos juros independentemente da sua origem ou forma, tenderam, de forma indevida, a identificar automaticamente o contrato de depósito como contrato de mútuo, pois acreditavam poder, desta forma, acabar com a fição do depositum confessatum desmascarando o mútuo ou empréstimo que julgavam sempre haver por trás. E foi aqui que radicou o erro: em ver todos os depósitos como exemplos de depositum confessatum, mesmo os verdadeiros (por a causa ou motivo essencial ser a manutenção da custódia estrita do tantundem sempre à disposição do depositante). Por sua vez, aqueles que adotaram uma posição mais compreensiva em relação aos empréstimos e aos juros, tentando encontrar fórmulas aceitáveis pela Igreja para cobrança de juros, defenderam a figura do depositum confessatum, argumentando que, em última instância, não era mais do que um empréstimo precário que, de acordo com os princípios do próprio Digesto, dava lugar à cobrança de juros.
Como consequência dessas duas posições doutrinais, os especialistas acabaram por chegar à conclusão de que a “irregularidade” no depósito monetário irregular estava não no fato de ser depositado de forma indistinguível uma determinada quantidade de um bem fungível (com a exigência de manutenção contínua da disponibilidade do tantundem a favor do depositante), mas no fato de se revestir de depósito um contrato que, em última análise, era sempre um empréstimo ou mútuo.[51] Além disso, os banqueiros, que estavam envolvidos na utilização do depositum confessatum para mascarar de depósitos os empréstimos que recebiam e justificar assim o pagamento ilegal de juros, acabaram por se aperceber de que tal doutrina de que o depósito servia sempre para simular um mútuo ou empréstimo lhes era também altamente vantajosa, uma vez que lhes permitia justificar a apropriação indébita em benefício próprio, até do dinheiro que lhes tinha sido depositado à vista, e não emprestado por intermédio de um contrato de mútuo. Assim, a proibição canônica de juros teve o efeito não previsto de eliminar a clareza doutrinal com que se tinha concebido a figura jurídica do contrato de depósito monetário irregular no mundo romano, introduzindo uma confusão que foi aproveitada por muitos para justificar juridicamente a apropriação indébita e a atividade fraudulenta dos banqueiros nos contratos de depósito à vista, criando-se, desta forma, uma grave confusão jurídica que não voltou a ser esclarecida teoricamente até o fim do século XIX.[52]
Vamos agora analisar três casos concretos que ilustram o desenvolvimento do sistema bancário na Idade Média: o dos bancos de Florença no século XIV, o da Taula de Canvi ou Banco de Depósito de Barcelona do século XV e seguintes e o do Banco dos Médicis. Nestes três casos, bem como no resto dos bancos mais significativos da baixa Idade Média, reproduz-se sempre o esquema que já observamos na Grécia e em Roma, a saber: os bancos começam por ser criados cumprindo os princípios tradicionais do Direito incluídos no Corpus iuris civilis, ou seja, com um coeficiente de caixa de 100% que garante a guarda ou custódia contínua do tantundem a favor do depositante. Depois, gradualmente, e como resultado da ganância dos banqueiros e da cumplicidade dos governos, esses princípios começam a ser violados e os banqueiros começam a fazer uso do dinheiro depositado à vista pelos clientes para conceder empréstimos, muitas vezes aos próprios governantes. Isto dá lugar a negociações bancárias com reserva fracionária e à expansão artificial do crédito, o que, numa primeira fase, leva a uma aparente expansão da economia. Todo este processo acaba numa crise econômica geral e na falência dos bancos, que, chegada a recessão e depois de perdida a confiança do público, não são capazes de satisfazer a exigência de devolução imediata dos depósitos aceites. A falência parece ter sido a constante histórica da atividade dos banqueiros[53] sempre que esta se estendia ao uso, para empréstimos, do dinheiro que lhes tinha sido depositado à vista. Além disso, as falências dos bancos vinham acompanhadas de uma forte contração da oferta de moeda em forma de créditos ou depósitos, seguindo-se daí a inevitável recessão econômica. Foi necessário passarem mais de cinco séculos para que os especialistas da economia fossem capazes de compreender teoricamente a razão de todos esses processos, como veremos nos capítulos seguintes.[54]
Os negócios bancários na Florença do século XI
No final do século XII e começo do século XIII começou a se desenvolver em Florença um movimento bancário incipiente que veio a ganhar grande importância no século XIV. Os bancos mais importantes eram os dos Acciaiuolis, dos Bonaccorsis, dos Cocchis, dos Antellesis, dos Corsinis, dos Uzzanos, dos Perendolis, dos Peruzzis, e dos Bardis, entre outros. Há evidências de que a partir do início do século XIV, os banqueiros começaram, de forma gradual, a usar fraudulentamente parte do dinheiro que recebiam em depósitos à vista, criando, assim, um importante volume de crédito a partir do nada.[55] Não é de estranhar, por isso, que, depois de uma fase de grande crescimento econômico artificial, que teve origem na criação de meios de pagamento em forma de expansão de crédito, se desse uma profunda e inexorável recessão, espoletada não só pela retirada massiva de dinheiro dos príncipes napolitanos, mas também pela incapacidade revelada pela Inglaterra de devolver os empréstimos e pela grave queda do preço dos títulos de dívida pública do governo de Florença, que se tinha financiado de forma especulativa com novos empréstimos criados do nada pelos bancos florentinos. Produziu-se assim um crise de confiança generalizada, que fez com que todos os bancos mencionados falissem entre 1341 e 1346. Como seria de esperar, a falência destes bancos trouxe prejuízos a todos os que neles tinham depósitos. Estes clientes, depois de um prolongado período de liquidação, receberam apenas metade, um terço ou até um quinto dos seus depósitos.[56] Felizmente, existe um relato das circunstâncias econômicas e financeiras dessa altura escrito por Villani, numa crônica ressuscitada por Carlo M. Cipolla. Villani diz que durante a recessão se deu uma tremenda contração no crédito (a que ele se refere graficamente como mancamento della credenza, ou seja, “escassez de crédito”), que agravou e tornou ainda mais difícil a conjuntura econômica, provocando um efeito de dominó nas falências das indústrias, oficinas de artesãos e comércios. A evolução desta recessão econômica foi profundamente estudada por Cipolla, que descreve a fase de transição de boom econômico para crise da seguinte forma: a idade do “Cântico das Criaturas” deu lugar à idade da “Dança Macabra”.[57] De fato, de acordo com Cipolla, a recessão prolongou-se até que, “graças” aos efeitos da peste, diminuiu drasticamente o volume de população e a quantidade de dinheiro vivo e bancário per capita atingiu um nível equivalente ao existente antes da crise, criando as bases para uma subsequente recuperação.[58]
O Banco dos Médicis
O conhecimento da história do Banco dos Médicis foi possível graças à determinação e capacidade de investigação de Raymond de Roover, cujo trabalho se tornou mais fácil depois da descoberta dos livros-razão confidenciais (libri segreti) no Archivio de Stato.[59] O caráter secreto destes livros-razão põe mais uma vez em evidência a pouca transparência e a infame natureza das atividades dos banqueiros, a que já nos referimos na nota 52, bem como o desejo de muitos clientes dos bancos italianos (nobres, príncipes, até mesmo o papa) de realizar os próprios depósitos em contas que não fossem conhecidas. Felizmente, a descoberta desses livros fez com que fosse possível conhecer pormenorizadamente a forma como funcionava o Banco dos Médicis durante o século XV.
Antes de mais nada, é importante realçar que, a princípio, o Banco dos Médicis não aceitava depósitos à vista, mas apenas “depósitos” a prazo, que não eram mais do que verdadeiros mútuos ou empréstimos concedidos ao banco pelos clientes e que, precisamente por isso, se denominavam depositi a discrezione. O qualificativo a discrezione indicava que, ao se tratar de verdadeiros mútuos ou empréstimos realizados pelos supostos “depositantes”, o banco podia fazer pleno uso dos mesmos e empregá-los livremente, pelo menos durante o prazo previamente estipulado.[60] Discrezione era também o termo que se utilizava para designar os juros que o banco pagava aos clientes que lhe emprestavam dinheiro na forma de “depósitos” a prazo.
No seu livro, Raymond de Roover estuda aprofundadamente o desenvolvimento e as vicissitudes do Banco do Médicis ao longo do século em que existiu. Aqui, nos interessa realçar apenas que, a partir de um determinado momento, o banco começou a aceitar depósitos à vista e a usar uma indevidamente parte para conceder empréstimos. Este fato ficou provado documentalmente graças às contas dos libri segreti descobertos, numa das quais, correspondente a março de 1442, se podem ler algumas anotações à margem, onde é indicada, para cada depósito à vista, a probabilidade que se considerava existir de ter de devolver o depósito respetivo ao cliente.[61]
No balanço dos escritórios de Londres do Banco dos Médicis, do dia 12 de novembro de 1477, é possível ver que um número significativo das dívidas do banco corresponde a depósitos à vista. O próprio Raymond de Roover calcula que, em determinado momento, as reservas líquidas do banco se reduziram a 50% do total das suas obrigações à vista.[62] Seguindo o mesmo critério padrão aplicado por A. P. Usher, trata-se de um coeficiente de expansão do crédito de duas vezes os depósitos à vista recebidos. No entanto, há indícios de que esta proporção foi piorando gradualmente ao longo da vida do banco, sobretudo a partir de 1464, ano em que começou a experimentar problemas cada vez maiores. O motivo da crise bancária e econômica geral que arruinou o Banco dos Médicis é muito similar ao analisado por Carlo M. Cipolla para a Florença do século XIV. De fato, a expansão de crédito provocada pela apropriação indébita dos depósitos à vista por parte dos banqueiros deu azo a um boom artificial alimentado pelo crescimento da oferta monetária e pelos efeitos aparentemente “benéficos” a curto prazo. Não obstante, uma vez que esse processo se deveu ao aumento da oferta monetária, na forma de depósitos que serviram para a concessão de créditos que não tinham por base um crescimento real da poupança, a reversão do processo foi inevitável, como analisaremos em pormenor no capítulo IV e seguintes deste livro. Foi o que aconteceu na segunda metade do século XV nas grandes cidades comerciais italianas. Infelizmente, em termos de análise econômica do processo histórico, o estudo de Raymond de Roover é ainda menos profundo do que o de Carlo M. Cipolla, chegando aquele a afirmar que “what caused these general crises remains a mystery”[63] Porém, para nós, não é mistério que o Banco dos Médicis acabou por falir, como aconteceu aos bancos que basearam grande parte do negócio na atividade bancária com reserva fracionária. Apesar de Raymond de Roover afirmar não entender a razão por que se deu a crise generalizada de finais do século XV, a detalhada informação que apresenta sobre a fase final do Banco dos Médicis exibe todos os traços típicos de recessão e contração do crédito que surgem inexoravelmente depois de um processo de grande expansão artificial do crédito. De Roover explica que o Banco dos Médicis se viu forçado a iniciar uma política de contração do crédito, exigindo a devolução de empréstimos e tentando aumentar a liquidez. Além disso, ficou demonstrado que na fase final, o Banco do Médicis operava com um coeficiente de reserva muito reduzido, que chegou a ter um valor inferior a 10 por cento do total dos ativos, o que era inadequado para fazer face ao cumprimento dos seus compromissos durante o período de recessão.[64] O Banco dos Médicis acabou por falir e todos os ativos caíram nas mãos dos credores. Os concorrentes também faliram pelas mesmas razões, ou seja, pelos inevitáveis efeitos da expansão artificial e posterior recessão econômica invariavelmente gerados pela violação dos princípios tradicionais do Direito que regem o contrato de depósito monetário irregular.
Os bancos da Catalunha durante os séculos XIV e XV: a Taula de Canvi
Os bancos privados surgem na Catalunha na mesma altura em que esta atividade se desenvolvia nas grandes cidades comerciais italianas. No reinado de Jaime I, o Conquistador, (1213-1276), a leis góticas e romanas sobre o intercâmbio mercantil foram derrogadas e substituídas pelos Usos de Barcelona. Além disso, nas Cortes de 1300-1301, foi elaborada legislação pormenorizada e completa sobre o sistema bancário, com a fixação de atribuições, direitos, fiadores e responsabilidades dos banqueiros. Algumas disposições adotadas são de grande interesse para nós.
Assim, por exemplo, no dia 13 de fevereiro de 1300 foi estabelecido que qualquer banqueiro que falisse seria declarado infame por um porta-voz público em toda a cidade de Barcelona, sendo condenado a uma dieta estrita de pão e água enquanto não devolvesse aos credores o total dos depósitos.[65] Um ano depois, no dia 16 de maio de 1301, estipulou-se a obrigação de obter avais e garantias de terceiros para desenvolver o sistema bancário, sendo que aqueles que desenvolvessem a atividade sem apresentar essas condições, não podiam estender a toalha no balcão, para que toda a gente pudesse ver que não tinham a mesma solvência dos que tinham conseguido obter os avais e, por conseguinte, tinham a toalha posta nos balcões. Qualquer banqueiro que não cumprisse esta disposição (ou seja, exercesse a atividade bancária sem avais, utilizando a toalha) seria condenado pelo crime de fraude e/ou estelionato.[66] Em razão de tais disposições, é claro que, nesta fase inicial, o sistema bancário de Barcelona tendia a ser bastante solvente e a cumprir os princípios essenciais do Direito que regem o contrato de depósito bancário de moeda.
Não obstante, há indícios de que, apesar de todas as medidas, não tardou muito para que os banqueiros privados começassem a agir de forma fraudulenta, posto que no dia 14 de agosto de 1321 é modificada a legislação correspondente aos casos de falência de bancos, ficando estabelecido que seria declarada falência aos que não cumprissem os compromissos imediatamente. Caso não pagassem as dívidas no prazo máximo de um ano, cairiam em infâmia pública, que seria comunicada em toda a Catalunha por um pregador. Logo depois, seriam decapitados mesmo em frente à sua banca e as propriedades seriam vendidas pela jurisdição local para fazer frente às obrigações com os credores. Vale lembrar que este é um dos poucos exemplos históricos em que as autoridades públicas se preocuparam em defender, efetivamente, os princípios gerais do Direito de propriedade em relação ao contrato de depósito bancário de moeda e, embora suponhamos que a maior parte dos banqueiros catalães que faliram tenham tentado fugir ou pagar as duas dívidas no prazo máximo de um ano, existem provas documentais que pelo menos alguns foram mortos, como aconteceu a um tal de Francesch Castello, decapitado mesmo em frente ao seu banco no ano de 1360, tal como mandava a lei.[67]
Apesar de todas essas sanções, a liquidez dos bancos não deixou de ser inferior aos depósitos à vista recebidos, como os que acabaram por falir em massa no século XIV, na mesma recessão econômica e de crédito que assolou o mundo financeiro italiano e que foi estudada por Carlo M. Cipolla. Apesar de haver indícios de que os bancos da Catalunha resistiram um pouco melhor do que os italianos (as penalidades severas nos casos de fraude tiveram indubitavelmente um efeito positivo no que diz respeito aos coeficientes de reserva, tornando-os mais elevados), existem provas documentais de que os bancos catalães acabaram também por não cumprir os compromissos de forma generalizada. Assim, em março de 1397 foi necessária a promulgação de uma disposição específica, uma vez que o público começava a se queixar de que os bancos usavam todo o tipo de desculpas com os clientes e se mostravam reticentes na hora de devolver as somas que lhes tinham sido entregues para custódia. Diziam “volte mais tarde” e, no fim e com muita sorte, pagavam apenas com pequenas moedas fracionárias de pouco valor e nunca com o ouro que tinham recebido originalmente em depósito.[68]
A crise bancária do século XIV, em vez de levar a um aumento do controle e da defesa dos direitos de propriedade dos depositantes, levou à criação de um banco público municipal, a Taula de Canvi ou Banco de Depósito de Barcelona. Este banco foi criado com a finalidade de aceitar depósitos e com eles financiar os gastos municipais e a emissão de títulos de dívida pública da cidade de Barcelona. Assim, a Taula de Canvi corresponde ao modelo tradicional de banco criado pelas autoridades públicas para se aproveitar diretamente dos benefícios fraudulentos do sistema bancário. A. P. Usher estudou pormenorizadamente a vida deste banco, que, como era de prever, acabou por suspender os pagamentos em 1468, depois de ter usado uma parte importante das suas reservas para a concessão de empréstimos à própria Câmara Municipal de Barcelona e de não ter sido capaz de fazer frente à retirada de fundos em dinheiro por parte dos seus depositantes.[69] A partir dessa data, o banco foi reorganizado e gradualmente dotado de mais e mais privilégios, como o monopólio de todos os depósitos derivados de embargos ou apreensões judiciais, que eram uma fonte muito segura de rendimento contínuo e podiam servir de garantia para financiar a cidade. A Taula acabaria também por assegurar os recursos procedentes de todos os depósitos da administração pública, tutelas e documentos testamentários.[70]
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OS BANCOS NA ÉPOCA DE CARLOS V E A DOUTRINA DA ESCOLA DE SALAMANCA A RESPEITO DO SISTEMA BANCÁRIO[71]
A atividade bancária durante os anos do reinado de Carlos V é paradigmática do cenário que temos descrito, e por várias razões. Em primeiro lugar, porque a afluência maciça de metais preciosos provenientes da América fez com que o centro de gravidade da economia se deslocasse, pelo menos temporariamente, das cidades comerciais do norte de Itália para a Espanha, concretamente para Sevilha e outros mercados comerciais espanhóis. Em segundo lugar, porque as constantes necessidades de fundos, devido à sua política imperial, levaram a que tivesse de obter financiamento contínuo do sistema bancário, tirando proveito, com muita falta de escrúpulos, da liquidez que lhe proporcionava e reforçando ao máximo a tradicional cumplicidade entre governantes e banqueiros, que na altura já se tinha tornado regra, embora de forma mais dissimulada. Além disso, Carlos V não foi capaz de evitar a falência da fazenda real, o que, logicamente, teve consequências muito negativas para a economia espanhola em geral e, particularmente, para os banqueiros que o financiaram. Todos estes acontecimentos fizeram com que as mentes mais brilhantes da época, os teóricos da Escola de Salamanca, começassem a refletir sobre as atividades financeiras e bancárias que testemunhavam. Por isso, dispomos de um conjunto de análises de grande valor que precisam ser estudadas com atenção. A seguir, daremos conta de cada um destes eventos.
O desenvolvimento dos bancos em Sevilha
Graças ao trabalho de Ramón Carande,[72] sabemos com algum pormenor como se deu o desenvolvimento das atividades bancárias privadas em Sevilha durante o reinado de Carlos V. De acordo com o próprio Carande, a pesquisa foi facilitada por ocasião da descoberta de uma lista de banqueiros compilada para o confisco de metais preciosos levada a cabo pela Casa de Contratación de Sevilla em 1545. A difícil situação da Fazenda levou Carlos V a contrariar os princípios mais elementares do Direito e a apoderar-se de moeda onde quer que pudesse encontrá-la, ou seja, a que estava depositada nos cofres dos banqueiros sevilhanos. Na verdade, como veremos, tais banqueiros também violavam os princípios gerais do Direito que regiam o depósito monetário irregular e utilizavam grande parte dos depósitos recebidos em negócios particulares. No entanto, a política imperial de confiscar diretamente quaisquer quantias depositadas nos bancos incentivava-os ainda mais a usar a maior parte dos depósitos recebidos para conceder empréstimos a terceiros, prática que se tornou habitual. Se, em última instância, não havia nenhuma garantia de que os poderes públicos respeitariam as reservas em dinheiro dos bancos, e a própria experiência demonstrava que em situações de apuro o Imperador não pensava duas vezes antes de as confiscar na forma de empréstimos compulsórios à Coroa, era preferível dedicar a maior parte do depósitos a empréstimos ao comércio e à indústria privada, o que evitava a expropriação e proporcionava uma rentabilidade muito maior.
Esta prática de confisco é, talvez, o exemplo extremo da tradicional tendência das autoridades para usar os lucros dos bancos em benefício próprio, expropriando os ativos daqueles que têm a obrigação legal de custodiar e guardar da melhor maneira os depósitos alheios. Por isso, é compreensível que os governantes, ao se tornarem os primeiros beneficiários do sistema bancário, acabassem por justificá-la e por conceder todo o tipo de privilégios para que continuasse a operar com um coeficiente de reserva fracionário, à margem dos princípios gerais do Direito.
Na obra magna, Carlos V y sus banqueros, Ramón Carande menciona os banqueiros mais importantes da Sevilha de Carlos V, nomeadamente Espinosa, Domingo, Lizarrazas, Pedro de Morga e outros menos importantes, como Cristóbal Francisquín, Diego Martínez, Juan Íñiguez, e Octavio de Negrón. Todos acabaram inexoravelmente por falir, pelo simples fato de não terem liquidez para fazer frente ao levantamento dos depósitos que tinham sido feitos à vista, o que demonstra que operavam com um coeficiente de reserva fracionário, graças à licença ou ao privilégio que tinham obtido do município de Sevilha e do próprio Carlos V.[73] Não temos informação sobre a percentagem exata das reservas, mas sabemos que em muitas ocasiões utilizavam esse dinheiro em negócios particulares relacionados com a frota de navios usada para o comércio com a América, na coleta de impostos, etc. Eram aventuras arriscadas, mas imensamente tentadoras, uma vez que, quando corriam bem, geravam lucros muito elevados. Além disso, com dissemos antes, os sucessivos confiscos de metais preciosos depositados nos bancos não serviam senão para encorajar ainda mais o comportamento ilegítimo dos banqueiros. Assim, os Espinosa faliram em 1579, tendo sido presos os sócios principais. Domingo de Lizarrazas faliu no dia 11 de março de 1553, ao não conseguir completar o pagamento de mais de seis milhões e meio de maravedis. Pedro de Morga, que começou as suas operações em 1553, faliu em 1575, durante a segunda falência de Felipe II. A mesma sorte tiveram os demais banqueiros menos importantes, sendo aqui muito curiosa a presença e o comentário de Thomas Gresham, que se deslocou a Sevilha com a instrução de retirar dos bancos trezentos e vinte mil ducados em dinheiro, para o que havia obtido a necessária licença do Imperador e da rainha Maria. Gresham ficou muito admirado ao observar que na cidade que recebia os tesouros provenientes das ilhas havia uma tão grande escassez de dinheiro, tal como nos mercados, pelo que temia que todos os bancos da cidade tivessem de suspender os pagamentos quando levantasse os fundos, tal como fora ordenado.[74] É lamentável que a análise de Ramón Carande deixe tanto a desejar e que o seu estudo interpretativo da falência desses bancos se baseie sobretudo em explicações anedóticas, como a derivada da “avidez” de metais, que ameaçava constantemente a solvência dos bancos; a realização de negócios pessoais arriscados por parte dos banqueiros, que os punham continuamente em situações comprometedoras (fretamento de navios, comércio de navegação ultramarina, operações de seguros, especulações diversas, etc.); e os repetidos confiscos e necessidades de liquidez da Fazenda real. Nunca é mencionada, como a verdadeira causa do fenômeno, a inevitável recessão e crise econômica gerada pela fase de boom artificial causada pela inflação de metais preciosos provenientes da América e a expansão artificial do crédito, sem sustentação de poupança real suficiente, derivada do exercício da atividade bancária com um coeficiente fracionário de reserva.
Felizmente, Carlo M. Cipolla compensou, pelo menos em parte, essa lacuna teórica de Ramón Carande, efetuando um estudo interpretativo da crise bancária e econômica da segunda metade do século XVI, que, apesar de se referir estritamente aos bancos italianos, é também diretamente aplicável ao sistema financeiro espanhol, uma vez que, nessa altura, os circuitos comerciais e financeiros entre as duas nações estavam intimamente relacionados.[75] Cipolla explica que, já na segunda metade do século XVI, a oferta monetária (aquilo a que nos referimos hoje como M1 ou M2) incluía uma quantidade elevada de “dinheiro bancário” ou depósitos criados do nada pelos banqueiros que não conservavam em custódia 100 % do dinheiro depositado à vista. Isso deu origem a uma fase de florescimento econômico artificial que reverteu a partir da segunda metade do século XVI, altura em que os depositantes começaram, com preocupação, a sentir dificuldades econômicas crescentes e em que se deram as primeiras falências dos banqueiros mais importantes de Florença.
De acordo com Cipolla, esta fase de expansão começou na Itália, provocada pelos diretores do Banco Ricci, que utilizaram uma parte muito importante dos depósitos para comprar fundos públicos e conceder créditos. Esta política de expansão do crédito foi seguida pelos outros bancos privados, dado que queriam manter-se competitivos e conservar os lucros e a ocupação de mercado. Gera-se assim um boom de crédito que dá origem a uma fase de grande expansão artificial que não tarda a começar a retroceder. Assim, em 1574, uma proclamação acusava os banqueiros de se negarem a devolver os depósitos em dinheiro e denunciava o fato de só “pagarem com tinta”. Os bancos foram sentindo cada vez mais dificuldade em devolver os depósitos em moeda e, nas cidades venezianas, começou a sentir-se uma significativa escassez de dinheiro. Os artesãos não podiam levantar os próprios depósitos nem pagar as dívidas, o que gerou uma forte contração no crédito (ou seja, deflação) e uma profunda crise econômica, analisada pormenorizadamente por Cipolla na sua interessante obra. A análise de Cipolla, é, portanto, mais sólida do ponto de vista teórico do que a de Ramón Carande, embora não seja também completamente adequada, uma vez que põe mais ênfase na crise e na fase de contração do crédito do que na fase prévia de expansão artificial do crédito, na qual se encontra a verdadeira raiz dos problemas. Por sua vez, esta fase de expansão do crédito, tem origem no descumprimento, por parte dos banqueiros, da obrigação de custodiar e manter intacto 100 % do tantundem.[76]
Foram também importantes, a nível internacional, as relações que Carlos V manteve com os membros do banco Fugger ao longo de todo o reinado. Os Fugger de Augsburgo começaram as atividades como comerciantes de lã e prata, assim como de pimenta e outras especiarias com Veneza. Mais tarde, começaram a se dedicar aos negócios bancários, chegando a ter dezoito estabelecimentos ou sucursais por toda a Europa. Ajudaram à eleição de Carlos V como imperador, concedendo empréstimos, e, posteriormente, financiaram-no em numerosas ocasiões, recebendo, como garantia, os carregamentos de prata da América e a autorização para recolher os impostos da Coroa. Entraram em colapso e quase faliram quando Felipe II suspendeu de fato os pagamentos a todos os credores da Coroa em 1557. Ainda assim continuaram a arrendar as terras das ordens militares até 1634.[77]
A Escola de Salamanca e as atividades bancárias
Estes fenômenos financeiros e bancários não deixaram de impressionar as ilustres mentes dos membros da Escola de Salamanca, que, segundo as pesquisas mais confiáveis, são os precursores da moderna concepção de valor subjetivo desenvolvida pela Escola Austríaca de Economia.[78]
Seguindo um critério cronológico, o primeiro trabalho a considerar, e talvez o mais relevante para os nossos objetivos, é a Instrucción de mercaderes (Instrução aos comerciantes) do doutor Luis Saravia de la Calle publicada pela Medina de Campo em 1544. Saravia de la Calle faz críticas muito duras aos banqueiros, que classifica de “glutões vorazes, que comem tudo, destroem tudo, confundem tudo, roubam e mancham tudo, como as harpias de Pineu”.[79] Diz que os banqueiros “vão para a rua e para a praça com mesa e cadeira e caixa e livro, como as rameiras vão para o bordel com a cadeira”, e tendo obtido a licença e fiança obrigatórias pelas leis do reino, dedicam-se a obter depósitos do clientes, aos quais oferecem o serviço de contabilidade e caixa, fazendo os pagamentos solicitados a partir das contas dos clientes e, até, pagando juros por tais depósitos.
Com um bom raciocínio jurídico, Saravia de la Calle, refere que a existência de juros é incompatível com a natureza do depósito de dinheiro e que, em todo o caso, o banqueiro devia receber uma quota pela custódia ou guarda do dinheiro, chegando mesmo a repreender duramente os clientes que aceitam entrar em tais negócios com os banqueiros. Assim, afirma:
E se disseres, mercador, não empresto dinheiro, mas sim o deposito, não há maior escárnio; pois quem já viu o depositário pagar? Sói ser pago pelo trabalho de salvaguardar o depósito. Ademais, caso confies o dinheiro ao aproveitador como empréstimo ou depósito, assim que receberdes uma parte do lucro, também ganharás uma parcela de culpa, a maior parte, na verdade.[80]
Saravia de la Calle faz ainda, no capítulo XII, a correta distinção entre as duas operações radicalmente distintas que são efetuadas pelos bancos. Por um lado, os depósitos à vista, nos quais os clientes confiam o dinheiro aos banqueiros sem quaisquer juros,
De modo que está seguro e disponível para poder pagar a quem se deve, e para evitar a confusão e o trabalho de o contar e guardar, e também porque, por gratidão pela boa ação que fazem ao dar-lhes o dinheiro de graça, caso ocorra de não haver dinheiro em poder do banqueiro, este também aceitará alguns levantamentos a descoberto sem cobrar juros”.[81]
Por outro lado, os depósitos a prazo, que são contratos muito diferentes dos anteriores. Não são senão verdadeiros empréstimos ou mútuos e se caracterizam por serem entregues ao banqueiro durante um período de tempo em troca de juros que Saravia de la Calle, seguindo a doutrina tradicional canonista a respeito da usura, condena. Além disso, no caso do contrato de depósito à vista, afirma claramente que os clientes devem pagar ao banqueiro “porque se depositam dinheiro, deviam pagar a custódia e não receber tantos lucros como a lei permite quando se deposita dinheiro ou outra propriedade que precisa de ser guardada”.[82] Saravia de la Calle critica também abertamente os clientes que, com egoísmo, tentam aproveitar-se da atividade ilegítima dos banqueiros, depositando o seu dinheiro com o intuito de obter juros de imediato: “não está livre de culpa, pelo menos venial, quem deposita o seu dinheiro com quem sabe que não o vai guardar, mas sim gastá-lo, como quem oferece uma donzela ao lascivo ou um manjar ao guloso”.[83] E o depositante não poderá aliviar a sua consciência pensando que o banqueiro emprestará ou utilizará o dinheiro de outros mas não o seu:
Acreditas que o banqueiro provavelmente guardará aquele dinheiro do depósito e não lucrará com ele; mas esta probabilidade não se pode ter de nenhum destes aproveitadores. Pelo contrário, o banqueiro há-de investi-lo e tentar lucrar com ele, porque como seria possível pagar 7 e 10 por cento de juros àqueles que lhe fornecem o dinheiro, se não o usasse? Mesmo que se tivesse demonstrado claramente que não tinhas pecado (o que não foi feito, pelo contrário), é quase certo que o banqueiro pecou, fazendo negócios com o teu dinheiro e, roubando a propriedade dos que estão próximos de ti com o teu dinheiro.[84]
É, pois, claríssima a doutrina de Saravia de la Calle, no que diz respeito ao fato de a utilização em benefício próprio, mediante a concessão de empréstimos, do dinheiro que é depositado à vista nos banqueiros ser ilegítima e pressupor um pecado grave. Esta doutrina coincide, como vimos, com a que foi estabelecida originalmente pelos autores clássicos do Direito Romano, e que se deriva naturalmente da própria essência, causa e natureza jurídica do contrato de depósito monetário irregular, que estudamos no capítulo I.
Saravia de la Calle descreve também de forma vívida os lucros desproporcionados que os banqueiros obtêm por meio da prática ilícita de se apropriarem dos depósitos dos clientes, em vez de se contentarem com os mais reduzidos proveitos que obteriam da mera guarda e custódia dos depósitos, como bons pais de família. Vejamos como se expressa de forma bastante ilustrativa:
Caso recebêsseis salário, deveria ser moderado, e servir para vos sustentardes, e não tão excessivos roubos com os quais fazeis casas soberbas e comprais ricas herdades, tendes custos familiares excessivos e criados e fazeis grandes banquetes e vestis custosamente, que quando vos assentastes a lucrar éreis pobres e deixastes ofícios pobres.[85]
Além disso, Saravia de la Calle explica que os banqueiros são muito propensos a falências, fazendo mesmo uma pequena análise teórica que demonstra claramente que, à fase de expansão proporcionada pela expansão artificial dos créditos concedidos por estes “aproveitadores”, se segue inevitavelmente uma fase de recessão durante a qual a falta de pagamentos provoca a falência em cadeia dos bancos. E acrescenta que:
Como o mercador não paga ao aproveitador, fá-lo falir, e assim tudo se perde. Como se sabe, estes aproveitadores são o princípio, a ocasião e até a causa de tudo isso, porque se não os houvesse, cada pessoa usaria o próprio dinheiro no que pudesse e não em mais, e, assim, as coisas valeriam o preço justo e não se cobraria mais do que o dinheiro vale. Por isso, seria muito proveitoso que os príncipes não os consentissem na Espanha, pois nenhuma outra nação do mundo os consente, e desterrassem esta pestilência da sua corte e do seu reino.[86]
Como sabemos, não é certo que nas outras nações as autoridades tenham tido mais sucesso do que na Espanha no que respeita ao controle da atividade dos banqueiros. Pelo contrário, sucedeu o mesmo mais ou menos em todo o lado e os governantes acabaram por conceder privilégios aos banqueiros para que estes pudessem utilizar em benefício próprio o dinheiro dos depositantes, em troca de poder, também eles, tirar proveito de um sistema bancário que lhes um dava financiamento muito mais rápido e fácil do que o derivado dos impostos.
Como conclusão da análise, Saravia de la Calle afirma que: “um cristão não deve, de maneira nenhuma, dar o seu dinheiro a estes aproveitadores, porque caso peque ao fazê-lo, como sempre acontece, deve parar para evitar pecar; e caso não peque, deve parar para evitar que peque o aproveitador”. Além disso, acrescenta que se não se utilizarem os banqueiros, obter-se-á a vantagem adicional de os depositantes “não estarem em sobressalto de saber se o dito aproveitador suspende os pagamentos; caso vá à falência, como vemos tão comumente e permite o Nosso Senhor Deus que com coisas mal ganhas se percam eles e os donos”.[87] Como vemos, a análise de Saravia de la Calle, além de perspicaz e bem-humorada, é impecável e não cai em contradições, salvo talvez em insistir demasiado na crítica aos banqueiros mais pelo fato de cobrarem e pagarem juros, violando a proibição canônica de usura, do que pela apropriação indébita dos depósitos que lhes são confiados à vista pelos clientes.
Outro autor que analisa o contrato de depósito monetário irregular é Martín de Azpilcueta, mais conhecido como o “Doutor Navarro”. No livro Comentario resolutorio de cambios, publicado pela primeira vez em Salamanca no final de 1556, Martín de Azpilcueta se refere expressamente à “depósito bancário para salvaguarda”, que é a operação de depósito à vista de dinheiro que os bancos efetuam. Na verdade, para Martín de Azpilcueta, o depósito para salvaguarda ou contrato de depósito monetário irregular é completamente justo e consiste em o banqueiro ser:
guarda, depositário e fiador de dinheiro, que lhe foi dado ou trocado para um qualquer propósito, por aqueles que lhe dão ou enviam; e em ser obrigado a pagar aos mercadores ou pessoas que os depositantes quiserem na forma que entenderem, [pelo que], licitamente, podem ganhar o salário justo, da república ou das partes depositantes; porque este ofício e esta responsabilidade são úteis para a república, e não existe iniquidade nenhuma, pois é justo que aquele que trabalha ganhe o seu salário. E o trabalho do banqueiro é receber, ter em depósito e disponível o dinheiro de tantos mercadores e escriturar e receber e entregar contas de uns e de outros, com muitas dificuldades, e às vezes perigo de erro nas contas e em outras coisas. O mesmo poderia ser feito com um contrato por meio do qual alguém ficasse obrigado a receber e guardar o dinheiro em depósito, dar, pagar e entregar contas de uns e de outros, conforme o combinado, etc., porque este contrato é o de assegurar outra pessoa para um trabalho, que é um contrato conhecido, justo e santo.[88]
Como vemos, para Martín de Azpilcueta, o contrato de depósito monetário irregular é um contrato absolutamente legítimo, que consiste em confiar a guarda, custódia ou depósito de dinheiro a um profissional, o banqueiro, que deverá ocupar-se da sua custódia como um bom pai de família, mantendo sempre o dinheiro à disposição do depositante e realizando por conta deste os serviços de caixa que lhe forem solicitados, daí que tenha direito a receber dos depositantes o correspondente pagamento pelos serviços prestados. De fato, para Martín de Azpilcueta, são os depositantes que devem pagar ao depositário e nunca o inverso. Os depositantes “pagam para compensar o trabalho e o cuidado que o cambista tem de receber e guardar o dinheiro”, e, por isso, este deve exercer o “o ofício de forma limpa e contentando-se com o salário justo, recebendo-o daqueles que lhe devem, e cujo dinheiro guardam e cujas contas mantêm, e não daqueles que não lhe devem.”[89] Acresce que, para evitar confusões e deixar as coisas bem claras, Martín de Azpilcueta, seguindo a mesma linha que vimos em Saravia de la Calle, condena expressamente os clientes que pretendem não pagar nada pelos serviços de custódia dos depósitos, e ainda receber, por eles, juros. Desta forma, o Doutor Navarro conclui que:
Neste gênero de câmbio, não pecam apenas os cambistas, mas também os que lhes dão dinheiro para que o guardem e façam o acima referido. E depois não lhes querem pagar nada, dizendo que aquilo que ganham com o dinheiro e recebem daqueles que pagam em dinheiro é salário bastante. E se os cambistas lhes pedem alguma coisa, deixam-nos e passam a negociar com outros. Para que não os deixem, os banqueiros renunciam aos salários e recebem dinheiro daqueles que nada lhes devem.[90]
Por sua vez, Tomás de Mercado, na sua obra Suma de tratos y contratos (Compilação de acordos e contratos) (Sevilha, 1571), faz uma análise do sistema bancário que segue uma linha muito parecida com a dos autores anteriores. Em primeiro lugar, indica, seguindo a doutrina correta, que os depositantes devem pagar aos banqueiros o trabalho de guarda dos depósitos de dinheiro, concluindo que:
é uma regra geral que todos os banqueiros possam receber um salário daqueles que depositam dinheiro no seu banco, uma quantia anual ou uma quantia por cada milhar depositado, uma vez que os banqueiros fazem um serviço e guardam a propriedade”.[91]
Não obstante, Tomás de Mercado assinala ironicamente que os banqueiros da cidade de Sevilha são tão “generosos” que não cobram nada pela custódia dos depósitos: “os desta cidade, é certo, são realíssimos e afidalgados, pois não pedem nem recebem nenhum salário”.[92] Tomás de Mercado observa que os banqueiros de Sevilha não têm necessidade de cobrar nada, pois com a grande quantidade de dinheiro que recebem em depósitos, realizam negócios particulares muito lucrativos. É importante realçar que, na nossa opinião, a análise de Tomás de Mercado não é mais do que a constatação de um fato, e não supõe qualquer tipo de aceitação da sua legitimidade, como diversos autores modernos (Restituto Sierra Bravo e Francisco G. Camacho, entre outros) parecem sugerir.[93] Pelo contrário, seguindo a mais pura doutrina romana e a essência da natureza jurídica do contrato de depósito monetário irregular analisada no capítulo I, Tomás de Mercado é o autor que demonstra mais claramente que a transmissão de propriedade que se dá no depósito irregular não implica uma correspondente transmissão da disponibilidade do tantundem, pelo que, na prática, não há uma transmissão plena de propriedade. A forma como se expressa é muito boa: “hão de entender [os banqueiros] que a moeda não é sua, mas alheia, e não é justo que, por se servirem dela, deixem de servir o seu dono”. E acrescenta que os banqueiros devem obedecer a dois princípios básicos. O primeiro é:
não despojarem o banco ao ponto de não serem capazes de pagar os levantamentos que forem necessários, porque, se não conseguirem pagá-los, por gastarem ou investirem dinheiro em negócios suspeitos ou outros, por certo pecam…
O segundo:
que não se metam em negócios perigosos, pois pecam, mesmo que sejam bem sucedidos, pelo perigo em que se colocaram de não cumprir as responsabilidades e de prejudicar aqueles que neles confiaram.[94]
Embora seja certo que poderia interpretar-se que, com essas recomendações, Tomás de Mercado parece resignado a admitir a utilização de um certo coeficiente de reserva fracionária, é preciso ter em conta que o autor é categórico ao expor sua opinião jurídica segundo a qual, em última instância, o dinheiro dos depósitos não é dos banqueiros, mas dos depositantes, e ao afirmar ainda que nenhum dos banqueiros acate as recomendações: “mas como quando se ganha comodamente é muito difícil refrear a ganância, nenhum deles ouve estes avisos ou age de acordo com estas condições”.[95] Por isso, considera muito positiva a disposição promulgada pelo imperador D. Carlos proibindo os banqueiros de fazerem negócios particulares, com o objetivo de eliminar a tentação de financiá-los com o dinheiro obtido dos depositantes.[96]
Por outro lado, no final do capítulo IV de Suma de tratos y contratos, Tomás de Mercado refere que os banqueiros de Sevilha são depositários do dinheiro e dos metais preciosos dos mercadores da frota das Índias e que com tão substanciais depósitos fazem “grandes investimentos” e obtêm lucros elevados. O autor não condena este tipo de atividade, embora a passagem em questão seja, de novo, mais a descrição de um estado de coisas do que uma análise da sua legitimidade, que realiza com muito mais profundidade no capítulo XIV, que já comentamos. Tomás de Mercado conclui ainda que os banqueiros “envolvem-se também em câmbios e cobranças, pois nesta república um banqueiro abarca um mundo e abraça mais do que o oceano, embora às vezes se aperte tanto que acaba por perder tudo”.[97]
Os pensadores que mais se equivocaram no tratamento doutrinal do contrato de depósito monetário irregular foram Domingo de Soto e, sobretudo, Luis de Molina e Juan de Lugo. De fato, esses teóricos deixaram-se influenciar pela tradição medieval dos glosadores, de que já falamos na seção 2 do presente capítulo, e em especial pela confusão doutrinal resultante da figura do depositum confessatum. De Soto e, especialmente, Molina consideram que o depósito irregular é apenas um empréstimo que transfere para o banqueiro não só a propriedade, mas também a disponibilidade do tantundem, pelo que se pode considerar legítima a utilização para conceder empréstimos, desde que estes se efetuem de forma “prudente”. Pode dizer-se que Domingo de Soto foi o primeiro a defender, ainda que muito indiretamente, esta tese. Com efeito, no livro VI, questão XI, da sua obra La justicia y el derecho (A Justiça e o Direito) (1556), podemos ler que os banqueiros têm o:
costume, segundo se diz, de responder por uma quantidade maior do que a depositada caso um mercador faça o depósito em dinheiro. Entregue dez mil ao cambista; pois ele responderá por doze, talvez quinze; porque ter dinheiro vivo é muito lucrativo para o cambista. E não há nenhum mal nisso.[98]
Outro caso de criação de créditos que Domingo de Soto parece admitir é o do empréstimo na forma de desconto de letras, financiadas via os depósitos dos clientes.
Porém, foi o jesuíta Luis de Molina, o autor que sustentou de modo mais claro a doutrina equivocada em relação ao contrato de depósito monetário irregular efetuado pelos bancos.[99] Efetivamente, na obra Tratado sobre os câmbios (1597), Molina defende a doutrina medieval segundo a qual o depósito irregular é um contrato de empréstimo ou mútuo a favor do banqueiro, em que se transfere não só a propriedade mas também a disponibilidade integral do tantundem, pelo que o banqueiro pode utilizá-lo legitimamente em benefício próprio, na forma de empréstimos ou qualquer outra. Vejamos como expõe a sua tese:
porque estes banqueiros, como todos os outros, são os verdadeiros donos do dinheiro que está depositado nos bancos, no que se diferenciam muito dos outros depositários […] de modo que o recebem como empréstimo a título precário e, por conseguinte, por sua conta e risco.
Mais adiante, de maneira ainda mais clara, afirma que:
tal depósito é realmente um empréstimo, como já foi dito, e a propriedade do dinheiro depositado passa para o banqueiro, pelo que em caso de perda, a perda é do banqueiro”.[100]
Esta posição contradiz a doutrina defendida pelo próprio Luis de Molina em Tratado sobre los préstamos y la usura, onde adverte que o prazo é um elemento essencial de todo o contrato de empréstimo e que se não tiver determinada expressamente a duração e uma data de devolução, “haverá que aceitar a decisão do juiz sobre quanto tempo se poderá retê-lo.”[101] Além disso, Luis de Molina ignora todos os argumentos que apresentamos no capítulo I para demonstrar que o contrato de depósito irregular não tem nada que ver, na sua natureza e essência jurídica, com o contrato de empréstimo ou mútuo. Assim, a tentativa doutrinal de identificar cada um dos contratos implica uma claro retrocesso não só em relação as posições de Saravia de la Calle e de Martín Azpilcueta, muito mais coerentes, mas também em relação à verdadeira natureza jurídica do contrato tal como já havia sido expressa pela ciência jurídica romana. É, pois, curioso que uma mente com a clareza e a profundidade de Luis de Molina não se tivesse apercebido quão perigoso era aceitar a violação dos princípios gerais do direito sobre o depósito irregular e tivesse afirmado que “nunca sucede que todos os depositantes precisem do dinheiro de tal forma que não deixem em depósito muitos milhares de ducados com os quais os banqueiros possam negociar para seu proveito ou perda”.[102] Não percebe que assim não só se viola o objetivo ou causa essencial do contrato (a guarda ou custódia), como se incentiva todo o tipo de negócios ilícitos e abusos que inexoravelmente geram a recessão econômica e a falência dos bancos. Sem cumprir o princípio tradicional do Direito que exige a custódia contínua do tantundem a favor do depositante, não existe nenhum guia claro para evitar que os banqueiros cheguem à falência. Além disso, é óbvio que sugestões tão vagas e superficiais como a de “tentar atuar com prudência” ou “não entrar em negócios perigosos” não são suficientes para evitar os efeitos econômicos e sociais muito prejudiciais das atividades bancárias com reserva fracionária. Em todo o caso, Luis de Molina preocupa-se, pelo menos, em assinalar que:
Há que se advertir que [os banqueiros] pecam mortalmente caso usem tão grande quantidade de dinheiro que têm em depósito nos negócios que se vejam logo incapacitados de entregar no momento oportuno os montantes que os depositantes pedem ou mandam pagar com base no dinheiro que têm depositado […] pecam também mortalmente caso se dediquem a negócios que possam levar a uma situação que ponha em risco o pagamento dos depósitos. Por exemplo, se enviam tantas mercadorias para ultramar que, em caso de naufrágio, ou de captura por piratas, fiquem impossibilitados de pagar os depósitos mesmo que vendam o próprio patrimônio. E não pecam mortalmente apenas quando o negócio acaba mal, mas também quando é concluído favoravelmente. E isso devido ao perigo a que se expuseram de prejudicar os depositantes e fiadores que eles próprios trouxeram para os depósitos.[103]
Consideramos esta advertência admirável de Luis de Molina, como admirável nos parece que não se tenha apercebido de que a mesma é, em última instância, intimamente contraditória com a aceitação expressa da atividade bancária com reserva fracionária realizada com prudência. Na verdade, independentemente da prudência dos banqueiros, a única maneira de evitar os riscos e sempre garantir a disponibilidade do dinheiro aos depositantes é manter um coeficiente de caixa de 100% em todos os momentos.[104]
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Uma nova tentativa de desenvolver o sistema bancário de forma legítima: o banco de Amsterdã. O desenvolvimento dos Bancos nos séculos XVII e XVIII
O Banco de Amsterdã
A última tentativa séria de estabelecer um banco baseado nos princípios gerais do Direito em relação ao depósito monetário irregular, bem como num sistema eficaz de controle governamental que defendesse os direitos de propriedade dos depositantes, foi a constituição do Banco Municipal de Amsterdã em 1609. Este banco surge depois de uma fase de grande confusão monetária e de exercício fraudulento (sem coeficiente de caixa de 100 %) da atividade bancária por parte dos bancos privados. Com o objetivo de acabar com esse estado de coisas e de pôr ordem nas relações financeiras, o Banco de Amsterdã começou a operar no dia 31 de Janeiro de 1609 com a denominação de Banco de Câmbios.[105] A principal peculiaridade do Banco de Amsterdã é que se baseou, desde a fundação, no cumprimento estrito dos princípios universais do Direito que regem o contrato de depósito monetário irregular; mais concretamente, do princípio segundo o qual, no contrato de depósito monetário irregular, a obrigação do banco depositário consiste em manter constantemente a disponibilidade do tantundem a favor do depositante, ou seja, em manter sempre um coeficiente de caixa de 100 % no que diz respeito aos depósitos recebidos “à vista”. Com esta medida pretendia desenvolver-se o sistema bancário de forma legítima e evitar os abusos e as falências que historicamente estavam acontecendo em todos os países nos quais o estado não se tinha preocupado em declarar ilegal e em proibir a apropriação indébita do dinheiro depositado à vista nos bancos, acabando, na maior parte dos casos, por lhes conceder todo o tipo de privilégios e licenças para a operação fraudulenta, em troca da oportunidade de tirar proveito fiscal dessa atividade.
Durante um período muito prolongado, de mais de cento e cinquenta anos, o Banco de Amsterdã cumpriu escrupulosamente o compromisso que serviu de base à sua fundação. Existem provas que demonstram que durante os primeiros anos de existência do banco, entre 1610 e 1616, tanto os depósitos do banco como as reservas de dinheiro atingiam o valor de quase um milhão de florins. De 1619 a 1635, os depósitos chegavam perto dos 4 milhões de florins e as reservas de dinheiro eram superiores a três milhões e quinhentos mil. Após este pequeno desequilíbrio, a estabilidade é restaurada em 1645 com onze milhões e oitocentos mil florins de depósitos e onze milhões e oitocentos mil florins de reservas em dinheiro. O equilíbrio se mantêm sem grandes alterações, e, já no século XVIII, em 1721-1722, existiam vinte e oito milhões de florins de depósitos e um montante quase equivalente de reservas em dinheiro, quase vinte e sete milhões. Este grande crescimento dos depósitos do banco de Amsterdã deveu-se, entre outras razões, ao papel de refúgio de capitais provenientes da louca especulação inflacionista produzida pelo sistema de John Law nos anos vinte do século XVIII na França, de que falaremos mais adiante. Assim se manteve até 1772, com um nível de vinte e oito milhões de florins tanto de depósitos como de reservas em dinheiro. Como é óbvio, durante todo este período, na prática, o Banco de Amsterdã manteve um coeficiente de caixa de 100 %, o que permitiu que, em todas as crises, fosse capaz de fazer frente à retirada de todos os florins cuja devolução foi solicitada em forma de dinheiro vivo, como foi o caso em 1672, ano em que o pânico decorrente da ameaça francesa deu origem a uma retirada maciça do dinheiro dos bancos holandeses, que, na sua maioria se viram obrigados a suspender os pagamentos (foi o que aconteceu com os bancos de Roterdã e Middleburg). O Banco de Amsterdã não teve, como é lógico, qualquer dificuldade em devolver os depósitos, o que resultou na confiança crescente e definitiva na sua solidez, convertendo-o num objeto de admiração do mundo economicamente civilizado de então. Pierre Vilar assinala que, em 1699, o embaixador da França escreveu num relatório ao seu Rei que:
Amsterdã é sem dúvida de todas as cidades das Províncias Unidas, a mais importante pela grandeza, riquezas e extensão do comércio. Há poucas cidades na Europa que possam igualá-la nestes dois últimos aspectos; o comércio se estende pelas duas partes do mundo e as riquezas são tão grandes que durante a guerra fornecia até cinquenta milhões por ano ou ainda mais.[106]
E ainda em 1802, altura em que, como veremos, começou a corromper-se e a violar os princípios que serviram à sua fundação, o Banco de Amsterdã conservava um enorme prestígio, ao ponto de o cônsul de França em Amsterdã chegar a afirmar que:
No fim da guerra marítima que reteve nas colônias espanholas e portuguesas os tesouros provenientes das suas minas, a Europa encontra-se, de súbito, inundada de ouro e prata, numa proporção muito superior às necessidades e que diminuiria o seu valor se fosse posta em circulação de uma só vez. O que fizeram os habitantes de Amsterdã neste caso? Depositaram estes metais em lingotes no Banco, onde ficaram guardados e disponíveis por um preço módico, e tiraram-nos pouco a pouco para enviá-los para diferentes países à medida que o aumento da taxa de câmbio indicava a necessidade dos mesmos. Assim, estes valores, cuja afluência demasiado rápida teria feito subir em demasia o preço de todas as coisas, para prejuízo de todos quantos dispõem de rendimentos fixos e limitados, foram sendo distribuídos gradualmente por uma multiplicidade de canais, animando a indústria e facilitando e incitando os intercâmbios. Desta forma, o Banco de Amsterdã não limitava a sua ação aos interesses particulares dos negociantes da cidade; toda a Europa lhe devia uma maior estabilidade nos preços, um equilíbrio nos intercâmbios e uma proporção mais constante entre os dois metais que servem de moeda; e pode dizer-se que se o banco não se tivesse restabelecido faltaria um recurso fundamental à grande máquina do comércio e da economia política do mundo civilizado.”[107]
Vemos, portanto, que o Banco de Amsterdã não se propôs obter lucros desproporcionados utilizando fraudulentamente os depósitos. Em vez disso, e em consonância com as sentenças de Saravia de la Calle e de outros autores de que falamos, contentava-se com a obtenção de modestos lucros decorrentes dos direitos que cobrava pela custódia dos depósitos, bem como com o pequeno rendimento obtido no câmbio de dinheiro e na venda de barras de metal cunhado. Estes rendimentos eram mais do que suficientes para fazer frente aos gastos de funcionamento e administração do banco e manter uma instituição honesta e cumpridora de todos os seus compromissos.
Outra evidência do grande prestígio do Banco de Amsterdã é, por exemplo, a referência que lhe é feita nos estatutos do Banco de São Carlos em 1782. Apesar deste banco ter sido criado sem as garantias do de Amsterdã, e precisamente com o objetivo de utilizar os depósitos, prestígio e confiança para ajudar a Fazenda Pública, não deixou de ser influenciado pelo grande prestígio do banco holandês. Assim, no seu artigo XLIV estabelece que os particulares podem ter depósitos ou:
fundos equivalentes em dinheiro no mesmo banco, o que será permitido a qualquer pessoa que guardar aí o seu dinheiro, seja para contabilizá-lo seja para levantá-lo sucessivamente, e desta forma estarão isentos de fazer pagamentos por si próprios, sendo as suas letras aceites como pagáveis ao banco. No primeiro encontro, os acionistas determinarão a quantidade por milhar que os comerciantes deverão pagar ao banco pelos depósitos, conforme o que se pratica na Holanda, e estabelecerão as demais provisões convenientes ao melhor despacho dos descontos e das reduções.[108]
David Hume e o Banco de Amsterdã
Um sinal do enorme prestígio do banco de Amsterdã, não só entre os comerciantes, mas também entre os especialistas e intelectuais, é a referência explícita de David Hume a este banco no seu ensaio Of Money. O ensaio foi publicado pela primeira vez, juntamente com outros, no livro Political Discourses, em Edimburgo, em 1752. Nele, Hume mostra-se contrário ao papel-moeda, considerando que a única política financeira solvente é a que obriga os bancos a manter 100 % de coeficiente de caixa, em conformidade com os princípios tradicionais do Direito que regem o depósito monetário irregular. David Hume conclui que:
To endeavour artificially to encrease such a credit, can never be the interest of any trading nation; but must lay them under disadvantages, by encreasing money beyond its natural proportion to labour and commodities, and thereby heightening their price to the merchant manufacturer. And in this view, it must be allowed, that no bank could be more advantageous, than such a one as locked up all the money it received, and never augmented the circulating coin, as is usual, by returning part of its treasure into commerce. A public bank, by this expedient, might cut off much of the dealings of private bankers and money jobbers; and though the state bore the charge of salaries to the diretors and tellers of this bank (for, according to the preceding supposition, it would have no profit from its dealings), the national advantage, resulting from the low price of labour and the destruction of paper credit, would be a sufficient compensation.[109]
Embora Hume não esteja completamente correto quando afirma que o banco não teria proveitos, pois podia cobrir os custos operacionais com os direitos de custódia que cobrasse e, inclusive, obter lucros modestos como acontecia, de fato, com o Banco de Amsterdã, sua análise é categórica e demonstra que quando defendia a criação de um banco público deste tipo, tinha em mente o exemplo do Banco de Amsterdã e os bons resultados que vinha tendo há mais de cem anos. Acresce ainda que, na terceira edição da sua obra, com o título Essays and Treatises on Several Subjects, publicada em quatro volumes em Londres e Edimburgo, 1753-1754, Hume acrescentou na parte do texto em que diz que: “no bank could be more advantageous, than such a one as locked up all the money it received”, numa nota de rodapé (número 4) afirma que: “This is the case with the Bank of Amsterdam”. Parece que com esta nota de rodapé Hume quis afirmar uma vez mais, e agora de forma expressa, que o seu modelo ideal de atividade bancária era o do Banco de Amsterdã. O autor escocês não foi, porém, completamente original na sua proposta. Antes dele, já Jacob Vanderlint (1734) e, sobretudo, o encarregado da casa real da moeda, Joseph Harris, para o qual os bancos eram convenientes, desde que “issued no bills without an equivalent in real treasure”,[110] tinham defendido um coeficiente de reservas de 100 % para os negócios bancários.
Sir James Steuart, Adam Smith e o Banco de Amsterdã
Uma análise de grande interesse de um autor contemporâneo sobre o funcionamento do Banco de Amsterdã é a de Sir James Steuart no seu tratado publicado em 1767 com o título An Enquiry into the Principles of Political Economy: Being an Essay on the Science of Domestic Policy in Free Nations, em cujo capítulo 39 do volume II é apresentado um estudo sobre a “circulation of coin through the Bank of Amsterdam”. De acordo com Steuart: “every shilling written in the books of the bank is actually locked up, in coin, in the bank repositories”. O que não impede que:
Although, by the regulations of the bank, no coin can be issued to any person who demands it in consequence of his credit in bank; yet I have not the least doubt, but that both the credit written in the books of the bank, and the cash in the repositories which balances it, may suffer alternate augmentations and diminutions, according to the greater or less demand for bank money.[111]
Em todo o caso, Steuart aponta que as atividades do banco são conduzidas com o máximo segredo (“are conducted with greatest secrecy”) em consonância com a tradicional falta de transparência do sistema bancário, particularmente importante num caso como o do Banco de Amsterdã, cujos estatutos e funcionamento exigiam a manutenção contínua de um coeficiente de caixa de 100 por cento. Se Steuart estava certo e este coeficiente era por vezes, violado, era lógico que, nessas alturas, o Banco de Amsterdã tentasse ocultar tal fato.
Apesar de haver indícios de que já a partir de finais dos anos setenta do século XVIII o Banco de Amsterdã tinha começado a violar os princípios sobre os quais tinha sido fundado, ainda em 1776, Adam Smith, na obra A Riqueza das Nações, afirmava que:
The Bank of Amsterdam professes to lend out no part of what is deposited with it, but, for every guilder for which it gives credit in its books, to keep in its repositories the value of a guilder either in money or bullion. That it keeps in its repositories all the money or bullion for which there are receipts in force, for which it is at all times liable to be called upon, and which, in reality, is continually going from it and returning to it again, cannot well be doubted. . . At Amsterdam no point of faith is better established than that for every guilder, circulated as bank money, there is a correspondant guilder in gold or silver to be found in the treasure of the bank.[112]
Adam Smith continua, dizendo que a própria cidade garantia o funcionamento assim descrito do Banco de Amsterdã e que este era dirigido por quatro burgomestres que mudavam todos os anos. Cada burgomestre visitava os cofres, comparava o conteúdo em dinheiro vivo com as entradas de notas e depósitos registadas nos livros e declarava sob juramento, com grande solenidade, que ambos coincidiam. Adam Smith aponta ironicamente que “in that sober and religious country oaths are not yet disregarded”.[113] Termina o seu comentário acrescentando que todas esta práticas são suficientes para garantir a absoluta segurança dos depósitos no banco, o que foi demonstrado nas diferentes revoluções políticas que afetaram a Holanda, e nas quais nenhum partido político pôde acusar o anterior de infidelidade na administração do banco. Assim, como exemplo, Adam Smith refere que mesmo em 1672, altura em que o rei da França chegou até Utrecht e a Holanda estava em perigo de ser conquistada por uma potência estrangeira, o Banco de Amsterdã pagou todos os depósitos à vista reclamados, o que, como já afirmamos anteriormente, reforçou ainda de forma mais impressionante a confiança pública na absoluta solvência do banco.
Como prova adicional de que o Banco de Amsterdã mantinha um coeficiente de caixa de 100%, Adam Smith relata a anedota segundo a qual as moedas que tinham sido retiradas do mesmo apareciam danificadas pelo fogo que afetou o edifício do banco pouco depois de ter sido criado em 1609, o que mostrava que essas moedas tinham permanecido no banco por mais de cinquenta anos. Por fim, Smith, em perfeita consonância com a verdadeira natureza jurídica do contrato de depósito irregular, que exige que sejam os depositantes a pagar ao banco, indica que o rendimento do banco procedia dos direitos de custódia:
The City of Amsterdam derives a considerable revenue from the bank, besides what may be called the warehouse-rent above mentioned, each person, upon first opening an account with the bank, pays a fee of ten guilders, and for every new account three guilders three stivers; for every transfer two stivers; and if the transfer is for less than three hundred guilders, six stivers, in order to discourage the multiplicity of small transactions.[114]
Além desta, Adam Smith refere outras fontes de rendimento que já citamos, como as derivadas do câmbio de moeda e da gestão de ouro e prata em barra.
Infelizmente, na década de oitenta do século XVIII, o Banco de Amsterdã começou a violar de forma sistemática os princípios jurídicos sobre os quais se tinha fundado, ficando demonstrado que, a partir da quarta guerra anglo-holandesa, o coeficiente de caixa se reduziu substancialmente, dado que a cidade de Amsterdã exigiu ao banco o empréstimo de grande parte dos seus depósitos para fazer frente à crescente despesa pública. Assim, nessa altura, os depósitos acresciam a vinte milhões de florins, ao passo que o montante de moeda em caixa era de apenas quatro milhões, o que indica que, além de violar o princípio essencial de custódia sobre o qual se tinha fundado e que lhe permitiu viver mais de cento e setenta anos, o coeficiente de caixa tinha baixado de 100% para menos de 25%. Isto significou a perda definitiva do antigo prestígio do Banco de Amsterdã: a partir dessa data deu-se uma diminuição gradual dos depósitos, até que em 1820 não alcançavam sequer os cento e quarenta mil florins.[115] Com o desaparecimento do Banco de Amsterdã como o último banco com um coeficiente de caixa de 100%, desaparecem na história as tentativas de criar bancos baseados nos princípios gerais do Direito e a primazia financeira de Amsterdã foi substituída pelo sistema financeiro que se desenvolvera no Reino Unido, baseado na expansão de créditos, depósitos e papel-moeda, muito mais instável e insolvente.
Os Bancos da Suécia e da Inglaterra
O Banco de Amsterdã serviu de precedente ao Banco de Estocolmo (Riksbank), que começou a funcionar em 1656, dividido em dois departamentos: um dedicado à custódia de depósitos com 100% de coeficiente de caixa, seguindo o exemplo do Banco de Amsterdã, e outro dedicado aos empréstimos. Embora se pudesse supor que os departamentos fossem operar isoladamente, na prática, estavam separados apenas no papel e não tardou que o Banco de Estocolmo tivesse deixado de atuar de acordo com os princípios tradicionais do Banco de Amsterdã.[116] Este banco foi absorvido pelo estado sueco em 1668, convertendo-se, portanto, no primeiro banco estatal do mundo moderno.[117] Além de ter violado os princípios do depósito irregular por que se guiava o Banco de Amsterdã, o Banco de Estocolmo iniciou uma nova atividade fraudulenta de forma sistemática: a emissão de notas do banco ou certificados de depósito com um valor superior aos depósitos em dinheiro realmente recebidos. Surgem assim, pela primeira vez, as notas de banco e o “negócio” bancário consistente de emissão de notas com valor superior aos depósitos recebidos. Com o tempo, esta atividade viria a tornar-se o sistema bancário por excelência, especialmente nos séculos seguintes, durante os quais a emissão de notas de banco chegou a enganar os especialistas, que não se deram conta que os efeitos eram idênticos aos da expansão artificial do crédito e dos depósitos, que, como notou A. P. Usher, tinha constituído o núcleo do exercício dos bancos desde as origens históricas.
Por sua vez, o Banco de Inglaterra foi criado originalmente em 1694, tomando como modelo o Banco de Amsterdã, devido à grande influência que a Holanda tinha sobre a Inglaterra depois da ascensão da casa de Orange à coroa britânica. No entanto, este banco não foi criado com as mesmas garantias legais de custódia do Banco de Amsterdã e tinha como objetivo primordial, desde o princípio, ajudar o financiamento das despesas públicas. Por isso, embora o Banco de Inglaterra tenha pretendido acabar com os abusos dos banqueiros privados e do governo, que até então se tinham repetido sistematicamente na Inglaterra,[118] nunca conseguiu, na prática, alcançar esse objetivo. Assim, o Banco de Inglaterra, apesar do papel privilegiado como banco do governo, de ter o monopólio da responsabilidade limitada na Inglaterra e de ser a única pessoa jurídica com autorização para emitir notas, acabou por suspender os pagamentos em 1797, devido ao descumprimento sistemático da obrigação de custódia dos depósitos e à concessão de empréstimos e adiantamentos à fazenda pública com base nos depósitos e depois de várias vicissitudes curiosas, como foi a expansão inflacionista, conhecida como South Sea Bubble.[119] Foi também em 1797, ano em que o Banco foi proibido de devolver depósitos em dinheiro, declarou que o pagamento de impostos e dívidas deveria ser feito por notas emitidas pelo próprio banco e tentou limitar os adiantamentos e empréstimos ao governo.[120] A partir dessa data estamos nos primórdios do sistema bancário moderno, todo baseado na existência de um banco central como prestamista de última instância. No capítulo VIII, vamos analisar detidamente a razão por que surgem os bancos centrais, o papel que servem e a impossibilidade teórica de o cumprirem, bem como a polêmica entre banca central e banca livre e a sua influência no desenvolvimento da doutrina sobre a teoria monetária, bancária e dos ciclos econômicos. Por ora, resta-nos, no âmbito do nosso estudo sobre a violação histórica do princípio de custódia no contrato de depósito monetário irregular, fazer uma referência rápida ao desenvolvimento do sistema bancário e do papel-moeda na França do século XVIII.
John Law e o sistema bancário da França no século XVIII
A história do dinheiro e dos negócios bancários na França do século XVIII está indissoluvelmente ligada ao “sistema” que o escocês John Law concebeu e pôs em funcionamento depois de convencer o regente Filipe de Orleans de que o banco ideal era aquele que usasse o dinheiro lá depositado, uma vez que, desta forma aumentaria a quantidade de dinheiro em circulação e se “estimularia” o desenvolvimento da economia. Assim, a criação do sistema de Law e, em geral, as diferentes medidas intervencionistas na economia, têm a sua origem em três fatores distintos mas complementares. Em primeiro lugar, o descumprimento dos princípios tradicionais do Direito e da moral, e neste caso particular, o princípio, no contrato de depósito monetário irregular, de que é indispensável manter sempre a custódia de 100 %. Em segundo lugar, um erro na análise teórica parece justificar o descumprimento dos princípios jurídicos para alcançar objetivos aparentemente benéficos de forma rápida. Em terceiro lugar, o fato de haver sempre certos agentes que percebem poder obter grandes lucros como consequência das reformas propostas. A combinação desses três fatores permitiu que um sonhador político como Law pudesse pôr em prática o seu “sistema bancário” na primeira metade do século XVIII na França. De fato, depois de ganhar a confiança do público, o banco começou a emitir notas em quantidade muito superior aos depósitos que possuía e a conceder créditos com base nos depósitos. A quantidade de notas em circulação aumentou muito rapidamente, o que, logicamente, deu origem a um significativo boom artificial na economia. Em 1718, o banco passou a ser estatal, convertendo-se em banco real, e começou a aumentar ainda mais a emissão de créditos e de notas, o que teve especial incidência especulativa no mercado da bolsa em geral e, em particular, nas ações da companhia comercial do ocidente, conhecida por Companhia Mississípi, que pretendia desenvolver o comércio e a colonização nesta colônia francesa na América. Em 1720, ficou claro que a bolha financeira que tinha sido criada era tremenda. Law tentou desesperadamente manter o preço das ações da companhia do Mississípi e o valor das notas do banco: fez a fusão da companhia comercial e do banco, as ações da companhia comercial foram declaradas moeda com curso legal, as moedas perderam parte do peso numa tentativa de restabelecer a equivalência com as notas, etc. No entanto, todas as medidas tomadas foram inúteis e a pirâmide inflacionária caiu como um castelo de cartas, levando à ruína não só o banco, mas também muitos franceses que tinham confiado nele e nas ações da companhia comercial. As perdas foram tão elevadas e o sofrimento que geraram tão grande, que durante mais de cem anos na França era considerado de mau gosto pronunciar a palavra “banco”, que chegou a ser utilizada como sinônimo de “fraude”.[121] Os danos da inflação haveriam de voltar a assolar a França poucas décadas depois, com o advento do grave caos monetário do período revolucionário e a emissão descontrolada de assignats que ocorreu nessa ocasião. Todos estes fenômenos ficaram gravados na memória coletiva dos franceses, que ainda hoje estão muito cientes dos grandes perigos da inflação do papel-moeda e que mantêm o costume familiar de guardar uma quantidade apreciável de ouro, em moedas ou lingotes (de fato, pode calcular-se que a França, juntamente com a Índia, é um dos países em que particulares mantêm significativo estoque de ouro).
Apesar de tudo, e não obstante a desafortunada experiência bancária, John Law deu algumas contribuições para a teoria monetária, e, embora não possamos aceitar as teses inflacionárias e protokeynesianas, é preciso reconhecer, como fez Carl Menger, que Law foi o primeiro a enunciar uma teoria correta sobre a origem evolutiva e espontânea da moeda.
Ricardo de Cantillon e a violação fraudulenta dos contratos de depósito irregular
É curioso verificar que três dos mais notáveis teóricos monetários do século XVIII do início do século XIX, John Law, Ricardo de Cantillon[122] e Henry Thornton, foram banqueiros. Todos faliram.[123] Apenas Cantillon saiu relativamente ileso, não só por ter sabido retirar-se a tempo das arriscadas especulações, mas também pelos grandes lucros que obteve fraudulentamente ao violar a obrigação de custódia dos ativos dos clientes.
De fato, sabe-se que Cantillon violou o contrato de depósito irregular, não de dinheiro, mas de títulos da sociedade comercial do Mississípi fundada por John Law, organizando o seguinte esquema fraudulento: concedeu empréstimos vultuosos para que os clientes comprassem ações da dita sociedade, com a condição de que ficassem depositados no banco de Cantillon como garantia em forma de depósito irregular, isto é, de títulos fungíveis e indistinguíveis. Mais tarde, Cantillon, sem conhecimento dos clientes, apropriou-se indevidamente das ações depositadas e vendeu-as quando achou que tinham um preço de mercado elevado, apropriando-se do produto da venda. Depois de as ações terem perdido praticamente todo o valor, Cantillon voltou a comprá-las por uma fração do preço antigo e repôs o depósito, obtendo assim lucros elevadíssimos. Por fim, pediu o pagamento dos empréstimos que tinha feito aos clientes. Estes não foram capazes de devolver os empréstimos, uma vez que a garantia que tinham no banco já não valia praticamente nada. Estas operações fraudulentas levaram a que fossem interpostos múltiplos processos criminais e ações civis contra Cantillon, que, depois de ser detido e encarcerado por um breve período, foi obrigado a abandonar precipitadamente a França e a refugiar-se na Inglaterra.
Em sua defesa, Cantillon utilizou um argumento muito usado ao longo da Idade Média pelos autores que sempre se empenharam em confundir o depósito irregular com o empréstimo. Com efeito, Cantillon tentou defender-se dizendo que as ações depositadas no seu banco como bens fungíveis e não numerados não constituíam, na realidade, um verdadeiro depósito, mas uma operação de crédito que transferia a plena propriedade e disponibilidade das ações para o banqueiro. Por isso, Cantillon considerava as operações que realizou perfeitamente “legítimas”. No entanto, sabemos que o argumento jurídico de Cantillon não tem fundamento e que, ainda que o depósito irregular de títulos tenha sido considerado um depósito irregular de bens fungíveis, a obrigação de custódia e posse contínua de 100% dos mesmos permanecia. Assim, quando vendeu os títulos em prejuízo dos clientes, Cantillon cometeu um evidente ato criminoso de apropriação indébita. F.A. Hayek explica a forma como Cantillon tentou justificar a sua operação fraudulenta:
His point of view was, as he later explained, that the shares given to him, since their numbers had not been registered, were not a genuine deposit, but rather—as one would say today—a block deposit so that none of his customers had claim to specific securities. The firm actually made an extraordinary profit in this way, since it could buy back at reduced prices the shares sold at high prices, and meanwhile the capital, for which they were charging high interest, lost nothing at all but rather was saved and invested in pounds. When Cantillon, who had partially made these advances in his own name, asked for repayments of the loans from the speculators, who had suffered great losses, and finally took them to court, the latter demanded that the profits obtained by Cantillon and the firm from their shares be credited against these advances. They in turn took Cantillon to court in London and Paris, charging fraud and usury. By presenting to the courts correspondence between Cantillon and the firm, they averred that the entire transaction was carried out under Cantillon’s immediate direction and that he therefore bore personal responsibility.[124]
No próximo capítulo teremos a oportunidade de explicar que a violação do depósito monetário irregular e a violação do depósito irregular de valores são igualmente viciosas do ponto de vista jurídico, dando lugar a efeitos econômicos e sociais muito parecidos, como se provou quando se deu, já no século XX, a falência do Banco de Barcelona e de outros bancos catalães que praticavam de forma sistemática a operação de depósito irregular de títulos, sem manter em custódia 100% dos mesmos,[125] e fazendo todo o tipo de especulações em benefício próprio e em prejuízo dos seus verdadeiros titulares, tal como Cantillon tinha feito dois séculos antes. Ricardo de Cantillon foi brutalmente assassinado na sua casa de Londres em 1734, depois de 12 anos de contencioso, duas detenções e da constante ameaça de prisão. Embora a versão oficial seja a de que foi assassinado, por um ex-cozinheiro que o matou para o roubar, e que o corpo foi queimado até ficar irreconhecível, também pode ser que o seu assassinato tenha sido instigado por algum dos muitos credores, e até, como sugere o mais recente biógrafo, A. E. Murphy, que tudo tenha sido uma montagem do próprio Cantillon para poder fugir e evitar mais anos de processos e ações criminais.[126]
[1] Referimo-nos, no texto, ao lucro mais evidente que num primeiro momento foi a causa das apropriações indevidas cometidas pelos banqueiros. Mais adiante, no capítulo IV, verificaremos que muito maior do que o lucro indicado, é o que se gera como consequência do poder que os banqueiros têm de emitir dinheiro ou criar empréstimos e depósitos a partir do nada. Estas operações geraram um lucro extraordinariamente maior, mas que, pelo caráter abstrato do processo de geração não chegou a ser completamente entendido nem pelos próprios banqueiros até fases muito posteriores do processo de evolução financeira. Porém, o fato de não terem compreendido, mas apenas intuído, este segundo tipo de lucro não quer dizer que não tenham tirado proveito dele. Em suma, no próximo capítulo explicaremos que a violação, por parte dos banqueiros, dos princípios do Direito tradicional, com o recurso ao sistema bancário de reserva fracionária, faz com que seja possível criar créditos a partir do nada, cuja devolução se exige depois em dinheiro vivo (e com juros!). Trata-se, pois, de uma fonte de financiamento constante e privilegiada em forma de depósitos que os banqueiros criam do nada e utilizam permanentemente para os próprios interesses.
[2] Luis Saravia de la Calle, Instrucción de mercaderes, Pedro de Castro, Medina del Campo 1544; reeditado na Colección de Joyas Bibliográficas, Madrid 1949, capítulo VIII, p. 179.
[3] O arqueólogo Lenor Mant descobriu nas ruínas da Babilônia uma tábua de argila com uma inscrição que atesta o tráfego mercantil interurbano e a utilização de meios de pagamento de índole comercial e financeira. A tábua refere um tal de Ardu-Nama (o sacador da cidade de Ur) a mandar a um tal de Marduk-Bal-at-Irib (o sacado), da cidade de Orcoé, pagar por sua conta a soma de quatro minas e quinze ciclos de prata a Bel-Abal-Iddin num prazo determinado. Este documento tem data de 14 Arakhsamna do ano 2 do reinado de Nabonaid. Por sua vez, o investigador Hilprecht descobriu, nas ruínas da cidade de Nippur, um total de 730 tábuas de argila cozida com inscrições que supostamente pertenceram aos arquivos de um banco que havia na cidade em 400 a.C. chamado Nurashu e Filhos (ver “Origen y desenvolvimiento histórico de los bancos”, em Enciclopedia universal ilustrada europeo-americana, Editorial Espasa-Calpe, tomo VII, Madrid 1979, p. 477). Já Joaquim Trigo, além de nos dar as informações acima, refere ainda que, no ano de 3300 a.C., o templo de Uruk era proprietário das terras que explorava e receptor de oferendas e depósitos, emprestando a agricultores e a mercadores de gado e cereais e se convertendo, assim, no primeiro estabelecimento bancário da história. No Museu Britânico, encontram-se também tábuas com registos de operações financeiras do banco Filhos de Egibi, cuja sequência mostra que, já na época dos assírios, havia uma autêntica dinastia financeira que se manteve à frente da entidade durante mais de 180 anos. Por sua vez, o código Hammurabi facilitou a transmissão da propriedade, regulando com minúcia os direitos relacionados com a mesma e a atividade mercantil, estabelecendo limites para os tipos de juros e organizando até, empréstimos públicos a 12,5%. Foram também regulados os acordos de parceria e os registos de contabilidade das operações. Da mesma forma, no código Manú, da Índia, são feitas referências a operações de tipo bancário e financeiro. Em geral, pode dizer-se que há resquícios de documentação instrumental de operações financeiras feitas entre 2300 e 2100 a.C., embora a proliferação do negócio “bancário” comece apenas entre 730 e 540 a.C., altura em que as dinastias assíria e neobabilônica permitem um tráfego comercial seguro que dá origem a bancos especializados de acordo com o tipo de comércio com que operam. Esta atividade estende-se ainda ao Egito, e, daí ao mundo helênico (Joaquín Trigo Portela, “Historia de la banca”, cap. III da Enciclopedia práctica de la banca, tomo VI, Editorial Planeta, Barcelona 1989, especialmente as pp. 234-237).
[4] Raymond de Roover assinala que o termo atual banqueiro tem origem em Florença, onde os banqueiros eram chamados de banchieri ou tavolieri, porque desenvolviam a sua atividade sentados atrás de um banco ou de uma mesa (tavola). Era também esta a terminologia usada na antiga Grécia, onde os banqueiros eram chamados de trapezitei, uma vez que desenvolviam os negócios numa trapeza, ou mesa. É por isso que o discurso de Isócrates “Sobre um assunto bancário” é tradicionalmente conhecido pelo nome de Trapezitica. Ver: Raymond de Roover, The Rise and Decline of the Medici Bank, 1397-1494, Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 1963, p. 15. Por sua vez, o grande Diego de Covarrubias e Leyva nota que “os gregos chamavam collybus à retribuição que se dá ao cambista pelo câmbio e, logo, collybistas aos cambistas. Também foram chamados de numulários e argentários e ainda de trapezitas, mensulários ou banqueiros, porque não só se dedicavam ao câmbio, como exerciam um negócio mais lucrativo: recebiam dinheiro para guardar e emprestavam, com juros, o dinheiro próprio e o alheio”. Ver o capítulo VII da obra Veterum collatio numismatum, publicada nas Omnia opera em Salamanca em 1577.
[5] Isócrates era um dos macróbioi da antiguidade e viveu quase 100 anos (entre 436 e 338 a.C.). Viveu, pois, desde os últimos anos de paz da Atenas triunfante sobre os persas até à guerra do Peloponeso, as sucessivas hegemonias espartana e tebana e a expansão macedônica que terminou com a batalha de Queronea, na qual Filipe II se impôs à Liga Helênica no ano de falecimento de Isócrates. O pai de Isócrates, Teodoro, era um cidadão de classe média que tinha enriquecido graças à sua fábrica de flautas, o que permitiu dar aos filhos uma educação esmerada. Segundo consta, Terámines, Górgias e, sobretudo, Sócrates foram mestres diretos de Isócrates (há uma passagem de Fedro em que Platão põe na boca de Sócrates um elogio, aparentemente irônico, prevendo-lhe um grande futuro). Isócrates dedicou-se à logografia, ou seja, a escrever discursos jurídico-forenses para outros (que reclamavam ou defendiam os seus direitos) e mais tarde abriu uma escola de Retórica em Atenas. Para mais informação, pode consultar-se a “Introducción General” de Juan Manuel Guzmán Hermida aos Discursos, vol.1, Biblioteca Clásica Gredos, Madrid 1979, pp. 7-43.
[6] Isócrates, “Sobre un asunto bancario”, em Discursos I, ob. cit., p. 112.
[7] Mais de 2200 anos depois de Isócrates, o senador da Pensilvânia, Condy Raguet, reconhecia também os banqueiros tinham um grande poder e que o usavam para intimidar os inimigos e fazer os possíveis para desencorajar os depositantes retirarem os depósitos com a vã esperança de, entre outras, evitar a crise. Condy Raguet conclui que a pressão era quase insuportável e que: “an independent man, who was neither a stockholder or a debtor who would have ventured to compel the banks to do justice, would have been persecuted as an enemy of society […]” Ver a carta de Raguet a Ricardo datada de 18 de Abril de 1821, publicada em David Ricardo, Minor Papers on the Currency Question 1805–1823, Jacob Hollander (ed.), The Johns Hopkins University Press, Baltimore, 1932, pp. 199-201. A mesma ideia tinha já sido veiculada quase três séculos antes por Saravia de la Calle, que, lembrando as dificuldades que os banqueiros apresentam aos depositantes, para que estes não retirem o dinheiro, e que poucos atreviam a contestar, refere as “outras mil humilhações que fazeis aos que vão levantar o dinheiro, detendo-os e fazendo-os gastar dinheiro à espera e ameaçando-os que lhes pagareis em moeda fraca. E assim os forçais a que vos deem o que quereis. Encontrastes esta forma de roubar, porque quando tentam levantar o dinheiro não ousam pedir dinheiro vivo, antes deixam o dinheiro convosco para recolherdes lucros maiores e mais infernais.” Instrucción de mercaderes, ob. cit. p.183. Por último, também Marx se refere ao temor reverencial que os bancos provocam em toda a gente, usando as irônicas palavras de G. M. Bell: “O receio do franzir de sobrancelhas do banqueiro tem mais influência nele do que as prédicas morais dos amigos; treme com a possibilidade de ser suspeito de fraude ou de incorrer no mais leve falso testemunho, por medo de criar suspeitas e, consequentemente, de que o banco lhe restrinja ou retire o crédito. O conselho do banqueiro é mais importante que o do confessor.” Karl Marx, El capital, vol. III, Fondo de Cultura Económica, México 1973, p. 511 (itálico acrescentado).
[8] Isócrates, “Sobre un asunto bancario”, em Discursos I, ob. cit., pp. 114 e 117.
[9] Os gregos faziam a distinção entre dinheiro depositado à vista (phanerà ousía) e os depósitos invisíveis (aphanés ousía). Esta diferença, mais do que denotar se a moeda estava ou não continuamente disponível para o depositante (devia estar em ambos os casos), parecia referir-se ao fato de o depósito e o montante ser ou não publicamente conhecido. Caso fosse, a moeda podia ser objeto de embargos ou confiscos, sobretudo de origem fiscal.
[10] A unidade monetária ‘estáter’ ou ‘státer’ correspondia a 4 dracmas ou 14,4g de prata. (N. R.)
[11] Isócrates, “Sobre un asunto bancario”, em Discursos I, ob. cit., p. 116.
[12] A unidade monetária ‘talento’ correspondia a 6.000 dracmas ou denários ou a 21,6 kg de prata. (N. R.)
[13] Demóstenes, Discursos privados I, Biblioteca Clásica Gredos, Editorial Gredos, Madrid 1983, pp. 157-180. As citações do texto principal encontram-se respectivamente nas pp. 162, 164 e 176 da referida edição. Sobre a falência dos bancos gregos, deve ser consultado Edward E. Cohen, Athenian Economy and Society: A Banking Perspective, Princeton University Press, Princeton, Nova Jérsia 1992, pp. 215-224. Cohen parece não entender, porém, de que forma as expansões de crédito dos bancos provocavam as crises econômicas no parece que afetavam a solvência.
[14] Demóstenes, Discursos privados II, Biblioteca Clásica Gredos, Editorial Gredos, Madrid 1983, pp. 79-98. A citação do texto principal encontra-se na p. 86.
[15] Demóstenes, Discursos privados II, ob. cit., pp. 99-120. A citação literal está na página 102.
[16] G.J. Costouros, “Development of Banking and Related Book-Keeping Techniques in Ancient Greece”, International Journal of Accounting, 7/2, 1973, pp. 75-81.
[17] Demóstenes, ob. cit., p. 119.
[18] Demóstenes, ob. cit., p. 112.
[19] Demóstenes, ob. cit., p. 120.
[20] Referindo-se às instituições financeiras em Atenas, S. C. Todd afirma que “banks were not seen as obvious sources of credit … it is striking that out of hundreds of attested loans in the sources only eleven are borrowed from bankers; and there is indeed no evidence that a depositor could normally expect to receive interest from his bank.” S.C. Todd, The Shape of Athenian Law, Clarendon Press, Oxford 1993, p. 251. Por seu lado, Bogaert confirma que os bancos não pagavam juros pelos depósitos à vista, cobrando até uma comissão pela guarda e custódia: “Les dépôts de paiement pouvaient donc avoir différentes formes. Ce qu’ils ont en commun est l’absence d’intérêts. Dans aucun des cas précités nous n’en avons trouvé des traces. Il est même possible que certains banquiers aient demandé une commission pour la tenue de comptes de dépôt ou pour l’exécution des mandats'”. Raymond Bogaert, Banques et banquiers dans les cités grecques, A.W. Sijthoff, Leyden, Holanda, 1968, p. 336. Bogaert reconhece ainda que não existe qualquer indicação de que em Atenas se tenha mantido um determinado coeficiente de reservas fracionárias (“Nous ne possédons malheureusement aucune indication concernant l’encaisse d’unebanque antique”, p. 364), embora saibamos que diversos banqueiros, incluindo Pisão, atuaram fraudulentamente e não mantiveram um coeficiente de 100%, e que, em muitas ocasiões, não puderam pagar e faliram.
[21] “The money supply at Athens can thus be seen to consist of bank liabilities (‘deposits’) and cash in circulation. The amount of increase in the bank portion of this moneysupply will depend on the volume and velocity of bank loans, the percentage of these loan funds immediately or ultimately redeposited in the trapezai, and the time period and volatility of deposits.” Edward E. Cohen, Athenian Economy and Society: A Banking Perspective, ob. cit., p. 13.
[22] Raymond Bogaert, Banques et banquiers dans les cités grecques, ob. cit., pp. 391-393.
[23] Ibidem, p. 391
[24] Joaquín Trigo Portela, “Historia de la banca”, ob. cit., p. 238. Raymond Bogaert, por sua vez, estima em quatro vezes mais os rendimentos anuais de Passio no final da sua vida, isto é, em 9 talentos: “Cela donne en tout pour environ 9 talents de revenus annuels. On comprend que le banquier ait pu constituer en peu d’années un important patrimonie, faire des dons généreux à la cité et faire les frais de cinq triérchies.” Raymond Bogaert, Banques et banquiers dans les cités grecques, A.W. Sijthoff, Leyden 1968, p. 367 e também Edward E. Cohen, Athenian Economy and Society: A Banking Perspective, ob. cit., p. 67.
[25] M. Rostovtzeff, Historia social y econômica del mundo helenístico, traduzido do inglês por Francisco José Presedo Velo, Editorial Espasa Calpe, Madrid 1967, tomo I, p. 392.
[26] M. Rostovtzeff, Historia social y económica del mundo helenístico, ob. cit., vol. II, pp.
1398-1401.
[27] M. Rostovtzeff, Historia social y econômica del Imperio Romano, traduzido do inglês por Luis López-Ballesteros, Espasa Calpe, Madrid 1981, 4.ª edição, tomo I, p. 382.
[28] Assim, por exemplo, em Los cautivos de Plauto podemos ler: “Subducam ratunculam quantillum argenti mihi apud trapezitam sied”, citado por Knut Wicksell nas suas Lectures on Political Economy, vol. II, Routledge & Kegan Paul, Londres 1950, p. 73. Mercedes González-Haba traduz este excerto para castelhano da seguinte forma: “Voy adentro, que tengo que echar unas cuentecillas, a ver cuánto dinero tengo en el banquero” (“Vou entrar, que tenho de fazer umas continhas, para ver quanto dinheiro tenho no banco”). Comedias de Plauto, vol. I, Biblioteca Clásica Gredos, Madrid 1992, p. 296.
[29] Joaquín Trigo Portela, “Historia de la banca”, ob. cit., p. 239.
[30] O fato extraordinário de ter existido um papa banqueiro, e depois santo, justificaria que Calisto I fosse considerado o patrono dos banqueiros, não fosse o mau exemplo que deu na sistema bancário, ao falir e defraudar a confiança que nele tinha depositado muitos dos irmãos cristãos. O patrono é São Carlos Borromeo (1538-1584), arcebispo de Milão e sobrinho e administrador do papa Juan Ángel de Médicis (Pio IV), o patrono dos bancos, cujo dia se celebra a 4 de Novembro.
[31] Hipólito, Hippolytus Wercke, vol. 2, “Refutatio omnium haeresium”, ed. P. Wendland, Leipzig, 1916.
[32] Juan de Churruca, “La quiebra de la banca del cristiano Calisto (c.a. 185-190)”, Seminarios complutenses de derecho romano, Fevereiro-Maio 1991, Madrid 1992, pp. 61-86.
[33] “Ginesthe trapezitai dókimoi”. Ver “Orígenes y movimiento histórico de los bancos”, em Enciclopedia universal ilustrada europeo-americana, Espasa Calpe, Madrid 1973, tomo VII, ob. cit. p. 478.
[34] Ver Manuel J. García-Garrido, “La sociedad de los banqueros (societas argentaria)”, in Studi in honore di Arnaldo Biscardi, vol. III, Milão 1988, especialmente as pp. 380-383. A responsabilidade ilimitada dos sócios das sociedades bancárias no Direito Romano encontra-se estabelecida, entre outros lugares, no texto que já citamos de Ulpiano (Digesto, 16, 3, 7, 2-3) e em outro de Papiniano (Digesto, 16, 3, 8), em que se estabelece que os banqueiros fraudulentos respondem não só com o “dinheiro depositado que se encontrou nos bens do banqueiro, mas também com todos os bens do defraudador”. (Cuerpo de derecho civil romano, ob. cit., vol. 1, p. 837). Atualmente, houve autores que propuseram a reintrodução do princípio de responsabilidade ilimitada dos banqueiros, com o objetivo de incentivar um comportamento prudente. Contudo, este requisito não é condição necessária nem suficiente para atingir um sistema bancário solvente. Não é condição necessária, uma vez que negócios bancários com um coeficiente de caixa de 100% eliminaria as crises bancárias e as recessões econômicas de forma mais eficaz. Tão-pouco é suficiente, dado que, apesar de os acionistas responderam ilimitadamente pelas suas dívidas, se atuarem com um coeficiente de reservas fracionadas, não serão capazes de evitar que surjam crises e recessões econômicas de modo recorrente.
[35] Outra característica interessante da vida econômica do Império Romano é a sobrevivência do sistema bancário em alguns grandes templos com influência significativa, como o de Delos e Delfos, o de Artemisa em Sardes e, sobretudo, o templo de Jerusalém, que tradicionalmente era um lugar onde os hebreus, ricos e pobres, depositavam o seu dinheiro. É neste contexto que deve entender-se a exclusão dos cambistas do templo de Jerusalém tal como é descrita no Evangelho segundo São Mateus, 21, 12-16, onde se pode ler que Jesus, ao entrar no templo, “virou as mesas dos cambistas e os postos dos vendedores de pombas. E lhes disse: Está escrito: A minha casa será chamada casa de oração. Mas vós estais a fazer dela uma cova de bandidos!” Em S. Marcos, 11, 15-17 pode ler-se um texto idêntico. O Evangelho de S. João, 2, 14, 16 é um pouco mais explícito, uma vez que indica que Jesus, depois de encontrar “no templo os vendedores de bois, ovelhas e pombas, e os cambistas nos seus lugares, fez um chicote de cordas, mandou-os a todos para fora do templo e espalhou o dinheiro dos cambistas e virou as suas mesas”. A tradução destas passagens evangélicas não é muito feliz, tal como a tradução do Digesto de Garcia del Corral. Em vez do termo “cambistas” devia ter sido utilizado o termo “banqueiros”, mais em consonância com o sentido literal da edição vulgata latina, que refere expressamente, no Evangelho de São Mateus, que vemos: “Et intravit Iesus in templum et eiiciebat omnes vendentes et ementes in templo, et mensas numulariorum, et cathedras vendentium columbas evertit: et dicit eis: Scriptum est: Domus meã domus orationis vocabitur: vos autem fecistis illam speluncam latronum.” Ver a Biblia Sacra iuxta Vulgatam Clementinam, Alberto Colunga y Laurencio Turrado (eds.), Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid 1994, San Mateo, 21, 12-13, p. 982. Estes textos evangélicos confirmam que o templo de Jerusalém funcionava como um verdadeiro banco público, que recebia depósitos de hebreus ricos e pobres. A admoestação de Jesus Cristo poderia ser entendida como um protesto contra os abusos advindos de uma prática ilegítima (abusos consistentes, como já sabemos, no uso do dinheiro que lhes era depositado para custódia). Além disso, as passagens bíblicas ilustram muito bem a simbiose que já na altura havia entre o sistema bancário e a autoridade pública pois tanto os sumos sacerdotes como os escribas ficaram indignados com o comportamento de Jesus (todos os itálicos foram, claro, acrescentados). Ver La Biblia de Jerusalén, Editorial Desclée de Brouwer, Bilbao 1970, pp. 1686, 1724, 1777 y 1794. Sobre a importância do templo de Jerusalém como um banco de depósito para os hebreus, pode consultar-se M. Rostovtzeff, Historia social y econômica del Imperio Romano, ob. cit., tomo I, p. 380.
[36] Jean Lambert, na sua obra Historia Econômica (de los orígenes a 1789), tradução espanhola de Armando Sáez, Editorial Vicens-Vives, Barcelona 1971, p. 58, nota que “a praescriptio equivalia ao atual cheque. Um capitalista encarregava um de fazer o pagamento de um empréstimo em seu nome e o banco fá-lo-ia depois da apresentação de uma ordem de pagamento chamada praescriptio.”
[37] Ver, por exemplo, a nova constituição CXXVI sobre “Os contratos dos banqueiros”, o édito VII (“Práticas e disposições sobre os contratos dos banqueiros”) e o édito IX “Dos contratos dos banqueiros”, todos eles do imperador Justiniano e incluídos nas Novelas (ver Cuerpo de derecho civil romano, ob. cit., tomo VI, pp. 479-483, 539-544 y 547-551).
[38] Um resumo magnífico das causas da queda do Império Romano pode ser encontrado em Ludwig von Mises, La acción humana: tratado de economía, 7.ª edição com um “Estúdio Preliminar” de Jesús Huerta de Soto, Unión Editorial, Madrid 2004, pp. 905-908.
[39] Ver, por exemplo, o livro de J. Piquet, Des banquiers au Moyen Age: les Templiers, Étude de leurs opérations financières, Paris 1939, citado por Henri Pirenne na sua Historia económica y social de la Edad Media, Fondo de Cultura Económica, Madrid 1974, especialmente as pp. 102 e 226. Piquet acredita ver neste estudo um embrião de contabilidade por partidas dobradas e até uma forma primitiva de cheque nos registos feitos pelos Templários. No entanto, aparentemente, os Templários, quando muito, foram apenas predecessores diretos da contabilidade por partidas duplas, mais tarde formalizada pelo monge veneziano Luca Pacioli em 1494. Existem ocorrências anteriores de registos num banco de Pisa, claramente por partida dupla e datadas de 1336, bem como num dos Masari, coletores de impostos em Gênova, em 1340. O livro de contabilidade mais antigo de que se tem notícia é de 1211 e vem de um banco de Florença. Ver G.A. Lee, “The Oldest European Account Book: A Florentine Bank Ledger of 1211”, em Accounting History: Some British Contributions, R.H. Parker y B.S. Yamey (eds.), Clarendon Press, Oxford 1994, pp. 160-196.
[40] “Pelo menos teoricamente, (na Idade Média) os primeiros bancos de depósito não eram bancos de desconto nem de empréstimo. Não criavam dinheiro; antes usavam um sistema de reservas de 100 %, tal como o que alguns monetaristas da atualidade queriam ver ser estabelecido. Os créditos a descoberto (saldos devedores) eram proibidos. Na prática, as normas mostraram ser difíceis de manter, especialmente em casos de emergência pública. A Taula de Valência esteve quase a ponto de utilizar o tesouro nela depositado para comprar trigo para a cidade em 1567. Foram feitos adiantamentos ilegais aos funcionários da cidade em 1590 e, em várias ocasiões, à própria cidade.” Charles P. Kindleberger, A Financial History of Western Europe, 2nd ed., Oxford University Press, Oxford 1993, p. 49
[41] Durante toda a Idade Média, e sobretudo na Península Ibérica, o direito islâmico condenou também a utilização para benefício próprio do dinheiro recebido em depósito irregular. Ver, por exemplo, o Compendio de derecho islámico (Risála, Fí-l-Fiqh), do jurista hispano-árabe do século X Ibn Abí Zayd, chamado Al-Qayrawání, publicado com o apoio de Jesús Riosalido pela Editorial Trotta, Madrid, 1993. Na página 30 encontramos o princípio jurídico segundo o qual “quem usa dinheiro de depósitos para negociar realiza um ato repreensível, mas o lucro será seu caso se trate de dinheiro vivo” (ver também as pp. 214-215, onde se indica que, no caso de um verdadeiro empréstimo ou mútuo, o prestamista não pode retirar o empréstimo quando entender, mas só depois do prazo acordado, como diz Malik; no que diz respeito ao depósito de dinheiro, vemos que a figura existente no direito islâmico corresponde à figura do depósito irregular romano).
[42] Abbott Payson Usher foi professor de Economia na Universidade de Harvard e publicou a conhecidíssima obra The Early History of Deposit Banking in Mediterranean Europe em Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 1943.
[43] Ver A. P. Usher, The Early History of Deposit Banking in Mediterranean Europe, ob. cit., pp. 9 y 192. A tradução portuguesa destas passagens poderia ser a seguinte “a história dos bancos de emissão obscureceu, até bem pouco tempo, a importância dos bancos de depósito em todas as suas formas, primitivas ou modernas”; e “a procura de papel-moeda e o interesse teórico suscitado pelo problema ajudaram muito a incentivar mal-entendidos sobre a importância relativa das notas e dos depósitos. Tal como os diplomatas franceses “descobriram” os Pireneus na crise diplomática de século XVIII, também os teóricos dos bancos “descobriram” os depósitos em meados do século dezenove.”
[44] “In all these Genovese registers there is also a series of instruments in which the money received is explicitly described as a loan (mutuum).” A. P. Usher, The Early History of Deposit Banking in Mediterranean Europe, ob. cit., p. 63.
[45] “Against these liabilities, the Bank of Deposit held reserves in specie amounting to 29 percent of the total. Using the phraseology of the present time, the bank was capable of extending credit in the ratio of 3.3 times the reserves on hand.” Ver A. P. Usher, The Early History of Deposit Banking in Mediterranean Europe, ob. cit., p. 181. No entanto, não estamos de acordo com a afirmação feita por Usher imediatamente depois, segundo a qual os bancos privados que também operavam em Barcelona deviam dispor de um coeficiente de reservas muito mais baixo. Na nossa opinião, a realidade devia ser o oposto, uma vez que, ao serem privados e mais pequenos, não tinham tanta confiança do público como o banco municipal de Barcelona e, encontrando-se num regime de pura concorrência, o seu coeficiente de reserva devia ser mais elevado (ver as pp. 181-182 do livro de Usher). Em todo o caso, Usher conclui que: “there was considerable centralization of clearance in the early period and extensive credit creation. In the absence of comprehensive statistical records, we have scarcely any basis for an estimate of the quantitative importance of credit in the medieval and early modern periods, though the implications of our material suggest an extensive use of credit purchasing power.” Ver A. P. Usher, ob. cit., pp. 8-9. Os trabalhos de C. Cipolla que mencionaremos mais adiante confirmam plenamente a hipótese que constitui o argumento essencial do livro de Usher. No capítulo IV, estudaremos in extenso a teoria dos multiplicadores bancários.
[46] Na Catalunha do século XV era permitido aos bancos trabalharem sem avais, embora aqueles que não os apresentassem não pudessem pôr a toalha na sua mesa de cambistas, o que permitia ao público identificar imediatamente quais os que tinham mais e os que tinham menos solvência no exercício da sua atividade. Ver A. P. Usher, ob. cit., p. 17.
[47] Marjorie Grice-Hutchinson, El pensamiento econômico en España (1177-1740), tradução espanhola de Carlos Rochar e revisão de Joaquín Sempere, Editorial Crítica, Barcelona, 1982, cap. I, “El encubrimiento de la usura”, pp. 13-80.
[48] Até ao século XVIII, a maior parte da atividade financeira estava nas mãos dos judeus e de outros não-cristãos, normalmente do Oriente Próximo. Do ponto de vista cristão não havia salvação possível para estes infiéis, e as proibições econômicas da Igreja não se aplicavam a eles […] O ódio aos judeus teve origem, em parte, nas pessoas que ficavam ressentidas com tais taxas de juro, ao passo que os monarcas e príncipes, embora menos ressentidos, obtinham proveitos da exploração deste grupo mais ou menos desprotegido. (Harry Elmer Barnes, An Economic History of the Western World, Harcourt, Brace and Company, Nova Iorque 1940, pp. 192–93.
[49] Esta é precisamente a tese defendida pelo padre Bernard W. Dempsey S.J., que, no seu notável livro Interest and Usury (American Council of Public Affairs, Washington D.C., 1943) conclui que, embora se aceite a legitimidade dos juros, o sistema bancário de reservas fracionárias pode ser considerado uma “usura institucional” especialmente lesiva para a sociedade, uma vez que gera repetidamente booms artificiais, crises bancárias e recessões econômicas (p. 228).
[50] Uma lista clara e concisa de procedimentos usados para dissimular sistematicamente os contratos de empréstimo e a cobrança de juros pode ser encontrada em Jean Imbert, Historia económica (de los orígenes a 1789), ob. cit., pp. 157-158. Imbert refere que o empréstimo de dinheiro com juros era ocultado por meio de: a) contratos fictícios (como o de retrovenda ou a caução imobiliária); b) cláusulas penais (que disfarçavam o pagamento de juros de sanções monetárias); c) declarações falsas da soma emprestada (o prestatário comprometia-se a devolver uma quantidade sem juros num valor superior ao que tinha recebido em empréstimo); d) operações de câmbio (nas quais se incluía juros na forma de uma taxa adicional); e e) tributos e pensões (tratava-se de pensões vitalícias nas quais se incluía não só uma parte correspondente à devolução do capital, mas também uma parte correspondente a juros). Jean Imbert não refere expressamente o depositum confessatum, que foi um dos procedimentos mais utilizados para justificar a cobrança de juros e que podemos incluir na sua categoria b) — “cláusulas penais”. Ver ainda, a referência às “mil maneiras engenhosas para dissimular os tão perigosos juros”, feita por Henri Pirenne na sua obra Historia económica y social de la Edad Media, ob. cit., pp. 104-105.
[51] A identificação doutrinal entre o depósito monetário irregular e o contrato de mútuo ou empréstimo, que teve tendência a produzir-se pelas razões apontadas, fez com que os diferentes autores procurassem as características jurídicas comuns entre os dois contratos. Depressa se aperceberam de que no depósito de bens fungíveis se “transfere” a “propriedade” das unidades depositadas, pois só há obrigação de guardar em custódia, manter e devolver em qualquer momento o tantundem. Aparentemente, esta característica de transferência de propriedade coincide com a do contrato de empréstimo ou mútuo, pelo que foi natural que os autores tivessem considerado automaticamente que todo o depósito monetário irregular era um mútuo, uma vez que em ambos se dava a “transferência” da “propriedade” do depositante para o depositário. Assim, não se aperceberam da diferença essencial entre o depósito monetário irregular e o mútuo ou empréstimo, que demonstrámos no capítulo I e que radica na causa ou motivo do contrato: no depósito irregular o objetivo principal é o de guarda ou custódia, e embora em certo sentido se “transfira” a “propriedade”, o mesmo não acontece com a disponibilidade da coisa, cujo tantundem deve sempre manter-se ao dispor do depositante. Pelo contrário, no empréstimo dá-se não só a transferência da propriedade, mas também a plena transferência da disponibilidade (de fato, trocam-se bens presentes por bens futuros), ao que acresce um elemento fundamental que não existe no depósito: a existência de um prazo durante o qual o prestamista perde a disponibilidade da coisa. Desta forma, podemos ver que, de forma indireta e devido à instituição fraudulenta e espúria do depositum confessatum, a proibição canônica dos juros fez com que se esbatessem as diferenças essenciais existentes entre o depósito irregular e dinheiro e o mútuo.
[52] De fato, foi Pasquale Coppa-Zuccari, que já citamos, o primeiro a reconstruir toda a teoria jurídica do depósito monetário irregular, começando da mesma base dos autores clássicos romanos e revelando de novo a ilegitimidade da apropriação indébita do dinheiro depositado à vista nos bancos. A propósito dos efeitos do denominado depositum confessatum no tratamento teórico da instituição jurídica do contrato de depósito irregular, Coppa-Zuccari conclui que: “le condizioni legislative dei tempi rendevano fertile il terreno in cui il seme della discordia dottrinale cadeva. Il divieto degli interessi nel mutuo non valeva pel deposito irregolare. Qual meraviglia dunque se chi aveva denaro da impiegare fruttuosamente lo desse a deposito irregolare, confessatum se occorreva, e non a mutuo? Quel divieto degli interessi, che tanto addestrò il commercio a frodare la legge e la cui efficacia era nulla di fronte ad un mutuo dissimulato, conservò in vita questo ibrido instituto, e fece sì che il nome di deposito venissi imposto al mutuo, che non poteva chiamarsi col proprio nome, perchè esso avrebbe importato la nullità del patto relativo agli interessi.” Pasquale Coppa-Zuccari, Il deposito irregolare, ob. cit., pp. 59-60.
[53] Assim, por exemplo, Raymond Bogaert refere que dos 163 bancos conhecidos em Veneza, existem provas documentais de que pelo menos 93 faliram. Raymond Bogaert, Banques et banquiers dans les cités grecques, ob. cit., nota 513, p. 392.
[54] Como é lógico, os banqueiros violavam os princípios gerais do Direito e efetuavam a apropriação indébita do dinheiro que lhes era depositado de forma oculta e infame. Na verdade, tinham plena consciência de que tais ações eram ilícitas e ilegítimas e de que se os clientes descobrissem perderiam imediatamente a confiança no banco, o que provocaria a falência. Isto explica o tradicional sigilo do sistema bancário, que, juntamente com o caráter abstrato e difícil de entender das transações financeiras, faz com que, mesmo hoje em dia, haja muito pouca transparência no setor bancário e que a maior parte das pessoas continue sem saber que os bancos, mais do que verdadeiros intermediários financeiros (como costumam se apresentar), são agentes da criação expansiva de créditos e depósitos a partir do nada. O aspecto infame e, por isso, secreto do sistema bancário foi muito bem revelado por Knut Wicksell, segundo o qual: “in effect, and contrary to the original plan, the banks became credit institutions, instruments for increasing the supplies of a medium of exchange, or for imparting to the total stock of money, an increased velocity of circulation, physical or virtual. Giro banking continued as before, though no actual stock of money existed to correspond with the total of deposit certificates. So long, however, as people continued to believe that the existence of money in the banks was a necessary condition of the convertibility of the deposit certificates, these loans had to remain a profound secret. If they were discovered the bank lost the confidence of the public and was ruined, specially if the discovery was made at a time when the Government was not in a position to repay the advances”. Ver Knut Wicksell, Lectures on Political Economy, Volume II: Money, ob. cit., pp. 74-75.
[55] Ver, entre outros, o interessante artigo de Reinhold C. Mueller, “The Role of Bank Money in Venice, 1300-1500”, em Studi Veneziani, N.S. III, Giardini Editori, Pisa 1979, pp. 47-96. Por sua vez, Carlo M. Cipolla, no seu notável trabalho sobre “El florín y el quattrino: La política monetaria en Florencia en el siglo XIV”, publicado no seu livro El gobierno de la moneda: ensayos de historia monetaria, com tradução espanhola de Juan Vivanco, Editorial Crítica, Barcelona 1994, pp. 143-231, afirma também que “os bancos da época já tinha evoluído até ao ponto de criar moeda e aumentar a sua velocidade de circulação” (p. 155).
[56] Carlo Maria Cipolla, El gobierno de la moneda: ensayos de historia monetaria, ob. cit., p. 152.
[57] Carlo Maria Cipolla, ob. cit., p. 147. Ver, ainda, o comentário de Boccaccio sobre os efeitos econômicos da peste citado por John Hicks (nota 59 do capítulo V).
[58] Carlo M. Cipolla faz uma análise interpretativa dos fatos históricos com um maior conhecimento e aplicação da teoria econômica do que outros autores (como, por exemplo, A. P. Usher ou Raymond de Roover, que manifestam a sua “surpresa” pelas recessões da Idade Média, cuja origem consideram, em muitas ocasiões, “misteriosa e inexplicável”). É notável que Cipolla aplique a tese de feitio monetarista às fases recessivas, que atribui a uma contração da oferta monetária decorrente da diminuição global do crédito. Assim, Cipolla não aplica a análise à fase anterior do boom econômico, caindo dessa forma, inconscientemente, numa interpretação “monetarista” da história, em que o boom artificial, resultado da expansão do crédito não é reconhecido como a verdadeira origem e causa das posteriores e inevitáveis recessões. A afirmação de Cipolla segundo a qual foi a peste negra que, em última instância, veio solucionar o problema de “escassez” de dinheiro é também altamente discutível, uma vez que a “escassez” de dinheiro tende a ser solucionada de forma espontânea por meio da diminuição geral dos preços, ou seja, do correspondente aumento do poder aquisitivo do dinheiro, que faz com que não seja preciso manter saldos individuais de caixa elevados. Não há necessidade de uma guerra ou peste que dizime a população. Por isso, mesmo que não tivesse havido peste, o processo recessivo teria terminado mais tarde ou mais cedo, uma vez que os erros de investimento cometidos durante o boom fossem eliminados, por via do aumento do poder aquisitivo do dinheiro e a consequente diminuição dos saldos de caixa. Não há dúvida de que este processo se efetuou em paralelo e independentemente dos efeitos que a peste negra teve na população. Assim, mesmo os historiadores mais educados e perspicazes, como Cipolla, erram parcialmente na interpretação quando o instrumental teórico utilizado não é completamente satisfatório. Em todo o caso, é muito significativo que esses teóricos partidários de uma interpretação inflacionista da história continuem a apontar os “efeitos benéficos” das guerras, considerando-as a causa essencial da saída das crises econômicas.
[59] Raymond de Roover, The Rise and Decline of the Medici Bank 1397-1494, Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 1963.
[60] “The Medici Bank and its subsidiaries also accepted deposits from outsiders, especially great nobles, church dignataries, condottieri, and political figures, such as Philippe de Commines and Ymbert de Batarnay. Such deposits were not usually payable on demand but were either explicitly or implicitly time deposits on which interest, or rather ‘discrezione’, was paid.” Raymond de Roover, The Rise and Decline of the Medici Bank 1397-1494, ob. cit., p. 101.
[61] Raymond de Roover, ob. cit., p. 213.
[62] Raymond de Roover, ob. cit., p. 245.
[63] “O que causou estas crises gerais continua a ser um mistério”, Raymond de Roover, ob. cit., p. 239.
[64] Assim, durante a vida do banco, o princípio tradicional do direito que exigia a manutenção contínua de 100% dos depósitos à vista foi sendo gradualmente violado, de forma que o coeficiente de reserva se foi reduzindo de forma continuada: “A perusal of the extant balance sheets reveals another significant fact: the Medici Bank operated with tenuous cash reserves which were usually well below 10 percent of total assets. It is true that this is a common feature in the financial statements of medieval merchant-bankers, such as Francesco Datini and the Borromei of Milan. The extent to which they made use of money substitutes is always a surprise to modern historians. Nevertheless, one may raise the question whether cash reserves were adequate and whether the Medici Bank was not suffering from lack of liquidity.” Raymond de Roover, The Rise and Decline of the Medici Bank 1397-1494, ob. cit., p. 371.
[65] A. P. Usher, The Early History of Deposit Banking in Mediterranean Europe, ob. cit., p. 239.
[66] A. P. Usher, ob. cit., p. 239.
[67] A. P. Usher, ob. cit., pp. 240 e 242. À luz dos recentes escândalos e crises bancárias ocorridos em Espanha podíamos nos perguntar-nos, de brincadeira, se não seria conveniente reintroduzir penas contra os banqueiros fraudulentos com uma severidade comparável às que foram estabelecidas na Catalunha do século XIV. De acordo com uma de minhas alunas, Elena Sousmatzian, na recente crise bancária que assolou a Venezuela, uma senadora do Partido Social-Cristão (COPEI), chegou “seriamente” a sugerir medidas deste tipo em declarações à imprensa, o que decerto obteve bom acolhimento dos depositantes afetados.
[68] A. P. Usher, ob. cit., p. 244.
[69] “In February 1468, after a long period of strain, the Bank of Deposit was obliged to suspend specie payments completely. For all balances on the books at that date annuities bearing interest at 5 percent were issued to depósitors willing to accept them. Those unwilling to accept annuities remained creditors of the bank, but they were not allowed to withdraw funds in cash.” A. P. Usher, ob. cit., p. 278.
[70] Há documentos que mostram que em 1433 pelo menos 28 por cento dos depósitos da Taula de Canvi de Barcelona procediam de embargos de origem judicial que eram depositados no banco e tinham grande estabilidade. Ver A. P. Usher, ob. cit., p. 339, y Charles P. Kindleberger, ob. cit., p. 68. Em todo o caso, o coeficiente de caixa viria a piorar progressivamente até à suspensão de pagamentos em 1464. Depois da reorganização da Taula nessa altura, o Banco de Depósito de Barcelona manteve uma vida financeira frágil ao longo dos trezentos anos subsequentes, graças aos privilégios que manteve em relação aos depósitos judiciais e aos limites que se estabeleceram para os empréstimos à cidade. Pouco depois da tomada de Barcelona pelos Bourbons a 14 de setembro de 1714, o banco foi absorvido por uma nova instituição cujos estatutos foram elaborados nos dia 14 de janeiro de 1723 pelo Conde de Montemar, constituindo a essência do Banco de Depósito até à sua liquidação final e definitiva em 1853.
[71] Uma versão inglesa desta epígrafe encontra-se em Jesús Huerta de Soto, “New Light on the Prehistory of the Theory of Banking and the School of Salamanca”, The Review of Austrian Economics, vol. 9, n.º 2, 1996, pp. 59-81.
[72] Ramón Carande, Carlos V y sus banqueros, 3 volumes, Editorial Crítica, Barcelona e Madrid, 1987.
[73] Os bancos espanhóis do século XVII não tiveram melhor sorte: “Consta que no início do século XVII existiam bancos na corte, Sevilha, Toledo e Granada. Pouco depois do ano de 1622, Alejandro Lindo queixou-se de que não restava nenhum, após a falência do último em Sevilha (cujo proprietário era Jacome Matedo).” M. Colmeiro, Historia de la economía política española, tomo II (1863), Fundación Banco Exterior, Madrid, 1988, p. 342.
[74] No fim, depois de muito trabalho, conseguiu reunir cerca de duzentos mil ducados, tendo escrito que “temo provocar a falência de todos os bancos de Sevilha”. Ver Ramón Carande, Carlos V y sus banqueros, ob. cit., vol. I, pp. 299-323, especialmente as pp. 315-316, referentes à visita de Gresham a Sevilha.
[75] Ver o artigo de Carlo M. Cipolla “La Moneda en Florencia en el siglo XVI”, publicado em El Gobierno y la moneda: ensayos de historia monetaria, ob. cit., pp. 11-142, especialmente as pp. 96 e ss. A estreita relação comercial e financeira entre Espanha e Itália no século XVI está muito bem documentada em Felipe Ruiz Martín, Pequeño capitalismo, gran capitalismo: Simón Ruiz y sus negocios en Florencia, Editorial Crítica, Barcelona, 1990.
[76] Cipolla indica que a partir dos anos 1570, o Banco de Ricci já não era capaz de pagar os levantamentos em dinheiro e, de fato, suspendeu os pagamentos, pagando apenas “com tinta” ou “com apólices do banco”. As autoridades de Florença, fixando-se apenas nos sintomas e pretendendo de uma forma tipicamente voluntarista solucionar esta situação preocupante através de meras ordenanças, impuseram aos banqueiros a obrigação de pagarem aos credores em moeda e sem mora, mas sem diagnosticar nem atacar as causas essenciais do fenômeno (a apropriação indébita dos depósitos para conceder empréstimos e o descumprimento de um coeficiente de caixa de 100%). Consequentemente, as sucessivas ordenanças falharam e a crise foi se agravando de forma gradual até que rebentou violentamente em meados dos anos setenta do século XVI. Ver Carlo M. Cipolla, “La moneda en Florencia en el siglo XVI”, ob. cit., pp. 102-103.
[77] Possivelmente foi Ramón Carande quem melhor estudou a relação entre o Banco Fugger e Carlos V na já citada obra Carlos V y sus banqueros. Merece ainda destaque o estudo de Rafael Termes Carreró intitulado Carlos V y uno de sus banqueros: Jacobo Fugger, Asociación de Caballeros del Monasterio de Yuste, Madrid 1993. Entre outras informações de interesse, Rafael Termes indica que um exemplo da posição preponderante dos Fugger como banqueiros de Carlos V é que “em Madrid existe uma rua cujo nome deriva dos Fugger. A Calle de Fúcar, versão espanholizada do nome destes banqueiros, fica entre a Atocha e a Moratín. Por outro lado, o Diccionario de la Real Academia contém, ainda hoje, o termo fúcar com o significado de ‘homem muito rico’ (p.25)”.
[78] Os autores seguintes, entre outros, estudaram recentemente as contribuições de especialistas espanhóis para a teoria econômica: Murray N. Rothbard, “New Light on the Prehistory of the Austrian School”, em The Foundations of Modern Austrian Economics, Edward G. Dolan (ed.), Sheed & Ward, Kansas City 1976, pp. 52-74; e An Austrian Perspective on the History of Economic Thought, vol. I: Economic Thought before Adam Smith, Edward Elgar, Aldershot 1995, cap. 4, pp. 97-133; Lucas Beltrán, “Sobre los orígenes hispanos de la economía de mercado”, em Ensayos de economía política, Unión Editorial, Madrid 1996, pp. 234-254; Marjorie Grice-Hutchinson, The School of Salamanca: Readings in Spanish Monetary Theory 1544-1605, Clarendon Press, Oxford 1952; Early Economic Thought in Spain 1177–1740, George Allen and Unwin, Londres 1978, e Economic Thought in Spain: Selected Essays of Marjorie Grice-Hutchinson, Laurence S. Moss e Christopher K. Ryan, eds., Aldershot, Edward Elgar, 1993; Alejandro A. Chafuen, Christians for Freedom: Late-Scholastic Economics, Ignatius Press, San Francisco 1986); e Jesús Huerta de Soto, “New Light on the Prehistory of the Theory of Banking and the School of Salamanca”, The Review of Austrian Economics, vol. 9, n.º 2, 1996, pp. 59-81. A influência intelectual dos teóricos espanhóis da Escola de Salamanca sobre a Escola Austríaca não é, por outro lado, uma mera coincidência ou um puro capricho da história. Tem a sua origem e razão de ser nas íntimas relações históricas, políticas e culturais existentes entre Espanha e Áustria a partir de Carlos V e do seu irmão Fernando I e que se mantiveram durante vários séculos. A Itália teve um papel importantíssimo nessas relações, uma vez que funcionou como uma ponte cultural, econômica e financeira entre os dois extremos do Império (Espanha e Viena). A este respeito, ver o interessante livro de Jean Berenger, El Imperio de los Habsburgo, 1273-1918, Editorial Crítica, Barcelona 1993, especialmente as pp. 133-335.
[79] Saravia de la Calle, Instrucción de mercaderes, ob. cit., p. 180. Contudo, em todos estes trabalhos foi prestada muito pouca atenção ao estudo da doutrina dos escolásticos sobre o sistema bancário. Marjorie Grice-Hutchinson toca de leve sobre o assunto com uma citação quase literal de Ramón Carande (ver The School of Salamanca, ob. cit., pp. 7-8). Por sua vez, em Carlos V y sus banqueros, Ramón Carande limita-se a citar as observações de Tomás de Mercado sobre o sistema bancário nas pp. 297-298 do volume I. Alejandro A. Chafuen faz uma análise mais profunda, em que pelo menos recolhe as opiniões de Luís de Molina sobre o sistema bancário e expõe a questão de saber até que ponto os teóricos da Escola de Salamanca aceitaram ou não o exercício do sistema bancário com um coeficiente de reserva fracionária (ver especialmente as pp. 159 e 200 do seu livro Economia y ética). Outros trabalhos de interesse são os de Restituto Sierra Bravo, El pensamiento social y econômico de la Escolástica desde sus orígenes al comienzo del catolicismo social, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Instituto de Sociología “Balmes”, Madrid, 1975, em que no volume I (pp. 214-237) é feita uma análise, na nossa opinião muito parcial, das contribuições dos membros da Escola de Salamanca. De acordo com esta versão, alguns teóricos da Escola , como Domingo de Soto, Luís de Molina e até o próprio Tomás de Mercado, tenderam a aceitar o exercício do sistema bancário com um coeficiente de reserva fracionário. No entanto, não menciona os trabalhos de outros membros da Escola, que, com maior fundamento teórico, mantiveram uma opinião radicalmente oposta. O mesmo comentário pode ser feito em relação à referência de Francisco G. Camacho nos prefácios que escreveu nas diferentes traduções para o castelhano das obras de Luís de Molina, particularmente na “Introdução” à La teoría del justo precio, Editora Nacional, Madrid, 1981 (especialmente as pp. 33-34). Esta versão da doutrina, segundo a qual alguns teóricos da Escola de Salamanca aceitaram o exercício do sistema bancário com um coeficiente de reserva fracionário, foi grandemente influenciada por pelo artigo de Francisco Belda, S. J. intitulado “Ética de la creación de créditos según la doctrina de Molina, Lessio y Lugo” e publicado em Pensamiento, n.º 19, ano 1963, pp. 53-89. Pelas razões indicadas no texto, e que estudaremos com mais pormenor na epígrafe I do capítulo VIII, não concordamos com a interpretação feita por esses autores da doutrina da Escola de Salamanca em relação o sistema bancário.
[80] Saravia de la Calle, ob. cit., p. 181.
[81] Saravia de la Calle, ob. cit., p. 195.
[82] Saravia de la Calle, ob. cit., p. 196.
[83] Saravia de la Calle, ob. cit., p. 197.
[84] Saravia de la Calle, ob. cit., p. 197.
[85] Saravia de la Calle, ob. cit., p. 186.
[86] Saravia de la Calle, ob. cit., p. 190 (itálico acrescentado).
[87] Saravia de la Calle, ob. cit., p. 198.
[88] Martín de Azpilcueta, Comentario resolutorio de cambios, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Madrid 1965, pp. 57-58. Para estudar as doutrinas do Doutor Navarro, trabalhei com a edição espanhola publicada por Andrés de Portonarijs em Salamanca em 1556 e com a edição portuguesa publicada por Ioam de Barreyra en Coimbra em 1560 com o título Comentario resolutorio de onzenas, em cujas pp. 77-80 se encontram recolhidas, em português, as passagens que incluímos no texto.
[89] Martín de Azpilcueta, Comentario resolutorio de cambios, ob. cit., pp. 60-61.
[90] Martín de Azpilcueta, ob. cit., p. 61.
[91] Passagem retirada da edição do Instituto de Estudios Fiscales publicada em Madrid em 1977, com edição e introdução de Nicolás Sánchez Albornoz, vol. II, p. 479. Existe outra edição, de Restituto Sierra Bravo, publicada pela Editora Nacional em 1975, que inclui a passagem escolhida acima na p. 401. A edição original foi publicada em Sevilha em 1571 “en casa de Hernando Díaz Impresor de Libros, en la calle de la Sierpe”.
[92] Tomás de Mercado, Suma de tratos y contratos, ob. cit., vol. II, p. 480 da edição do Instituto de Estudios Fiscales e p. 401 da edição de Restituto Sierra Bravo.
[93] Ver as obras de Restituto Sierra Bravo, Francisco Belda e Francisco García Camacho que citamos na nota 76.
[94] Tomás de Mercado, Suma de tratos y contratos, ob. cit., vol. II, p. 480 da edição do Instituto de Estudios Fiscales y p. 401 da edição de Restituto Sierra Bravo.
[95] Tomás de Mercado, ob. cit., Ibidem.
[96] Nueva Recopilación, lei 12 do título 18 do livro 5, promulgada em Zamora a 6 de junho de 1554 por Carlos V, Dona Juana e o príncipe Felipe. Reza assim: “Porque ao terem os bancos públicos nos mercados de Medina del Campo, Rioseco e Villalón, e nas cidades, vilas e lugares destes reinos […] [contratos e acordos] fora do tocante […] [à sua missão específica a respeito da moeda], acabaram por suspender os pagamentos e por falir […]; [para] remediar o acima mencionado, ordenamos que de agora em diante se atenham ao seu dever específico, e que as pessoas que tiverem os ditos bancos públicos […] os possa ter apenas uma, mas que sejam pelo menos duas, […] e que antes de […] [exercer], dêem garantias suficientes” (itálico acrescentado). Note-se que, nesta disposição, se fala de bancos públicos não no sentido de que a titularidade seja pública, mas no sentido de que sendo privados tenham recebido depósitos do público em determinadas condições (mais de dois titulares, apresentando garantias, etc.). Ver: José Antonio Rubio Sacristán, “La fundación del Banco de Amsterdam (1609) y la banca de Sevilla”, Moneda y crédito, Março de 1948.
[97] Esta é a citação de Mercado que Ramón Carande inclui na parte introdutória de sua análise sobre os banqueiros de Sevilha e a crise que os levou à falência, no vol. I de Carlos V y sus banqueros. Ver: Tomás de Mercado, Suma de tratos y contratos, ob. cit., vol. II, pp. 381-382 da edição de 1977 do Instituto de Estudios Fiscales e p. 321 da edição de Restituto Sierra Bravo.
[98] “Habet autem praeterea istorum usus, ut fertur si mercatorum quispiam in cambio numeratam pecuniam deponat, campsor pro maio ri illius gratia respondeat. Numeravi campsori dece milia: fide habebo apud ipsum & creditu pro duodecim, & forfam pro quim decim: qui capsori habere numerata pecuniam bonum est lucrum. Neq, vero quicq vitij in hoc foedere apparet.” Domingo de Soto, De iustitia et iure, Andreas Portonarijs, Salamanca 1556, Livro VI, questão XI, artigo único, p. 591. Edição do Instituto de Estudios Políticos, Madrid 1968, vol. III, p. 591. Para Restituto Sierra Bravo (El pensamiento social y econômico de la Escolástica, ob. cit., p. 215), nesta frase de Domingo de Soto está implícita a admissão do sistema bancário com um coeficiente fracionário de reservas.
[99] É muito significativo que vários autores, entre eles Marjorie Grice-Hutchinson, hesitem em colocar Luis de Molina entre os teóricos da Escola de Salamanca: “The inclusion of Molina in the School seems to me now to be more dubious.” Marjorie Grice-Hutchinson, “The Concept of the School of Salamanca: Its Origins and Development”, cap. 2 de Economic Thought in Spain: Selected Essays of Marjorie Grice-Hutchinson, ob. cit., p. 25. Na minha opinião, o núcleo da Escola de Salamanca é nitidamente dominicano, pelo menos em matérias bancárias, e é preciso distingui-lo do grupo desviacionista e muito menos rigoroso dos teólogos jesuítas.
[100] Luis de Molina, Tratado sobre los cambios, edição e introdução de Francisco Gómez Camacho, Instituto de Estudios Fiscales, Madrid 1991, pp. 137-140. A edição original foi publicada em Cuenca em 1597.
[101] Luis de Molina, Tratado sobre los préstamos y la usura, edição e introdução de Francisco Gómez Camacho, Instituto de Estudios Fiscales, Madrid 1989, p. 13. A edição original foi publicada em Cuenca em 1597.
[102] Luis de Molina, Tratado sobre los cambios, ob. cit., p. 137.
[103] Luis de Molina, Tratado sobre los cambios, ob. cit., p. 138-139 (itálico acrescentado).
[104] Depois de Molina, o principal especialista com uma visão análoga em relação aos negócios bancários é o também jesuíta Juan de Lugo, o que, em nossa opinião, mostra que, em matéria bancária, existiam duas correntes dentro da Escola de Salamanca: uma “monetária”, doutrinalmente sólida e correta, a que pertenceriam Saravia de la Calle, Martín de Azpilcueta e Tomás de Mercado; outra “bancária”, mais propensa a cair nas veleidades da doutrina inflacionista e do coeficiente de reserva fracionário, representada por Luís de Molina, Juan de Lugo e, em muito menor medida, Domingo de Soto. No capítulo VIII, teremos a oportunidade de apresentar esta tese com mais profundidade. Por ora, resta-nos acrescentar que Juan de Lugo seguiu os passos de Luis de Molina, sendo especialmente clara sua advertência aos banqueiros: “Qui bene advertit, eivsmodi bancarios depositários peccare graviter, & damno subsequuto, cum obligatione restituendi pro damno, quoties ex pecuniis apud se depositis tantam summam ad suas negotiationes exponunt, ut inhabiles maneant ad solvendum deposentibus, quando suo tempore exigent. Et idem est, si negotiationes tales aggrediantur, ex quibus periculum sit, ne postea ad paupertatem redacti pecunias acceptas reddere non possint, v.g. si euenrus ex navigatione periculosa dependeat, in qua navis hostium, vel naufragij periculo exposita sit, qua iactura sequunta, ne ex propio quidem patrimonio solvere possint, sed in creditorum, vel fideiussorum damnum cedere debet.”. R.P. Joannis de Lugo Hispalensis, S.I., Disputationum de iustitia et iure tomus secundus, Sumptibus Petri Prost, Lyon 1642, Disp. XXVIII, sec. V, pp. 406-407.
[105] Quanto à curiosa referencia aos bancos públicos de Sevilha (e Valência) como modelo a seguir (1) pelo Banco de Amsterdã, incluída numa petição dos comerciantes mais representativos da Holanda ao Conselho Municipal de Amsterdã, ver José Antonio Rubio Sacristán, “La fundación del Banco de Amsterdam (1609) y la banca de Sevilla”, ob. cit.
[106] Pierre Vilar, Oro y moneda en la historia (1450-1920), Editorial Ariel, Barcelona 1972, p. 291. As referências aos montantes de depósitos e aos coeficientes recolhidos no texto encontram-se também neste livro nas pp. 292-293. Outros bancos europeus criados de acordo com o modelo do Banco de Amsterdã foram o Banco de Veneza e o Banco de Hamburgo, ambos fundados em 1619. Embora o primeiro tenha acabado por não cumprir a obrigação estrita de custódia e desaparecido em 1797, o Banco de Hamburgo teve um comportamento mais regular, sobrevivendo até à fusão com o Banco da Alemanha em 1873. J.K. Ingram, “Banks, Early European”, em Palgrave’s Dictionary of Political Economy, Henry Higgs (ed.), Macmillan, Londres 1926, vol. I, pp. 103- 106.
[107] Pierre Vilar, ob. cit., p. 293-294 (itálico acrescentado).
[108] Passagem retirada de um exemplar da Real Cédula de S.M. y Señores del Consejo, por la qual se crea, erige y autoriza un Banco nacional y general para facilitar las operaciones del Comercio y el beneficio público de estos Reynos y los de Indias, con la denominación de Banco de San Carlos baxo las reglas que se expresan, impressa por D. Pedro Marín em Madrid, no ano de 1782, pp. 31-32 (itálicos acrescentados). Existe um magnífico estudo sobre a história do Banco de San Carlos de Pedro Tedde de Lorca, publicado com o título de El banco de San Carlos (1782-1829) pelo Banco de Espanha e Alianza Editorial, Madrid 1988.
[109] Passagem das pp. 284-285 da excelente reedição de David Hume, Essays: Moral, Political and Literary, editada por Eugene F. Miller e publicada por Liberty Fund, Indianapolis 1985 (itálico acrescentado). A tradução para português pode ser: “Tentar aumentar artificialmente tal crédito nunca pode ser o interesse de nenhuma nação; antes, pode trazer-lhe desvantagens, ao aumentar o dinheiro além da proporção natural em relação à mão-de-obra e às mercadorias, e assim elevar o preço para o fabricante-comerciante. E, nesta perspectiva, deve admitir-se que nenhum banco poderia apresentar mais vantagens do que aquele que trancasse todo o dinheiro recebido, e nunca aumentasse a moeda em circulação, como é habitual fazer-se, devolvendo parte do tesouro ao comércio. Um banco público, por meio desse recurso, podia eliminar grande parte das operações dos banqueiros privados e agiotas; e, embora o estado suportasse o peso dos salários aos diretores e caixas deste banco (uma vez que, de acordo com a suposição anterior, o banco não obteria lucros de suas operações), a vantagem para a nação que resultaria do preço reduzido da mão-de-obra e da destruição do papel-crédito, seria compensação suficiente.”
[110] “Não emitam notas sem o seu equivalente real em metais preciosos.” Citado por Murray N. Rothbard, An Austrian Perspective on the History of Economic Thought, vol. I: Economic Thought before Adam Smith, ob. cit., pp. 332-335 y 462 (p. 508 da edição espanhola de 1999, ob. cit.).
[111] Citação retirada da edição original publicada por A. Miller & T. Cadell in the Strand, Londres 1767, vol. II, p. 301. A tradução para português poderia ser: “Cada xelim registado nos livros do banco é realmente fechado à chave, em moeda, nos depósitos do banco. Embora, de acordo com os regulamentos do banco, não se possa entregar moeda a qualquer pessoa que a solicite como consequência do seu crédito no banco; não tenho a menor dúvida, de que tanto o crédito registado nos livros do banco, como o dinheiro nos depósitos que o compensa, pode sofrer aumentos e diminuições alternadas, conforme a maior ou menor procura de dinheiro do banco.” Antes de Steuart, podemos encontrar uma análise mais resumida sobre o funcionamento do Banco de Amsterdã no famoso livro do abade Ferdinando Galiani, Della moneta, edição original de Giuseppe Raimondi, Nápoles 1750, pp. 326-328.
[112] Passagem citada diretamente da edição original inglesa de Adam Smith An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, publicada por W. Strahan & T. Cadell, in the Strand, Londres 1776, vol. II. pp. 72-73. A tradução para português poderia ser: “O Banco de Amsterdã assegura que não emprestará nenhuma parte do que se deposita, mas, por cada florim registado como crédito nos livros, manterá nos seus depósitos o valor de um florim, seja em dinheiro, seja em ouro. Que manterá nos seus depósitos todo o dinheiro ou ouro para os quais houver recibos em vigor, e pelo qual é responsável e terá de responder, e que, na realidade, sai e retorna continuamente, não se pode duvidar […] Em Amsterdã, não há melhor dogma de fé do aquele que diz que por cada florim que circula como dinheiro bancário, há o florim correspondente em ouro ou prata no tesouro do banco”.
[113] “Nesse país sóbrio e religioso, ainda se respeitam os juramentos.” Adam Smith, ob. cit., p. 73.
[114] Adam Smith, Ibidem, p. 74. A tradução para português poderia ser: “A cidade de Amsterdã obtém rendimentos consideráveis do banco, além do direito de custódia referido anteriormente, cada pessoa, ao abrir pela primeira vez uma conta no banco, paga uma taxa de dez florins, e por cada conta nova, três florins, três stivers; por cada transferência, dois stivers; e se a transferência é de menos de trezentos florins, seis stivers, para desencorajar a multiplicidade de pequenas transações”.
[115] Pierre Vilar, Oro y moneda en la historia (1450-1920), ob. cit., p. 293. Uma análise da corrupção do Banco de Amsterdã a partir de finais do século XVIII pode ser encontrada em Knut Wicksell, Lectures in Political Economy, Routledge, Londres, 1935, vol. 2, pp. 75 e 76.
[116] Neste sentido, como bem assinala Charles P. Kindleberger (Historia financeira de Europa, ob. cit., p. 71), a organização do Riksbank foi um precedente da organização que dois séculos depois a Lei de Peel de 1844 pretendeu dar ao Banco de Inglaterra.
[117] Precisamente para celebrar o tricentenário do Banco da Suécia, foi constituído um fundo para conceder anualmente, a partir de então, um Prêmio Nobel da Economia.
[118] Assim, por exemplo, em 1640, Carlos I, copiando a política seguida em Espanha um século antes pelo seu homônimo, o imperador Carlos V, confiscou o ouro e os objetos preciosos que tinham sido depositados em custódia na Torre de Londres para salvaguarda, destruindo desta forma a reputação da casa da moeda como um lugar de custódia seguro. Trinta e dois anos depois, Carlos II não cumpriu novamente as obrigações, fazendo com que a Fazenda real suspendesse os pagamentos e provocou a falência de muitos bancos privados que tinham feito empréstimos à Fazenda ou que tinham comprado diretamente títulos da mesma com base nos depósitos recebidos à vista. Ver Charles P. Kindleberger, Historia financiera de Europa, ob. cit., pp. 73-74.
[119] Em 1720 a Compañía del Mar del Sur (Companhia do Mar do Sul) estabeleceu um ambicioso plano para assumir a dívida pública britânica pagando determinado montante. Esta companhia, que tinha surgido do partido Conservador, tal como o Banco de Inglaterra, tinha como propósito ajudar a financiar a guerra. Em troca, o governo concederia privilégios a determinadas corporações. O verdadeiro fim dos promotores da Compañia del Mar del Sur era especular com as ações da companhia, chegando a ser admitido o pagamento dos novos títulos por meio de obrigações de dívida pública. O papel do Banco de Inglaterra no ano de 1720 foi o de conceder empréstimos sobre as próprias ações para facilitar a própria aquisição, tal como tinha feito a Compañia del Mar del Sur. Iniciou-se assim um processo inflacionário no qual o preço das ações da Companhia e do Banco se multiplicou, dando origem a tremendas mais-valias e enormes lucros, de que tiraram proveito os especuladores, entre os quais se encontravam muitos conselheiros da Compañia del Mar del Sur. Parte dos lucros foram investidos em terras, cujo preço aumentou também de forma considerável. Toda esta euforia especulativa e inflacionista foi bruscamente interrompida no verão de 1720, justamente na mesma altura em que, em Paris, começava a se desfazer a teia especulativa organizada por John Law. Depois de a queda de preços começar, foi praticamente impossível detê-la. O valor das ações da Compañia del Mar del Sur baixou de 775 pontos em Setembro para 170 em meados de outubro e o das do Banco de Inglaterra, de 225 pontos para 135 no prazo de apenas um mês. Como resposta, o parlamento aprovou o Bubble Act, que a partir de então limitou severamente a constituição de sociedades por ações. No entanto, depois de muitas e difíceis negociações, só em 1722 foi possível amenizar o problema financeiro, com a aprovação no parlamento de um convênio entre o Banco e a Compañia del Mar del Sur, que estipulava que esta devia pagar quatro milhões de libras do capital daquela, através de pagamentos anuais de 5%, garantidos pelo Tesouro. Ver, ainda, a nota 43 do cap. VII e os comentários sobre o artigo ali citado de Peter Temin e Hans-Joachim Voth, “Riding the South Sea Bubble”, The American Economic Review, vol. 94, n.º 5, Dezembro de 2004, pp. 1654-1668.
[120] Por isso, foram muitos os teóricos que, sobretudo nos Estados Unidos, proclamaram a grande ameaça à liberdade individual que a aliança implícita ou explícita entre banqueiros e governos implicava e que se concretizava na concessão sistemática e contínua de privilégios para que os bancos pudessem descumprir os compromissos legais, suspendendo o pagamento em dinheiro de depósitos. Assim, por exemplo, John Taylor, senador norte-americano da segunda metade do século XVIII, qualificou esta prática de verdadeira fraude, afirmando que “under our mild policy the banks’ crimes may possibly be numbered, but no figures can record their punishments, because they are never punished”. Ver John Taylor, Construction Construed and Constitutions Vindicated, Shepherd & Polland, Richmond, Virginia, 1820, reeditado por Da Capa Press, Nova York, 1970, pp. 182-183. Outro artigo muito interessante sobre este tema, é o de James P. Philbin intitulado “An Austrian Perspective on Some Leading Jacksonian Monetary Theorists”, publicado em The Journal of Libertarian Studies: An Interdisciplinary Review, vol. X, n.º 1, Outono de 1991, pp. 83-95, e especialmente a p. 89. Murray N. Rothbard escreveu um ótimo resumo sobre o surgimento dos bancos com reserva fracionária antes da fundação dos Estados Unidos, “Inflation and the Creation of Paper Money”, cap. 26 de Conceived in Liberty, Volume II: “Salutary Neglect”: The American Colonies in the First Half of the 18th Century, Arlington House, Nova Iorque 1975, pp. 123-140 (2.ª edição, Ludwig von Mises Institute, Auburn, Alabama, 1999).
[121] Uma descrição detalhada do rotundo fracasso do sistema de Law em França feita por um teórico que viveu próximo dos acontecimentos pode ser encontrada em Ferdinando Galiani, Della moneta, ob. cit., pp. 329-334; e ainda os capítulos XXIII-XXXV do volume II da obra de Sir James Steuart, An Enquiry into the Principles of Political Oeconomy, que já citámos (pp. 235-291). Uma exposição muito ilustrativa e teoricamente fundamentada do sistema financeiro, monetário e bancário francês durante o século XVIII pode ser lida num artigo de F.A. Hayek, “First Paper Money in Eighteenth Century France”, publicado pela primeira vez como capítulo X no livro The Trend of Economic Thinking: Essays on Political Economists and Economic History, W.W. Bartley III e Stephen Kresge (eds.), vol. III de The Collected Works of F.A. Hayek, Routledge, Londres e Nova Iorque 1991, pp. 155-176. A melhor biografia de John Law é a de Antoin E. Murphy, John Law: Economic Theorist and Policy Maker, Clarendon Press, Oxford 1997.
[122] Ricardo de Cantillon foi o primeiro a afirmar que a prática bancária podia levar-se a cabo com “segurança” mantendo um coeficiente de caixa de apenas 10%: “Dans ce premier exemple la caisse d’un Banquier ne fait que la dixième partie de son commerce.” Ver a p. 400 da edição original do Essai sur la nature du commerce en général, publicado (anônima e falsamente) em Londres, Fletcher Gyles en Holborn, 1755. Incrivelmente, Murray N. Rothbard não a refere no seu brilhantíssimo estudo sobre Cantillon. Ver: An Austrian Perspective on the History of Economic Thought, vol. I: Economic Thought before Adam Smith, ob. cit., pp. 345-362 (pp. 385-404 da edição espanhola de 1999, ob. cit).
[123] O banco de Thornton faliu depois do falecimento do fundador, em Dezembro de 1825. Ver as pp. 34-36 da “Introduction” de F.A. Hayek à edição da obra de Henry Thornton An Inquiry into the Nature and Effects of the Paper Credit of Great Britain, originariamente publicada em 1802 e reeditada por Augustus M. Kelley, Fairfield 1978. A. E. Murphy assinala também que Law e Cantillon partilham o duvidoso “mérito” de serem os únicos economistas que, juntamente com Antoine de Montchrétien, foram acusados de assassinato e de todo o tipo de outras malfeitorias. Ver A.E. Murphy, Richard Cantillon: Entrepreneurand Economist, Clarendon Press, Oxford, 1986, p. 237. O caráter religioso e puritano de Thornton livrou-o, pelo menos, de ser acusado de tais atrocidades.
[124] Ver F. A. Hayek, Richard Cantillon (1680-1734), cap. XIII de The Trend of Economic Thinking, ob. cit., pp. 245-293, e especialmente a p. 284. A tradução para português é a seguinte: “Seu ponto de vista, como mais tarde viria a explicar, era de que as ações que lhe haviam sido entregues não eram um depósito genuíno, uma vez que os números não tinham sido registados, mas sim — como diríamos hoje — um depósito irregular, pelo que nenhum dos clientes tinha direito de reclamar quaisquer títulos específicos. Na verdade, a firma conseguiu lucros extraordinários desta forma, uma vez que podia recomprar a preços reduzidos as ações vendidas a preços elevados, enquanto o capital, pelo qual cobrava grandes juros, não diminuía, sendo poupado e trocado por libras. Quando Cantillon, que tinha feito parte destes adiantamentos em nome próprio, pediu a devolução dos empréstimos aos especuladores, que tinham sofrido grandes perdas, acabando por levá-los a tribunal, estes exigiram que os lucros obtidos por Cantillon e pela firma por intermédio de suas ações fossem utilizados para pagar as dívidas. Por sua vez, também levaram Cantillon a tribunal em Londres e Paris, acusando-o de fraude e usura. Ao apresentarem a correspondência entre Cantillon e a firma, concluíram que toda a operação tinha sido levada a cabo sob a direção direta de Cantillon e que, por isso, era pessoalmente responsável.”
[125] Sobre o contrato irregular de títulos e o tipo de apropriação indébita cometida por Cantillon e mais tarde pelos banqueiros catalães até ao inicio deste século, ver La cuenta corriente de efectos o valores de un sector de la banca catalana: su repercusión en el crédito y en la economía, su calificación jurídica en el ámbito del derecho penal, civil y mercantil positivos españoles según los dictámenes emitidos por los letrados señores Rodríguez Sastre, Garrigues, Sánchez Román, Goicoechea, Miñana y Clemente de Diego, seguidos de un estudio sobre la cuenta de efectos y el mercado libre de valores de Barcelona por D. Agustín Peláez, Síndico Presidente de la Bolsa de Madrid, publicado em Madrid em 1936 pela Delgado Sáez.
[126] Antoin E. Murphy, Richard Cantillon: Entrepreneur and Economist, Clarendon Press, Oxford 1986, pp. 209 y 291-297. Para sustentar esta última tese, Murphy refere os seguintes fatos: 1) Cantillon liquidou grande parte da fortuna pessoal justamente no dia anterior ao atentado; 2) o cadáver foi queimado até se tornar irreconhecível; 3) a atitude incompreensível e displicente dos familiares depois do atentado; e 4) o estranho comportamento do acusado, que nunca se correspondeu à forma de atuar de um assassino típico.