Moeda, Crédito Bancário e Ciclos Econômicos

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8 – Teoria do Sistema Bancário Central e do Sistema Bancário Livre

Neste capítulo, apresentamos uma análise teórica dos argumentos que foram elaborados a favor e contra o sistema bancário central e o sistema bancário livre ao longo da história do pensamento econômico.  Começaremos por rever a discussão teórica entre os partidários de um sistema bancário privilegiado, ou seja, não submetido aos princípios tradicionais do Direito e, logo, capaz de expandir o crédito (a que chamaremos Escola Bancária), e os teóricos que sempre defenderam a submissão do sistema bancário às regras e aos princípios universais (a que chamaremos Escola Monetária).[1] A análise e avaliação das contribuições teóricas da Escola Bancária e da Escola Monetária nos possibilitará o estudo, ainda neste capítulo, da discussão entre os partidários do banco central e os do sistema bancário livre.  Veremos que, apesar de, no início, os teóricos da Escola Monetária terem, em geral, defendido o banco central, e os teóricos da Escola Bancária apoiado um regime de atividade bancária livre, em última instância, acabaram por preponderar as doutrinas inflacionistas da Escola Bancária, paradoxalmente sob o impulso e patrocínio do banco central.  Na verdade, uma das conclusões mais importantes da presente análise é que o banco central, longe de ser um resultado espontâneo de cooperação social, surge de forma inevitável quando a atividade bancária privada se baseia num coeficiente de reserva fracionário, uma vez que os próprios banqueiros privados acabam por reclamar a criação de um prestamista de última instância nas situações de crise e recessão econômica geradas ciclicamente por tal sistema.  Continuaremos este capítulo com a aplicação do teorema da impossibilidade do cálculo econômico socialista à atividade do banco central, o que explica também as dificuldades da legislação bancária administrativa tal como foi desenvolvida até agora.  Por fim, mostraremos que os teóricos que atualmente defendem o sistema bancário livre caem com frequência no erro de admitir e justificar o coeficiente fracionário de reserva, sem perceber que tal concessão não só tornaria inevitável o reaparecimento do banco central, como daria origem a crises cíclicas perturbadoras para a economia e a sociedade.

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Análise crítica da Escola Bancária

Nesta seção, analisaremos os argumentos teóricos construídos pelos defensores do sistema bancário de reserva fracionária para justificar tal sistema.  Embora tradicionalmente se considere que estes argumentos foram elaborados no contexto da discussão entre a denominada “Escola Bancária” (Banking School) e a chamada “Escola Monetária” (Currency School) surgida a partir da primeira metade do século XIX na Inglaterra, a verdade é que os primeiros argumentos relativos ao sistema bancário com reserva fracionária e à oposição entre os dois pontos de vista (o bancário e o monetário) remontam às contribuições dos teóricos da Escola de Salamanca nos séculos XVI e XVII.

Os pontos de vista bancário e monetário na Escola de Salamanca

As contribuições dos teóricos da Escola de Salamanca no campo monetário são importantes e foram profundamente estudadas.[2]

O primeiro tratado da escolástica espanhola sobre moeda foi publicado por Diego de Covarrubias y Leyva, em 1550, com o título de Veterum collatio numismatum.  Neste trabalho, o famoso bispo de Segóvia faz um estudo da história da desvalorização do maravedi castelhano e apresenta uma grande quantidade de estatísticas sobre a evolução dos preços.  Embora no tratado de Covarrubias já se encontrem implícitas as ideias essenciais da teoria quantitativa da moeda, este carece ainda de uma teoria monetária articulada de forma explícita.[3] Só alguns anos depois, em 1556, Martín de Azpilcueta indica, de forma clara e completa, que o aumento dos preços, ou, se se preferir, a diminuição do poder de compra da moeda, é o resultado do aumento da oferta monetária que estava acontecendo em Castela como consequência da enorme afluência de metais preciosos provenientes da América.

De fato, Martín de Azpilcueta descreve impecavelmente a relação entre a quantidade de moeda e os preços.  Segundo ele:

Nas terras onde há grande falta de moeda, todas as outras coisas vendáveis, e até as mãos e o trabalho dos homens, oferecem-se por menos dinheiro do que onde há abundância; como se vê pela experiência da França, por exemplo, onde há menos dinheiro que em Espanha, valem muito menos o pão, o vinho, os tecidos, as mãos e os trabalhos; e mesmo em Espanha, no tempo em que havia menos dinheiro, por muito menos se oferecia as coisas vendáveis, as mãos e os trabalhos dos homens do que depois de a descoberta das Índias a ter coberto de ouro e prata.  A razão de tal é que o dinheiro vale mais onde e quando há falta dele, do que onde e quando há abundância.”[4]

Ora, comparado com os profundos e detalhados estudos levados a cabo sobre a teoria monetária da Escola de Salamanca, o esforço feito até agora para analisar e avaliar a posição dos escolásticos a respeito do negócio bancário foi muito menor.[5] No entanto, os teóricos da Escola de Salamanca efetuaram uma análise muito incisiva das práticas bancárias e, em grande medida, foram precursores das diferentes posições que mais de dois séculos depois se reproduziram na discussão entre os membros da chamada “Escola Bancária” (BankingSchool) e os da “Escola Monetária” (Currency School).

No capítulo II deste livro, já nos referimos ao tratamento crítico do negócio bancário baseado na reserva fracionária efetuado pelo Doutor Saravia de la Calle nos últimos capítulos da sua Instrucción de mercaderes.  Martín de Azpilcueta e Tomás de Mercado desenvolveram também uma análise rigorosa da atividade bancária que, embora não atinja os níveis de crítica de Saravia de la Calle, inclui um impecável tratamento das exigências que, de acordo com a justiça, devem ser observadas no contrato de depósito bancário de moeda.  Este primeiro grupo de autores pode ser considerado como parte de uma incipiente “Escola Monetária”, que se desenvolveu no seio da Escola de Salamanca desde o início e que se caracterizaria por manter posições coerentes e rigorosas em relação às exigências jurídicas do contrato de depósito bancário e por ser, em geral, muito crítico e cioso a respeito do exercício da atividade bancária.

Além deste grupo, podemos distinguir claramente um segundo conjunto de teóricos, encabeçado por Luis de Molina, e ao qual pertenciam Juan de Lugo e, em menor grau, Leonardo de Lesio e Domingo de Soto.  Estes autores seguem o exemplo de Molina, caracterizando-se, como já referimos no capítulo II deste livro, pela débil fundamentação jurídica que exigem ao contrato de depósito bancário de moeda e por admitirem a manutenção de uma reserva fracionária, com o argumento de que tal contrato, mais do que um depósito, é um empréstimo ou mútuo “precário”.  Não vamos aqui reproduzir todos os argumentos contra a posição de Molina a respeito do contrato de depósito bancário.  Diga-se apenas que é sustentado num erro que se foi expandindo a partir do momento em que, ao longo da Idade Média, os glosadores começaram a instituição dodepositum confessatum.  O que nos interessa agora é que este segundo grupo de autores da Escola de Salamanca foi muito mais “compreensivo” em relação à atividade bancária, chegando a justificar o exercício com um coeficiente de reserva fracionário.  Assim, não é, de todo, impróprio considerar que este segundo grupo de autores formaria parte de uma incipiente “Escola Bancária” dentro da Escola de Salamanca, que, tal como seus sucessores de vários séculos depois da Escola Bancária inglesa e continental, não só justificaram o exercício da atividade bancária com reserva fracionária, ou seja, violando os princípios tradicionais do Direito, como acreditaram que o mesmo tinha efeitos muito positivos sobre a economia.

Embora a sua fundamentação teórica sobre o contrato bancário seja muito discutível e, em certo sentido, pressuponha um retrocesso em relação a outras posições da Escola de Salamanca, é importante realçar que Luis de Molina foi o primeiro membro da escola de tradição bancária a aperceber-se de que os cheques e documentos que autorizavam o pagamento à vista de determinadas quantidades com base nos depósitos tinham exactamente a mesma função do dinheiro.  Assim, não é verdadeira a noção generalizada de que foram os teóricos da Escola Bancária inglesa que pela primeira vez descobriram, no século XIX, que os depósitos à vista dos bancos eram parte integrante da oferta monetária, exercendo, portanto, os mesmos efeitos das notas de banco sobre a economia.  Mais de dois séculos antes, já Luis de Molina tinha revelado claramente esta ideia na disputa 409 do seu Tratado sobre los cambios.  De fato, Luis de Molina diz-nos que:

Paga-se aos banqueiros de duas maneiras: uma, em dinheiro, entregando-lhes as moedas; e outra, por letras de câmbio, ou quaisquer outras letras, em virtude das quais aquele que deve pagar a letra passa a dever ao banco a quantidade nela indicada que se pagará na conta de quem deposite a letra no banco.[6]

 

Molina refere-se concretamente a uns documentos a que chama em latim chirographis pecuniarum, utilizados para pagar a maior parte das transações efetuadas nos mercados.  Assim,

Embora sejam muitas as transações que se realizam em dinheiro, a maior parte é feita mediante documentos que atestam ou que o banco lhes deve dinheiro ou que aceita pagar, ficandoo dinheiro recebido no banco”.  Molina assinala ainda, que estes cheques têm um valor liberatório “à vista”, indicando que “estes pagamentos costumam chamar-se ‘à vista’, porque o dinheiro deve pagar-se no momento em que a letra seja apresentada e lida.[7]

Mas a ideia mais importante de Molina, expressa muito antes de Thornton em 1797 e Pennignton em 1826, é a de que o volume de transações monetárias efetuadas num mercado não poderia ser pago com a quantidade de dinheiro vivo que muda de mãos, não fosse a utilização da moeda gerada pelos bancos por meio de anotações dos depósitos e da emissão de cheques por parte dos depositantes.  Desta forma, graças à atividade financeira dos bancos, é criada do nada uma nova quantidade de moeda em forma de depósitos que é utilizada nas transações.  De fato, Molina diz-nos expressamente que se formalizam:

A maior parte das transações é feita antecipadamente e [concluídas] mediante documentos assinados; uma vez que a moeda não é tão abundante, que possa comprar em dinheiro a enorme quantidade de mercadorias que aí se vende, se tiverem de ser pagas em dinheiro vivo ou para que possam efetuar-se tantos negócios.[8]

 

Por fim, Molina distingue muito claramente entre as operações que envolvem a concessão de um crédito, uma vez que o pagamento da dívida é adiado, das que se efetuam com dinheiro vivo, mediante cheque ou por intermédio de uma conta bancária, concluindo que:

deve advertir-se que não se considera compra a crédito se o preço é cobrado à própria conta bancária, embora não se pague imediatamente em dinheiro, uma vez que o banqueiro pagará em dinheiro o saldo devedor, pelo menos, no fechamento do mercado”.[9]

 

Por sua vez, Juan de Lugo, segue à risca a doutrina de Molina ao considerar que o depósito bancário de moeda não é mais do que um mútuo ou empréstimo “precário” que o banqueiro pode utilizar nos negócios particulares enquanto não for requerido pelos depositantes.[10]

A posição de Molina e Lugo quanto à fundamentação jurídica do contrato de depósito bancário é tão confusa, que chegam até a admitir que possa ter uma natureza jurídica distinta de acordo com a parte que o efetua (ou seja, que pode ser um depósito para os depositantes e um contrato de empréstimo para o banqueiro).  Aparentemente não veem qualquer incongruência nessa posição e só fixam um limite para a atividade dos banqueiros: que atuem com “prudência” para que, em virtude da Lei dos Grandes Números, disponham sempre de liquidez suficiente para permitir a devolução dos depósitos que “normalmente” lhes seja exigida.  Não percebem que o critério de prudência não é um critério objetivo que possa orientar a ação do banqueiro.  Em primeiro lugar, não coincide com a capacidade de devolver os depósitos  que tenham em cada momento, sendo que eles mesmos têm um cuidado de realçar que os banqueiros incorrem num “pecado mortal” quando utilizam fundos dos depositantes em atividades imprudentes e especulativas, mesmo que tenham um resultado feliz e possam devolver a tempo o dinheiro aos depositantes.[11] Além disso, o critério de prudência também não é uma condição suficiente: pode-se ser muito prudente, mas muito pouco perspicaz ou até ter pouca sorte nos negócios, e chegar ao momento de devolver os depósitos sem se ter a liquidez suficiente para o fazer.[12] Assim, em que consistirá o critério de prudência? É evidente que não é possível dar uma resposta objetiva que possa servir de guia para a atividade dos banqueiros.  Sobretudo quando, como vimos nos capítulos anteriores, a Lei dos Grandes Números não é aplicável ao negócio bancário baseado na reserva fracionária, uma vez que a expansão de crédito daí decorrente dá ensejo ao surgimento de ciclos recorrentes de auge e recessão que acabarão, forçosamente, colocando os banqueiros em dificuldades.  De fato, a própria atividade bancária provoca crises de liquidez e, por conseguinte, as insolvências generalizadas dos bancos.  Em todo o caso, no momento da crise, é muito possível que o banco não seja capaz de pagar, ou pode ser que suspenda os pagamentos.  Caso os credores tenham a sorte de receber o dinheiro que lhes é devido, isso só acontecerá, no melhor dos casos, depois de um período prolongado de liquidação em que o papel dos depositantes será alterado.  Perdem a disponibilidade imediata do dinheiro e se convertem em prestamistas forçados, obrigados a adiar o levantamento dos próprios depósitos até ao momento em que termine a liquidação do banco.  Além disso, durante este período a oferta monetária reduz-se num montante global igual ao valor de todos estes “depósitos” assim imobilizados.

Foram, sem dúvida, tais considerações que levaram Tomás de Mercado a assinalar que os princípios de prudência enunciados por Molina e Juan de Lugo constituem um objetivo que, na prática, nenhum banqueiro cumpre.  Aparentemente, Tomás de Mercado tinha consciência de que tais princípios não serviam de guia prático de atuação para garantir a solvência bancária.  E, na verdade, se esses princípios são ineficazes para alcançar o objetivo de solvência e liquidez permanentes, o sistema do sistema bancário com reserva fracionária não será capaz de cumprir os compromissos em todas as circunstâncias.

Dois economistas jesuítas voltaram a estudar recentemente a doutrina dos escolásticos em relação ao negócio bancário, um do ponto de vista da Escola Bancária e o outro da perspectiva da Escola Monetária.  O primeiro é o jesuíta espanhol Francisco Belda, autor de um interessante trabalho intitulado “Ética de la creacción de créditos según da doctrina de Molina, Lesio y Lugo”.[13] De fato, para o padre Belda, é evidente que:

Da descrição de Molina se depreende que, no caso dos banqueiros, há uma verdadeira criação de créditos.  Graças à intervenção dos bancos criou-se um poder de compra que não existia anteriormente.  O mesmo dinheiro é utilizado duas vezes simultaneamente; o banco utiliza-o nos seus negócios e o depositante também.  O resultado total é que a quantidade de meios de pagamento em circulação é várias vezes superior à quantidade real de dinheiro vivo que lhe deu origem e o banco tira proveito de todas estas operações.

 

Belda considera ainda que, para Molina, “pode-se negociar licitamente com os depósitos dos clientes, contanto que se seja prudente e não se arrisque a não poder cumprir as obrigações no tempo devido.”[14]

Belda afirma que Juan de Lugo efetua:

Uma descrição minuciosa das práticas de cambistas e banqueiros.  Aqui encontramos uma aprovação explícita da criação de crédito, embora não sob o aspecto formal de crédito criado.  Os bancos negociam com os depósitos dos clientes, os quais, por sua vez, não se veem privados do uso do próprio dinheiro.  Há uma expansão dos meios de pagamento realizada pelos bancos mediante créditos, descontos de efeitos comerciais e outras atividades econômicas realizadas com dinheiro alheio.  O resultado final é um aumento do poder de compra no mercado muito superior à quantidade representada pelos depósitos em dinheiro que lhes deu origem”.[15]

Obviamente, Belda conclui, de forma acertada que, entre as doutrinas dos escolásticos, as de Molina e Lugo são as mais favoráveis ao negócio bancário.  No entanto, temos de criticar o padre Belda por não apresentar as posições de outros membros da Escola de Salamanca, em particular as de Tomás de Mercado e, sobretudo, de Martín de Azpilcueta e Saravia de la Calle, que, como sabemos, são muito mais rigorosas e críticas no julgamento da instituição bancária.  Além disso, a análise das contribuições de Molina e Lugo efetuada por Belda é sustentada numa concepção keynesiana da economia que não só ignora todos os efeitos negativos que a expansão de crédito exerce sobre a estrutura produtiva, como a considera altamente benéfica, uma vez que aumenta a “procura efetiva” e o rendimento nacional.  Assim, a análise de Belda é um estudo, feito sob a perspectiva da escola keynesiana e bancária, das contribuições dos membros da Escola de Salamanca menos rigorosos em relação à justificação jurídica da instituição do depósito bancário de moeda e, logo, mais inclinados a considerar legítima a atividade bancária baseada num coeficiente de reserva fracionário.

Existe, porém, um tratado de Economia de outro notável jesuíta, o padre Bernard W.  Dempsey, intituladoInterest and Usury[16], no qual é feita uma análise da posição dos membros da Escola de Salamanca em relação ao negócio bancário, sustentado numa profunda bagagem de teoria monetária, do capital e dos ciclos, muito superior à utilizada pelo padre Belda.[17]

Curiosamente, Dempsey não desenvolve a tese analisando as posições dos autores da Escola de Salamanca mais contrários à atividade bancária (Saravia de la Calle, Martín de Azpilcueta e Tomás de Mercado), centra-se, antes, nos trabalhos dos representantes mais favoráveis à mesma (Luis de Molina, Juan de Lugo e Lesio).  Dempsey faz um estudo exegético das obras destes autores que o leva à conclusão de que, do ponto de vista das suas próprias doutrinas, a atividade bancária baseada na reserva fracionária não seria legítima.  Esta conclusão está baseada no fato destes autores defenderem a aplicação de princípios tradicionais sobre a usura à instituição bancária e aos efeitos econômicos, que, embora desconhecidos na altura, já haviam sido revelados teoricamente por Mises e Hayek quando Dempsey escreveu o trabalho.  De fato, embora seja necessário reconhecer o tratamento mais favorável ao sistema bancário por parte de Molina e Lugo, Dempsey indica expressamente que os empréstimos gerados do nada pelos bancos, graças ao exercício da atividade com coeficiente de reserva fracionário, envolvem a criação de um poder de compra que não exige qualquer tipo de poupança voluntária ou sacrifício prévio.  O resultado é um grande prejuízo de um elevado número de terceiros, que veem o poder de compra das unidades monetárias diminuir como consequência da expansão inflacionária dos bancos.[18] De acordo com Dempsey, esta criação de poder de compra a partir do nada, que não pressupõe a perda prévia de qualquer poder de compra por parte de terceiros, é contrária aos princípios essenciais do Direito, tal como foram entendidos pelos próprios Molina e Lugo e, neste sentido, seria condenável.  Em particular, Dempsey afirma que:

We may conclude from this that a Scholastic of the seventeenth century viewing the modern monetary problems would readily favour a 100 percent reserve plan, or a time limit on the validity of money.  A fixed money supply, or a supply altered only in accord with objective and calculated criteria, is a necessary condition to a meaningful just price of money.[19]

Dempsey insiste que a expansão de crédito gerada pelo sistema bancário deprecia o poder de compra da moeda, pelo que os bancos tendem a devolver os depósitos de dinheiro que lhes são reclamados em unidades monetárias cujo poder de compra é cada vez mais reduzido.  Isto leva à conclusão de que se o funcionamento do processo econômico provocado pelo sistema bancário baseada numa reserva fracionária tivesse sido bem conhecido teoricamente pelos membros da Escola de Salamanca, teria sido classificado, pelos próprios Molina, Lesio e Lugo, como um vasto, prejudicial e ilegítimo processo de usura institucional.

Analisadas as principais posições dos membros da Escola de Salamanca sobre o negócio bancário, vamos agora ver como as ideias foram aproveitadas e desenvolvidas nos séculos seguintes tanto pelo pensamento europeu continental como pelo anglo-saxônico.

A recepção no mundo anglo-saxônico das ideias sobre a moeda bancária

Embora este não seja o local adequado para analisar ao pormenor a evolução do pensamento monetário desde os escolásticos até à escola clássica inglesa,[20] interessa-nos comentar de forma breve a evolução das ideias sobre a atividade bancária com reserva fracionária até ao período do século XIX em que, no Reino Unido, se inicia oficialmente a discussão entre a Banking School (Escola Bancária) e a Currency School (Escola Monetária).

As ideias monetárias seminais dos membros da Escola de Salamanca são, mais tarde, acolhidas pelos italianos Bernardo Davanzati[21] e Geminiano Montanari, cujo livro La moneta foi publicado em 1683.[22] Nos tratados, esses teóricos partem das contribuições da Escola de Salamanca e desenvolvem a teoria quantitativa da moeda a partir da teoria apresentada por Martín Azpilcueta e outros escolásticos.  Embora essa influência monetária se faça sentir imediatamente na Inglaterra pelos trabalhos de Sir William Petty (1623-1687),[23]John Locke (1632-1704)[24] e outros, é preciso esperar pelos trabalhos de John Law, Richard Cantillon e David Hume para encontrar referências expressas à problemática do exercício do negócio bancário com reserva fracionária em matéria monetária e em relação à estrutura produtiva.

Já tivemos oportunidade de nos referirmos a John Law (1671-1729) no capítulo II deste livro, onde destacamos não só a personalidade invulgar, mas também o aspecto arbitrário e inflacionário de suas propostas em matéria monetária.  Apesar de devermos a Law algumas contribuições originais de valor, e, em particular, a crítica da teoria nominalista e convencional sobre a origem da moeda de Locke,[25] é também o primeiro a tentar dar cobertura teórica à falaz e popular ideia de que o crescimento da quantidade de moeda em circulação estimula sempre o desenvolvimento da atividade econômica.  De fato, depois de considerar corretamente que a moeda, como meio de troca geralmente aceito, possibilita a multiplicação de trocas e o alargamento da divisão do trabalho, Law infere errôneamente que quanto maior a quantidade de moeda em circulação, mais se intensificarão as trocas e o nível de atividade econômica.  O que se segue é um erro fatal de sua doutrina, ou seja, a crença de que a oferta de moeda se adaptará sempre à “demanda” e, em particular, ao número de habitantes e ao nível de atividade econômica.  Desta forma, se a quantidade de moeda em circulação não aumentar na mesma proporção do desenvolvimento da atividade econômica, esta entra em queda e o emprego diminui.[26] Esta teoria de Law, cujos erros viriam a ser apontados por Hume e pelos teóricos monetários da Escola Austríaca, perdura, de uma forma ou de outra, até hoje, não só por intermédio dos teóricos da Escola Bancária do século XIX, mas também dos próprios teóricos das modernas escolas monetarista e, sobretudo, keynesiana.  Em suma, Law atribui o baixo nível de atividade econômica na Escócia do seu tempo à “reduzida” oferta monetária em circulação no país, levando, assim, até às últimas consequências as ideias monetárias da escola mercantilista.  Por isso, Law propõe como objetivo prioritário de toda a política econômica aumentar a quantidade de moeda em circulação, o que pretendeu efetuar em 1705 com a introdução de papel-moeda coberto pelo ativo real mais importante da época, a terra.[27] Mais tarde, mudou de opinião e centrou todo o esforço de política econômica no estabelecimento de um sistema bancário com reserva fracionária que, por meio da emissão de papel-moeda redimível em espécie, deveria aumentar a quantidade de dinheiro ao ritmo que fosse necessário em cada circunstância para manter e estimular a atividade econômica.  Não vamos repetir aqui os pormenores do boom inflacionário gerado pelas propostas de Law na França no século XVIII, nem o fracasso de todo o sistema, que provocou graves danos econômicos e sociais no país.

Um contemporâneo de John Law foi o também especulador e banqueiro Richard Cantillon (c.  1680-1734), cujas aventuras já abordamos neste livro.  Cantillon era dotado de uma grande perspicácia para o desenvolvimento de análises teóricas.  Particularmente relevante é sua análise a respeito da influência do aumento da quantidade de moeda em circulação sobre os preços, que afeta, primeiro, o preço de determinados bens e serviços e se alarga gradualmente ao longo de um período mais ou menos prolongado por todo o sistema econômico.  Assim, para Cantillon, e, mais tarde, para Hume, as variações na quantidade de moeda afetam principalmente a estrutura de preços relativos, mais do que o nível geral de preços.  Em todo o caso, Cantillon era banqueiro e justificava o sistema bancário fracionário e a utilização em benefício próprio de tudo (dinheiro e valores mobiliários) o que os clientes lhe entregavam de forma indistinguível em forma de depósito irregular de bens fungíveis.  De fato, no capítulo VI da terceira parte do notável Essai sur la nature du commerce en general, dedicado a “Des Banques, et de leur crédit”, Cantillon não só faz um estudo justificativo da instituição, como chega à conclusão de que os bancos podem, em condições normais, operar sem problemas com um coeficiente de caixa de 10%.  Efetivamente, Cantillon afirma que:

Si un particulier a mille onces à païer à un autre, il lui donnera en paiement le billet du Banquier pour cette somme: cet autre n’ira pas peut-être demander l’argent au Banquier; il gardera le billet et le donnera dans l’occasion à un troisieme en paiement, et ce billet pourra passer dans plusieurs mains dans les gros paiements, sans qu’on en aille de long-tems demander l’argent au banquier: il n’y aura que quelqu’un qui n’y a pas une parfaite confiance, ou quelqu’un qui a plusieurs petites sommes à païer qui en demandera le montant.  Dans ce premier exemple la caisse d’un Banquier ne fait que la dixième partie de son commerce.[28]

Depois de Cantillon, e além das interessantes análises monetárias de Turgot, Montesquieu e Galiani,[29] é preciso esperar até à contribuição essencial de Hume para encontrar referências de interesse no campo bancário.

Os trabalhos de David Hume (1711-1776) em matéria monetária encontram-se incluídos em três breves, densos e muito lúcidos, ensaios intitulados, respectivamente, “Of Money”, “Of Interest” e “Of the Balance of Trade”.[30] Hume tem o especial mérito de ter refutado teoricamente as falácias mercantilistas das teorias de John Law, ao ter demonstrado que a quantidade de moeda em circulação é irrelevante do ponto de vista da atividade econômica.  De fato, segundo Hume, o volume de moeda em circulação é pouco importante e, em última instância, determinará apenas que, em geral, os preços sejam nominalmente mais altos ou mais baixos, tal como definido pela teoria quantitativa.  Em particular, e usando as próprias palavras de Hume, o vemos afirmar que: “the greater or less plenty of money is of no consequence; since the price of commodities are always proportioned to the plenty of money”.[31] No entanto, o reconhecimento de que o volume de moeda é irrelevante não impede Hume de admitir, com acerto, que o que tem um profundo impato sobre a atividade econômica real são os aumentos ou as diminuições da quantidade de moeda em circulação, já que, mais do que o nível “geral” dos preços, este tipo de alteração afeta sempre a estrutura de preços relativos.  De fato, os que primeiro recebem a moeda nova (ou sofrem uma diminuição nas vendas como consequência da diminuição da oferta da mesma) são sempre determinados comerciantes, iniciando-se um processo artificial de expansão (ou recessão) que tem uma grande influência sobre a atividade econômica.  Hume afirma que: “In my opinion, it is only in this interval or intermediate situation, between the acquisition of money and rise of prices, that the encreasing quantity of gold and silver is favourable to industry.”[32] Embora careça de uma teoria do capital que lhe permita ver de que forma os aumentos artificiais da quantidade de moeda afetam negativamente a estrutura produtiva, provocando uma inevitável reversão dos efeitos expansivos iniciais e, logo, a recessão, Hume intui corretamente este processo, o que o leva a ter dúvidas de que o aumento da expansão de crédito e das notas bancárias tenha qualquer vantagem econômica a longo prazo: “This has made me entertain a doubt concerning the benefit of banks and paper-credit, which are so generally esteemed advantageous to every nation.”[33] Por isso, Hume repudia a expansão de crédito em geral e o exercício da atividade bancária com um coeficiente de reserva fracionário em particular, defendendo, como já vimos no capítulo II, o exercício estrito com um coeficiente de caixa de 100%.  O autor conclui que:

To endeavour artificially to encrease such a credit, can never be the interest of any trading nation; but must lay them under disadvantages, by encreasing money beyond its natural proportion to labour and commodities, and thereby heightening their price to the merchant and manufacturer.  And in this view, it must be allowed, that no bank could be more advantageous, than such a one as locked up all the money it received (this is the case with the Bank of Amsterdam), and never augmented the circulating coin, as is usual, by returning part of its treasure into commerce.[34]

Igual valor tem o seu ensaio “Of Interest”, todo ele dedicado a criticar a ideia mercantilista (hoje keynesiana) de que existe uma relação entre a quantidade de moeda e a taxa de juro.  O raciocínio de Hume é o seguinte:

For suppose, that, by miracle, every man in Great Britain should have five pounds slipt into his pocket in one night; this would much more than double the whole money that is at present in the kingdom; yet there would not next day, nor for some time, be any more lenders, nor any variation in the interest.[35]

 

De acordo com Hume, a influência da moeda sobre a taxa de juro é apenas temporária (ou seja, a curto prazo) quando a moeda aumenta como resultado de expansão de crédito, iniciando um processo que, depois de culminado, faz com que a taxa de juro volte ao seu nível anterior:

The increase of lenders above the borrowers sinks the interest; and so much the faster, if those, who have acquired those large sums, find no industry or commerce in the state, and no method of employing their money but by lending it at interest.  But after this new mass of gold and silver has been digested, and has circulated through the whole state, affairs will soon return to their former situation; while the landlords and new money-holders, living idly, squander above their income; and the former daily contract debt, and the latter encroach on their stock till its final extinction.  The whole money may still be in the state, and make itself felt by the encrease of prices: But not being now collected into any large masses or stocks, the disproportion between the borrowers and lenders is the same as formerly, and consequently the high interest returns.[36]

 

É difícil encontrar uma análise tão concisa e correta como a que Hume faz nestes breves ensaios, o que nos leva a perguntar quão distinto teria sido o mundo da teoria econômica, e da realidade social, se autores como Keynes e outros tivessem lido e entendido desde o início estas importantes contribuições de Hume, imunizando-se contra as arcaicas ideias mercantilistas que, de quando em vez, reaparecem e adquirem nova popularidade.[37]

Comparadas com as teorias de Hume, as contribuições de Adam Smith devem ser consideradas, em grande medida, um claro retrocesso.  Smith é não só muito mais favorável que Hume ao papel-moeda e ao crédito bancário, como defende explicitamente o exercício da atividade bancária com um coeficiente de reserva fracionário.  Efetivamente, segundo Smith:

What a bank can with propriety advance to a merchant or undertaker of any kind, is not, either the whole capital with which he trades, or even any considerable part of that capital; but that part of it only, which he would otherwise be obliged to keep by him unemployed, and in ready money for answering occasional demands.[38]

 

O único limite que Smith põe à concessão de empréstimos com base no dinheiro depositado à vista nos bancos é o do uso “prudente” dos depósitos, uma vez que se assim não for o banco perde a confiança dos clientes e entra em falência.  Tal como acontecia com os teóricos da Escola de Salamanca mais favoráveis às concepções bancárias (Molina e Lugo), Adam Smith nunca chega a explicar em que consiste o critério de “prudência” nem a entender os efeitos muito prejudiciais que uma expansão temporária do crédito, num valor superior ao da poupança voluntária, tem sobre a estrutura produtiva.[39]

Depois de Adam Smith, os principais autores a analisarem temas bancários são Henry Thornton e David Ricardo.  Efetivamente, Thornton foi um banqueiro que em 1802 publicou um livro notável de teoria monetária com o título An Inquiry into the Nature and Effects of the Paper Credit of Great Britain.[40]Thornton desenvolveu uma análise muito acertada dos efeitos que a expansão de crédito tinha sobre os preços nas diferentes etapas da estrutura produtiva, chegando até a intuir que, sempre que a taxa de juro dos bancos fosse inferior à taxa média de lucro das diferentes empresas, se incorreria numa expansão indevida da emissão de notas, provocando inflação e, a longo prazo, efeitos depressivos.  Desta forma, Thornton antecipou não só a teoria de Wicksell sobre a taxa de juro natural, mas também grande parte da teoria austríaca dos ciclos econômicos.[41]

Depois de Thornton, destacam-se sobretudo os trabalhos de David Ricardo, cuja desconfiança em relação aos bancos encontra paralelo na que tinha David  Hume, e que pode considerar-se o precursor oficial da Currency School na Inglaterra.  De fato, Ricardo era muito cioso dos abusos cometidos pelos bancos na sua época, e, em especial, do prejuízo que causavam às classes médias e baixas quando não eram capazes de cumprir os compromissos.  Atribuía esses fenômenos a delitos dos banqueiros e, apesar de não ter intuído completamente o desenvolvimento da teoria austríaca ou da circulação do crédito (ou ciclos econômicos), compreendeu pelo menos que os processos artificiais de expansão e depressão tinham origem na atividade bancária e, concretamente, na emissão descontrolada de notas sem a correspondente cobertura de dinheiro vivo, injetadas no sistema econômico por um processo de expansão de crédito.[42] Na seção seguinte, faremos uma análise pormenorizada dos princípios mais importantes da Escola Monetária iniciada por Ricardo, bem como dos da Escola Bancária.[43]

A discussão entre a Escola Monetária e a Escola Bancária

Os argumentos populares a favor do exercício do sistema bancário com reserva fracionária que vinham sendo defendidos desde a época da Escola de Salamanca generalizaram-se e tornaram-se mais sistemáticos na Inglaterra na primeira metade do século XIX graças aos defensores da denominada Escola Bancária (BankingSchool).[44] De fato, durante esse período, forma-se um bem constituído grupo de teóricos (Parnell, Wilson, MacLeod, Tooke, Fullarton, etc.) que recolhe e sistematiza as três teses básicas da Escola Bancária: a) o exercício da atividade bancária com reserva fracionária está justificado teorica e legalmente e é muito benéfico para o desenvolvimento da economia; b) o sistema monetário ideal é aquele que facilita a extensão da oferta monetária de acordo com as “necessidades do comércio” e, em particular, o crescimento da população e da atividade econômica (esta é a ideia inicialmente desenvolvida por John Law); e c) graças à expansão do crédito e à emissão de notas de papel sem cobertura de moeda commodity, o sistema bancário de reserva fracionária permite aumentar a oferta monetária de acordo com as “necessidades do comércio”, sem que se produzam efeitos inflacionistas ou distorções da estrutura produtiva.

Entre os teóricos da Escola Bancária, destaca-se, sem qualquer dúvida, John Fullarton (c.  1780-1849).  Fullarton foi um dos autores mais persuasivos desta Escola e, em 1844, publicou um livro intitulado On the Regulation of Currencies,[45] que foi amplamente difundido.  Aqui, Fullarton desenvolve uma doutrina que acabaria por se tornar famosa e que é conhecida como “Lei do Refluxo” das notas bancárias e do crédito de Fullarton.  Segundo Fullarton, não existe risco de inflação na expansão de crédito materializada em notas emitidas pelo sistema bancário que exerça a sua atividade com reserva fracionária, uma vez que as notas emitidas pelos bancos são introduzidas no sistema econômico sobretudo em forma de empréstimos, e não de pagamentos diretos de bens e serviços.  Por conseguinte, de acordo com Fullarton, quando a economia “precisa” de mais meios de pagamento, procura mais empréstimos, e quando precisa menos, os empréstimos são devolvidos e voltam aos bancos, pelo que a expansão de crédito não tem qualquer efeito negativo no sistema econômico.  Esta doutrina, que alcançou uma grande popularidade, é um claro retrocesso em relação aos avanços da teoria monetária de autores como Hume e outros.  Além disso, obteve o surpreendente apoio do próprio John Stuart Mill, que veio a acabar por dar razão às teorias de Fullarton sobre a matéria.

Já analisamos aprofundadamente, ao longo deste livro, a razão por que os princípios básicos da Escola Bancária são essencialmente errados.  Só o desconhecimento dos fundamentos mais elementares da teoria monetária e do capital pode levar à noção de que a charlatanice inflacionista dos teóricos da Escola Bancária pode ter alguma sustentação.  O erro básico da Lei do Refluxo de Fullarton radica na sua incapacidade para perceber qual é a natureza essencial da emissão de créditos fiduciários.  É sabido que, quando um banco desconta uma letra ou concede um empréstimo, está trocando um bem presente por um bem futuro.  Uma vez que o banco que expande o crédito cria bens presentes do nada, só seria possível haver um limite natural em relação à quantidade de meios fiduciários passíveis de serem criados pelo sistema bancário se a quantidade de bens futuros oferecidos no mercado em troca dos empréstimos bancários fosse de alguma forma limitada também.  Contudo, como muito bem demonstrou Mises,[46] isso não acontece.  De fato, os bancos podem expandir ilimitadamente o crédito, simplesmente por meio da redução da taxa de juro pedida nos respectivos empréstimos.  Além disso, dado que aqueles que recebem o crédito se comprometem a devolver uma quantidade superior de unidades monetárias depois de decorrido um determinado período de tempo, não existe qualquer limite à expansão de crédito, uma vez que os respectivos prestatários poderão devolver os empréstimos com base em novas unidades monetárias criadas do nada pelo próprio sistema bancário no futuro.  Como afirma Mises, “Fullarton overlooks the possibility that the debtor may procure the necessary quantity of fiduciary media for the repayment by taking up a new loan.”[47]

Embora as teorias monetaristas da Escola Bancária estivessem erradas, existe um aspecto concreto em que acertaram.  Os teóricos da Escola Bancária foram os primeiros a recuperar a velha doutrina do setor “bancário” da Escola de Salamanca segundo a qual os saldos dos depósitos bancários cumpriam um missão econômica exatamente igual à das notas emitidas pelos bancos.  Como veremos mais adiante, ao longo da discussão mantida com os teóricos da Escola Monetária ou Currency School, que centravam a análise, única e exclusivamente, nos efeitos prejudiciais da emissão de notas de papel-moeda sem lastro, os defensores da Escola Bancária argumentaram, com toda a razão, que, por serem corretas (como eram), as prescrições da Escola Monetária, estas deveriam ser aplicadas também a todos os depósitos bancários, uma vez que desempenham um papel semelhante ao da emissão de notas de banco sem lastro.  Apesar de, como vimos, ter sido enunciada pelo grupo da Escola de Salamanca mais favorável ao sistema bancário (Luis de Molina, Juan de Lugo, etc.), esta doutrina tinha sido praticamente esquecida na Inglaterra do século XIX e teve de ser redescoberta pelos teóricos da Escola Bancária.  O primeiro a referir-se a tal questão foi, talvez, o próprio Henry Thornton, que, no dia 17 de novembro de 1797, testemunhando perante o Committee on the Restriction of Payments in Cash by the Bank, afirmou que: “The balances in the bank are to be considered in very much the same light with the paper circulation.”[48] Porém, a afirmação mais clara neste sentido é a de James Pennington, que em 1826 escreveu:

The book credits of a London banker, and the promissory notes of a country banker are essentially the same thing, that they are different forms of the same kind of credit; and that they are employed to perform the same function […] both the one and the other are substitutes for a metallic currency and are susceptible of a considerable increase or diminution, without the corresponding enlargement or contraction of the basis on which they rest.”[49]

Por sua vez, nos Estados Unidos, Albert Gallatin mostrou em 1831, de forma ainda mais explícita do que o próprio Condy Raguet, a equivalência econômica existente entre os depósitos e as notas do banco.  Especificamente, Gallatin escreveu que:

The credits in current accounts or deposits of our banks are also in their origin and effect perfectly assimilated to bank-notes, and we cannot therefore but consider the aggregate amount of credits payable on demand standing on the books of the several banks as being part of the currency of the United States.[50]

No entanto, independentemente desta boa contribuição da Escola Bancária em relação à redescoberta de que os depósitos bancários e o papel-moeda cumprem exatamente a mesma função econômica do dinheiro vivo e provocam os mesmos problemas, as demais doutrinas da Escola Bancária não foram capazes de defender coerentemente as ideias contraditórias, tentando, em vão, refutar a teoria quantitativa da moeda e fracassando na tentativa de desenvolver uma teoria coerente sobre a taxa de juro.[51]

Os defensores da Escola Monetária opuseram-se energicamente a estas doutrinas da Escola Bancária, seguindo uma tradição muito antiga que se remontava não só ao setor da Escola de Salamanca mais contrário ao sistema bancário (Saravia de la Calle, Martín Azpilcueta e, em menor medida, Tomás de Mercado), mas também, como já vimos, a Hume e Ricardo.  Os principais teóricos da Escola Monetária no século XIX foram Robert Torrens, S.J. Lloyd (mais tarde, Lord Overstone), J. R. McCulloch e George W. Norman.[52]

Os teóricos da Escola Monetária apresentaram uma explicação correta das fases recorrentes de auge e recessão que afetaram a economia britânica nas décadas de trinta e quarenta do século XIX: os boomstinham origem na expansão de crédito iniciada pelo Banco de Inglaterra e seguida pelos demais bancos do sistema inglês.  Saía ouro do Reino Unido sempre que os sócios comerciais da Inglaterra não expandiam o crédito ou o expandiam a um ritmo mais lento do que no Reino Unido, onde o sistema bancário baseado na reserva fracionária tinha alcançado um maior desenvolvimento.  Todos os argumentos imaginados pelos teóricos da Escola Bancária para tentar refutar a tese essencial da Escola Monetária (segundo a qual a drenagem externa de ouro e dinheiro vivo sofrida pelo Reino Unido era uma consequência inevitável da expansão bancária interna) fracassaram miseravelmente.  No entanto, os defensores da Escola Monetária incorreram em três erros graves que, a longo prazo, viriam a ser fatais.  Em primeiro lugar, não notaram que os depósitos bancários desempenhavam um papel exatamente igual ao das notas emitidas sem a correspondente cobertura de dinheiro vivo.  Em segundo lugar, não foram capazes de combinar a sua correta teoria monetária com uma explicação completa do ciclo econômico.  Afloraram apenas o problema e, sem uma teoria adequada do capital, não foram capazes de perceber de que forma a expansão bancária afetava negativamente as diferentes etapas de bens de capital da estrutura produtiva do país.  Não analisaram aprofundadamente as relações existentes entre as variações da oferta monetária e a taxa de juro de mercado, mantendo implicitamente o pressuposto, errado e ingênuo, de que a moeda poderia ser neutra, doutrina herdada pelos monetaristas atuais.  Foi preciso esperar até à reelaboração da tese da Escola Monetária efetuada por Ludwig von Mises, em 1912, para que a teoria monetária integrasse a teoria do capital, no âmbito de uma teoria geral explicativa dos ciclos econômicos.  O terceiro erro fatal da Currency School consistiu em considerar que, seguindo as prescrições de Ricardo, a melhor maneira de limitar os abusos inflacionistas da Escola Bancária era mediante a concessão do monopólio da emissão de papel-moeda a um banco central de caráter oficial,[53] sem perceberem que, a longo prazo, essa instituição viria a ser utilizada pelos próprios teóricos da Escola Bancária para aumentar o ritmo da expansão de crédito em forma de notas e depósitos em circulação.

Estes três erros da Escola Monetária foram fatais: fizeram com que a famosa Lei de Peel promulgada a 19 de julho de 1844, apesar das boas intenções, tenha esquecido de eliminar a criação de meios fiduciários (depósitos) não cobertos a 100% por dinheiro metálico, apesar de o ter feito em relação às notas do banco.  Desta forma, embora, a partir da Lei de Peel, a emissão de papel-moeda tenha sido monopolizada pelo banco central e teoricamente efetuada de acordo com um critério de plena cobertura de dinheiro metálico (coeficiente de 100%), os bancos privados eram livres de expandirem o dinheiro via concessão de novos créditos e da criação dos respectivos depósitos do nada.  Desta forma, mantiveram-se os booms expansivos e as subsequentes etapas de crise e depressão, durante as quais o Banco de Inglaterra se viu obrigado a, mais do que uma vez, suspender os princípios da Lei de Peel e a emitir o papel-moeda necessário para satisfazer a demanda de liquidez dos bancos privados, evitando, assim, quando possível, a falência.  Por conseguinte, é irónico que a Escola Monetária tenha apoiado a criação de um banco central que, gradualmente, e, sobretudo devido à influência negativa dos teóricos da Escola Bancária que preponderaram, acabou por ser utilizado para justificar e estimular políticas de descontrole monetário e de excesso financeiro muito piores do que aquelas que se pretendia impedir.[54]

Assim, apesar de ter sido completamente derrotada no campo das ideias, a Escola Bancária acabou por triunfar no campo da prática.  De fato, o fracasso da Lei de Peel deveu-se ao fato de não ter incluído entre as proibições a de emitir novos créditos e depósitos sem um coeficiente de reserva de 100%, o que permitiu que os ciclos recorrentes de auge e depressão continuassem a ocorrer, levando à perda de prestígio das propostas e teorias da Escola Monetária.  Assim, as exigências populares de inflação e expansão de crédito, apoiadas pelas sempre prontas teorias mercantilistas da Escola Bancária, encontraram um espaço no sistema bancário baseado no banco central, que acabou por ser utilizado como instrumento essencial de uma política intervencionista e planificada do crédito e da moeda, sempre dirigida para uma expansão monetária e de crédito descontrolada.

Apenas Modeste, Cernuschi, Hübner e Michaelis, mais tarde seguidos pela muito mais avançada análise de Ludwig von Mises, foram capazes de se aperceber de que a implementação de um banco central promovida pelos teóricos da Escola Monetária era errónea e de que a melhor e única maneira de manter os sãos princípios monetários da Escola Monetária da qual eram parte era através de um sistema de banca livre submetida ao direito privado, sem privilégios (ou seja, com um coeficiente de caixa de 100 por cento).  No entanto, vamos estudar esta questão mais aprofundadamente na próxima seção, na qual vamos analisar a discussão entre os partidários do sistema bancário livre e os do banco central.

 

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A DiScussão entre os partidários do banco central e os partidários do sistema bancário livre

A análise da polêmica ocorrida no século XIX entre os partidários do banco central e os defensores do sistema bancário livre deve partir da constatação do fato indiscutível de que existiu inicialmente uma estreita relação entre a escola do sistema bancário livre e a Escola Bancária, por um lado, e a Escola Monetária e a defensora do banco central por outro.[55] De fato, não é difícil compreender que, em geral, os defensores do exercício do sistema bancário com reserva fracionária tenham, num primeiro momento, apoiado a causa de umo sistema bancário livre de todo o tipo de interferências para que esta pudesse continuar com o exercício do seu negócio baseado num coeficiente fracionário de reserva.  Por outro lado, é também natural que os teóricos da Escola Monetária, sempre receosos da atividade dos banqueiros, se tivessem ingenuamente inclinado a favor da regulação estatal, através do estabelecimento de um banco central, que serviria para evitar os abusos que a Escola Bancária pretendia justificar.

O argumento de Parnell a favor da liberdade bancária.  As respostas de McCulloch e Longfield

Embora este não seja o lugar adequado para apresentar pormenorizadamente toda a discussão entre a escola do sistema bancário livre e a escola defensora do banco central — essa análise já foi muito bem realizada, entre outros, no livro de Vera C. Smith —, é necessário tecer algumas considerações complementares que consideramos oportunas.  O primeiro aspecto que vale a pena destacar é que a maioria dos teóricos defensores do sistema bancário livre fundamentou a doutrina nos raciocínios espúrios e inflacionistas da Escola Bancária, que comentamos na seção anterior.  Por isso, independentemente dos efeitos que um sistema de banca livre possa ter sobre o sistema econômico, a fundamentação teórica da maior parte dos defensores era ou completamente falaciosa ou, no melhor dos casos, insuficiente.  Assim, são poucas as contribuições teoricamente corretas da escola defensora da liberdade bancária durante este período.  Uma dessas contribuições, já comentada acima, foi o reconhecimento acertado de que, economicamente, os depósitos desempenhavam um papel idêntico ao das notas emitidas sem cobertura.  Outra, de grande interesse do ponto de vista analítico, deve-se a Sir Henry Parnell, que, já em 1827, apontou que um sistema de liberdade bancária colocaria limites naturais à emissão de notas de banco, devido ao efeito da respectiva câmara de compensação interbancária, que, de acordo com o modelo do sistema bancário escocês, Parnell acreditava poder se desenvolver em qualquer ambiente em que os bancos concorressem livremente na emissão de notas.  Efetivamente, segundo Parnell, os bancos de um sistema de atividade bancária completamente livre não poderiam expandir ilimitadamente a base de notas sem que os concorrentes exigissem o pagamento do valor das mesmas, em moeda, pela correspondente câmara de compensação.  Desta forma, com receio de não poderem fazer frente às correspondentes saídas de ouro, os bancos estabeleceriam, em defesa própria, um limite muito estrito à emissão de meios fiduciários.[56] A análise de Parnell é meritória e constitui o cerne dos argumentos esgrimidos até hoje em favor do sistema bancário livre, tendo sido até utilizada e desenvolvida por autores como Ludwig von Mises, que, pertencendo à Escola Monetária, eram céticos em relação ao sistema de banco central.[57]

O falso início da polêmica banco central-sistema bancário livre

O argumento de Parnell foi contestado por dois notáveis teóricos da Escola Monetária, McCulloch e Longfield.  De fato, segundo McCulloch, o mecanismo descrito por Parnell não poderia travar a inflação no caso de todos os bancos de um sistema de atividade bancária livre decidirem, de forma generalizada, em maior ou menor medida, deixar-se levar por uma onda de expansão na emissão de notas de banco.[58] Por sua vez, Samuel Mountifort Longfield, foi ainda mais longe do que McCulloch, argumentando que, num sistema bancário livre, mesmo a expansão da sua base de notas efetuada por um só banco levaria, inevitavelmente, a que os demais bancos fossem forçados a expandir também a emissão de notas, no caso de não quererem ver diminuída a sua quota de participação no mercado financeiro e, por conseguinte, os lucros.[59] O argumento de Longfield tem um importante fundo de verdade, uma vez que o processo de liquidação de notas emitidas em excesso através de uma câmara de compensação exige tempo, e há sempre a tentação, em muitos casos irresistível, de emitir notas em excesso, assumindo que outros bancos, mais cedo ou mais tarde, seguirão a mesma política expansiva.  Assim, o primeiro a começar obterá mais lucros e acabará por ficar uma situação competitiva mais favorável.

Seja qual for a base teórica dos argumentos de Parnell, por um lado, ou de McCulloch e Longfield, por outro, a verdade é que a discussão entre ambos os grupos de autores é responsável pelo aparecimento de uma falsa polêmica entre o banco central e o sistema bancário livre.  Dizemos que é “falsa”, uma vez que a discussão teórica entre eles não chega a tocar no âmago do problema essencial sobre a qual gira.  De fato, Parnell tem razão ao dizer que, num sistema bancário livre, o mecanismo de liquidação interbancária tende a pôr um limite aos casos isolados de expansão da emissão de notas.  Ao mesmo tempo, McCulloch, bem como Longfield, têm razão ao mostrarem que o argumento de Parnell não é válido se todos os bancos iniciarem, em maior ou menor medida, uma política expansiva na emissão de notas.  No entanto, os teóricos da Escola Monetária consideraram que os argumentos contra Parnell davam cobertura prima facie à constituição de um banco central que, na opinião deles, seria a melhor proteção contra os abusos do sistema bancário com reserva fracionária.  Por seu lado, Parnell contentava-se em defender o sistema bancário livre com o limite que o sistema de liquidação interbancária haveria de estabelecer às expansões feitas à base de notas dos bancos, sem notar que, independentemente dos argumentos apresentados por McCulloch e Longfield, voltar aos princípios tradicionais do Direito restabelecendo um coeficiente de caixa de 100% era muito mais simples e eficaz do que o processo de liquidação interbancária.  Não ter considerado esta possibilidade, pelo menos em relação aos depósitos bancários, é também o principal erro do ramo da Escola Monetária de McCulloch e Longfield, que, ao defenderem o estabelecimento de um banco central, estavam a construir os alicerces para o futuro reforço das políticas inflacionárias propostas pela escolas dos seus adversários.[60]

Argumentos a favor do estabelecimento de um banco central

A partir de então, desenvolveu-se uma prolongada polêmica entre os defensores do sistema bancário livre e os do sistema bancário central.  Estes usaram os raciocínios que apresentamos em seguida nos argumentos contra os teóricos da Escola Bancária, que preconizavam um sistema bancário livre.

Em primeiro lugar, um sistema de atividade bancária livre, pela própria natureza, e mesmo assumindo condições ótimas de funcionamento, seria suscetível a ocasionais crises em bancos isolados, que prejudicariam os clientes e possuidores de notas e depósitos.  Nestas circunstâncias, é necessário que exista um banco central de natureza oficial que intervenha para proteger os possuidores das respectivas notas e depósitos, que seriam gravemente prejudicados pelas crises bancárias.  Trata-se de um argumento paternalista que pretende justificar a existência de um banco central, sem ter em conta que a cobertura aos prejudicados em situações de crise tende apenas a piorar, a longo prazo, o funcionamento do sistema bancário, que exige uma supervisão constante e enérgica por parte do público.  Esta supervisão seria muito menos atenta e a confiança seria reforçada se o público em geral assumisse a priori que o banco central interviria para evitar prejuízos em caso de falências bancárias.  Além disso, a própria responsabilidade dos bancos tende a diminuir se estes também estiverem seguros de que o banco central os apoiará em caso de necessidade.  Assim, é muito verosímil que a existência de um banco central tenda a agravar as crises bancárias, como ficou demonstrado recentemente em diversos países ocidentais no caso do sistema de “seguro de depósitos bancários”, que teve um papel de destaque na promoção de comportamentos perversos por parte dos bancos e na facilitação e no agravamento das crises bancárias.  No entanto, do ponto de vista político, este argumento pode ter muito peso num ambiente democrático, e chegar mesmo a ser irresistível.  Em todo o caso, mostra que a polêmica entre o sistema bancário livre e banco central começa a ser desenvolvida “em falso”, uma vez que seria um argumento inútil num ambiente em que os princípios tradicionais do Direito fossem respeitados e em que fosse restabelecido um coeficiente de caixa de 100% para o sistema bancário.  Neste caso, nenhum possuidor de notas ou depósitos se veria prejudicado, uma vez que poderia sempre levantar o seu dinheiro independentemente do destino final do banco em que estivesse depositado.  Assim, o argumento paternalista de que é necessário um banco central para salvaguardar os interesses dos prejudicados deixa de fazer sentido.  Conclui-se, pois, que, dentro da lógica de um sistema bancário exercido com um coeficiente de reserva fracionário, o primeiro argumento, de natureza paternalista, a favor do banco central fomentaria crises bancárias, e que não faria sentido se o sistema bancário se sustentasse nos princípios tradicionais do Direito, atuando com um coeficiente de reserva de 100%.

O segundo argumento a favor dos bancos centrais baseia-se na ideia de que um sistema bancário controlado pelo banco central provoca menos crises econômicas do que um sistema bancário livre.  Aqui, tal como no argumento anterior, a discussão parte de novo de um pressuposto errado.  Como sabemos, o sistema bancário baseado na reserva fracionária provoca um crescimento da oferta monetária em forma de créditos, que perturba inevitavelmente a estrutura produtiva de bens de capital e gera, endógena e recorrentemente, um processo de reversão que se manifesta numa recessão econômica que afeta de forma especialmente grave os bancos.  Foi precisamente o desejo de proteger o sistema bancário dos efeitos das crises geradas recorrentemente pelo próprio exercício com reserva fracionária que levou os banqueiros a exigirem o estabelecimento de um banco central que, em última instância, lhes emprestasse dinheiro.  A experiência demonstrou que, em vez de atenuar as crises econômicas, a criação do banco central agravou-as de forma considerável, uma vez que, num sistema bancário livre com reserva fracionária e sem banco central, embora os processos expansivos indutores da crise não possam ser evitados, os mecanismos de reversão que levam ao necessário reajustamento e reparação dos erros econômicos cometidos são ativados muito mais cedo e muito mais rapidamente do que num sistema que conte com um banco central.  Efetivamente, por um lado, a perda de confiança por parte do público coloca em perigo os bancos mais expansionistas, que veem as reservas diminuir rapidamente à medida que os detentores de notas por eles emitidas levantam o seu contravalor de dinheiro vivo; por outro, os mecanismos de compensação interbancária relacionados com os depósitos põem em risco os bancos que expandem a base de crédito a um ritmo mais elevado do que os demais.  E mesmo que todos os bancos expandam, em maior ou menor medida, os depósitos e notas, não tarda que os processos espontâneos descritos pela teoria do ciclo econômico sejam ativados, tendendo a reverter os efeitos expansivos iniciais e a provocar a falência dos bancos marginalmente menos solventes.  Em contraste, a existência de um banco central, prestamista de última instância, pode, em grande medida, prolongar o processo de expansão monetária e de crédito, em comparação com o que, de forma autônoma, seria ativado num sistema bancário livre.  É impossível ignorar a contradição inerente da instituição do banco central, teoricamente criada para travar a expansão monetária, manter a estabilidade econômica e evitar as crises, mas que, na prática, se dedica a proporcionar nova liquidez em grande escala nos momentos de crise e de apuro bancário.  Se a isto adicionarmos as influências políticas e o desejo do público a favor da inflação, perceberemos a razão por que os processos inflacionários e seus efeitos perturbadores sobre a estrutura produtiva se agravaram, provocando crises e depressões econômicas ao longo da história com uma gravidade e uma profundidade muito maiores do que as que tinham surgido em sistemas bancários livres.  Assim, podemos concluir que este segundo argumento a favor do banco central carece de sustentação, uma vez que a existência deste banco tende a agravar e a tornar mais difíceis as crises e recessões econômicas.  É preciso reconhecer também, no entanto, que mesmo num sistema bancário livre com reserva fracionária, as crises continuariam a existir, tal como indicamos em capítulos anteriores e demonstraremos pormenorizadamente mais adiante, embora não atingissem a gravidade das ocorridas num sistema monetário dirigido por um banco central.  Não temos, no entanto, de nos resignar a viver sempre com crises e recessões econômicas recorrentes, pois basta que se restabeleçam os princípios gerais do Direito (coeficiente de reserva de 100%) para que o sistema bancário livre deixe de afetar negativamente os processos econômicos e possa ser eliminado o pretexto mais utilizado para justificar a criação do banco central.

O terceiro argumento utilizado a favor do sistema bancário central é o de que, depois da chegada da crise, a melhor maneira de reagir é via um banco central que proporcione a liquidez necessária.  Torna-se, novamente, evidente que a não identificação clara da raiz essencial dos problemas econômicos provocados pelo sistema bancário leva a erros substanciais de abordagem na polêmica entre os defensores do sistema bancário central e os do sistema bancário livre.  Embora os mecanismos de compensação financeira e o contínuo controle e supervisão do público tendesse a limitar a expansão de crédito, não seriam capazes de a evitar completamente, pelo que acabariam por surgir inevitavelmente crises bancárias e recessões econômicas.  Assim, não há dúvida de que as crises e recessões são o espaço ideal para os políticos e os técnicos que pretendam exercer uma ação deliberada por intermédio de um banco central.  Como é evidente, a própria existência de um sistema bancário com reserva fracionária conduz ao surgimento inevitável de um banco central como prestamista de última instância.  E podemos afirmar com segurança que, enquanto não se voltar aos princípios tradicionais do Direito e não se restabelecer o exercício do sistema bancário com um coeficiente de reserva de 100%, o desaparecimento do banco central será praticamente impossível (ou, se se preferir, será inevitável que este surja e se mantenha).

Por outro lado, o estabelecimento de um banco central para fazer frente às crise tende a agravar as depressões econômicas.  A existência de um prestamista de última instância agrava os processos de expansão conferindo-lhes um ritmo e uma duração muito maiores do que os que teriam num sistema bancário livre com reserva fracionária e sem banco central.  Assim, é paradoxal pensar que a existência e o surgimento de crises econômicas e bancárias exige a existência de um banco central, uma vez que, em última instância, este é o principal responsável pela sua maior gravidade e duração.  No entanto, é preciso não esquecer que, embora tenham menor gravidade num sistema bancário livre com reserva fracionária, não seria possível eliminar completamente as crises, pelo que é inevitável que os diferentes agentes econômicos envolvidos (basicamente banqueiros e os cidadãos potencialmente prejudicados pela crise) façam pressão para que se estabeleça um banco central.  A única possibilidade de acabar com este círculo vicioso é reconhecer que a origem de todos os males se encontra no exercício do sistema bancário com reserva fracionária.  De fato, o restabelecimento de um coeficiente de caixa de 100% não só evitaria as crises bancárias e as recessões econômicas recorrentes, como eliminaria este terceiro argumento, que é um dos mais invocados para justificar a existência do banco central.

Por fim, existem outros dois argumentos de tipo subsidiário em favor do banco central.  O primeiro refere-se à pretensa “necessidade” de uma política monetária “racional”, coercivamente imposta pelo banco central.  O segundo argumento relaciona-se com este e consiste na necessidade de estabelecer um política de cooperação monetária adequada entre os diferentes países, que, pressupõe-se, exigiria a existência de diferentes bancos centrais coordenados.  A impossibilidade teórica de implementação de uma política monetária e bancária centralizada e coerciva por intermédio de um banco central será estudada com detalhe na próxima seção, na qual aplicaremos a teoria da impossibilidade do socialismo ao setor bancário e financeiro.  Não vamos, por isso, alargar-nos aqui na análise profunda desses últimos argumentos.

A posição dos teóricos da Escola Monetária que defenderam um sistema bancário livre

Infelizmente, devido à incapacidade para estabelecer uma equivalência entre o efeito econômico dos depósitos e o das notas bancárias e à ingenuidade de proporem a criação de um banco central para corrigir os abusos do sistema bancário com reserva fracionária, os teóricos da Escola Monetária (Currency School) não conseguiram prever que o remédio que propunham acabaria por ser muito pior do que a doença que corretamente haviam diagnosticado.  Apenas uns poucos teóricos da Escola Monetária foram capazes de compreender que os princípios de estabilidade e solvência monetária que defendiam correriam um risco muito maior com o estabelecimento de um banco central.  Assim, como mal menor, propuseram a manutenção ou o estabelecimento de um sistema bancário livre sem banco central com o objetivo de, na medida do possível, pôr fim aos abusos.  No entanto, a maioria destes autores da Escola Monetária que defendiam o sistema bancário livre não se enganou a respeito da possibilidade de expansão deste sistema, tendo sempre considerado que a solução definitiva dos problemas poderia ser alcançada com a proibição da emissão de novos meios fiduciários (ou seja, com a proibição da expansão de crédito não coberta por um aumento da poupança voluntária real).  E se propuseram umo sistema bancário livre para emitir notas e depósitos, fizeram-no com o único objetivo de que, pelos respectivos mecanismos de compensação e liquidação interbancária, de controle e de supervisão do público por meio do mercado, e da falência imediata dos bancos que perdessem a confiança, se pudesse pôr um fim à emissão de notas e depósitos sem cobertura.[61] Pensavam com esta forma indireta conseguir aproximar-se do objetivo de estabelecer um coeficiente de reservas de 100% (quer para notas quer para depósitos), algo que, por outro lado, seria procurado com todos os meios jurídicos que em cada circunstância histórica estivessem disponíveis.

Esta ideia começou por ser defendida na França por Victor Modeste.[62] Com o mesmo objetivo em mente, a 24 de outubro de 1865, Henri Cernuschi afirmou o seguinte ante uma comissão dedicada à investigação da atividade bancária: “Je crois que ce qu’on appelle liberté bancaire aurait pour résultat la disparition complète des billets de banque en France.  Je souhaite donner à tout le monde le droit d’émettre des billets, de sorte que plus personne désormais n’en accepterait.”[63] As únicas falhas da doutrina de Cernuschi foram: ter-se referido única e exclusivamente às notas bancárias, deixando de fora os depósitos bancários e ter ignorado a solução mais radical de Modeste que, reconhecendo o caráter fraudulento do sistema bancário livre com reserva fracionária, considerava que o seu exercício deveria ser declarado ilegal.

Em paralelo com o desenvolvimento dessa corrente da Escola Monetária francesa a favor do sistema bancário livre e do coeficiente de caixa de 100%, um grupo de economistas alemães (entre os quais se destacavam Hübner e Michaelis) levava a cabo uma análise mais aprofundada do ponto de vista teórico.  Esta escola de língua alemã era influenciada por uma doutrina que se tinha formado nos Estados Unidos, a partir do pânico de 1819, contra o sistema bancário com reserva fracionária e o estabelecimento de um banco central.  De fato, como já vimos, nos Estados Unidos, teóricos como Condy Raguet e outros (William M. Gouge, John Taylor, John Randolph, Thomas Hart Benton, Martin Van Buren, etc.) desenvolveram toda uma doutrina monetária muito crítica em relação ao exercício do sistema bancário.[64] Estes autores identificaram corretamente que as crises se deviam ao exercício do sistema bancário com reserva fracionária e que a única maneira de acabar com elas era por via do restabelecimento de um coeficiente de caixa de 100%.[65]Tellkampf, que tinha estado nos Estados Unidos quando era jovem, foi testemunha dos abusos do sistema bancário com reserva fracionária no país e dos muito negativos efeitos recessivos que provocou, tendo assimilado a rigorosa doutrina monetária que se formou na América nessa altura.  Quando voltou à Alemanha e chegou a catedrático de Economia em Breslau, defendeu, em diferentes trabalhos, a eliminação da emissão de meios fiduciários por parte do sistema bancário.[66] As doutrinas de Tellkampf e da escola americana foram seguidas por Otto Hübner, que verificou que os bancos tendiam a ser insolventes com menos frequência se estivessem em ambientes de menor regulação.  De acordo com Hübner, a oposição era entre um sistema de bancos privilegiados protegidos e cobertos por um banco central, que tendia a favorecer o comportamento irresponsável dos bancos, e um sistema bancário livre, sem nenhum banco central que lhe desse cobertura ou concedesse privilégios, no qual cada banco teria de ser responsável pelos próprios atos e, assim, em igualdade de circunstâncias, atuaria de forma mais prudente.  Hübner considerava que o objetivo final seria a não emissão de notas sem cobertura de 100% de moeda metálica.  No entanto, tendo em conta a situação a que se havia chegado, defendia que a forma mais eficaz e rápida de se aproximar do sistema ideal era via liberdade bancária, na qual se exigiria a cada banco o cumprimento estrito das obrigações.[67]

Esta linha de pensamento foi enriquecida com as contribuições do notável teórico Philip Joseph Geyer, que teve o mérito de formular, já em 1867, uma teoria explicativa dos ciclos econômicos — precursora da proposta neste livro — que, mais tarde, viria a ser desenvolvida até às últimas consequências por Mises e Hayek.  De fato, Geyer resume impecavelmente as falhas do sistema bancário baseado na reserva fracionária, explicando de que forma provocava crises econômicas.  Segundo o autor, o sistema bancário dá origem a um “capital artificial” (künstliches Kapital), que se refere precisamente aos meios fiduciários gerados pelo sistema bancário não cobertos por uma riqueza real proveniente da poupança voluntária.  Geyer explica que esta criação de “capital artificial” dá origem a um boom que se reverterá inevitavelmente em forma de crises bancárias e recessões econômicas.[68] Por fim, Otto Michaelis defendeu, tal como Hübner, um sistema bancário livre como forma de pôr fim aos abusos e de aproximar-se do ideal do coeficiente de caixa de 100%.[69]

A tradição de Modeste, Cernuschi, Hübner e Michaelis foi continuada por Ludwig von Mises, que em 1912 deu um impulso definitivo aos postulados da Escola Monetária, não só estabelecendo que as notas bancárias e os depósitos eram meios fiduciários, mas também sustentando a sua teoria monetária na teoria da utilidade marginal de Böhm-Bawerk.  O resultado foi a primeira teoria coerente, completa e integrada dos ciclos econômicos.  Assim, Mises percebeu que a recomendação de um sistema bancário central feita pelos teóricos ingleses da Escola Monetária era um equívoco e que a melhor, e única, maneira de atingir os objetivos de solvência monetária da Escola consistia em estabelecer um sistema de atividade livre sem qualquer privilégio ao direito privado (ou seja, com um coeficiente de caixa de 100%).  Além disso, Mises percebeu também que a maioria dos defensores dos princípios da Escola Bancária acabou por aceitar de bom grado o estabelecimento de um banco central que, como prestamista de última instância, garantiria e perpetuaria os privilégios expansionistas de um sistema bancário privada que, cada vez com mais afinco, pretendia fugir dos compromissos e dedicar-se ao lucrativo “negócio” de criar moeda fiduciária pela expansão de crédito.  A cobertura proporcionada pelo estabelecimento de um banco central permitia que o fizesse sem ter de se preocupar em demasia com os problemas de liquidez.  Não surpreende, por isso, que Mises tenha sido especialmente crítico do fato de, na Lei de Peel de 1844, apesar das boas intenções, não ter sido eliminada, como foi em relação às notas bancárias, a criação expansiva de depósitos fiduciários, tendo-se ainda utilizado a lei para constituir e apoiar um sistema de atividade bancária central que, como já sabemos, acabou por servir para justificar e estimular políticas de descontrole monetário e financeiro muito piores do que aquelas que originalmente pretendia evitar.

A contribuição essencial de Mises para o estudo da moeda e dos ciclos monetários encontra-se incluída na sua obra Theorie des Geldes und der Umlaufsmittel (A Teoria da Moeda e do Crédito), publicada pela primeira vez em 1912.[70] Decorreram ainda oito anos até que Mises, em 1920, anunciasse o conhecido teorema sobre a impossibilidade do cálculo econômico socialista, que tanto viria a dar que falar na discussão desenvolvida sobre este tema nas décadas que se seguiram.  Embora não exista nenhuma evidência explícita de que Mises tivesse consciência de que os argumentos essenciais apresentados sobre a impossibilidade do socialismo eram também aplicáveis ao exercício do sistema bancário com reserva fracionária e, sobretudo, ao estabelecimento e funcionamento de um banco central, defenderemos na seção seguinte a tese de que a nossa análise sobre o sistema bancário com reserva fracionária e o banco central é apenas uma caso específico que decorre da aplicação do teorema geral sobre a impossibilidade teórica do socialismo ao âmbito financeiro.[71]

3

A APLICAÇÃO DO TEOREMA DA IMPOSSIBILIDADE DO SOCIALISMO AO BANCO CENTRAL

No capítulo II, vimos que, ao longo da história, os bancos centrais surgem não como resultado do processo espontâneo e evolutivo do mercado livre, mas como consequência da intervenção deliberada dos governos no setor bancário.  De fato, a instituição do sistema bancário central tem origem no fracasso dos poderes públicos no que se refere à definição e defesa adequadas do direito de propriedade dos depositantes ou seja, no que diz respeito a pôr fim ao uso abusivo do dinheiro que os banqueiros recebem em depósito dos clientes.  Este fracasso levou ao desenvolvimento de uma atividade bancária sustentada num coeficiente de reserva fracionário, que, como sabemos, permite que os bancos criem do nada novos instrumentos monetários e possam, assim, obter enormes lucros.  Já sabemos quais são os efeitos negativos que esta atividade bancária tem sobre a estrutura produtiva, na forma de crises e recessões de grande gravidade que, à partida, deveriam justificar um cuidado especialmente diligente para garantir o cumprimento dos princípios tradicionais do Direito (depósitos à vista com um coeficiente de caixa de 100%).  No entanto, ao longo da história, em vez de aumentar o zelo no que respeita ao cumprimento do Direito por parte dos bancos, os estados foram os primeiros a tirar proveito do sistema, concedendo todo o tipo de privilégios aos bancos.  De fato, para combater os problemas fiscais a que estão constantemente sujeitos devido à sua irresponsabilidade financeira, os governos não só legalizaram o exercício da atividade bancária com reserva fracionária através da concessão do respectivo privilégio, como tentaram sempre tirar proveito do mesmo, ora exigindo que grande parte dos empréstimos criados do nada pelo sistema bancário de reserva fracionária fossem concedidos ao próprio governo, ora reservando para si todo ou parte do exercício do sistema bancário com reserva fracionária.

Por sua vez, os próprios banqueiros privados não deixaram de notar que a sua atividade estava sujeita a recorrentes pânicos e crises de liquidez que regularmente punham a causa a continuidade do lucrativo negócio.  Assim, foram os primeiros interessados em solicitar o estabelecimento de um banco central que, como prestamista de última instância, lhes assegurasse a sobrevivência nos momentos de apuro.  Desta forma, os interesses dos banqueiros e os do estado e do banco central acabavam por coincidir, criando uma simbiose entre ambos em que os dois saíam beneficiados.  O estado consegue obter um financiamento fácil em forma de créditos e de inflação fiduciária, cujo custo passa despercebido aos cidadãos, que inicialmente não sente qualquer aumento de impostos.  Os banqueiros privados aceitam de bom grado a existência de um banco central e a regulamentação daí emanada, uma vez que percebem que, em última instância, toda a estrutura da atividade poderia se desfazer sem a cobertura de uma instituição oficial que proporcione a liquidez necessária quando surgem as “inevitáveis” crises bancárias e recessões econômicas.

Assim, podemos concluir, em consonância com Vera Smith, que o sistema bancário central não é um resultado instantâneo do processo de mercado, mas uma imposição coerciva do estado, que pretende atingir determinados objetivos (especialmente um financiamento mais fácil das despesas e a orquestração de políticas inflacionistas sempre muito populares), com a aquiescência e o apoio dos bancos privados, que, neste campo, sempre atuaram como cúmplices do governo ao longo da história.[72]

Surgiu assim historicamente a instituição do banco central, que se sustenta na relação de cumplicidade e na coligação de interesses que tradicionalmente existe entre governos e banqueiros e que explica na perfeição as relações de estreita “compreensão” e “cooperação” entre os dois tipos de instituição.  Estas relações permanecem até aos dias de hoje, apenas com pequenas alterações, em todos os países ocidentais e em quase todas as circunstâncias.  O banco central assegura a sobrevivência dos bancos privados e estes sujeitam-se a uma tutela e um controle político por parte daquele e, em última instância, do próprio governo.  Além disso, pretende-se que o banco central dirija a política monetária e de crédito de cada país, de forma a atingir determinados objetivos de política econômica.  Na próxima seção, veremos por que razão é teoricamente impossível que um banco central possa manter um sistema monetário e de crédito que não provoque graves desajustamentos e perturbações econômicas.[73]

A teoria da impossibilidade da cooperação e coordenação social baseadas na coerção institucional ou na violação dos princípios do Direito

Noutro lugar,[74] defendi a tese de que o socialismo deverá se redefinir, como qualquer sistema de agressão institucional, contra o livre exercício da função empresarial.  Esta agressão pode se manifestar como exercício ou ameaça de violência física perpetrada diretamente pelos órgãos do governo, ou pela concessão de privilégios a determinados grupos sociais (sindicatos, banqueiros, etc.) para que, com a cobertura do estado, possam atuar em violação dos princípios tradicionais do Direito.  Ora, tentar alcançar o objetivo de coordenar a sociedade mediante a coerção institucional é um erro intelectual, uma vez que não é teoricamente possível que o órgão encarregado de exercer a agressão institucional possa obter toda a informação de que necessita para dar uma feição coordenadora aos mandatos.[75] Isto acontece por quatro motivos; primeiro, por razões de volume — é impossível que o órgão de intervenção assimile constantemente o enorme volume de informação prática disseminada nas mentes dos seres humanos;segundo, dado o caráter especialmente intransferível da informação de que o órgão central necessita (pela natureza subjetiva, prática, tácita e não articulável da informação); terceiro, porque não é possível transmitir a informação que os atores ainda não tenham descoberto ou criado e que advém apenas do livre processo de mercado decorrente do exercício da função empresarial submetida ao Direito; e quarto, porque o exercício da coerção impede o processo empresarial de descobrir ou de criar a informação necessária para coordenar a sociedade.

É precisamente este o cerne do argumento originalmente desenvolvido por Mises em 1920 sobre a impossibilidade do socialismo e, em geral, da intervenção do estado na economia.  Este argumento explica teoricamente o fracasso histórico das economias do socialismo real bem com as crescentes tensões, desajustes e deficiências provocadas pelo estado providência intervencionista próprio das economias ocidentais.

Da mesma forma, a concessão de privilégios contrários aos princípios tradicionais do direito impossibilita a cooperação coordenada entre os diferentes agentes da sociedade.  De fato, os princípios tradicionais do Direito são indispensáveis para o exercício coordenado e pacífico da função empresarial.  A violação sistemática de tais princípios impossibilita, em maior ou menor grau, a livre criatividade empresarial e, logo, a criação e transmissão da informação necessária para coordenar a sociedade.  Quando se atua à margem destes princípios não se descobrem os desajustamentos sociais, e os que existem tendem a se agravar de forma sistemática.[76]

O exercício sistemático de coerção sobre a sociedade por parte do estado e a concessão de privilégios em violação dos princípios tradicionais do Direito tem como consequência inevitável o a desordem e o desajustamento social generalizado em todos os níveis e todas as áreas sobre as quais a coerção é exercida ou os privilégios concedidos.  De fato, quer a coerção quer os privilégios favoreçam a criação de informação errônea e o surgimento de ações irresponsáveis, isso leva à corrupção dos hábitos individuais de comportamento sujeitos a normas (leis em sentido material) e favorece o desenvolvimento da economia paralela ou irregular e, em suma, a criação e manutenção de todo o tipo de desajustamentos e conflitos sociais.

A aplicação do teorema da impossibilidade do socialismo ao banco central e aos sistemas de reserva fracionária

Umas das teses mais importantes deste livro é a de que o teorema da impossibilidade do socialismo e a análise realizada pela Escola Austríaca sobre os inevitáveis efeitos de descoordenação social provocados na sociedade pela coerção institucional e pela concessão de privilégios violando o Direito são aplicáveis ao sistema financeiro e bancário que se desenvolveu nas nossas economias e que tem por base no exercício do sistema bancário privado com um coeficiente de reserva fracionário e controlado por uma instituição (o banco central) que se tornou o artífice e responsável pela política bancária.

De fato, todo o sistema financeiro e bancário moderno das economias de mercado se sustenta, por um lado, no exercício sistemático de coerção, contra o livre exercício da função empresarial na área financeira, e, por outro lado, na concessão de privilégios aos bancos privados, em violação dos princípios tradicionais do Direito, para que possam operar com um coeficiente de reserva fracionário.

Não vale a pena insistir na natureza jurídica do privilégio “odioso” que é o exercício do sistema bancário com um coeficiente de reserva fracionário, uma vez que é uma questão que discutimos ao pormenor nos três primeiros capítulos deste livro.  Já no que diz respeito ao exercício sistemático de coerção no campo financeiro e bancário, é fácil compreender que é levado a efeito, em primeiro lugar, por intermédio das disposições de curso legal ou forçoso que obrigam à aceitação como meio liberatório da unidade monetária emitida pelo banco central monopolista.[77] A coerção institucional do banco central manifesta-se também na estrutura de toda a legislação bancária de tipo administrativo dirigida ao controle rigoroso da atuação das entidades de crédito e, a nível macroeconômico, à definição e execução da política monetária de cada país.[78]

Em suma, parece inevitável concluir que “a organização do sistema bancário está muito mais próxima da economia socialista do que da economia de mercado”.[79] Assim, em matéria bancária e de crédito estamos na mesma situação em que, até há poucos anos, se encontravam os países de socialismo real que pretendiam coordenar as decisões e processos econômicos por intermédio de um sistema de planificação central.  Ou seja, a “planificação central” tornou-se algo natural no campo do sistema bancário e do crédito nas economias de mercado, pelo que é natural que, nesta área, se verifiquem todos os efeitos de descoordenação e ineficiência já apresentados pela teoria do socialismo.  Vamos agora analisar mais detidamente a aplicação do teorema da impossibilidade do socialismo a três casos distintos de organização intervencionista e/ou privilegiada da atividade bancária, nomeadamente: a) o caso mais geral do banco central que exerça a tutela sobre um sistema bancário com reserva fracionária; b) o caso do banco central que atue sobre um sistema bancário que opere com um coeficiente de caixa de 100% e, por último, c) o caso de um sistema bancário livre (sem regulação e sem banco central), mas que exerça a atividade de forma mais privilegiada, ou seja, com um coeficiente de reserva fracionário.

a) O sistema baseado num banco central que “tutela” umo sistema bancário privada com reserva fracionária

O sistema baseado num banco central e no exercício privado do sistema bancário com reserva fracionária é o caso mais perturbador de “planificação central” sobre o sistema financeiro.[80] De fato, este sistema não só se fundamenta na concessão de um privilégio aos banqueiros privados (exercício do sistema bancário com um coeficiente de reserva fracionário), que provoca naturais distorções na forma de expansão de crédito e ciclos recorrentes de auge e depressão, como pressupõe que todo o sistema se encontre orquestrado, dirigido e apoiado por um banco central, prestamista de última instância, que, de forma sistemática, exerce coerção institucional no campo bancário, financeiro e monetário.

Ao proporcionar a liquidez necessária aos bancos nos momentos de crise, o banco central tende a neutralizar os mecanismos que espontaneamente fazem reverter os efeitos expansionistas do sistema bancário (que consistem, precisamente, na falência rápida dos bancos mais expansionistas e menos solventes).  Desta forma, o processo de criação de depósitos e de expansão de créditos sem cobertura de poupança real voluntária pode estender-se indefinidamente no tempo, agravando os efeitos de distorção sobre a estrutura produtiva e, logo, as inevitáveis crises e recessões econômicas que provoca.

O sistema de planificação financeira baseado no banco central não é capaz de eliminar a recorrência dos ciclos econômicos.  O mais que pode fazer é adiar a chegada por meio da criação de nova liquidez e do apoio aos bancos em perigo nas situações de crise bancária, à custa de tornar mais graves as inevitáveis recessões.  Mais cedo ou mais tarde, o mercado tenderá sempre a reagir e a reverter os efeitos das agressões monetárias a que é submetido, pelo que as tentativas deliberadas de evitar esses efeitos por via coerciva (ou de concessão de privilégios) estão condenadas ao fracasso.  O máximo que se pode conseguir é adiar, à custa de agravá-la, a necessária reversão, ou crise econômica.  Não é possível evitá-la.  No sistema bancário livre com reserva fracionária e sem banco central, a reversão (bem como a posterior recuperação) tende a ocorrer muito mais cedo, graças aos processos instantâneos de liquidação interbancária (o que não impede a existência de um efeito de distorção sobre a estrutura produtiva).  Com a criação de um banco central que proporcione, como prestamista de última instância, a liquidez necessária nos momentos de crise, os processos instantâneos de reversão e de recuperação do mercado tendem a ser neutralizados, o que faz com que as políticas de expansão possam ser muito mais duradouras e os seus efeitos negativos muito mais graves e prolongados.[81]

O banco central, como “órgão central de planificação financeira”, está submetido a uma contradição intrínseca.  De fato, como demonstrou veementemente F.A. Hayek, todos os bancos centrais enfrentam um dilema básico que torna inevitável que a sua política deva ser feita com um alargado poder discricionário, no entanto, continuam sem ter toda a informação de que precisam para atingir os seus objetivos.  O banco central exerce o seu poder sobre os bancos privados se apoiando sobretudo na ameaça de não lhes proporcionar a liquidez de que necessitem.  Contudo, ao mesmo tempo, consideramos que o principal dever e razão de ser do banco central consiste em não negar a proporcionar a liquidez necessária nos momentos em que se verifiquem crises bancárias.[82]

Tudo isto explica a grande dificuldade sentida pelos bancos centrais para eliminar as crises econômicas, apesar de todo o esforço e dedicação, bem como do minucioso e rigoroso controle que exercem sobre a atividade bancária privada, via legislação administrativa e coerção direta.[83]

Além disso, tal como acontecia com o Gosplan, o órgão máximo de planificação econômica da extinta União Soviética, o banco central é obrigado a recolher continuamente uma vastíssima quantidade de informação estatística sobre o negócio bancário, as diferentes componentes da oferta monetária e a demanda de moeda.  Esta informação estatística não inclui os aspectos qualitativos que seriam necessários para possibilitar uma intervenção não perturbadora, não só devido ao enorme volume desta informação, mas sobretudo em razão do seu caráter subjetivo, dinâmico, constantemente em mutação e particularmente difícil de obter no campo financeiro.  Assim, torna-se especialmente óbvia a impossibilidade de o banco obter toda a informação de que necessita para atuar de forma coordenadora, o que não é senão mais uma demonstração do teorema da impossibilidade do socialismo, neste caso aplicada ao campo financeiro.

O conhecimento das diferentes componentes da oferta e da demanda de moeda nunca está disponível para ser reunido de forma objetiva.  Pelo contrário, trata-se de um conhecimento de natureza prática, subjetiva, dispersa e de difícil articulação decorrente dos desejos subjetivos dos agentes econômicos, que estão em constante mudança e que dependem, em grande medida, da própria evolução da oferta monetária.  Já sabemos que qualquer quantidade de moeda é ótima, na medida em que, uma vez que os efeitos sobre a estrutura de preços relativos tiverem se verificado, os agentes econômicos podem tirar pleno proveito de sua capacidade de troca, qualquer que seja o volume absoluto da mesma.  O que provoca um grave efeito perturbador e dá lugar ao desajustamento e à descoordenação generalizada no comportamento dos diferentes agentes econômicos é a ocorrência de mudanças na quantidade de moeda e na sua distribuição, provocada pela expansão de créditos sem cobertura de poupança ou pela despesa direta das novas unidades monetárias em determinados setores da economia.

Assim, não surpreende que o sistema bancário central que estamos analisando se caracterize por ter desencadeado os processos de descoordenação intertemporal mais graves da história.  Já vimos que as políticas de “estabilização” do poder de compra da unidade monetária empreendidas pelos diferentes bancos centrais, especialmente pelos ingleses e norte-americanos, estimularam um grave processo de expansão de crédito e monetária ao longo dos “felizes” anos 1920, que provocou a mais grave depressão econômica do século passado.  Mais tarde, depois da Segunda Guerra Mundial, os ciclos repetiram-se de forma recorrente, alguns dos quais tão graves como a própria Grande Depressão: recorde-se a recessão de finais dos anos 1970 e, em menor medida, a de início dos anos 1990.  Isto apesar de todas as declarações programáticas em torno da necessidade de manter uma política monetária estável por parte dos governos e bancos centrais e do imenso esforço em termos de recursos humanos, estatísticos e materiais empenhados na consecução desse objetivo.  Apesar de tudo, o fracasso não podia ser mais evidente.[84]

Não existe qualquer possibilidade de que o banco central, como órgão central de planificação financeira, possa de alguma forma simular exatamente o funcionamento que a moeda privada teria no mercado livre submetido ao Direito.  Não só o banco central não tem a informação necessária, como a sua mera existência tende a reforçar os efeitos de distorção e expansão do sistema bancário com reserva fracionária, dando origem a graves descoordenações intertemporais no mercado, que, em muitas ocasiões, nem sequer o banco central é capaz de detectar até ser demasiado tarde.  Os próprios teóricos defensores do banco central, como Charles Goodhart, viram-se obrigados a reconhecer que, apesar de todos os esforços realizados, na prática, é quase impossível que os funcionários dos bancos centrais sejam capazes de coordenar adequadamente a oferta e a demanda de moeda, dado o comportamento muito variável, difícil de prever e sazonal das diversas variáveis com que trabalham.  Na verdade, é muito difícil, se não impossível, controlar a chamada “base monetária” e outro tipo de guias, tais como qualquer definição dos agregados monetários, a evolução do índice de preços ou a pré-fixação de uma taxa de juro ou de câmbio, sem dar origem a políticas monetárias erráticas e desestabilizadoras.

Além disso, Goodhart reconhece que os bancos centrais são submetidos às mesmas pressões e forças que afetam os demais organismos burocráticos e que foram estudadas pela Escola da Escolha Pública.  E os funcionários dos bancos centrais são seres humanos e estão sujeitos aos mesmos incentivos e às mesmas restrições que afetam os outros funcionários.  Por isso, é possível que, na sua atividade, se deixem levar, em maior ou menor medida, pelos diferentes grupos de interesses afetados pela política monetária do banco central.  Entre estes podemos incluir os políticos desejosos de conseguir votos, os próprios bancos privados e, não menos importantes, vários outros grupos de interesse privilegiados.  Goodhart conclui que:

There is a temptation to err on the side of financial laxity.  Raising interest rates is (politically) unpopular, and lowering them is popular.  Even without political subservience, there will usually be a case for deferring interest rate increases, until more information on current developments becomes available.  Politicians do not generally see themselves as springing surprise inflation on the electorate.  Instead, they suggest that an electorally inconvenient interest rate increase should be deferred, or a cut ‘safely’ accelerated.  But it amounts to the same thing in the end.  This political manipulation of interest rates, and hence of the monetary aggregates, leads to a loss of credibility and cynicism about whether the politicians’ contra-inflation rhetoric should be believed.”[85]

O reconhecimento dos efeitos negativos dos comportamentos dos funcionários do banco central analisados pela Escola da Escolha Pública e o caráter “perverso” da influência dos políticos sobre eles levou ao consenso de que os bancos centrais deveriam ser tão “independentes” quanto possível das decisões políticas de cada momento e de que tal independência deveria ser inserida na legislação.[86] Em certa medida, isto constitui um pequeno passo em frente na reforma do sistema financeiro.  No entanto, mesmo que a retórica quanto à independência dos bancos centrais seja reconhecida na legislação ou na própria constituição, e que, na prática, se torne efetiva (o que é mais do que duvidoso na maioria das vezes), muitos argumentos da análise da Escola da Escolha Pública sobre o comportamento “isolado” dos funcionários dos próprios bancos centrais continuariam a ser válidos.  Além disso, e ainda mais importante, o banco central continuaria a gerar grandes e sistemáticos desajustamentos intertemporais, mesmo quando, aparentemente, adota uma política monetária mais “estável”.[87]

Por fim, é muito curioso que a polêmica sobre a independência dos bancos centrais sirva de base a toda a discussão sobre a estrutura de incentivos mais adequada para motivar os funcionários responsáveis dos bancos centrais a desenvolverem a política monetária correta.  Assim, foi reavivada a estéril discussão em redor dos incentivos relacionados com o “órgão central de planificação financeira”, que tanta tinta fez correr entre os teóricos das economias do socialismo real durante os anos 1960 e 1970.  De fato, a proposta de fazer depender a remuneração dos funcionários do banco central da aproximação aos objetivos predeterminados de estabilidade dos preços é muito semelhante aos mecanismos de incentivos que infrutiferamente se tentaram introduzir para que os gerentes das empresas estatais dos países socialistas atuassem de forma mais “eficiente”.  Estes projetos de reforma do sistema de incentivos fracassaram, tal como fracassarão os bem intencionados desejos que atualmente sustentam as últimas propostas em relação ao banco central, uma vez que partem da ignorância do fato fundamental de que os funcionários responsáveis dos organismos públicos, sejam empresas estatais ou bancos centrais, não podem abstrair-se do ambiente burocrático em que desenvolvem seu trabalho diário, nem ultrapassar a situação de ignorância intrínseca em que se encontram.  Como afirma János Kornai, numa crítica às tentativas de desenvolvimento de um sistema artificial de incentivos para tornar o comportamento dos funcionários eficiente:

An artificial incentive scheme, supported by rewards and penalties, can be superimposed.  A scheme may support some of the unavowed motives just mentioned.  But if it gets into conflict with them, vacillation and ambiguity may follow.  The organization’s leaders will try to influence those who impose the incentive scheme or will try to evade the rules …  What emerges from this procedure is not a successfully simulated market, but the usual conflict between the regulator and the firms regulated by the bureaucracy …  Political bureaucracies have inner conflicts reflecting the divisions of society and the diverse pressures of various social groups.  They pursue their own individual and group interests, including the interests of the particular specialized agency to which they belong.  Power creates an irresistible temptation to make use of it.  A bureaucrat must be interventionist because that is his role in society; it is dictated by his situation.[88]

b) O sistema bancário privado exercido com um coeficiente de caixa de 100% e “controlado” por um banco central

Neste segundo sistema, os efeitos de distorção e de descoordenação advindos do ataque sistemático do banco central ao mercado financeiro são menores, uma vez que deixa de existir o privilégio concedido ao sistema bancário privado para poder exercer sua atividade com um coeficiente de reserva fracionário.  Neste sentido, é certo que os créditos concedidos pelo sistema bancário correspondem ao verdadeiro desejo de poupança dos agentes econômicos, pelo que se reduzem os efeitos de distorção da expansão de crédito não coberta por um aumento prévio da poupança voluntária real.  Isto não significa, contudo, que desapareçam todos os efeitos descoordenadores do banco central, dado que a simples existência de um banco central e o fato de este basear a atividade no exercício sistemático de coerção (promulgando decisões de curso legal ou forçoso e desenvolvendo uma política monetária predeterminada), também afetará negativamente os processos de coordenação social.

Neste caso, a descoordenação mais grave será a de natureza intratemporal, e não a de feição intertemporal,[89] uma vez que a nova moeda criada pelo banco central e colocada no sistema econômico tenderá a afetar “horizontalmente” a estrutura de preços relativos.  Ou seja, tenderá a gerar uma estrutura produtiva que, a nível horizontal, não irá necessariamente coincidir com a que os consumidores desejem manter a médio e longo prazo.  O resultado é uma má distribuição dos recursos e a necessidade de reverter os efeitos que as novas injeções de moeda tenham exercido sobre o sistema.[90]

Além disso, embora não nos possamos referir a qualquer caso real de um sistema central de bancos exercida sobre um sistema de bancos privados com um coeficiente de caixa de 100%, tal sistema estaria igualmente submetido às influências políticas e dos grupos de interesse analisadas nos estudos da Escola da Escolha Pública.  Seria ingênuo pensar que um banco central dotado do poder de emitir moeda poderá e quererá desenvolver uma política monetária estável e não perturbadora, mesmo operando sobre um sistema bancário privado cuja atividade se exerça com um coeficiente de reserva de 100%.  O poder de emitir moeda constitui uma tentação demasiado irresistível que os governos e os diferentes grupos de interesses vão sempre querer tirar proveito.  Assim, mesmo que o banco central não aumentasse os erros por um sistema bancário de reserva fracionária, estaria continuamente submetido ao risco de sofrer influências de tipo político e de diferentes grupos de interesses no sentido de tirar proveito do seu poder de emitir moeda, de forma a atingir os objetivos políticos que em cada circunstância histórica se consideram mais convenientes.

Em síntese, é preciso reconhecer que, no modelo que estamos analisando nesta seção, se se eliminar o privilégio do exercício da atividade bancária com reserva fracionária, reduzir-se-á a maior parte dos efeitos de descoordenação que levam a ciclos econômicos.  Ficariam, no entanto, latentes diversas possibilidades de descoordenação intratemporal, provocadas pela injeção das novas unidades monetárias no sistema econômico, independentemente do procedimento específico utilizado para injetar a nova moeda na sociedade (financiando parte da despesa pública, etc.).  Além disso, os efeitos analisados pela Escola da Escolha Pública desempenhariam um papel de destaque nestes desajustamentos intratemporais.  De fato, é quase inevitável que o poder de emissão de moeda do banco central tenda a ser explorado politicamente por diferentes grupos sociais, econômicos e políticos, dando assim ensejo a distorções na estrutura produtiva.  Embora seja certo que a política monetária seria mais previsível e menos perturbadora se os bancos privados mantivessem um coeficiente de caixa de 100%, os teóricos que defendem a manutenção do banco central nestas circunstâncias são ingênuos ao pensar que o governo e os diferentes grupos sociais poderão e desejarão desenvolver uma política monetária estável e, na medida do possível, “neutra”.  Mesmo nestas circunstâncias, a mera existência do banco central, com o seu poder de emissão de moeda, atuaria como um ímã irresistível atraindo todo o tipo de influências políticas perversas sobre o exercício de sua atividade.[91]

c) O sistema bancário livre com reserva fracionária

O terceiro e último sistema que vamos analisar do ponto de vista da impossibilidade do socialismo é o sistema bancário livre (ou seja, sem banco central), mas com o privilégio de poder atuar com um coeficiente de reserva fracionário.  A teoria da impossibilidade do socialismo também explica que a concessão de privilégios que permitam a determinados grupos sociais a violação dos princípios tradicionais do Direito tem os mesmo efeitos de descoordenação generalizada do socialismo, entendido como todo o sistema de agressão institucional e sistemática contra o livre exercício da função empresarial.  Já dedicamos uma grande parte deste livro (capítulos IV-VII) a estudar ao pormenor a forma como o descumprimento dos princípios tradicionais no que respeita ao contrato de depósito bancário de moeda dá lugar à possibilidade de que os bancos expandam a base de crédito sem que, a nível social, tenha havido um respectivo aumento da poupança voluntária, o que leva a uma descoordenação entre o comportamento de poupadores e investidores que acabará inevitavelmente por se reverter em forma de crise bancária e recessão econômica.

O principal esclarecimento a fazer no que diz respeito ao sistema bancário livre exercido com reserva fracionária e sem um banco central reside no fato dos processos espontâneos do mercado, que revertem os efeitos de distorção da expansão de crédito, tenderem a se desencadear mais rapidamente do que no caso de existir um banco central, pelo que os abusos e as distorções não podem chegar tão longe como acontece frequentemente quando existe um prestamista de última instância que orquestra todo o processo de expansão.

Assim, é possível imaginar que, num sistema bancário livre, a atitude de vigilância por parte dos clientes sobre a atividade e solvência dos bancos, a reavaliação constante da confiança depositada nos mesmos e, sobretudo, o efeito das câmaras de compensação interbancária farão com que, de forma relativamente ágil, rápida e espontânea, ponha fim às iniciativas isoladas de alguns bancos de expansão do próprio crédito.  De fato, os bancos que, de forma isolada, decidam expandir o crédito a um ritmo mais elevado do que o da média do setor, ou aumentar a emissão de notas a um ritmo superior ao da maioria, verão o volume das reservas a diminuir rapidamente, por mecanismos de liquidação e compensação interbancária, e por isso, serão forçados a interromper o crescimento da expansão para evitar a suspensão de pagamentos e, mais tarde, a falência.[92]

Não obstante, embora esta indubitável reação do mercado tenda a pôr fim aos abusos e iniciativas isoladas de expansão por parte de determinados bancos, não há qualquer dúvida de que o processo só funciona a posteriori e não é capaz de bloquear a emissão de novos meios fiduciários.  Como vimos no capítulo II, já desde o nascimento do sistema bancário com reserva fracionária, e embora na altura não existisse um banco central, se verificou um aumento significativo dos meios fiduciários, primeiro em forma de depósitos e créditos sem cobertura de poupança e, mais tarde, também em notas emitidas sem a correspondente cobertura de reserva em moeda.  Este processo foi distorcendo a estrutura produtiva e gerando ciclos sucessivos de auge e depressão que forma estudados e registados historicamente pelo menos a partir das crises bancárias e econômicas do século XIV em Florença e em diversas circunstâncias históricas nas quais os bancos privados operaram com reserva fracionária sem que existisse um banco central.  Tal como indica a teoria do sistema bancário livre, a grande maioria destes bancos expansionistas acabou por falir, mas só depois de um período mais ou menos prolongado de emissão de meios fiduciários, o que nunca deixou de ter graves efeitos negativos sobre a economia real, gerando crises bancárias e recessões econômicas.[93]

Por outro lado, o exercício do sistema bancário livre com reserva fracionária não só é incapaz de evitar as expansões e o surgimento de ciclos, como provoca uma tendência para que os bancos, em geral, se vejam tentados a expandir os próprios créditos, empreendendo uma política em que todos, em maior ou menor medida, se deixam levar pelo otimismo na concessão de empréstimos e na criação de depósitos.[94] E, como se sabe, sempre que os direitos de propriedade não são definidos adequadamente — e isto é o que acontece com o sistema bancário com reserva fracionária que, por definição, viola os princípios tradicionais do direito de propriedade dos depositantes — tende a gerar um efeito de “tragédia de bens comuns”.[95] Desta forma, o banco que expanda os créditos obtém (se não falir) lucros significativos e mais elevados, fazendo recair o custo da ação irresponsável, de forma diluída, sobre o resto dos agentes econômicos.  Por isso, os bancos se veem tentados de forma quase irresistível a ser os primeiros a iniciar uma política de expansão, sobretudo se estiverem à espera de que, como acontece frequentemente, tal política acabe por ser seguida, em maior ou menor grau, pelo resto do setor bancário.[96]

A única diferença em relação ao processo tradicional descrito por Hardin na sua explicação da “tragédia dos bens comuns”, na qual o autor aponta as consequências de uma definição inadequada dos direitos de propriedade no âmbito do meio-ambiente é que no campo do sistema bancário livre com reserva fracionária existe um mecanismo espontâneo, constituído por câmaras de compensação interbancária, que tende a pôr um limite às possibilidades de que as iniciativas isoladas de expansão cheguem a bom termo.  A situação em que se encontram os bancos neste sistema poderia, portanto, resumir-se no Quadro VIII-2.

Quadro VIII-2

 

Banco B

Banco A

Não expande

Expande

Não expande

Sobrevivência dos dois (lucros reduzidos)

Falência de A

Sobrevivência de B

Expande

Falência de B

    Sobrevivência de A

Grandes lucros para ambos

No quadro, pressupomos existir dois bancos, o banco A e o banco B, cada um com duas opções em aberto: não expandir o crédito ou iniciar uma política de expansão de crédito.  Se ambos os bancos iniciarem simultaneamente a expansão de crédito (e supondo que não existem outros bancos no setor), obterão os mesmos grandes lucros derivados da capacidade de emitir novas unidades monetárias e meios fiduciários.  Se qualquer dos bancos expandir o crédito sem que o outro o faça, então os mecanismos de compensação interbancária colocarão em perigo a viabilidade e solvência, fazendo com que um perca as reservas em benefício do outro banco caso não interrompa a tempo a política de expansão de crédito.  Por fim, há também a opção de nenhum do bancos expandir o crédito, mas manter uma política prudente de concessão de créditos.  Neste caso, a sobrevivência dos bancos está assegurada, embora os lucros sejam bastante modestos.  Nestas circunstâncias, é evidente que existe uma forte tentação para que ambos os bancos cheguem a acordo e, para evitar as consequências negativas decorrentes de atuações independentes, iniciam uma política conjunta de expansão de crédito que os defenda mutuamente da insolvência e lhes assegure a obtenção de lucros significativos.[97]

A análise acima pode ser estendida ao caso de um grupo numeroso de bancos que exercem livremente a atividade com reserva fracionária.  Esta análise explica que, nessas condições, os mecanismos de compensação interbancária, mesmo que atuem imitando a iniciativas isoladas de expansão, incitam, implícita ou explicitamente, a maioria dos bancos a estabelecer acordos entre si para iniciarem o processo de expansão em conjunto (seja de forma ativa ou “passiva”, isto é, dando resposta sem restrições às maiores procuras generalizadas de crédito — “inflacionismo passivo”).  Assim, num sistema bancário livre com reserva fracionária, existe a tendência para a fusão dos bancos, a realização de acordos explícitos e implícitos entre eles e, em última instância, para o estabelecimento de um banco central.  Este surge normalmente como resultado de exigências dos próprios banqueiros privados que desejam institucionalizar o caráter conjunto da expansão de crédito por intermédio de um organismo público que a orquestre e organize, evitando assim que o comportamento “anti-solidário” de um grupo significativo de bancos relativamente mais prudente possa pôr em causa a solvência dos demais (mais “alegres” na concessão de créditos).

Desta forma, a nossa análise permite-nos concluir o seguinte: 1) que o sistema de compensação interbancária não é suficiente para pôr limite à expansão de crédito num sistema de banca livre com reserva fracionária, se ocorrer de a maioria dos bancos decidir simultaneamente fazer qualquer tipo de expansão dos créditos sem que haja um aumento prévio de poupança voluntária; 2) que o próprio sistema bancário baseado na reserva fracionária estimula os bancos a chegar a acordo para iniciarem as políticas de expansão de forma generalizada e coordenada; 3) que os bancos do sistema têm um forte incentivo para reclamar e conseguir o estabelecimento de um banco central que institucionalize, orquestre e organize a expansão de crédito por parte de todos os bancos, garantindo ainda a criação da liquidez necessária em etapas de “apuro”, que os bancos sabem por experiência própria que acabam sempre por surgir de forma recorrente.[98]

A concessão de um privilégio ao sistema bancário que lhe permita fazer uso de uma parte significativa do dinheiro que recebe em depósitos à vista, ou seja, que lhe permita exercer a atividade com um coeficiente de reserva fracionário, tem efeitos de descoordenação substanciais sobre a economia, semelhantes aos provocados pelas concessões de privilégios a outros grupos sociais noutros contextos (sindicatos no mercado de trabalho, etc.).  No caso particular que estamos a analisar, o sistema bancário com reserva fracionária perturba a estrutura produtiva e provoca uma descoordenação intertemporal generalizada da economia, que, em última instância, se reverte de forma espontânea em forma de crises e recessões econômicas.  Embora existam processos autônomos de reversão que tendem a pôr fim aos abusos mais cedo do que num sistema bancário com reserva fracionária controlado e liderado por um banco central, o efeito mais negativo do sistema bancário livre com reserva fracionária é que dá aos bancos um fortíssimo incentivo para que cheguem a acordo sobre a expansão dos créditos e, sobretudo, para que se empenhem em pedir às autoridades a criação de um banco central que os apoie nas etapas de dificuldade econômica e organize e orquestre a expansão de crédito de forma conjunta e generalizada.

Conclusão: o fracasso da legislação bancária

O processo social de mercado é possível graças a um conjunto de normas de feição consuetudinária.  Estas normas, que acabam também por ser consequência do processo social de mercado, são constituídas por padrões de conduta que integram o direito contratual privado e o direito penal.  Não foram concebidas deliberadamente por ninguém; são instituições evolutivas que surgem e se consolidam a partir de informação prática de um número muito elevado de atores ao longo de um período muito prolongado.  Neste sentido, o direito material é constituído por um conjunto de normas e leis gerais (ou seja, aplicáveis a todos por igual) e abstratas (uma vez que apenas estabelecem um amplo âmbito de atuação individual, sem prever qualquer resultado concreto do processo social).  Em contraste com esta concepção do Direito ou lei em sentido material, é preciso distinguir o conceito de legislação, entendida como o conjunto de ordens ou prescrições coercivas, de cariz regulamentar e ad hoc, nos quais se materializa a concessão de privilégios em violação do direito e a agressão institucional e sistemática com que o governo tenta dominar os processos de interação humana.[99] A legislação, entendida desta forma, implica o desaparecimento do conceito tradicional de lei que acabamos de apresentar e sua substituição por um “direito espúrio” constituído por um conglomerado de ordens, regulamentos e prescrições em que é especificado qual será o conteúdo concreto do comportamento do agente econômico regulamentado.  Desta forma, à medida que a concessão de privilégios e a coerção institucional se alarguem e desenvolvam, as leis tradicionais deixam de atuar como normas de referência para o comportamento individual e seu papel passa a ser desempenhado pelas ordens e determinações coercitivas emanadas do órgão diretor, no nosso caso, o banco central.  Assim, a lei vai perdendo gradualmente o âmbito de implantação prática e os diferentes agentes econômicos afetados, ao perderem a referência constituída pelo Direito em sentido material, vão modificando, sem perceber, a personalidade e perdendo até os hábitos ou costumes de adaptação a normas gerais de caráter abstrato.  Nestas circunstâncias, como “fugir” às ordens é, muitas vezes, uma exigência determinada pela necessidade de sobrevivência e, noutras uma manifestação do sucesso de uma função empresarial corrompida ou perversa, o descumprimento da norma passa a ser considerado, do ponto de vista geral, mais como uma louvável manifestação do engenho humano do que como uma violação de um sistema de normas que prejudica gravemente a vida em sociedade.

Estas considerações são plenamente aplicáveis ao campo da legislação bancária.  De fato, o estabelecimento do sistema bancário com reserva fracionária, que se generalizou a todos os países de economia de mercado, implica, antes de mais, e como vimos nos três primeiros capítulos deste livro, a violação de um princípio essencial do Direito que regula o depósito bancário de moeda e a concessão de um ius privilegium a determinados agentes econômicos, os bancos privados, para que atuem em desrespeito a tais princípios jurídicos e possam usar, em benefício próprio, a maior parte do dinheiro que recebem de depósitos à vista.  A legislação bancária consubstancia-se, em primeiro lugar, no abandono dos princípios tradicionais do Direito que regem o contrato de depósito de moeda à vista, que constitui o cerne da atividade bancária moderna.  Além disso, manifesta-se também no emaranhado de ordens e determinações administrativas que emanam do banco central e que pretendem regular todos os aspectos da atividade concreta dos banqueiros privados.  Este emaranhado legislativo não só foi incapaz de evitar o aparecimento cíclico de crises bancárias, como, o que é mais grave, fomentou e agravou o surgimento recorrente de etapas de grande auge artificial e de profunda recessão econômica, que afetaram as economias ocidentais com regularidade e resultaram em um grande custo em termos econômicos e humanos.  Assim:

A cada nova crise, é promulgada urgentemente uma nova legislação ou um conjunto de reformas das anteriores, na ingénua assunção de que a lei antiga não era suficiente e de que com a nova, mais pormenorizada e abrangente, será possível prevenir melhor as crises futuras.  Assim, o governo e o banco central justificam a sua incompetência na prevenção de crises, que, no entanto, voltam a surgir de forma recorrente, pelo que as novas normas duram apenas até à próxima crise bancária e recessão econômica.[100]

 

Por isso, podemos concluir que a legislação bancária estará condenada ao fracasso enquanto não for completamente abolida e substituída por uns simples artigos incluídos nos códigos comercial e penal, nos quais se estabeleça a regulação do contrato de depósito bancário de moeda de acordo com os princípios tradicionais do Direito (coeficiente de caixa de 100%) e se proíbam todos os contratos que, à margem da lei, mascarem o exercício da atividade bancária com um coeficiente de reserva fracionário.  Trata-se, em suma, de acordo com Mises, de substituir o atual emaranhado de legislação bancária de tipo administrativo, que não conseguiu atingir os objetivos a que se propunha, com artigos simples e claros incluídos nos códigos comercial e penal.[101]

Neste sentido, interessa notar que os teóricos modernos defensores do sistema bancário livre com um coeficiente de reserva fracionário consideram, erradamente, devido, entre outras coisas, à falta de formação jurídica, que o coeficiente de reserva de 100% seria uma intromissão administrativa inadmissível na liberdade individual.  No entanto, pela análise dos três primeiros capítulos deste livro, sabemos que não há nada mais longe da verdade.  Estes teóricos não percebem que tal disposição, longe de envolver uma coerção governamental e administrativa sistemática, é apenas a mera aplicação de um princípio tradicional do direito de propriedade ao campo bancário.  Ou seja, não reconhecem que a um sistema bancário livre não submetido ao Direito, que exerça sua atividade com reservas fracionárias se pode aplicar a famosa frase anônima de um americano e dada a conhecer por Tooke, segundo a qual “bancos livres equivalem a fraude livre”.[102] E, se, em última instância, a existência de um sistema bancário livre pode ser defendido e considerado um “mal menor” quando comparado a um sistema com banco central, tal defesa deve ser feita não como meio para permitir a exploração das possibilidades de lucro decorrentes da expansão de crédito, mas como meio indireto de permitir uma aproximação ao ideal do sistema bancário livre submetido ao Direito, ou seja, exercido com um coeficiente de reservas de 100%.  Este objetivo deve ser perseguido diretamente com todos os meios jurídicos que em cada circunstância histórica estejam disponíveis num Estado de Direito.

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Análise crítica da escola moderna dE Atividade bancáRIa livre com reserva fracionária

Nos últimos vinte e cinco anos verificou-se um certo renascimento das velhas doutrinas econômicas da Escola Bancária pela mão de um grupo de teóricos que defendem que o sistema bancário livre baseado na reserva fracionária não só provocaria menos distorções e crises econômicas do que o sistema bancário central, como tenderia a eliminá-las por completo.  Uma vez que estes teóricos fundamentam os seus raciocínios em várias variantes, mais ou menos sofisticadas, dos antigos argumentos da Escola Bancária, iremos agrupá-los sob a designação de Escola Neobancária ou, se se preferir, de “escola moderna defensora do sistema bancário livre com reserva fracionária”.  Esta escola é composta por uma curiosa coligação de teóricos,[103] entre os quais é necessário destacar os membros da Escola Austríaca que ignoraram parte dos ensinamentos de Mises e Hayek em matéria monetária e de teoria do capital e dos ciclos, como são os casos de White,[104] Selgin[105] e, mais recentemente, Horwitz;[106] membros da escola inglesa subjetivista, como Dowd;[107] e, por último, teóricos provenientes do campo monetarista, como Glasner,[108]Yeager[109] e Timberlake.[110] Embora não possa considerar-se que seja parte desta nova escola, até Milton Friedman[111] tem vindo gradualmente a inclinar-se nesse sentido, sobretudo depois de constatar o fracasso em convencer os bancos centrais de que devem pôr em prática a famosa proposta de regra monetária.

Os teóricos modernos da escola bancária livre com reserva fracionária desenvolveram uma análise econômica do chamado “equilíbrio monetário”, que, utilizando elementos típicos da análise da Escola Monetarista e da Escola Keynesiana,[112] pretendem demonstrar que um sistema bancário livre com reserva fracionária se limitaria a ajustar a criação de meios fiduciários (notas e depósitos) à demanda pública dos mesmos.  Desta forma, defendem que o sistema bancário livre com reserva fracionária não só manteria o “equilíbrio monetário” mais eficientemente do que outros sistemas alternativos, como seria a instituição capaz de, efetivamente, ajustar a oferta de moeda e sua demanda.

De forma simplificada, o argumento tem por base a consideração do que acontecerá se houver um aumento da demanda de meios fiduciários por parte dos agentes econômicos, assumindo que as reservas em moeda do sistema bancário se mantêm.  O raciocínio seguido neste caso é o de que o ritmo de troca deste meios fiduciários por reservas dos bancos diminuiria.  Isto levaria ao aumento das reservas e os bancos, desejosos de obter maiores lucros e notando o aumento das reservas, expandiriam o crédito e a emissão de notas e de depósitos, provocando um aumento na emissão de meios fiduciários que tenderia a se adaptar ao aumentoprévio da demanda.  Aconteceria o oposto caso se verificasse uma diminuição da procura de meios fiduciários: os agentes econômicos levantariam maiores quantidades de reservas para se poderem libertar dos meios fiduciários.  Ao ver a solvência em risco, os bancos seriam forçados a contrair o crédito e a diminuir a emissão de notas e depósitos.  Desta forma, a diminuição da oferta de meios fiduciários seguiria a diminuição prévia da demanda dos mesmos.[113]

Esta análise sobre o chamado “equilíbrio monetário” tem ecos evidentes da teoria do refluxo de Fullarton e, sobretudo, de velhos argumentos da Escola Bancária relativos às “necessidades do comércio”, de acordo com os quais a criação de meios fiduciários por parte do sistema bancário privado não seria prejudicial se correspondesse a um aumento das “necessidades” dos comerciantes.  Todos estes argumentos são repetidos e enquadrados na “nova” teoria do “equilíbrio monetário” segundo a qual a criação de meios fiduciários em forma de notas e depósitos por parte do sistema bancário privada não gerará ciclos econômicos se for uma resposta a um aumento da procura de tais instrumentos por parte do público.  Embora esta versão reformada da doutrina das “necessidades do comércio” esteja já embrionariamente desenvolvida no livro de Lawrence H. White sobre o sistema bancário livre na Escócia,[114] não foi elaborada teoricamente por este autor, mas por um de seus discípulos mais destacados, George A. Selgin.  A seguir vamos estudar com pormenor a teoria de Selgin sobre o “equilíbrio monetário”, analisando criticamente sua versão revista das velhas doutrinas inflacionistas da Escola Bancária.

O erro de centrar a análise na demanda de meios fiduciários, considerada como uma variável exógena

O ponto de partida da análise de Selgin é a ideia de que a procura de moeda em forma de meios fiduciários é uma variável exógena ao sistema, que aumenta ou diminui de acordo com os desejos dos agentes econômicos, pelo que a principal missão do sistema bancário livre é ajustar a emissão de depósitos e de notas de banco aos aumentos e diminuições da demanda.[115] No entanto, esta demanda não é exógena ao sistema, mas sim determinada endogenamente por ele.

Não é por acaso que os teóricos da escola do sistema bancário livre com reserva fracionária começam a análise centrando-a em misteriosas variações na demanda de meios fiduciários, cuja origem e etiologia deixam por explicar.[116] É como tivessem percebido que, no lado da oferta monetária, a análise austríaca demonstrou que a expansão de crédito provoca distorções substanciais na Economia, o que, de qualquer forma, parece justificar um sistema monetário rígido[117] capaz de impedir expansões e contrações monetárias próprias de todo o sistema bancário com reserva fracionária.  Assim, pelo lado da oferta, os argumentos parecem dar apoio ao estabelecimento de um sistema monetário inelástico, tal como o do padrão-ouro puro com um coeficiente de reserva de 100% para os depósitos à vista do sistema bancário.[118]Por isso, se os defensores da Escola Neobancária pretendem justificar um sistema bancário com reserva fracionária que possa dar ensejo a aumentos e diminuições substanciais na oferta de moeda em forma de meios fiduciários, terão de recorrer autonomamente ao lado da demanda, com a esperança de poderem demonstrar que essas modificações na oferta de meios fiduciários (inevitáveis num sistema bancário com reserva fracionária) respondem a variações prévias da demanda, passíveis de serem satisfeitas por meio do restabelecimento de um hipotético “equilíbrio monetário” pré-existente.

Os aumentos da oferta monetária em forma de expansão de crédito distorcem a estrutura produtiva e provocam etapas de  boom econômico e, mais tarde, de recessão durante as quais se verificam variações significativas na demanda de moeda e de meios fiduciários.  Assim, a evolução dos acontecimentos não se inicia, como pressupõem os teóricos da escola moderna de liberdade bancária na sua análise, em movimentos autônomos nascidos da demanda de meios fiduciários, mas na manipulação da oferta dos mesmos, exercida, em maior ou menor medida, por todo o sistema bancário com reserva fracionária em forma de expansão de crédito.

Na realidade, existindo uma multiplicidade de bancos livres não cobertos por um banco central, a expansão de crédito terminará muito mais cedo do que num sistema em que o banco central organize uma expansão generalizada e, além disso, dê cobertura aos bancos em perigo com a sua liquidez.  Este é o argumento a favor do sistema bancário livre desenvolvido originalmente por Parnell e, mais tarde, visto como secondbestpor Mises.[119] No entanto, uma coisa é afirmar que, um sistema bancário completamente livre, a expansão de crédito chegará ao seu limite mais cedo e outra, muito diferente, que a expansão de crédito gerada por um sistema bancário livre com reserva fracionária nunca perturbará a estrutura produtiva por tender sempre a restabelecer um pretenso “equilíbrio monetário”.  O próprio Ludwig von Mises assinalou muito claramente que toda a expansão de crédito perturba o sistema produtivo, rejeitando assim a essência da teoria moderna do equilíbrio monetário.  De fato, Mises afirma que:

The notion of ‘normal’ credit expansion is absurd.  Issuance of additional fiduciary media, no matter what its quantity may be, always sets in motion those changes in the price structure the description of which is the task of the theory of the trade cycle.[120]

O principal defeito da análise do “equilíbrio monetário” de Selgin é não reconhecer que a oferta de meios fiduciários cria, em grande medida, a própria demanda.  Ou seja, a teoria moderna do sistema bancário livre partilha o erro essencial da antiga Escola Bancária, que, como muito acertadamente revelou Ludwig von Mises, advém da ignorância de que a demanda de crédito por parte do público depende, precisamente, da inclinação do banco para emprestar.  Assim, os bancos que, à princípio, não estejam demasiado preocupados com a solvência futura estão em posição de expandir o crédito e de colocar novos meios fiduciários no mercado via simples redução dos juros que pedem pela moeda nova que criam e do aumento das facilidades nas condições contratuais e outras que normalmente exigem para conceder créditos.[121] Assim, ao contrário do que assumem Selgin e os teóricos da Escola, os bancos podem iniciar uma expansão de crédito num regime de atividade bancária livre se, por qualquer razão não estiverem preocupados com a sua solvência, independentemente de ter havido ou não anteriormente uma variação na demanda de meios fiduciários.  Além disso, durante um período inicial, o aumento da moeda provocado pela expansão de crédito tende a fazer subir a própria demanda de meios fiduciários.  De fato, todos os agentes econômicos que não estejam conscientes de que se iniciou um processo expansivo de tipo inflacionário, que acabará por provocar uma diminuição relativa do poder de compra da moeda e, mais tarde, uma recessão, verão que os preços de determinados bens e serviços começam a subir relativamente mais depressa e, enquanto esperam, em vão, que os preços voltem ao nível “normal”, o mais provável é que decidam aumentar a demanda de meios fiduciários.  Citando Mises novamente:

This first stage of the inflationary process may last for many years.  While it lasts, the prices of many goods and services are not yet adjusted to the altered money relation.  There are still people in the country who have not yet become aware of the fact that they are confronted with a price revolution which will finally result in a considerable rise of all prices, although the extent of this rise will not be the same in the various commodities and services.  These people still believe that prices one day will drop.  Waiting for this day, they restrict their purchases and concomitantly increase their cash holdings.[122]

Num sistema bancário livre com reserva fracionária, não só os bancos podem iniciar unilateralmente uma expansão de crédito, como, durante um período prolongado, esse aumento da oferta de meios fiduciários (que pode ser sempre colocado no mercado por meio da conveniente redução da taxa de juro) tende, inicialmente, a provocar um aumento da demanda, que durará enquanto o público, deixando-se levar pelo otimismo, não comece a desconfiar da situação de “bonança” econômica, nem preveja que venha a verificar-se uma subida generalizada dos preços, seguida de uma crise e de uma profunda recessão econômica.

Assim, podemos concluir que, se, como defendemos, a origem das mudanças financeiras jaz no lado da oferta, os bancos inseridos num sistema bancário livre podem manipular esta oferta e caso as respectivas emissões de meios fiduciários criem, a curto e médio prazo, a própria demanda, cai pela base a teoria de Selgin, segundo a qual é apenas a oferta de meios fiduciários que se ajusta à demanda.  Na verdade, é a demanda de meios fiduciários que, pelo menos durante um período de tempo significativo, se ajusta à maior oferta que os bancos criam em forma de créditos.[123]

Possibilidade de um sistema bancário livre com reserva fracionária iniciar unilateralmente expansões de crédito

Há várias possibilidades de um sistema bancário livre com reserva fracionária iniciar expansões de crédito que não correspondam a um aumento prévio da demanda de meios fiduciários.

Saliente-se, em primeiro lugar, que a análise do equilíbrio monetário dos teóricos modernos do sistema bancário livre partilha grande parte das limitações da análise tradicional neoclássica, que, quer a nível micro quer a nível macroeconômico, se limita a analisar o estado final dos processos sociais (equilíbrio monetário), que assume ser o resultado do comportamento racional e maximizador dos agentes econômicos (banqueiros privados).  Pelo contrário, a análise econômica da Escola Austríaca, mais do que no equilíbrio, centra-se nos processos dinâmicos de tipo empresarial.  Cada ato empresarial coordena e define uma tendência para o equilíbrio, que, no entanto, nunca é alcançada, uma vez que, durante o próprio processo, as circunstâncias se alteram e os empresários criam nova informação.  Deste ponto de vista, não se pode aceitar um modelo estático, como o do equilíbrio monetário, que assume a ocorrência de ajustamentos imediatos e perfeitos entre a demanda e a oferta de meios fiduciários.

Na vida real, cada banqueiro, dotado de perspicácia e criatividade empresarial, interpreta subjetivamente a informação que lhe chega do mundo exterior, tanto no que se refere à avaliação otimista do curso dos acontecimentos econômicos, como no que diz respeito ao nível de reservas que considera “prudente” para manter a solvência.  Desta forma, num ambiente de incerteza, cada banqueiro decide diariamente o volume de meios fiduciários a emitir.  É evidente que, no processo empresarial descrito, os banqueiros cometerão muitos erros, que se manifestarão na emissão unilateral de meios fiduciários, que perturbará a estrutura produtiva.  Certamente, o próprio processo tenderá a descobrir e eliminar os erros que se cometam, mas só depois de um período mais ou menos prolongado, não sendo possível evitar danos na estrutura produtiva real.  Se a isto acrescentarmos que, como vimos na seção anterior, a oferta de meios fiduciários tende a criar a sua própria demanda, será mais fácil de compreender a grande dificuldade para que um sistema bancário livre com reserva fracionária (tal como qualquer outro mercado) possa alcançar o tão desejado “equilíbrio monetário”.  Na verdade, no melhor dos casos, os banqueiros privados tentarão, por um processo de “tentativa e erro”, adaptar a oferta de meios fiduciários a uma demanda que, em primeiro lugar, desconhecem e, em segundo lugar, tende a variar como consequência da própria emissão de meios fiduciários.  Assim, poderá ser discutido se o processo empresarial de coordenação permitirá que os banqueiros alcancem o tão desejado “equilíbrio monetário”, mas não será possível negar que, ao longo desse processo, serão cometidos inúmeros erros empresariais na forma de emissão indevida de meios fiduciários, que, inevitavelmente, tenderão a afetar a estrutura produtiva gerando crises e recessões econômicas, tal como nos explica a teoria austríaca do ciclo econômico.[124]

Em segundo lugar, o mesmo se aplica às possibilidades de que um grupo maior ou menor de banqueiros organize, simultaneamente, uma expansão de meios fiduciários ou decida chegar a acordos ou fundir-se para partilhar e “gerir” melhor as reservas, aumentando assim a capacidade para expandir o crédito e aumentar os lucros.[125] A menos que os teóricos do sistema bancário livre com reserva fracionária os queiram proibir (o que duvidamos), este tipo de estratégias empresariais permitirá expansões de crédito que geram recessões econômicas.  É possível que as expansões espontâneas concertadas tendam a auto-corrigir, uma vez que, de acordo com Selgin, o aumento total de compensações interbancárias provocado por essas expansões dará origem a variância na compensação entre débitos e créditos.[126] No entanto, aparte a afirmação de Selgin de que o volume total de reservas em moeda metálica do sistema bancário é constante, acrescido do fato de muitos autores duvidarem de que o referido mecanismo de Selgin é eficaz,[127] e admitindo até, para efeitos dialéticos, que Selgin tem razão, é preciso ter em conta que o ajustamento nunca será perfeito nem imediato, pois as expansões ajustadas e as fusões poderão provocar aumentos significativos na oferta de meios fiduciários e desencadear os processos que levam ao ciclo econômico.

Em terceiro e último lugar, sempre que se verifica um crescimento no estoque global de dinheiro vivo (ouro) usado pelos bancos como “reserva de prudência”, o sistema bancário livre com reserva fracionária gera aumentos na emissão de meios fiduciários que não correspondem a aumentos anteriores na demanda.  Caso nos lembremos que o estoque mundial de ouro tem crescido a uma taxa anual situada entre 1 e 5%[128] como consequência do aumento da produção mundial de ouro, torna-se evidente que, por esta única razão, os banqueiros privados poderão emitir meios fiduciários a um ritmo de 1 a 5% ao ano, independentemente da demanda que exista para os mesmos (e, portanto, primeiro com plenos efeitos expansivos e posteriormente recessivos).[129]

Podemos, assim, concluir que em qualquer o sistema bancário livre com reserva fracionária poderão ser verificados processos inflacionários substanciais[130] e recessões econômicas graves.[131]

A teoria do “equilíbrio monetário” no sistema bancário livre baseia-se numa análise exclusivamente macroeconômica

É preciso salientar que a análise dos teóricos modernos do sistema bancário livre ignora os efeitos de natureza microeconômica decorrentes dos aumentos e das diminuições na oferta e procura de meios fiduciários provocados pelo sistema bancário.  Ou seja, mesmo admitindo, para efeitos dialéticos, que a origem de todos os males tem origem, como presumem esses teóricos, em mutações inesperadas na demanda de meios fiduciários por parte dos agentes econômicos, é evidente que a oferta de meios fiduciários pretensamente gerada pelo sistema bancário para acomodar as mudanças na demanda dos mesmos não chega de forma instantânea precisamente aos agentes econômicos cujas valorações sobre a posse de novos meios fiduciários se tenham modificado.  Em vez disso, a oferta aflui ao mercado por intermédio de pontos muito concretos e de maneira muito particular: em forma de créditos concedidos pela redução da taxa de juro e inicialmente recebidos por determinados empresários e investidores que tendem assim a iniciar novos projetos de investimento mais intensivos em capital que distorcem a estrutura produtiva.

Assim, não surpreende que os teóricos modernos da escola do sistema bancário livre ignorem a teoria austríaca do ciclo econômico, uma vez que esta teoria não encaixa na análise sobre a emissão de meios fiduciários num sistema bancário livre com reserva fracionária.  Por isso, refugiam-se numa análise exclusivamente macroeconômica (monetarista ou keynesiana, dependendo dos casos), usando, quando muito, instrumentos como a equação de troca ou o “nível geral dos preços”, que tendem a ocultar precisamente os fenômenos macroeconômicos de verdadeiro interesse que se verificam numa economia quando se expande o crédito e se aumenta a quantidade de meios fiduciários (variação nos preços relativos e descoordenação intertemporal no comportamento dos agentes econômicos).

Nos processos normais de mercado, a oferta de bens e serviços de consumo tende a variar de acordo com a demanda, sendo que os novos bens chegam precisamente às mãos dos consumidores cuja valoração subjetiva dos mesmos tenha crescido.  No entanto, no que se refere ao meios fiduciários de nova criação a situação é completamente diferente: o crescimento da oferta de meios fiduciários nunca chega imediata e diretamenteaos bolsos dos agentes econômicos cuja procura dos mesmos tenha aumentado, mas depois de, num processo temporal prolongado e conturbado, ter passado pelos bolsos de muitos outros agentes econômicos e distorcido toda a estrutura produtiva nesta fase de transição.

Quando os banqueiros criam novos meios fiduciários, não os entregam diretamente aos agentes econômicos que os poderão querer procurar mais.  Pelo contrário, os banqueiros concedem créditos a empresários que recebem a nova moeda e o gastam inteiramente em investimentos sem prestarem qualquer atenção à proporção que os possuidores finais dos meios fiduciários desejarão consumir, poupar ou investir.  Assim, é perfeitamente possível que os novos meios fiduciários, pretensamente emitidos para responder à maior procura que deles existe, sejam, em última instância, parcialmente utilizados para adquirir bens de consumo, e assim aumentar o preço relativo.  Já vimos (cap.  VII, p.  xxx) que, para Hayek:

So long as any part of the additional income thus created is spent on consumer’s goods (i.e.  unless all of it is saved), the prices of consumer’s goods must rise permanently in relation to those of various kinds of input.  And this, as will by now be evident, cannot be lastingly without effect on the relative prices of the various kinds of input and on the methods of production that will appear profitable.[132]

 

Hayek clarificou ainda mais a sua posição quando concluiu que:

All that is required to make our analysis applicable is that, when incomes are increased by investment, the share of the additional income spent on consumer’s goods during any period of time should be larger than the proportion by which the new investment adds to the output of consumer’s goods during the same period of time.  And there is of course no reason to expect that more than a fraction of the new income [created by credit expansion], and certainly not as much as has been newly invested, will be saved, because this would mean that practically all the income earned from the new investment would have to be saved.[133]

Para ilustrar graficamente o nosso argumento, suponhamos que se verifica um aumento na procura de meios fiduciários sem que se modifique a proporção em que os agentes econômicos desejam consumir e investir.[134] Nestas condições, os agentes econômicos ver-se-ão forçados a reduzir a demanda monetária de bens de consumo, a vender obrigações e outros ativos financeiros e, sobretudo, a reduzir o volume de reinvestimento nas diferentes etapas do processo produtivo até serem capazes de acumular o maior volume de depósitos bancários que desejam manter.  Assim, assumindo que a taxa social de preferência temporal não se alterou e utilizando (agora de forma estilizada) os diagramas triangulares que introduzimos no capítulo V para representar a estrutura produtiva real da sociedade, verificamos, no gráfico VIII-1, que o aumento da procura de meios fiduciários faz com que a hipotenusa do triângulo se desloque para a esquerda.  Isto indica uma diminuição da procura monetária quer de bens de consumo quer de bens de investimento, uma vez que a proporção entre ambos (ou preferência temporal) não sofreu variação.  Neste gráfico, a superfície “A” representa a nova demanda (ou “entesouramento”) de meios fiduciários desejada pelos agentes econômicos (ver Gráfico VIII-1).

A conclusão essencial da teoria do equilíbrio monetário num sistema bancário livre com reserva fracionária é a de que os bancos responderão a este aumento na procura de meios fiduciários expandindo a emissão num volume idêntico ao da nova demanda (representado pela superfície “A”), pelo que a estrutura produtiva ficaria intacta, como mostra no Gráfico VIII-2.

No entanto, é preciso recordar que o novo volume de meios fiduciários criado pelos bancos não é entregue diretamente aos utilizadores finais (os agentes econômicos que aumentaram a demanda de meios fiduciários no volume representado pela superfície “A” do gráfico VIII-1), mas sim, como colateral dos créditos concedidos aos empresários, que os gastam em bens de investimento, criando, inicialmente, uma estrutura mais intensiva em capital, que representamos no Gráfico VIII-3.

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Contudo, a longo prazo, não é possível manter esta estrutura produtiva mais intensiva em capital, uma vez que, de acordo com a nossa hipótese de que a preferência temporal não sofreu alteração, logo que os meios fiduciários recém-criados chegam ao usuários finais (que já tinham acumulado a moeda bancária de que necessitavam desde o princípio, tal como vimos na superfície “A” do Gráfico VIII-1), estes os irão gastar em bens de consumo e de investimento num proporção idêntica à representada nos Gráficos VIII-1 e VIII-2.  Ora, se sobrepusermos o Gráfico VIII-3 ao Gráfico VIII-2 (ver Gráfico VIII-4) torna-se evidente a distorção verificada na estrutura produtiva.  A superfície sombreada “B” representa os projetos de investimento empreendidos por erro depois de todos os meios fiduciários emitidos para responder ao aumento da demanda terem sido concedidos em forma de créditos ao investimento.[135] A área sombreada “C” (cuja superfície é igual à de “B”) reflete a parte dos novos meios fiduciários que é gasta pelos possuidores finais em bens mais próximos da etapa final de consumo, deixando a estrutura produtiva com as mesmas proporções das do Gráfico VIII-1, mas só depois de terminados os inevitáveis e dolorosos reajustes reais explicados pela teoria austríaca do ciclo econômico e que o sistema bancário livre, como acabamos de ver, se mostra incapaz de evitar.  Assim, devemos concluir que, ao contrário do que sugerem Selgin e White,[136] mesmo que a expansão de meios fiduciários responda a um aumento prévio da demanda, não deixarão de se verificar os efeitos cíclicos previstos pela teoria do crédito circulatório.

A confusão entre o conceito de poupança e o conceito de demanda de dinheiro

A tentativa de recuperar pelo menos a essência da velha doutrina da “necessidades do comércio” e de justificar que um sistema bancário livre com reserva fracionária não daria lugar a ciclos econômicos levou George A. Selgin a defender uma tese semelhante à exposta por John Maynard Keynes no tratamento dos depósitos bancários.  Efetivamente, lembremos que, segundo Keynes, considera-se que quem mantiver um saldo de moeda adicional proveniente de um crédito está fazendo “poupança”: “Moreover, the savings which result from this decision are just as genuine as any other savings.  No one can be compelled to own the additional money corresponding to the new bank-credit, unless he deliberately prefers to hold more money rather than some other form of wealth“.[137]

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George Selgin mantém uma posição paralela à de Keynes, considerando que a demanda do público para manter saldos de caixa em forma de notas de banco e contas de depósito é o reflexo do desejo de oferecer empréstimos a curto prazo por um valor idêntico por intermédio do sistema bancário.  De fato, Selgin afirma que:

 

To hold inside money is to engage in voluntary saving […] Whenever a bank expands its liabilities in the process of making new loans and investments, it is the holders of the liabilities who are the ultimate lenders of credit, and what they lend are the real resources they could acquire if, instead of holding money, they spent it.  When the expansion or contraction of bank liabilities proceeds in such a way as to be at all times in agreement with changing demands for inside money, the quantity of real capital funds supplied to borrowers by the banks is equal to the quantity voluntarily offered to the banks by the public.  Under these conditions, banks are simply intermediaries of loanable funds.[138]

Porém, é perfeitamente possível que o público aumente os saldos de meios fiduciários e, ao mesmo tempo, a procura de bens e serviços de consumo, decidir diminuir os investimentos.  Na verdade, qualquer agente econômico pode empregar os saldos de moeda de qualquer das três formas seguintes: gastando-os em bens e serviços de consumo, gastando-os em investimentos, ou mantendo-os em forma de saldos de caixa ou de meios fiduciários.  Não existem outras opções.  A decisão quanto à proporção que será gasta em consumo e em investimento é diferente e independente das decisões sobre os saldos de meios fiduciários e de tesouraria que se desejem manter.  Assim, não é possível concluir, como faz Selgin, que todo o saldo de moeda equivale a “poupança”, pois é perfeitamente possível que o aumento do saldo de meios fiduciários se faça em função de uma diminuição nos gastos de investimento (por exemplo, via venda de títulos em bolsa) que torne possível o aumento da despesa monetária final em bens e serviços de consumo.  Nestas circunstâncias, verificar-se-á uma diminuição da poupança individual e um aumento dos saldos de meios fiduciários.  Por isso, não é correto classificar de poupança todo o aumento dos meios fiduciários.

Dizer, como faz Selgin, que “every holder of demand liabilities issued by a free bank grants that bank a loan for the value of his holdings”[139] é como dizer que qualquer criação de moeda, em forma de depósitos ou de notas, por parte de um banco num sistema bancário livre com reserva fracionária implica, em última instância, a concessão a posteriori de um empréstimo ao banco no valor criado.  No entanto, o banco cria créditos do nada e proporciona uma capacidade de compra adicional aos empresários que os recebem sem prestar qualquer atenção a quais são os verdadeiros desejos quanto ao consumo e ao investimento do resto dos agentes econômicos, que, em última instância, se converterão em possuidores finais dos meios fiduciários criados pelo banco.  Assim, é bem possível que, se as preferências sociais quanto ao consumo e ao investimento não se alterarem, pelos menos parte dos novos meios fiduciários criados pelo sistema bancário seja utilizada para aumentar a despesa em bens de consumo, fazendo subir os preços relativos deste tipo de bens.

Geralmente, os teóricos do sistema bancário livre com reserva fracionária consideram que todas as notas ou depósitos emitidos por um banco são “ativos financeiros” correspondentes a um crédito.  Do ponto de vista jurídico, esta ideia tem graves problemas, que já analisamos nos três primeiros capítulos deste livro.  Economicamente, o erro consiste em acreditar que a moeda é um “ativo financeiro” que representa a poupança voluntária de um agente econômico que “empresta” bens presentes em troca da obtenção de bens futuros.[140] No entanto, a moeda é, em si mesmo, um bem presente[141] e a posse de saldos de caixa (ou de depósitos) não diz nada sobre a proporção que os agentes econômicos desejam consumir e investir, sendo os aumentos e as diminuições nos saldos monetários perfeitamente compatíveis com as diversas combinações de aumentos e diminuições simultâneas na proporção que decidam consumir ou investir.  De fato, é possível que o aumento dos saldos de meios fiduciários se verifique em simultâneo com um aumento no consumo de bens e serviços.  Basta, para isso, que o agente econômico desinvista parte dos recursos que tinha poupado e investido no passado.  Como aponta Hans-Hermann Hoppe, a oferta e a procura de moeda determinam o seu preço ou poder de compra, ao passo que a oferta e procura de “bens presentes” em troca de “bens futuros” determinam a taxa de juro ou taxa social de preferência temporal e o volume global de poupança e investimento.[142]

A poupança exige sempre uma libertação de bens reais que não são consumidos (ou seja, sacrifício).  Não surge do mero aumento de unidades monetárias na assunção de que, se não se gastarem os bens de consumo, então há “poupança”.  Selgin mantém esta posição quando critica Machlup[143] por este considerar que a concessão expansiva de créditos proporciona uma capacidade de compra que ninguém sacrificou anteriormente para o consumo (ou seja poupou).  Como é lógico, para que não perturbe a estrutura produtiva, o crédito deve ser proveniente de uma poupança prévia, que proporcione bens presentes verdadeiramente poupados ao investidor.  Sem esse sacrifício ao consumo, e com o investimento a ser financiado com base num crédito recém-criado (created credit), a estrutura produtiva será inevitavelmente distorcida, como já sabemos, mesmo que os meios fiduciários recém-criados respondam a um aumento prévio da demanda.  Por isso, Selgin vê-se forçado a redefinir os conceitos de poupança e de criação de crédito.  Segundo o autor, a poupança existe ipso fato a partir do momento em que o novo meio fiduciário é criado, desde que o possuidor inicial o possa gastar em bens de consumo e não o faça.  Por sua vez, a expansão de crédito não gera ciclos se tender a responder o aumento prévio na procura de meios fiduciários.  Em síntese, são argumentos parecidos com os apresentados por Keynes em The General Theory, que, como vimos no capítulo VII, já foram refutados há muito tempo.

Por outro lado, a criação de meios fiduciários envolve um aumento da oferta monetária que tende a diminuir a capacidade de compra da moeda.  O valor das unidades monetárias dos cidadãos é assim “expropriado” de forma diluída e quase imperceptível.  É, sem dúvida, uma piada de mau gosto afirmar que essa expropriação é uma “poupança” (voluntária?) efetuada pelos agentes econômicas que a sofrem.  Não surpreende que estas doutrinas tenham sido defendidas por autores como Keynes, Tobin, Pointdexter e, em geral, por todos aqueles que justificaram o inflacionismo, a expansão de crédito e “eutanásia dos rentistas”, tendo em vista políticas econômicas beligerantes dirigidas a assegurar um nível “adequado” de “procura agregada”.  Mas o que é surpreendente é o fato de autores como Selgin e Horwitz, que pela sua associação à Escola Austríaca deveriam conhecer melhor os riscos envolvidos nessas políticas, tenham sido obrigados a recorrer a este tipo de raciocínios para justificar o seu sistema “bancário livre com reserva fracionária”.[144]

O perigo das ilustrações históricas dos sistemas bancários livres

Na bibliografia dos teóricos da Escola Neobancária é perceptível um grande esforço no estudo histórico dirigido a apoiar a tese de que o sistema bancário livre imunizará as economias dos ciclos de auge e depressão graças ao mecanismo do “equilíbrio monetário”.  No entanto, os estudos empíricos até agora realizados, em vez de se centrarem na análise de se o sistema bancário livre evitaria a expansão do crédito, oboom artificial e a recessão econômica se resumiram, na prática, ao estudar se as crises e os pânicos bancários foram mais ou menos frequentes e graves do que num sistema com banco central (o que é, obviamente, muito diferente).[145]

Assim, George A. Selgin compara, num estudo recente, a ocorrência de pânicos bancários em diferentes sistemas históricos de bancos livres e noutros sistemas nos quais os bancos se encontravam controlados por um banco central, chegando à conclusão de que, neste segundo caso, o número e a gravidade das crises bancárias foi superior.[146] E a tese principal do livro da Escola Neobancária sobre a liberdade bancária na Escócia consiste toda ela no argumento de que o sistema bancário escocês, relativamente mais “livre” do que o inglês, era mais “estável” e estava sujeito a menos perturbações financeiras.[147]

Não obstante, como apontou Murray N. Rothbard, o fato de, em termos relativos, haver menos falências bancárias no sistema escocês de bancos livres do que no sistema inglês não significa necessariamente que esse sistema fosse melhor.[148] Efetivamente, as falências bancárias foram praticamente eliminadas nos sistemas bancários atuais baseados num banco central, o que não quer dizer que estes sejam superiores a um sistema bancário livre submetido ao Direito, antes pelo contrário.  A existência de falências bancárias, longe de indicar o mau funcionamento do sistema, é, sem qualquer dúvida, uma manifestação do início de um processo saudável e instantâneo de reversão no mercado em resposta a uma agressão ao mesmo provocada pelo exercício privilegiado do sistema bancário com um coeficiente de reserva fracionário.  Desta forma, onde quer que exista um sistema bancário livre com reserva fracionária e não se verifiquem regularmente falências e suspensões de pagamentos dos bancos, é inevitável a suspeita de que existem razões institucionais que defendem os bancos das consequências normais do exercício da sua atividade com reserva fracionária e que são capazes de desempenhar um papel semelhante ao atualmente exercido pelo banco central como prestamista de última instância.  Assim, no caso da Escócia, os bancos tinham fomentado o uso das notas nas transações econômicas, nas quais praticamente ninguém exigia pagamento em ouro, e aqueles que ocasionalmente requeriam dinheiro vivo na janela dos bancos eram alvo de reprovação generalizada e de todo o tipo de pressões por parte dos banqueiros, que classificavam o comportamento de “desleal” e ameaçavam dificultar-lhes a obtenção de créditos no futuro.  Além disso, como demonstrou o professor Sidney G. Checkland,[149] o sistema escocês de bancos livres com reserva fracionária não deixou de estar submetido a etapas recorrentes e sucessivas de expansão e contração do crédito, que provocaram os correspondentes ciclos econômicos de auge e recessão ao longo dos anos 1770, 1772, 1778, 1793, 1797, 1802-1803, 1809-1810, 1810-1811, 1818-1819, 1825-1826, 1836-1837, 1839 e 1845-1847.  Ou seja, embora em termos relativos existissem menos pânicos bancários na Escócia do que na Inglaterra, os ciclos sucessivos de auge e recessão foram igualmente graves e, apesar do seu tão badalado sistema de banca livre, a Escócia não se viu livre da expansão de crédito, dos booms artificiais e das subsequentes etapas de grave recessão econômica.[150]

Outro caso histórico que ilustra a incapacidade do sistema bancário livre com reserva fracionária para evitar as expansões artificiais e as recessões econômicas é o do sistema financeiro chileno durante o século XIX.  De fato, durante a primeira metade do referido século, o Chile não tinha banco central e contava com um sistema bancário com um coeficiente de caixa de 100%.  Ao longo de várias décadas, os cidadãos resistiram firmemente a diversas tentativas de introdução de um sistema bancário com reserva fracionária e, durante esse anos, gozaram de uma grande estabilidade econômica e financeira.  As coisas começaram a mudar quando, em 1853, o governo chileno contratou Jean-Gustav Courcelle-Seneuil (1813-1892), um dos mais notáveis teóricos franceses do sistema bancário livre com reserva fracionária, para professor de Economia na Universidade de Santiago do Chile.  A influência de Courcelle-Seneuil durante os dez anos em que ali desenvolveu a atividade docente foi tão grande que, em 1860, se introduziu uma lei que permitia o estabelecimento do sistema bancário livre com reserva fracionária e sem banco central.  A partir dessa data desapareceu a tradicional estabilidade financeira do sistema chileno e sucederam-se etapas de expansão artificial baseada na concessão de novos créditos e de colapso bancário e crise econômica.  A convertibilidade do papel-moeda foi suspensa em várias ocasiões (1865, 1867 e 1879) e iniciou-se um período de inflação e graves desajustes econômicos, financeiros e sociais que fazem parte da memória coletiva dos chilenos e que explicam que, ainda hoje, continuem a identificar erradamente as perturbações financeiras com o liberalismo doutrinário de Courcelle-Seneuil.[151]

Por outro lado, o fato de diversos estudos históricos perecerem indicar que nos sistemas bancário livre houve menos pânicos e crises bancárias do que nos sistemas com banco central não significa que os primeiros se tenham visto completamente livres de crises e pânicos bancários.  O próprio Selgin refere pelo menos três casos de bancos livres que se viram assolados por graves crises bancárias: Escócia em 1797, Canadá em 1837 e Austrália em 1893.[152] Se Rothbard estiver certo, e nos casos demais tiver havido restrições institucionais a exercerem, em maior ou menor medida, o papel do banco central, é possível que na ausência dessas restrições o número de crises bancárias tivesse sido muito maior.[153] De qualquer forma, não pode se considerar que a completa eliminação de crises bancárias seja o critério definitivo para avaliar qual o melhor sistema bancário.  Se assim fosse, até os teóricos mais notáveis do sistema bancário livre com reserva fracionária se veriam obrigados a reconhecer que o melhor sistema bancário é aquele que exige um coeficiente de reserva de 100%, uma vez que, por definição, é o único que em todos os casos impede crises e pânicos bancários.[154]

Em suma, a experiência histórica não parece dar abrigo à tese dos teóricos modernos do sistema bancário livre com reserva fracionária.  Mesmo em sistemas bancários livres menos regulados houve ciclos de auge e recessão que tiveram origem na expansão de crédito dos bancos, tendo verificado a ocorrência de pânicos e falências bancárias.  O reconhecimento desse fato levou a que autores da Escola Neobancária, como Stephen Horwitz, insistam em que a evidência histórica contrária às posições, mesmo tendo relevância, não pode servir para refutar a teoria dos efeitos benignos do sistema bancário livre com reserva fracionária, uma vez que essa refutação deve ser efetuada por meio de procedimentos estritamente teóricos.[155]

A ignorância de argumentos de tipo jurídico

Os teóricos da escola do sistema bancário livre com reserva fracionária tendem a deixar as considerações jurídicas fora da análise, sem terem em conta que, como defendemos neste livro, o estudo da problemática bancária é essencialmente multidisciplinar e que existe uma relação teórica e prática estreita entre os aspectos jurídicos e econômicos de todos os processos sociais.

Assim, os teóricos do sistema bancário livre ignoram, em primeiro lugar, que o exercício do sistema bancário com um coeficiente de reserva fracionário envolve uma impossibilidade lógica do ponto de vista jurídico.  De fato, na primeira parte deste livro explicamos que, sempre que um banco concede empréstimos com base no dinheiro que recebe em depósitos à vista, é criada uma dupla disponibilidade sobre a mesma quantidade de moeda: o mesmo dinheiro está disponível para o depositante original e para o prestatário que recebe o empréstimo.  É óbvio que dois indivíduos não podem desfrutar simultaneamente da disponibilidade da mesma coisa e que conceder uma segunda disponibilidade sobre a mesma coisa é atuar de forma fraudulenta.[156] A apropriação indébita e a fraude são evidentes e cometidas pelo menos nas etapas iniciais de formação do sistema bancário moderno, como já vimos no capítulo II.

Assim que os banqueiros obtiveram dos governos o privilégio para atuar com uma reserva fracionária, do ponto de vista do direito positivo, esta atividade deixou de ser crime, e, na medida em que os cidadãos atuam num sistema protegido dessa forma pela lei, somos obrigados a descartar a existência de fraude penal.  No entanto, como vimos nos capítulos I a III deste livro, este privilégio não consegue dotar o contrato de depósito bancário de moeda de uma natureza legal adequada.  Pelo contrário, na maior parte dos casos, o contrato é nulo, uma vez que, do ponto de vista da sua causa, uma parte, os depositantes, efetua o negócio considerando que se trata de um depósito; ao passo que a outra, os banqueiros depositários, o recebe como se tratasse de um empréstimo.  E, como sabemos, juridicamente, sempre que cada uma das partes intervenientes num intercâmbio creem que estão efetuando um contrato distinto, este é nulo.

Além disso, mesmo que as partes, depositantes e banqueiros, coincidissem em pensar que a operação que realizam é um empréstimo, não estaria resolvida a natureza jurídica do contrato de depósito bancário de moeda.  Como vimos, do ponto de vista econômico, é teoricamente impossível que os bancos possam, em todos os casos, fazer frente à devolução dos depósitos que receberam num montante superior ao das reservas que mantêm.  Esta impossibilidade é agravada pelo fato de o próprio exercício do sistema bancário com um coeficiente de reserva fracionário ter tendência a gerar crises e recessões econômicas que põem em causa a solvência do bancos de forma recorrente.  Ora, voltando aos princípios jurídicos, quando é impossívelpôr em prática um contrato, este é nulo.  Apenas um coeficiente de caixa de 100%, que garanta a devolução em qualquer momento de todos os depósitos recebidos, ou a existência e apoio de um banco central que proporcione toda a liquidez necessária nos momentos de apuro, poderá tornar possíveis e, logo, válidos estes contratos de “empréstimo” com pacto de devolução (ou recompra) do valor facial em qualquer momento.

Por fim, o argumento de que só é impossível cumprir os contratos de depósito bancário de moeda periodicamente em circunstâncias extremas também não justificaria a natureza jurídica, uma vez que o exercício da atividade bancária com reserva fracionária é, como já referimos neste livro, contrário à ordem pública e prejudicial a terceiros.  De fato, ao gerar créditos de forma expansiva sem cobertura de poupança real, o sistema bancário com reserva fracionária distorce a estrutura produtiva, fazendo com que os empresários que recebem os empréstimos, iludidos pela maior facilidade das condições de crédito, empreendam investimentos que, em última instância, não vão ser rentáveis.  Com o surgimento da inevitável crise econômica, os projetos de investimento terão de ser interrompidos e liquidados, o que implica um custo elevado do ponto de vista econômico, social e pessoal, sofrido não só pelos empresários que protagonizaram os erros, mas também pelos demais agentes econômicos envolvidos no processo de produção (trabalhadores, fornecedores, etc.).

Não podemos, pois, argumentar, como fazem White, Selgin e outros, que, numa sociedade livre, os banqueiros e os clientes devem ter liberdade para estabelecer os acordos contratuais que considerem mais adequados.[157] Mesmo os acordos mutuamente satisfatórios para as duas partes carecem de legitimidade, se forem realizados em fraude da lei ou em prejuízo de terceiros, e, logo, contra a ordem pública.  É o que acontece com os depósitos bancários de moeda efetuados com um coeficiente de reserva fracionário nos quais, ao contrário do habitual, ambas as partes tenham plena consciência da verdadeira natureza jurídica e das implicações do acordo efetuado.

Hans-Hermann Hoppe[158] explicou que este tipo de contratos prejudica terceiros pelo menos de três modos diferentes.  Primeiro, a expansão de crédito aumenta a oferta monetária e, logo, diminui o poder de compra das unidades monetárias dos demais possuidores de saldos em dinheiro, que, desta forma, vêem a capacidade de compra das suas unidades monetárias reduzir-se quando compara com a que teriam sem a expansão de crédito.  Segundo, os depositantes em geral são prejudicados, uma vez que o processo de expansão de crédito diminui a probabilidade de que, na ausência de um banco central, possam recuperar o total de unidades monetárias originalmente depositado; existindo um banco central, são prejudicados visto que, mesmo tendo a garantia de receberem sempre a devolução dos depósitos, não têm a garantia de que essa devolução será feita em unidades monetárias cujo poder de compra não tenha sido reduzido.  Terceiro, todos os outros prestatários e agentes econômicos são prejudicados uma vez que a criação e a injeção do crédito fiduciário no sistema econômico põe em causa todo o sistema de crédito e distorce a estrutura produtiva, aumentando, assim, o risco de empreendimento de projetos errôneos, que fracassarão antes de terminados e causarão grande sofrimento humano na etapa de recessão econômica a que a expansão de crédito dará lugar.[159]

Num sistema bancário livre, quando a capacidade de compra da moeda diminui em relação à que teria se o crédito não fosse expandido num ambiente de reserva fracionária, os participantes (depositantes e, sobretudo, banqueiros) atuam em prejuízo de terceiros.  Toda a manipulação da moeda, que é o meio de troca utilizado de forma generalizada pela sociedade, encerra, pela sua própria definição, efeitos negativos para a generalidade de terceiros participantes em todo o sistema econômico.  Por isso, não importa o caráter voluntário dos acordos particulares a que os depositantes, bancários e prestatários cheguem, se, pelo exercício do sistema bancário com reserva fracionária, esses acordos afetam a moeda e prejudicam o público em geral (terceiros diferentes dos contratantes originais), viciando assim de nulidade o contrato por ir contra a ordem pública.[160] Economicamente, os efeitos qualitativos da expansão de crédito são idênticos aos da atividade criminosa de falsificação de moedas e notas de banco tipificada nos artigos 386-389 do novo Código Penal espanhol.[161] Ambas envolvem a criação de moeda, a redistribuição do rendimento a favor de alguns e em prejuízo dos demais cidadãos e a distorção da estrutura produtiva.  No entanto, do ponto de vista quantitativo, a expansão de crédito é a única capaz de alargar a oferta monetária a um ritmo e volume suficientes para alimentar um boom artificial e provocar uma recessão.  Em comparação com a expansão de crédito do sistema bancário com reserva fracionária e a manipulação monetária dos governos e dos bancos centrais, a atividade criminosa do falsificador de moeda é brincadeira de criança com consequências sociais praticamente imperceptíveis.

Todas estas considerações jurídicas acabaram por influenciar White, Selgin e outros teóricos modernos do sistema bancário livre que, como última linha de defesa para assegurar a estabilidade do sistema, propuseram que os bancos “livres” estabelecessem uma cláusula “de salvaguarda” nas notas e depósitos, informando aos clientes de que o banco pode decidir, em qualquer momento, suspender ou diferir a devolução dos depósitos ou o pagamento em espécie das notas correspondentes.[162] É evidente que a introdução desta cláusula equivaleria a eliminar dos respectivos instrumentos uma característica monetária cuja essência se fundamenta precisamente em dispor de uma liquidez perfeita, ou seja, uma liquidez imediata, completa e nunca condicionada.  Desta forma, não só os depositantes passariam a ser a ser prestamistas forçados, por vontade do banqueiro, como os depósitos seriam convertidos numa forma peculiar de contrato aleatório ou loteria, em que a possibilidade de levantar o dinheiro passaria a depender das circunstâncias particulares de cada momento.  Não pode haver qualquer objeção ao fato de determinadas partes decidirem voluntariamente efetuar um contrato aleatório tão atípico como o referido.  No entanto, se os banqueiros e os clientes atuassem subjetivamente considerando os depósitos e as notas substitutos monetários perfeitos, a existência desta cláusula e o seu perfeito conhecimento por parte dos participantes não poderiam fazer mais do que impedir a suspensão imediata dos pagamentos ou a falência das insituições bancárias no caso de pânicos.  Não evitariam, porém, a reprodução de todos os processos de expansão, crise e recessão típicos do exercício do sistema bancário com reserva fracionária (independentemente das “cláusulas de opção” que venham a ser incorporadas nos contratos, se os referidos instrumentos forem considerados substitutos monetários perfeitos por parte da generalidade do público), em grave prejuízo de terceiros e contra a ordem pública.  Assim, as cláusulas de opção podem, quando muito, proteger o bancos, mas não a sociedade nem o sistema econômico das etapas sucessivas de expansão de crédito, auge e depressão.  Desta forma, a última linha de defesa de White e Selgin não elimina de forma alguma o fato de que o exercício do sistema bancário com reserva fracionária provoca um prejuízo grave e sistemático a terceiros que é contrário à ordem pública.[163]

 

5

CONCLUSÃO: A FALSA POLÊMICA ENTRE O SISTEMA BANCÁRIO CENTRAL E O SISTEMA BANCÁRIO LIVRE COM RESERVA FRACIONÁRIA

 

A abordagem tradicional da discussão entre os partidários do banco central e os do sistema bancário livre com reserva fracionária está, essencialmente, errada.  Em primeiro lugar, ignora que o sistema bancário livre com reserva fracionária desencadeia uma tendência inevitável para o surgimento, desenvolvimento e consolidação do banco central.  A expansão de crédito provocada pelo sistema bancário com reserva fracionária dá origem a processos de reversão em forma de crises financeiras e recessões econômicas que levam inevitavelmente a que os cidadãos exijam a intervenção pública e a regulação estatal da atividade bancária.  Em segundo lugar, os próprios bancos envolvidos no sistema não tardam a descobrir que o risco de insolvência será mais baixo se chegarem a acordos entre si, caso se fundam e, até, caso exijam a constituição de um prestamista de última instância que lhes proporcione a liquidez necessária nos momentos de apuro e que institucionalize e dirija oficialmente o crescimento da expansão de crédito.

Assim, podemos concluir que o exercício do sistema bancário com um coeficiente de reserva fracionário foi historicamente o principal responsável pelo aparecimento e desenvolvimento do banco central, pelo que a discussão teórica e prática deve ser abordada não em termos tradicionais, mas em termos de dois sistemas radicalmente distintos: ou um sistema bancário livre submetido aos princípios tradicionais do Direito (coeficiente de caixa de 100%), no qual se considerem ilegais e contrárias à ordem pública todas as operações realizadas, acordadas voluntariamente ou não, nas quais se estabeleça um coeficiente de reserva fracionário; ou um sistema que permita o exercício do sistema bancário com reserva fracionária e do qual deverá surgir inevitavelmente um banco central prestamista de última instância e controlador de todo o sistema financeiro.

São essas duas únicas alternativas viáveis do ponto de vista teórico e prático.  Até agora, analisamos pormenorizadamente quais são os efeitos econômicos do sistema bancário com reserva fracionária, orquestrada ou não por um banco central.  No próximo e último capítulo, estudaremos o sistema bancário livre submetido aos princípios tradicionais do Direito, ou seja, exercido com um coeficiente de caixa de 100%.[164]

 



[1] As definições da Escola Bancária e da Escola Monetária que damos no texto são, basicamente, as propostas por Anna J. Schwartz, para quem aos teóricos da Escola Monetária defendem que a política monetária deve sujeitar-se às regras e princípios gerais do Direito, ao passo que os membros da Escola Bancária pretendem, em geral, dar completa liberdade aos banqueiros (e, eventualmente, ao banco central) para que atuem discricionariamente mesmo à margem dos princípios tradicionais do Direito. Anna J. Schwartz afirma que, de fato, toda a polêmica entre ambas as escolas está centrada na questão de se “policy should be governed by rules (espoused by adherents of the Currency School), or whether the authorities should allow discretion (espoused by adherents of the Banking School)”. Ver o artigo de Anna J. Schwartz, “Banking School, Currency School, Free Banking School” publicado no vol. I de The New Palgrave: Dictionary of Money and Finance, Macmillan, Londres 1992, pp. 148-151.

[2] Ver, sobretudo a investigação publicada por Marjorie Grice-Hutchinson sob a direção de F.A. Hayek com o título The School of Salamanca: Readings in Spanish Monetary Theory, 1544-1605, Clarendon Press, Oxford 1952; Murray N. Rothbard, “New Light on the Prehistory of the Austrian School”, publicado em The Foundations of Modern Austrian Economics, Edwin G. Dolan (ed.), ob. cit., pp. 52-74; Alejandro A. Chafuen,Economía e ética: raíces cristianas de la economía de libre mercado, Ediciones Rialp, Madrid 1991, especialmente as pp. 85-93. Sobre Marjorie Grice-Hutchinson, consultar os elogiosos comentários de Fabián Estapé na sua Introdução à 3.ª edição espanhola do livro de Joseph A. Schumpeter Historia del análisis econômico, Editorial Ariel, Barcelona 1994, pp. xvi-xvii.

[3] A edição que utilizei é a das Omnia opera, publicada em Veneza, em 1604, e que inclui o tratado sobre a moeda de Diego de Covarrubias no vol. I com o título completo de Veterum collatio numismatum, cum his, quae modo expenduntur, publica, et regia authoritate perpensa, ob. cit., pp. 669-710. Este trabalho de Diego de Covarrubias é frequentemente citado por Davanzati, e pelo menos uma vez no capítulo 2 da famosaDella moneta, de Ferdinando Galiani, Giuseppe Raimondi, Nápoles 1750, p. 26. Carl Menger refere-se também ao trabalho de Covarrubias em Grundsätze der Volkswirthschaftlehre, ob. cit (p. 257).

[4] Martín de Azpilcueta, Comentario resolutorio de cambios, edição do Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Madrid 1965, pp. 74-75 (itálico acrescentado). No entanto, Nicolau Copérnico enunciou uma versão (mais embrionária) da teoria quantitativa da moeda no livro De monetae cudendae ratio (1526) trinta anos antes de Martín de Azpilcueta. Ver: Murray N. Rothbard Economic Thought Before Adam Smith, ob. cit., p. 165.

[5] Ver, por exemplo, os comentários de Francisco Gómez Camacho na Introdução a Luis de Molina, La teoría do justo precio, Editora Nacional, Madrid 1981, pp. 33-34; de Restituto Sierra Bravo, El pensamiento social e económico de la escolástica desde sus orígenes al comienzo do catolicismo social, ob. cit., vol. I, pp. 214-237; bem como o artigo de Francisco Belda, que comentamos in extenso nas páginas seguintes, e o mais recente de Jesús Huerta de Soto, “New Light on the Prehistory of the Theory of Banking and the School of Salamanca”, ob. cit.

[6] Luis de Molina, Tratado sobre los cambios, edição con uma Introdução de Francisco Gómez Camacho, Instituto de Estudios Fiscales, Madrid 1990, p. 145.

[7] Luis de Molina, ibidem, p. 146.

[8] Luis de Molina, ibidem, p. 147 (itálico acrescentado).

[9] Luis de Molina, ibidem, p. 149.

[10]Quare magis videntur pecuniam precario mutuo accipere, reddituri quotiscumque exigetur a deponente. Communiter tamen, pecunia illa interim negotiantur, et lucrantur, sine ad cambium dando, sine aliud negotiationis genus exercendo.” Citação literal da p. 406, seção 5, n.º 60, “De Cambiis“, Joannis de Lugo Hispalensis, Societatis Iesu, Disputationum de iustitia et iure, Tomus Secundus, Sumptibus Petri Prost, Lyon 1642.

[11] Juan de Lugo é, talvez, quem de forma mais sintética e clara expressa este princípio, como já vimos na nota 102 do capítulo II.

[12] Ou seja, podem ser cometidos erros empresariais puros e genuínos (não asseguráveis por meio da Lei dos Grandes Números) que levem a graves perdas empresariais, independentemente do grau de prudência com que se tenha atuado. Sobre o conceito de “erro genuíno”, consultar Israel Kirzner, “Economics and Error”, emPerception, Opportunity and Profit, The University of Chicago Press, Chicago 1979, cap. 8, pp. 120-136.

[13] Publicado na revista Pensamiento, revista trimestral de investigação e informação filosófica, publicada pelas Facultades de Filosofía de la Compañía de Jesús em España, n.º 73, vol. 19, Madrid, Janeiro-Março 1963, pp. 53-89.

[14] Padre Francisco Belda, ob. cit., pp. 63 e 69.

[15] Francisco Belda, ob. cit., p. 87. A referência a Juan de Lugo corresponde ao tomo 2, disposição 28, seção 5.ª, nn. 60-62 da obra de Juan de Lugo que já citamos atrás.

[16] Bernard W. Dempsey, Interest and Usury. Introdução de Joseph A. Schumpeter, American Council of Public Affairs, Washington D.C., 1943. Assinale-se que o artigo do padre Belda surgiu precisamente como uma crítica, a partir do ponto de vista keynesiano, às teses defendidas por Dempsey neste livro. Agradeço ao professor James Sadowsky, da Fordham University, por me ter disponibilizado um exemplar do livro de Dempsey, que não pude encontrar na Espanha.

[17] O grande conhecimento teórico e a completa familiaridade do padre Dempsey com as doutrinas econômicas de Ludwig von Mises, Friedrich A. Hayek, Wicksell, Keynes e outros merece grande destaque na Introdução que Schumpeter escreveu para o livro de Dempsey. Além disso, Schumpeter cita elogiosamente Dempsey na monumental Historia del Análisis Econômico. Ver a 3.ª edição espanhola publicada de 1994, ob. cit., pp. 34 e 143.

[18]The credit expansion results in the depreciation of whatever circulating medium the bank deals in. Prices rise; the asset appreciates. The bank absolves its debt by paying out on the deposit a currency of lesser value […] No single person would be convinced by a Scholastic author of the sin of usury. But theprocess has operated usuriously; again we meet systematic or institutional usury […] The modern situation to which theorists have applied the concepts of divergence of natural and money interest, divergences of saving and investment, divergences of income disposition from tenable patterns by involuntary displacements, all these have a sufficient common ground with late medieval analysis to warrant the expression, ‘institutional usury’, for the movements heretofore described in the above expressions”. Padre Bernard W. Dempsey, Interest and Usury, pp. 225 e 227-228 (grifos nossos). Dempsey, em suma, limita-se a aplicar ao negócio bancário a tese apresentada por Juan de Mariana no seu Tratado y discurso sobre la moneda de vellón, ob. cit.

[19] Bernard W. Dempsey, Interest and Usury, ob. cit., p. 210. A tradução desta passagem para português poderia ser: “Daqui, podemos concluir que um escolástico do século dezessete que visse os problemas monetários modernos apoiaria rapidamente o plano de reservas de 100% ou o estabelecimento de um limite temporal para o período de validade da moeda. Na verdade, uma oferta monetária fixa ou que só se altere de acordo com critérios objetivos e calculáveis é uma condição necessária para todo o preço justo da moeda que faça sentido.”

[20] Existe um resumo condensado e brilhante desta história monetária com o título “English Monetary Policy and the Bullion Debate”, nos caps. 9-14, que constituem a parte III do volume 3 de The Collected Works de F.A.Hayek Também pode consultar-se o cap. 6 do livro de D. P. O’Brien, The Classical Economists, Oxford University Press, Oxford 1975. E ainda M. N. Rothbard, An Austrian Perspective on the History of Economic Thought, vol. II, Classical Economics, ob. cit., caps. V-VII.

[21] A obra de Davanzati foi traduzida para inglês e publicada em Londres em 1696 com o título A Discourse upon Coins, J.D. and J. Churchill, Londres, 1696.

[22] O título original do livro de Montanari era La zecca in consulta di stato, e foi reeditado com o título La moneta em los Scrittori classici italiani di economía política, G. Destefanis, Milão 1804, vol. III.

[23] Ver Sir William Petty’s Quantulumcumque Concerning Money, 1682, incluído em The Economic Writings of Sir William Petty, reeditado por Augustus M. Kelley, Nova York, 1964, vol. 1, pp. 437-448.

[24] Os trabalhos sobre teoria monetária de Locke, que foi o primeiro em introduzir na Inglaterra a ideia de que o valor da unidade monetária é determinado, em última instância, pela quantidade de moeda em circulação, são “Some Considerations of the Consequences of the Lowering of Interest, and Raising the Value of Money” (Awnsham e John Churchill, Londres 1692) e “Further Considerations Concerning Raising the Value of Money” (Awnsham e John Churchill, Londres 1695), ambos reeditados em The Works of John Locke, 12.ª edição, vol. IV, C.& J. Rivington, Londres 1824.

[25] Recorde-se que Carl Menger afirmou que Law foi quem primeiro enunciou corretamente a teoria evolucionista sobre a origem da moeda (ver a nota da p. 325 da recente edição espanhola do livro de MengerPrincipios de Economía Política, Unión Editorial, Madrid 1997).

[26] De Law podemos consultar a obra Money and Trade Considered, with a Proposal for Supplying the Nation with Money, publicada originalmente por A. Anderson, Edimburgo, 1705, e reeditada por Augustus M. Kelley, Nova York, 1966. Nas palavras do próprio Law: “the quantity of money in a state must be adjusted to the number of its inhabitants […] One million can create employment for only a limited number of persons,[…] a larger amount of money can create employment for more people than a smaller amount, and each reduction in the money supply lowers the employment level to the same extent.” Citado por F. A. Hayek em “First Paper Money in Eighteenth century France”, cap. X de The Trend of Economic Thinking, ob. cit., p. 158. Em Espanha, um bom tratamento da influência de John Law nas origens da teoria monetária pode ser encontrado no cap. I dedicado a “Los orígenes do inflacionismo: John Law”, do interesante livro de José Antonio de Aguirre El poder de emitir dinero: De J. Law a J.M. Keynes, Unión Editorial, Madrid 1985, pp. 23-41.

[27] Ver John Law’s “Essay on a Land Bank”, Antoin E. Murphy (ed.), Aeon Publishing, Dublin 1994.

[28] Citação literal retirada da edição original de Essai sur la nature du commerce em général, pretensamente publicada em Londres, por Fletcher Gyles em Holborn em 1755, pp. 399- 400. A passagem do texto principal poderá ser traduzida da seguinte forma: “Se um particular pagar mil onças a outro, usará uma nota do banqueiro nesse valor. Possivelmente, esta outra pessoa não irá reclamar o dinheiro ao banqueiro; guardará a nota e, quando a ocasião o justificar, dá-la-á em pagamento a um terceiro. Desta forma, a nota em questão poderá passar por muitas mãos para fazer grandes pagamentos, sem que durante um longo período de tempo ninguém pense em requerer o seu pagamento ao banqueiro. Praticamente não haverá ninguém a, devido a falta de confiança ou à necessidade do fazer pequenos pagamentos, requerer o valor. Neste primeiro caso, o dinheiro de um banqueiro não representa mais do que uma décima parte das suas operações” (itálico acrescentado). Como se poder verificar, trata-se da mesma análise que mais de cem anos antes tinham feito os teóricos da Escola de Salamanca a respeito da atividade dos banqueiros de Sevilha e de outros mercados que, gozando da confiança do público, podiam exercer normalmente os negócios dispondo apenas de uma pequena fração em caixa para fazer face aos pagamentos correntes.

[29] Ferdinando Galiani continua a tradição de Davanzati e Montanari, e a a contribuição, incluída em Della moneta, op. cit., rivaliza até mesmo com os trabalhos de Cantillon e Hume.

[30] Estes ensaios foram recentemente reeditados de forma magnífica por Liberty Classics (David Hume,Essays: Moral, Political and Literary, Eugene F. Miller (ed.) Liberty Classics, Indianápolis 1985, pp. 281-327). Em Espanha, os trabalhos de Hume foram analisadas por Francisco Cabrillo em El nacimiento de la economía internacional, Espasa-Calpe, Madrid 1991, pp. 48-50, 54-56, 94-104 e 109-113.

[31] “A quantidade de dinheiro em circulação é irrelevante para a atividade econômica” (ver “Of Money”, ob. cit., p. 281). Esta ideia essencial de Hume passa despercebida, mesmo nos nossos dias, a muitos economistas respeitáveis, como demonstra a seguinte afirmação de Luis Ángel Rojo, para quem “do ponto de vista social, os saldos reais em moeda tidos pelo público deveriam atingir o nível em que a produtividade marginal fosse igual ao custo marginal social de o produzir — um custo muito baixo numa economia moderna. Do ponto de vista privado, a posse global de saldos reais em dinheiro atingirá o nível em que a sua produtividade marginal privada — que, para simplificar, podemos assumir ser igual à sua produtividade marginal social — seja igual ao custo privado da oportunidade de manter riqueza em forma de moeda. Como o público decidirá o volume de saldos reais em moeda que deseja possuir com base em critérios privados, o volume efetivamente detido tenderá a ser inferior ao que seria ideal do ponto de vista social.” Luis Ángel Rojo, Renta, precios e balanza de pagos, Alianza Universidad, Madrid 1976, pp. 421-422. Nesta citação Luis Ángel Rojo não só considera a moeda uma espécie de fator de produção, como não tem em conta que este cumpre perfeitamente a sua função, quer individual quer social, independentemente do volume global. Como sabemos desde Hume,qualquer quantidade de moeda é ótima, independentemente do volume.

[32] Ibidem, p. 286. A tradução poderia ser: “Na minha opinião, é apenas neste intervalo ou nesta situação intermédia, entre a aquisição de moeda e a subida dos preços, que o aumento da quantidade de ouro e prata é favorável à indústria.”

[33] Ibidem, p. 284. “Isto fez-me ter dúvidas sobre o caráter benéfico dos bancos e do crédito-papel, tão geralmente vistos como vantajosos para todas as nações” (itálico acrescentado).

[34] Ibidem, pp. 284-285. A tradução poderia ser: “Empenhar-se artificialmente em aumentar o crédito nunca pode ser o interesse de qualquer nação comercial, antes dá azo a desvantagens, ao aumentar a moeda em maior proporção do que a natural em relação a trabalho e a mercadorias, aumentando assim o preço para o mercador e o produtor. Nesta perspectiva, nenhum banco poderia ter mais vantagens do que aquele que guarda em caixa a totalidade da moeda recebida (tal como acontece com o Banco de Amesterdã), nunca aumentando a quantidade de moeda em circulação, contra a prática habitual de fazer voltar parte dos depósitos ao comércio.”

[35] David Hume, “Of Interest”, ob. cit., p. 299: “Suponha-se que, por milagre, todos os homens da Grã Bretanha encontram 5 libras que lhe foram introduzidas no bolso durante a noite. Isto mais do que dobraria a totalidade de moeda que circula atualmente no reino. No entanto, no dia seguinte, não haveria mais prestamistas nem qualquer variação nos juros.”

[36] David Hume, “Of Interest”, ob. cit., pp. 305-306 (grifos nossos). A tradução seria: “O aumento de prestamistas em relação a prestatários sufoca os juros. E fá-lo mais rapidamente se aqueles que adquirem grandes somas não encontram indústrias ou comércios no estado ou outras formas de empregar o dinheiro a não ser emprestando-o a juros. Mas depois de esta nova massa de ouro e prata ter sido digerida e ter circulado por todo o Estado, os assuntos voltam à sua situação anterior; enquanto os proprietários de terras e os novos proprietários da moeda, que vivem ociosamente, a delapidam acima dos seus rendimentos; e aqueles contraem dívidas diariamente e estes utilizam uma parte cada vez maior dos estoques até que finalmente se esgotam. A totalidade da moeda pode permanecer no Estado, e fazer-se sentir através de um aumento dos preços; mas sem ser agrupado em grandes massas ou estoques, a desproporção entre os prestatários e os prestamistas é a mesma que antes e consequentemente as altas taxas de juro voltam.”

[37] Hayek apontou as surpreendentes carências ou gaps no conhecimento teórico de Keynes sobre a história do pensamento econômico inglês dos séculos XVIII e XIX em matéria monetária e afirma que, se esse conhecimento tivesse sido mais profundo, nos teríamos poupado, em grande medida, ao franco retrocesso que representaram as doutrinas keynesianas na história do pensamento econômico. Ver F. A. Hayek, “The Campaign against Keynesian Inflation”, em New Studies in Philosophy, Politics, Economics and the History of Ideas, ob. cit., p. 231.

[38] Adam Smith, An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, reeditada em 2 volumes, R.H. Campbell, A.S. Skinner e W.B. Todd (eds.), Clarendon Press, Oxford 1976, vol. I, p. 304. A tradução seria a seguinte: “O que um banco pode adiantar com prudência a uma mercador ou empresário de qualquer tiponão é a totalidade do capital com que faz comércio nem uma parte considerável do mesmo, mas apenas a parte que, de outra forma, seria obrigado a manter ociosa e em moeda para responder a levantamentos ocasionais.” Sobre a evolução das ideias bancárias de Adam Smith pode consultar-se James A. Gherity, “The Evolution of Adam Smith’s Theory of Banking”, History of Political Economy, vol. 26, n.º 3, Outono de 1994, pp. 423-441.

[39] Edwin G. West fez notar que Perlman acredita que Smith tinha consciência dos problemas de expandir o crédito além do nível de poupança voluntária, embora não tivesse sido capaz de resolver a contradição existente entre a sua acertada tese de que só o investimento efetuado com base na poupança voluntária é positivo e o tratamento que dá ao sistema bancário baseada na reserva fracionária. Ver Edwin G. West, Adam Smith and Modern Economics: From Market Behaviour to Public Choice, Edward Elgar, Aldershot 1990, pp. 67-69. Pedro Schwartz assinala que “Adam Smith não falou sobre as matérias do crédito e monetárias com a mesma clareza de Hume” e que, na verdade, “induziu em erro muitos dos discípulos ao não identificar sempre os seus pressupostos institucionais.” Schwartz assinala ainda que Adam Smith sabia muito menos de sistema bancário e de papel-moeda do que James Steuart, tendo afirmado até que “alguns dos critérios da exposição de Smith saíram da sua leitura de Political Economy de Steuart”. Ver o interessante artigo de Pedro Schwartz, “El monopolio do banco central em la historia do pensamiento econômico: un siglo de miopía em Inglaterra”, publicado em Homenaje a Lucas Beltrán, Editorial Moneda e Crédito, Madrid 1982, p. 696.

[40] Ver a edição organizada por F.A. Hayek deste livro e a respectiva Introdução, publicadas por Augustus M. Kelley, Nova York, 1978.

[41] F.A. Hayek, The Trend of Economic Thinking, ob. cit., pp. 194-195.

[42] Pedro Schwartz, “El monopolio do banco central em la historia do pensamiento econômico: un siglo de miopía em Inglaterra”, ob. cit., p. 712.

[43] As contribuições mais importantes de Ricardo encontram-se na sua conhecida obra Proposals for an Economical and Secure Currency (1816), que foi reeditada no vol. IV, pp. 34-106 de The Works and Correspondence of David Ricardo, Piero Sraffa (ed.), Cambridge University Press, Cambridge 1951-1973. As críticas de Ricardo aos bancos podem ser encontradas, entre outros lugares, na carta que escreveu a Malthus a 10 de Setembro de 1815, e que se está incluída no vol. IV de The Works editado por Sraffa, p. 177. Não podemos deixar de voltar a assinalar que Ricardo nunca aconselharia a um governo a restauração da paridade da sua moeda desvalorizada para o nível anterior ao da desvalorização, como se deduz claramente da carta que escreveu a John Wheatley a 18 de Setembro de 1821 (incluída no vol. IX de The Works organizado por Sraffa, pp. 71-74). O próprio Hayek, em 1975, escreveu o seguinte: “I ask myself often how different the economic history of the world might have been if in the discussion of the years preceding 1925 one English economist had remembered and pointed out this long-before published passage in one of Ricardo’s letters.”Ver a p. 199 de New Studies in Philosophy, Politics, Economics and the History of Ideas (ob. cit.). O erro fatal que significou a tentativa britânica de, depois da Primeira Guerra Mundial, restaurar o valor da libra para a paridade com o ouro, que era a paridade existente antes de o valor da libra se reduzir como consequência da guerra, já tinha sido revelado numa situação muito semelhante (depois das guerras napoleônicas) por David Ricardo cem anos antes, altura em que afirmou que ele próprio “never should advise a government to restore a currency which had been depreciated 30 percent to par; I should recommend, as you propose, but not in the same manner, that the currency should be fixed at the depreciated value by lowering the standard, and that no farther deviations should take place.” David Ricardo, carta já citada a John Wheatley do 18 de Setembro de 1821, incluída em The Works and Correspondence of David Ricardo, P. Sraffa (ed.), Cambridge, University Press, Cambridge 1952, vol. IX, p. 73. Recorde-se ainda o referido na n. 46 do capítulo VI.

[44] Na verdade, as principais doutrinas da Escola Bancária já tinham sido elaboradas, pelo menos de forma embrionária, pelos teóricos da Escola “Anti-bullonista” na Inglaterra do século XVIII. Ver o capítulo 5 (“The Early Bullionist Controversy”) do livro de Murray N. Rothbard, An Austrian Perspective on the History of Economic Thought, vol. II, Classical Economics, Edward Elgar, Aldershot, Inglaterra, 1995, pp. 159-274; e também caps. 9-14  de F.A. Hayek, The Trend of Economic Thinking, vol. 3, ob. cit.

[45] John Fullarton, On the Regulation of Currencies, being an examination of the principles on which it is proposed to restrict, within certain fixed limits, the future issues on credit of the Bank of England and of the other banking establishments throughout the country, John Murray, Londres 1844, 2.ª edição revista de 1845. A teoria do refluxo de Fullarton está incluída na p. 64 do livro citado. A versão de Fullarton das doutrinas inflacionárias da Escola Bancária foram popularizadas no continente europeu por Adolph Wagner (1835-1917). John Fullarton foi cirurgião, editor, viajante incansável e, claro, banqueiro. Sobre as influências de Fullarton em autores tão diversos como Marx, Keynes e Rudolph Hilferding, consultar o interessante ensaio de Roy Green publicado no vol. II de The New Palgrave: A Dictionary of Economics, ob. cit., pp. 433-434.

[46] Ver Ludwig von Mises, The Theory of Money and Credit, ob. cit., pp. 340-41.

[47] Ludwig von Mises, The Theory of Money and Credit, ob. cit., p. 342. Sobre as críticas de Mises à Escola Bancária, consultar também as pp. 118-119 de On the Manipulation of Money and Credit, bem como as pp. 429-440 de Human Action (obras já citadas).

[48] Reeditado em Records from Committees of the House of Commons, Miscellaneous Subjects, 1782, 1799,1805, pp. 119-131. A passagem do texto pode traduzir-se da seguinte forma: “Os saldos no banco devem ser considerados sob a mesma perspectiva do papel-moeda em circulação.”

[49] O trabalho de James Pennington data de 13 de Fevereiro de 1826 e tem como título “On Private Banking Establishments of the Metropolis” e foi publicado como Anexo à obra de Thomas Tooke, A Letter to Lord Grenville; On the Effects Ascribed to the Resumption of Cash Payments on the Value of the Currency, John Murray, Londres 1826; bem como na sua History of Prices and of the State of the Circulation from 1793-1837, Longman, Londres 1838, vol. II, pp. 369 e 374. A tradução da passagem de Pennington seria a seguinte: “Os depósitos apontados no livro de um banqueiro de Londres e as notas de papel-moeda emitidas por um banqueiro da província são essencialmente a mesma coisa, uma vez que são formas diferentes do mesmo tipo de crédito; e são usados para executar a mesma função [] ambos são substitutos de moeda metálica e são suscetíveis de considerável aumento ou diminuição, sem que haja um aumento correspondente da base em que se apoiam.” Por sua vez, Murray N. Rothbard assinala, antes do próprio Pennington, que um teórico americano da Escola Monetária defensor do coeficiente de caixa de 100%, o Senador do Estado de Pensilvânia Condy Raguet, tinha já em 1820 demonstrado a equivalência entre o papel-moeda e os depósitos criados pelos bancos ao exercer a atividade com reserva fracionária. Ver, a propósito, Murray N. Rothbard, The Panic of 1819, ob. cit., pp. 149 e a nota 52 das pp. 231-232, bem como a p. 3 do livro de Rothbard The Mystery of Banking, já citado.

[50] Albert Gallatin, Considerations on the Currency and Banking System of the United States, Carey & Lea, Filadélfia 1831, p. 31. A passagem do texto pode ser traduzida da seguinte forma: “Os créditos em contas corrente ou depósitos dos bancos são, na sua origem e efeito, perfeitamente semelhantes às notas de banco, pelo que não podemos senão considerar que a soma agregada de todos eles, de acordo com os dados contábeis dos bancos existentes, faz parte da moeda dos Estados Unidos.”

[51] “It was the only merit of the Banking School that it recognized that what is called deposit currency is a money-substitute no less than banknotes. But except for this point, all the doctrines of the Banking School were spurious. It was guided by contradictory ideas concerning money’s neutrality; it tried to refute the quantity theory of money by referring to deus ex machina, the much talked about hoards, and it misconstrued entirely the problems of the rate of interest.” Ludwig von Mises, Human Action, ob. cit., p. 440.

[52] As contribuições e obras mais importantes destes autores podem ser analisadas no excelente resumo da discussão entre a Escola Bancária e a Escola Monetária, da autoria de F.A. Hayek e que só foi publicado recentemente. Ver o cap. XII de The Trend of Economic Thinking., ob. cit., pp. 223-253. Em particular, assinalem-se as obras de Samuel Jones Lloyd (Lord Overstone) Reflections Suggested by a Perusal of Mr. J. Horseley Palmer’s Pamphlet on the Causes and Consequences of the Pressure on the Money Market (P. Richardson, Londres 1837; posteriormente reeditada por J. R. McCulloch no seu Tracts and Other Publications on Metallic and Paper Currency, by the Right Hon. Lord Overstone, Harrison & Sons, Londres 1857); George Warde Norman, Remarks upon some Prevalent Errors with respect to Currency and Banking, and Suggestions to the Legislature and the Public as to the Improvement in the Monetary System, P. Richardson, Londres 1838. E, sobretudo, Robert Torrens, que foi talvez o melhor teórico da Escola Monetária, no A Letter to the Right Hon. Lord Viscount Melbourne, on the Causes of the Recent Derangement in the Money Market, and on Bank Reform (Longman, Rees, Orme, Brown & Green, Londres 1837).

[53] No entanto, no caso de Ricardo, antecipou-se a conveniência de o banco central ser independente do governo. Ver José Antonio de Aguirre, El poder de emitir dinero: de J. Law a J.M. Keynes, Unión Editorial, Madrid 1985, pp. 52-62 e nota 16.

[54] Concordo plenamente com Pedro Schwartz na classificação de Keynes (e, em menor medida, de Marshall) como teóricos pertencentes à “Escola Bancária”, mas defensores do sistema de atividade bancária central (precisamente para conseguir o máximo de “flexibilidade” para expandir a oferta monetária). Ver o seu artigo já citado “El monopolio do banco central em la historia do pensamiento econômico: un siglo de miopia em Inglaterra”, p. 685-729, e em especial a p. 729.

[55] Ver Vera C. Smith, The Rationale of Central Banking and the Free Banking Alternative, publicada com um Prefácio de Leland B. Yeager, numa magnífica edição da Liberty Press, Indianapolis 1990). A 1.ª edição (T.S. King & Son Ltd., Westminster, Inglaterra, 1936) já há muitos anos que estava esgotada. Trata-se de uma tese de doutoramento de Vera Smith (mais tarde, Vera Lutz) orientada por F. A. Hayek. Efetivamente, Hayek dedicava algum tempo escrevendo um livro sobre sistema bancário e moeda quando, depois do famoso conjunto de conferências na London School of Economics, que deu origem ao livro Prices and Production (ob. cit.), teve de interromper as pesquisas ao ser nomeado catedrático da prestigiada instituição. Hayek tinha concluído quatro capítulos do livro planejado dedicados, respectivamente, à história da teoria monetária na Inglaterra, à situação da moeda na França durante o século XVIII, à evolução do papel-moeda na Inglaterra e à controvérsia entre as escolas “monetária” (Currency School) e “bancária” (Banking School), quando decidiu entregar o trabalho que já estava acabado, bem como as notas para o quinto capítulo, a uma das suas mais brilhantes alunas, Vera C. Smith. Esta desenvolveu as ideias de Hayek e escreveu o livro referido como tese de doutoramento. Felizmente, o manuscrito dos capítulos e das notas de Hayek foi recentemente recuperado por Alfred Bosch e Reinhold Weit, tendo sido traduzido para inglês por Grete Heinz e publicado como caps. IX, X, XI e XII do vol. III das Obras Completas de F.A. Hayek. Ver F.A. Hayek, The Trend of Economic Thinking, ob. cit. A tese da coincidência geral entre a Escola Bancária e a escola do sistema bancário livre e entre a Escola Monetária e a escola do banco central é comentada por Vera C. Smith no livro, entre outros lugares, nas pp. 112-113 da 2.ª edição inglesa. Sobre este tema ver, igualmente, Murray N. Rothbard, Classical Economics, vol. II (ob. cit.), cap. VII.

[56] Henry Parnell, Observations on Paper Money, Banking and Other Trading, including those parts of the evidence taken before the Committee of the House of Commons which explained the Scotch system of banking, James Ridgway, Londres 1827, especialmente as pp. 86-88.

[57] Ver, por exemplo, Ludwig von Mises, “The Limitation of the Issuance of Fiduciary Media: Observations on the Discussions concerning Free Banking”, seção 12 do cap. XVII de Human Action, ob. cit., pp. 444-448.

[58] J.R. McCulloch, Historical Sketch of the Bank of England with an Examination of the Question as to the Prolongation of the Exclusive Privileges of that Establishment, Longman, Rees, Orme, Brown & Green, Londres 1831. E também o seu A Treatise on Metallic and Paper Money and Banks, A. & C. Black, Edimburgo 1858.

[59] As contribuições de Longfield foram incluídas numa série de quatro artigos sobre “Banking and Currency” publicada na Dublin University Magazine ao longo do ano de 1840. Sobre Longfield, Vera C. Smith conclui que:“The point raised by the Longfield argument is by far the most important controversial point in the theory of free banking. No attempt was made in subsequent literature to reply to it.” Vera C. Smith, The Rationale of Central Banking and the Free Banking Alternative, ob. cit., p. 88.

[60] Na Bélgica e na França houve uma discussão paralela á que estamos comentando entre defensores da Escola Bancária e da liberdade bancária, como Courcelle-Seneuil, Coquelin, Chevalier e outros,  e teóricos da Escola Monetária, defensores de um banco central, como Lavergne, D’Eichtal e Wolowsky. Na Alemanha, merece destaque o debate entre Adolph Wagner e Lasker, pelo lado da escola da liberdade bancária, e Tellkampf, Geyer, Knies e Neisser, pelo lado da Escola Monetária partidária de um banco central. Ver a este respeito os caps. VIII e IX do livro de Vera C. Smith já citado, pp. 92-132. O mais notado defensor do sistema bancário livre em Espanha foi Luis María Pastor (1804-1872), especialmente no seu livro Libertad de bancos e cola do de España, Imprenta de B. Carranza, Madrid 1865. Ver José Luis García Ruiz, “Luis María Pastor: un economista em la España de Isabel II”, Revista de historia econômica, ano XIV, 1996, nº 1, pp. 205-225.

[61] O meu aluno do Erasmus Programme in Law and Economics, Jesper N. Katz, convenceu-me de que o futuro desenvolvimento dos sistemas de pagamento e compensação pela Internet e das comunicações informáticas “esvaziará” rapidamente os bancos que operem com reserva fracionária se surgir a menor dúvidasobre a sua solvência. Neste sentido, a revolução tecnológica no âmbito das comunicações informáticas tenderá a estimular o sistema bancário privado com um coeficiente de caixa de 100% (pressupondo que esta se privatize completamente fazendo desaparecer o banco central). Ver: Jesper N. Katz, “An Austrian Perspective on the History and Future of Money and Banking”, Erasmus Programme in Law and Economics, verão de 1997 (no prelo). E também The Future of Money in the Information Age, James A. Dorn (ed.), Cato Institute, Washington D.C., 1997. Quanto ao chamado “dinheiro de plástico” (cartões de crédito) ou “eletrônico”, convém esclarecer que não se trata de dinheiro, mas apenas de instrumentos que, tal como os cheques de papel, permitem o pagamento com base em dinheiro (ou substitutos monetários perfeitos como os depósitos bancários) verdadeiro.

[62] Victor Modeste, “Le billet des banques d’émision et la fausse monnaie”, em Le journal des économistes, vol. III, 15 de Agosto de 1866.

[63] “Creio que aquilo a que se chama liberdade bancária terá como resultado o desaparecimento completo das notas de banco da França. Quero dar a todos o direito de emitir notas, precisamente para que ninguém queira já aceitá-las.” Henri Cernuschi, Contre le billet de banque, Guillaumin, Paris 1866, p. 55. Ver também a interessante obra de Cernuschi Mécanique de l’échange, A. Lacroix, Paris 1865. Esta tese de Cernuschi é subscrita integralmente por Ludwig von Mises, que não só inclui a citação que apresentamos no texto principal na sua Human Action, como acrescenta que “Freedom in the issuance of bank notes would have narrowed down the use of banknotes considerably if it had not entirely supressed it.” Ludwig von Mises,Human Action, ob. cit., p. 446. A Escola Bancária de atividade livre liderada na França por J.G. Courcelle-Seneuil opôs-se a Cernuschi. Ver, sobretudo, o livro La banque libre: exposé des fonctions du commerce de banque et de son application à l’agriculture suivi de divers écrits de controverse sur la liberté des banques, Guillaumin, Paris 1867. A melhor análise sobre as doutrinas de Modeste e Cernuschi (incluindo as diferenças entre ambos) pertence a Oskari Juurikkala, “The 1886 False-Money Debate in the Journal des Économistes:Déjà vu for Austrians?”, The Quarterly Journal of Austrian Economics, vol. V, n.º 4, inverno 2002, pp. 43-55.

[64] O herói da fronteira convertido em senador, Davy Corcket, foi também defensor de um sistema bancário submetido ao coeficiente de 100%. Para ele, os sistemas bancários com reserva fracionária eram “species of swindling on large scale” (Mark Skousen, The Economics of a Pure Gold Standard, ob. cit., p. 32). Ao mesmo grupo pertenceram Andrew Jackson, o já citado Martin van Buren, Henry Harrison e James K. Polk. Todos viriam a ser presidentes dos Estados Unidos.

[65] Pode encontrar-se um resumo sobre esta escola nos Estados Unidos durante a primeira metade do século XIX no artigo de James E. Philbin, “An Austrian Perspective on Some Leading Jacksonian Monetary Theorists”,The Journal of Libertarian Studies: An Interdisciplinary Review, vol. X, n.º 1, outono de 1991, pp. 83-95. Outro livro que estuda as diferentes escolas de teoria bancária e monetária surgidas na primeira metade do século XIX nos Estados Unidos é o de Harry E. Miller, intitulado Banking Theory in the United States before 1860, (1927), reeditado por Augustus M. Kelley, Nova York 1972.

[66] Johann Ludwig Tellkampf, Essays on Law Reform, Commercial Policies, Banks, Penitenciaries, etc., in Great Britain and the United States of America, Williams and Norgate, Londres 1859. E também Die Prinzipien des Geld und Bankwesens, Puttkammer e Mühlbrecht, Berlim 1867. Já em 1912, Mises referiu-se às propostas de Tellkampf (e de Geyer), com a seguinte afirmação desconcertante “The issue of fiduciary media has made it possible to avoid the convulsions that would be involved in an increase in the objective exchange value of money, and reduced the cost of the monetary apparatus” (Ludwig von Mises, The Theory of Money and Credit, ob. cit., p. 359). Trata-se de uma afirmação surpreendente vinda de Mises, que, no final do mesmo livro, propõe, como Tellkampf e Geyer (entre os partidários do banco central) e Hübner eMichaelis (entre os defensores do sistema bancário livre), o restabelecimento do coeficiente de caixa de 100% e a eliminação da criação de novos meios fiduciários. Esta contradição encontra paralelo com a que no capítulo VII vimos existir entre o Hayek de Monetary Theory and The Trade Cycle (1929) e o de Prices and Production (1931) e só pode ser explicada pelo próprio processo de evolução intelectual de ambos os autores, que, de início, não se atreveram a defender com toda a coerência as implicações das próprias análises. Além disso, é preciso ter em conta que, como vamos ver no próximo capítulo, Mises defende, seguindo o mesmo esquema da Lei de Peel, o estabelecimento de um coeficiente de caixa de 100%, mas só para as notas e para os depósitos recém-criados. Assim, é mais fácil de compreender que se refira às vantagens que a emissão de meios fiduciários teve no passado, embora seja surpreendente que deixe por explicar a razão por que o sistema que considera mais adequado para o futuro não tivesse sido também melhor no passado. Na nossa opinião, as vantagens da emissão de meios fiduciários no passado histórico são poucas em comparação com o grave prejuízo, em forma de crises e recessões econômicas, que provocou e, em especial, com as graves insuficiências do sistema financeiro atual que surge precisamente como resultado dos erros cometidos no passado.

[67] Ver Otto Hübner, Die Banken, publicado por ele mesmo em Leipzig nos anos 1853 e 1854.

[68] Philip Geyer, Theorie und Praxis des Zettelbankwesens nebst einer Charakteristik der Englischen, Französischen und Preussischen Bank, editorial Fleischmann’s Büchhandlung, Munich 1867. É também interessante o livro de Geyer Banken und Krisen, T.O. Weigel, Leipzig 1865. Vera C. Smith critica a proposta de Geyer e Tellkampf de abolir a emissão de meios fiduciários e estabelecer um coeficiente de caixa de 100%. A autora considera que isso acarretaria no início de um processo deflacionário, mas não tem conta que, como veremos no próximo capítulo quando falarmos do processo de transição para o sistema baseado no Direito, não é necessário que se restabeleça a relação entre as notas de banco e a moeda em espécie que existia antes do início da emissão de meios fiduciários. Pelo contrário, todo o processo saudável de transição exige que se evite a deflação e que se redefina a proporção entre meios fiduciários e a moeda em espécie tendo em conta a quantidade total de notas e de depósitos já emitidos pelo sistema bancário. Não se trata, pois, de iniciar uma contração monetária, mas de evitar futuras expansões de crédito.

[69] Otto Michaelis, Volkswirthschaftliche Schriften, vols. I e II, Herbig, Berlim 1873.

[70] Ludwig von Mises, Theorie des Geldes und der Umlaufsmittel, Duncker & Humblot, Munich e Leipzig 1912 e 1924. A obra foi traduzida por H. E. Batson e publicada pela primeira vez em inglês por Jonathan Cape em Londres em 1934, pelo que pôde ser considerada na tese de doutoramento de Vera Smith publicada, como já sabemos, dois anos mais tarde. Saliente-se que Vera Smith inclui Mises, juntamente com Hübner, Michaelis e Cernuschi, na tabela de entrada dupla que apresenta nas pp. 144-145 do livro, na seção correspondente aos teóricos mais estritos da Escola Monetária que, no entanto, dadas as circunstâncias, defendiam um sistema de atividade bancária livre como o melhor caminho para, uma aproximação ao coeficiente de caixa de 100%. Uma das contribuições mais importantes do livro de Vera Smith é, talvez, o fato de ter mostrado que não existe uma identidade completa e automática entre a Escola Bancária e a escola de atividade bancária livre, por um lado, e a Escola Monetária e a escola do banco central, por outro. Antes, existe uma tabela de entrada dupla na qual se poderão classificar quatro grupos diferentes de teóricos. Pela importância e capacidade de esclarecimento, apresentamos a seguir a tabela revista de Vera Smith:

Tabela VIII-1

  Escola da Atividade Bancária Livre Escola do Banco Central
Escola Bancária

(Reserva Fracionária)

  Maioria dos teóricos da Escola Bancária do século XIX.

White, Selgin, Dowd e David

Friedman no século XX.

  Keynesianos e a maioria dos monetaristas do século XX
?

(Evolução natural da Escola Bancária)

Escola Monetária

(Coeficiente de Caixa de 100%)

  Modeste

Cernuschi

Hübner

Michaelis

Mises, possivelmente Hayek

n 1925 e 1937

Rothbard, Huerta de Soto

Joseph Salerno e Hans-Hermann

Hoppe

  Proposta da Escola de Chicago na década de 1930. Maurice Allais.
?

(Evolução natural da Escola Monetária)

 

A divisão dos teóricos em quatro escolas (escola da atividade bancária livre com reserva fracionária, escola da atividade bancária com reserva fracionária dirigido por um banco central, Escola Monetária com coeficiente de caixa de 100% e atividade bancária livre e Escola Monetária com coeficiente de caixa de 100% e banco central) é muito mais precisa e clarificadora do que a classificação efetuada, entre outros, por Anna J. Schwartz e Lawrence H. White, com apenas três escolas: a Escola Monetária, a Escola Bancária e a Escola de Atividade Bancária Livre (Ver Anna J. Schwartz, “Banking School, Currency School, Free Banking School”, publicado em The New Palgrave: A Dictionary of Money and Finance, vol. I, ob. cit., pp. 148-152).

[71] Sobre a evolução em Espanha da doutrina a favor do sistema bancário central e da influência sobre o processo de formação do banco emissor, ler Luis Coronel de Palma, La evolución de un banco central, Real Academia de Jurisprudencia e Legislación, Madrid 1976, e a bibliografia lá citada, bem como os trabalhos de Rafael Anes, “El Banco de España (1874-1914): un banco nacional”, e de Pedro Tedde de Lorca, “Lo sistema bancário privada espanhola durante la Restauración (1874-1914)”, incluídos no vol. I de Lo sistema bancário espanhola em la Restauración, Servicio de Estudios do Banco de España, Madrid 1974. Apesar das valiosas referências incluídas nos trabalhos anteriores, falta fazer uma história do pensamento econômico espanhol sobre a discussão sistema bancário central-sistema bancário livre.

[72] “A central bank is not a natural product of banking development. It is imposed from outside or comes into being as the result of Government favours. This fator is responsible for marked effects on the whole currency and credit structure which brings it into sharp contrast with what would happen under a system of free banking from which Government protection was absent.” Vera C. Smith, The Rationale of Central Banking and the Free Banking Alternative, ob. cit., p. 169. Assim, podemos aceitar a tese do professor Charles Goodhart (ver a nota 73), para quem a instituição do banco central resulta da mudança de um sistema de dinheiro-mercadoria para um sistema de moeda fiduciária, sempre que se reconheça que essa mudança não é um resultado espontâneo do mercado, mas, pelo contrário, é o resultado inevitável da violação espontânea dos princípios tradicionais do direito (coeficiente de caixa de 100% para os depósitos à vista) exigidos para o correto funcionamento do mercado. Na nossa opinião, o único defeito importante do livro de Vera Smith está no fato de a autora não perceber completamente que o sistema do banco central não é mais do que o resultado lógico e inevitável da introdução gradual e subreptícia, por parte dos banqueiros privados e em histórica cumplicidade com os governos, do sistema bancário baseado na reserva fracionária. No livro de Vera Smith são ignoradas as propostas que já naquela altura circulavam a favor do coeficiente de caixa de 100%. Se a autora tivesse analisado estas propostas, teria notado que a única maneira de obter um sistema de atividade bancária livre é pelo restabelecimento do princípio segundo o qual é preciso manter em reserva 100% das quantidades recebidas em forma de depósitos à vista. Como veremos mais adiante, o mesmo defeito é aplicável a muitos dos teóricos modernos que hoje em dia defendem o sistema bancário livre.

[73] A obra clássica sobre a evolução dos bancos centrais é a de Charles Goodhart, The Evolution of Central Banks, The MIT Press, Cambridge, Massachusetts, 2.ª edição, 1990, especialmente as pp. 85-103. Pode encontrar-se um breve resumo sobre a evolução e o surgimento dos bancos centrais nas pp. 9 e ss. do livro de Pedro Tedde de Lorca El Banco de San Carlos (1782-1822), Alianza Editorial, Madrid 1988. A formação do banco central que levou a dificuldades financeiras do Estado, que se vê continuamente forçada a tirar proveito dos privilégios de criação de dinheiro (em forma de notas e de depósitos) permitida pelo sistema bancário com reserva fracionária é perfeitamente ilustrada para o caso espanhol do século XIX no livro de Ramón Santillana, Memoria histórica sobre los bancos Nacional de San Carlos, Español de San Fernando, Isabel II, Nuevo de San Fernando, e de España, reedição do Banco de Espanha, Madrid 1982, e em especial as pp. 1, 3, 132, 236 e 237.

[74] Jesús Huerta de Soto, Socialismo, cálculo econômico e función empresarial, ob. cit., p. 87.

[75] Ibidem, p. 95.

 

[76] A análise detalhada de todas as conclusões teóricas resumidas no texto pode ser encontrada nos três primeiros capítulos de Jesús Huerta de Soto, Socialismo, cálculo econômico e función empresarial, obra já citada, pp. 21-155

[77] Por exemplo, o artigo 15 da Lei 13/1994, de Autonomia do Banco de Espanha, dizia que “corresponderá ao Banco de Espanha a faculdade exclusiva de emissão de notas em pesetas, que, sem prejuízo do regime legal aplicado à moeda metálica, serão os únicos meios de pagamento de curso legal dentro do território espanhol com poder liberatório pleno e ilimitado”, Boletín Oficial do Estado de 2 de Julho de 1994, p. 15404 (itálico acrescentado). Como é lógico, com a entrada da Espanha na União Monetária Europeia a partir de 1 de janeiro de 2002, as referências à peseta e ao Banco de Espanha devem ser substituídas pelas correspondentes ao Euro e ao Banco Central Europeu, respectivamente.

[78] Ver, por exemplo, a enumeração geral de funções do banco central incluídas no artigo 7 da Lei de Autonomia do Banco de Espanha já citada.

[79] Ver o trabalho da minha aluna Elena Sousmatzian Ventura: “¿Puede la intervención gubernamental evitar las crisis bancarias?”, Revista de la Superintendencia de bancos e otras instituciones financieras, n.º 1, Caracas, Venezuela, abril-junho de 1994, pp. 66-87. Neste notável trabalho, Elena Sousmatzian acrescenta ainda que a noção de que o atual sistema bancário partilha características de uma economia socialista ou controlada, embora inicialmente possa surpreender muitos, é fácil de entender se nos lembrarmos de que: a) todo o sistema é organizado com base no monopólio da moeda por parte do Estado; b) o sistema fundamenta-se no privilégio concedido aos bancos para criarem do nada créditos sobre a base das reservas fracionárias dos depósitos; c) a direção de todo o sistema é efetuada pelo banco central, como autoridade monetária independente que atua como verdadeiro órgão de planificação do sistema financeiro; d) do ponto de vista jurídico, o princípio que se aplica ao sistema bancário é o mesmo princípio de competência próprio da Administração, em virtude do qual só pode fazer aquilo que lhe é permitido, ao contrário do princípio jurídico de capacidade que se aplica para o resto das pessoas privadas, que podem fazer sempre tudo o que não seja proibido; e) é comum o sistema bancário ser uma exceção ao sistema geral de falências regido pelo direito comercial, que, no âmbito bancário, é substituído por um sistema próprio do direito administrativo e baseado na intervenção e substituição dos órgãos de administração; f) as falências são impedidas pela externalização dos efeitos das crises patrimoniais dos bancos, cujos custos são suportados pelos cidadãos por empréstimos do banco central a taxas de juro preferenciais ou de contribuições a fundo perdido concedidas por um fundo de garantia de depósitos; g) existe uma extensíssima e minuciosíssima regulação a que a atividade bancária se encontra sujeita, toda ela de tipo administrativo; e h) a fiscalização da intervenção governamental no caso das crises bancárias é reduzida ou inexistente, muitas vezes, é decidida ad hoc, à margem dos princípios de racionalidade, eficiência e eficácia.

[80] Excluímos, claro, os casos, hoje pouco relevantes, de sistemas bancários totalmente nacionalizados (China, Cuba, etc.).

[81] Além disso, o banco central não pode assegurar a todos os clientes dos bancos privados a recuperação dos depósitos em unidades monetárias que mantenham inalterado o correspondente poder de compra. A crença de que os bancos centrais “garantem” a devolução dos depósitos a todos os cidadãos, independentemente do comportamento dos respectivos bancos privados, é pura ficção, uma vez que, o mais que podem fazer é gerar do nada nova liquidez para fazer frente a todas as exigências de levantamento de depósitos de que os bancos privados sejam objeto, dando origem a um processo inflacionário que faz com que em muitas ocasiões o poder de compra das unidades monetárias retiradas dos correspondentes depósitos seja sensivelmente inferior ao que tinham aquando da realização dos depósitos.

[82] “There is one basic dilemma, which all central banks face, which makes it inevitable that their policy must involve much discretion. A central bank can exercize only an indirect and therefore limited control over all the circulating media. Its power is based chiefly on the threat of not supplying cash when it is needed. Yet at the same time it is considered to be its duty never to refuse to supply this cash at a price when needed. It is this problem, rather than the general effects of policy on prices or the value of money, that necessarily preocupies the central banker in his day-to-day actions. It is a task which makes it necessary for the central bank constantly to forestall or counteract developments in the realm of credit, for which no simple rules can provide sufficient guidance.” F.A. Hayek, The Constitution of Liberty, Routledge, Londres, 1.ª edição de 1960, reedição de 1990, p. 336.

[83] Os diferentes sistemas e organismos que visam “assegurar” os depósitos criados em muitos países ocidentais tendem a produzir um efeito que é exatamente o oposto ao pretendido com o seu estabelecimento. Estes “fundos de garantia dos depósitos” fazem com que a política dos bancos privados seja mais imprudente e menos responsável, uma vez que dão aos cidadãos a falsa segurança de que os depósitos se encontram “garantidos” e de que não é preciso um esforço no estudo e na revisão da confiança posta em cada instituição. Estes fundos convencem também os banqueiros de que o seu comportamento não irá prejudicar muito gravemente os seus clientes diretos. O papel de destaque que os sistemas de garantia ou “seguro” de depósito tiveram no surgimento de crises bancárias foi estudado, entre outros, no livro The Crisis in American Banking, Lawrence H. White (ed.), New York University Press, Nova York 1993. É, pois, um pouco desolador que, no processo de harmonização do direito bancário europeu, se tenha estabelecido na União Europeia a obrigatoriedade da implantação do reconhecimento oficial de um sistema de garantia de depósitos em cada Estado da União, fixando-se a obrigatoriedade da afiliação de cada entidade europeia de crédito a alguma das agências criadas a nível estatal.

[84] Assim, o erro de política monetária que mais contribuiu para o aparecimento da Grande Depressão foi o cometido pelos bancos centrais europeus e pela Reserva Federal norte-americana durante os anos 1920, e não, como indica Stephen Horwitz, seguindo Milton Friedman e Anna Schwartz, o fato de o banco central, depois do crash da bolsa de 1929, não ter feito frente a uma diminuição de 30% na quantidade de moeda em circulação. Como sabemos, a crise tem fundamento nas distorções na estrutura produtiva provocadas pela expansão de crédito e monetária anterior, e não na inevitável deflação ocorrida no correspondente processo de reversão. Este erro de apreciação de Horwitz, bem como a defesa dos raciocínios da escola moderna de liberdade bancária baseada na reserva fracionária, pode ser encontrado no seu artigo “Keynes’ Special Theory”, publicado em Critical Review: A Journal of Books and Ideas, vol. III, nn. 3 e 4, verão-outono 1989, pp. 411-434, e em especial a p. 425.

[85] Charles A.E. Goodhart realizou um resumo preciso das insuperáveis dificuldades teóricas e práticas encontradas pelo banco central para levar a efeito a sua política monetária no seu artigo “What Should Central Banks Do? What Should be their Macroeconomic Objectives and Operations?”, publicado em The Economic Journal, novembro de 1994, n.º 104, pp. 1424-1436. A citação do texto encontra-se nas pp. 1426-1427 e poderia ser traduzida da seguinte forma: “Existe a tentação de errar pelo lado da negligência financeira. Subir as taxas de juro é politicamente impopular e reduzi-las muito popular. Mesmo sem a subserviência política, encontrar-se-á sempre pretexto para adiar os aumentos na taxa de juro até haver mais disponível informação sobre os eventos econômicos. Normalmente, os políticos não querem ver-se a surpreender repentinamente o eleitorado com inflação. Em vez disso, sugerem sempre que os aumentos eleitoralmente inconvenientes da taxa de juro sejam adiados, ou que uma redução seja antecipada “com segurança”. Esta manipulação política das taxas de juro e, logo, dos agregados monetários leva a uma perda de credibilidade e ao cinismo sobre se deve acreditar-se ou não na retórica dos políticos contra a inflação.” Outros trabalhos interessantes de Goodhart são os seguintes: The Business of Banking 1891-1914, publicado por Weidenfeld & Nicholson, Londres 1972, e The Evolution of Central Banks, The MIT Press, Cambridge, Massachusetts, 2.ª edição, 1990. As inevitáveis influências políticas nas decisões dos bancos centrais, mesmo nos mais independentes do poder executivo do ponto de vista legal foram também mencionadas por Thomas Mayer, em Monetarism and Macroeconomic Policy, Edward Elgar, Aldershot, Inglaterra, 1990, pp. 108-109.

[86] Em Espanha foi elaborado um bom resumo das diferentes posições e da literatura mais recente sobre este tema por Antonio Erias Rey e José Manuel Sánchez Santos em “Independencia de los bancos centrales e política monetaria; una síntesis”, Hacienda Pública Espanhola, n.º 132, 1995, pp. 63-79.

[87] Sobre o papel positivo da independência do banco central sobre o sistema financeiro, consultar o livro de Geoffrey A. Wood et al, Central Bank Independence: What is it and What will it Do for Us?, Institute for Economic Affairs, Londres 1993; e também o trabalho de Otmar Issing, Central Bank Independence and Monetary Stability, Institute for Economic Affairs, Londres 1993.

[88] János Kornai, “The Hungarian Reform Process”, Journal of Economic Literature, vol. XXIV, n.º 4, dezembro de 1986, pp. 1726-1727. Esta passagem poderia ser traduzida da seguinte forma: “Um sistema artificial de incentivos baseado em prêmios e castigos pode ser imposto de cima. Tal sistema poderia apoiar alguns dos objetivos mencionados. Mas se se entra em conflito com eles, o resultado será a vacilação e a ambiguidade. Os líderes da organização tentarão influenciar aqueles que impõem um sistema de incentivos ou contornar as regras. O que surge deste processo não é um mercado simulado com êxito, mas o habitual conflito existente entre o regulador e as empresas reguladas pela burocracia. A burocracias políticas têm conflitos internos que refletem divisões da sociedade e as diversas pressões de vários grupos sociais. Perseguem os próprios interesses individuais e de grupo, incluindo os interesses particulares da agência especializada a que pertencem. O poder cria uma irresistível tentação para que se faça uso do mesmo. Um burocrata deve ser intervencionista pois é esse o seu papel na sociedade; está ditado pela sua situação.”

[89] Também se descarta totalmente que neste caso não surjam distorções intertemporais. Estas ocorrerão inevitavelmente mesmo que se exija um coeficiente de caixa de 100% ao sistema bancário, se o banco central emprestar dinheiro aos bancos privados ou injetar moeda nova no sistema econômico mediante compras maciças de mercado aberto que afetem diretamente os mercados de valores, a taxa de rentabilidade e, logo, indiretamente, a taxa de juro do mercado de crédito. No texto principal, assumimos que nenhuma destas políticas se leva a cabo (pois, caso contrário, estaríamos de novo na seção a) anterior.

[90] F.A. Hayek explicou que, em muitas ocasiões, a causa do desemprego está na existência de discrepâncias intratemporais entre a distribuição da demanda dos diferentes bens e serviços de consumo e a alocação do trabalho e demais recursos produtivos necessários para produzi-los. Trata-se, pois, de uma descoordenação qualitativa que tende a ser produzida e agravada pela injeção de nova moeda criada pelo banco central em diferentes lugares do sistema econômico. Este argumento, que se consubstancia e se torna mais relevante no caso do sistema bancário com reserva fracionária, na medida em que à distorção intratemporal se sobrepõe uma descoordenação intertemporal muito mais grave, manter-se-ia mesmo que o banco central operasse num sistema bancário que exercesse a sua atividade com um coeficiente de reserva de 100%. Neste caso, o crescimento da oferta monetária proporcionado pelo banco central para alcançar seus objetivos de política monetária distorceria sempre de forma horizontal e intratemporal a estrutura produtiva, exceto no caso, impossível de conceber na prática, da nova moeda ser distribuída de forma igualitária por todos os agentes econômicos. Nestas circunstâncias, o aumento da qualidade de moeda em circulação não teria qualquer efeito, a não ser o de aumentar em termos proporcionais os preços de todos os bens, serviços e fatores de produção, deixando inalteradas todas as condições reais que, na sua origem, tivessem pretensamente justificado o crescimento da oferta monetária. Ver F.A. Hayek, ¿Inflación o pleno empleo?,Unión Editorial, Madrid 1976.

[91] Os principais teóricos a defender um sistema bancário privado com um coeficiente de caixa de 100% controlado por um banco central foram os membros da Escola de Chicago dos anos 1930 e, atualmente, o Prêmio Nobel da Economia, Maurice Allais. No próximo capítulo, analisaremos ao pormenor o conteúdo das propostas.

[92] É este o processo originalmente descrito por Parnell em 1826 e posteriormente desenvolvido profundamente por Ludwig von Mises: “The Limitation on the Issuance of Fiduciary Media: Observations on the Discussions Concerning Free Banking”, Human Action, ob. cit., pp. 434-448.

[93] Charles A. E. Goodhart afirmou que “there were plenty of banking crises and panics prior to the formation of central banks” e cita os trabalhos de O.B.W. Sprague, History of Crises and the National Banking System, originalmente publicado em 1910 e reeditado por Augustus M. Kelley em Nova Jersey em 1977; Ver Charles A.E. Goodhart, “What Should Banks Do? What Should Be Their Macroeconomic Objectives and Operations?”, ob. cit., p. 1435. E também o artigo deste mesmo autor intitulado “The Free Banking Challenge to Central Banks”, publicado em Critical Review, vol. 8, n.º 3, Verão de 1994, pp. 411-425. Foi publicada una compilação dos principais trabalhos de Charles A.E. Goodhart com o título The Central Bank and the Financial System, The MIT Press, Cambridge, Massachusetts, 1995.

[94] Sobre o otimismo dos bancos e o “inflacionismo passivo” provocado pelo receio sentido pelos bancos para abortar a tempo uma expansão artificial, pode consultar-se Ludwig von Mises, Human Action, ob. cit., pp. 572-573. Acrescente-se que, segundo Mises, os benefícios retirados de privilégios tendem a esgotar (no âmbito do sistema bancário, pelo aumento de sucursais, despesas etc.), incentivando novas doses de inflação (ibidem, p.749).

[95] A expressão “tragédia dos bens comuns” consagrou-se a partir do artigo de Garret Hardin “The Tragedy of the Commons”, Science, 1968 (reeditado nas pp. 16-30 de Managing the Commons, Garret Hardin and John Baden (eds.), Freeman, San Francisco, 1970). No entanto, o processo já havia sido completamente descrito 28 anos antes por Ludwig von Mises em “Die Grenzen des Sondereigentums und das Problem der external costs und external economies”, seção VI do capítulo 10 da Parte IV de Nationalökonomie: Theorie des Handelns und Wirtschaftens, Editions Union, Genebra, 1940, 2.ª edição de Philosophia Verlag, Munique 1980, pp. 599-605.

[96] Selgin e White criticaram a minha aplicação da teoria da “tragédia dos bens comuns” ao âmbito do sistema bancário livre com reserva fracionária, argumentando que neste sistema ocorre uma “externalidade pecuniária” (ou seja, derivada do sistema de preços) que não tem nada que ver com a externalidade tecnológica em que se baseia a “tragédia dos bens comuns”. Ver George A. Selgin e Lawrence H. White “In Defense of Fiduciary Media, or We are Not (Devo)lutionists, We are Misesians!”, ob. cit., pp. 92-93 (nota 12). No entanto, penso que Selgin e White não compreenderam completamente que a emissão de meios fiduciários surge como resultado da violação dos princípios tradicionais do direito de propriedade em relação ao contrato de depósito bancário de moeda, pelo que estes meios não são um fenômeno espontâneo do processo livre de mercado submetido ao Direito. Por sua vez, Hoppe, Hülsmann e Block saíram em minha defesa, argumentando que “In lumping money and money substitutes together under the joint title of ‘money’ as if they were somehow the same thing, Selgin and White fail to grasp that the issue of fiduciary media —an increase of property titles— is not the same thing as a larger supply of property and that relative price changes affected through the issue of fiduciary media are an entirely different ‘externality’ matter than the price changes affected through an increase in the supply of property. With this fundamental distinction between property and a property title in mind, Huerta de Soto’s analogy between fractional reserve banking and the tragedy of the commons makes perfect sense.” Ver Hans-Hermann Hoppe, Jörg Guido Hülsmann e Walter Block, “Against Fiduciary Media”, The Quarterly Journal of Austrian Economics, Primavera 1998, vol. 1, n.º 1, pp. 22-23. Além disso, Mises salienta que o principal efeito econômico dos custos externos negativos consiste em dificultar o cálculo econômico e em descoordenar a sociedade, fenômenos plenamente observáveis no caso da expansão de crédito decorrente do sistema bancário com reserva fracionária. Ver Ludwig von Mises, Human Action, ob. cit., pp. 655 e ss.

[97] A Tabela VIII-2 é o gráfico normalmente utilizado para explicar o típico “dilema dos prisioneiros”, inicialmente enunciado por A. W. Tucker e do qual a “tragédia de bens comuns” é apenas uma versão generalizada para um número superior a dois participantes. Ver o artigo de A. Rappaport intitulado “Prisoners’ Dilemma”, publicado em The New Palgrave: A Dictionary of Economics, John Eatwell, Murray Milgate e Peter Newman (eds.), Macmillan, Londres 1987, vol. III, pp. 973-976. O meu raciocínio sobre a aplicação da “tragédia de bens comuns” ao sistema bancário livre com reserva fracionária é paralelo ao originalmente enunciado por Longfield, embora Longfield tente aplicar o seu, sem grandes justificações, às expansões isoladas por parte de alguns bancos, ao passo que, em nossa análise, esses casos são limitados pelo mecanismo de compensação interbancária, fator ignorado por Longfield. Além disso, o princípio da tragédia de bens comuns aplica-se, no âmbito bancário, para explicar as forças que levam os bancos de um sistema bancário livre com reserva fracionária a chegar a acordo, fundir-se e solicitar a criação de um banco central, de forma a definir políticas gerais e comuns de expansão de crédito. A primeira vez que expliquei este típico processo de “tragédia de bens comuns” aplicado neste contexto foi na reunião regional da Sociedade Mont Pèlerin, que teve lugar no Rio de Janeiro de 5 a 8 de setembro de 1993. Aí, Anna Schwartz afirmou também que os teóricos modernos do sistema bancário livre com reserva fracionária não chegam a compreender que o mecanismo de compensação interbancária que propõem não atua como trava da expansão de crédito, caso todos os bancos decidirem, em maior ou menor medida, expandir o crédito simultaneamente. Ver o artigo de Anna J. Schwartz, “The Theory of Free Banking”, apresentado na referida reunião, especialmente a p. 5. Em todo o caso, é evidente que o processo de expansão tem origem num privilégio que viola o direito de propriedade e que cada banco guarda para si todos os benefícios advindos da expansão de crédito, fazendo recair os custos correspondentes de forma diluída em todo o sistema e evitando que o mecanismo de compensação interbancária possa pôr fim aos abusos, se houver, implícita ou explicitamente, um acordo para que a maioria dos bancos se deixe levar, em maior ou menor grau, pelo “optimismo” na criação e concessão dos créditos.

[98] Por todas as razões dadas no texto, não posso estar de acordo com o meu amigo Pascal Salin quando conclui que “the problem is (central bank) monetary monopoly not fractional reverses”. Ver o seu artigo “In Defence of Fractional Monetary Reserves”, apresentado na 7.ª Conferência de Austrian Scholars, Auburn, Alabama, 30-31 de Março de 2001. Até os mais salientes defensores do sistema de banca livre com reserva fracionária, como, por exemplo, George Selgin no seu artigo “Free Banking and Monetary Control”, publicado em The Economic Journal, n.º 104, Novembro de 1994, n.º 427, pp. 1449-1459, e em especial na p. 1455, reconhecem que o sistema de compensação interbancária que surgiria no caso do sistema bancário livre não é capaz de pôr fim a uma expansão generalizada dos créditos. Selgin ignora que o sistema de banca com reserva fracionária que defende criaria uma tendência irresistível, não só para fusões, associações e acordos bancários, mas também, e ainda mais importante, para o estabelecimento de um banco central, dedicado a orquestrar as expansões de crédito conjuntas sem afetar a solvência de bancos individuais, e a garantir a liquidez necessária como prestamista de última instância capaz de apoiar qualquer banco em momentos de apuro financeiro.

[99] F.A. Hayek, Los fundamentos de la libertad, 5.ª edição, Unión Editorial, Madrid 1990; Derecho, legislación e libertad, 2.ª edição, Unión Editorial, Madrid 1994. E também Jesús Huerta de Soto, Socialismo, cálculo econômico e función empresarial, ob. cit., cap. 3.

[100] Ver a p. 2 do artigo da minha aluna Elena Sousmatzian Ventura “¿Puede la intervención gubernamental evitar las crisis bancarias?”, ob. cit. Elena Sousmatzian cita ainda a seguinte descrição efetuada por Tomás-Ramón Fernández do chamado ciclo de crise-legislação: “O ordenamento jurídico bancário sempre se desenvolveu como resposta a crises. Quando estas crises ocorreram, apanharam sempre em falta a legislação pré-existente, na qual nunca foi possível encontrar as respostas e soluções adequadas. Isto obrigou a que fosse sempre necessário “inventar” apressadamente fórmulas de emergência, que, apesar de terem sido criadas como resposta a uma crise, foram objeto de um processo de assimilação e incorporação num novo quadro normativo geral, que se mantém até que novo choque acabe por substitui-las, gerando um novo ciclo de feições semelhantes.” Tomás-Ramón Fernández, Comentarios a la ley de disciplina de intervención de las entidades de crédito, Serie de Estudios de la Fundación Fondo para la Investigación Econômica e Social, Madrid 1989, p. 9. Elena Sousmatzian expõe o seguinte problema: as crises podem ser prevenidas e, nesse caso, a intervenção governamental esteve à altura da tarefa que tinha em mãos; ou as crises não podem ser prevenidas e, nesse caso, não necessitamos de qualquer intervenção estatal para esse fim. Ambas as posições têm um fundo de verdade, uma vez que, como já sabemos, o exercício do sistema bancário com reserva fracionária torna inevitável o aparecimento da crise, independentemente da legislação bancária que os governos efetuem, que, em muitas ocasiões, mais do que minorar os problemas cíclicos, os agravam.

[101] Ludwig von Mises, Human Action, ob. cit., p. 443.

[102] Concretamente o que Tooke disse foi: “As to the free trade in banking in the sense which it is sometimes contended for, I agree with a writer in one of the American papers, who observes that free trade in banking is synonymous with free trade in swindling. Such claims do not rest in any manner on grounds analogous to the claims of freedom of competition in production. It is a matter of regulation by the State and comes within the province of police.”. Thomas Tooke, A History of Prices (3 volumes), Longman, Londres 1840, vol. III, p. 206. Assim, estamos de acordo com Tooke se por sistema bancário livre entendermos liberdade para exercer a atividade com reserva fracionária, violando os princípios essenciais do Direito que o Estado, no caso de considerarmos que deve ter uma função, deveria prevenir e castigar com toda a veemência. Parece ter sido apenas este o sentido com que Ludwig von Mises apresenta esta conhecida citação de Tooke em Human Action (ob. cit., p. 666).

[103] Como acertadamente assinala David Laidler, o interesse recente no sistema bancário livre e no desenvolvimento da Escola Neobancária radica no livro publicado por Friedrich A. Hayek sobre a desnacionalização do dinheiro (F.A. Hayek Denationalization of Money: The Argument Refined, Institute of Economic Affairs, Londres 1978). Antes de Hayek, Benjamin Klein fez una proposta semelhante no artigo “The Competitive Supply of Money”, publicado no Journal of Money, Credit and Banking, n.º 6, novembro de 1974, pp. 423-453. A referência feita por Laidler a estes dois autores pode ser encontrada no seu breve mas sugestivo artigo sobre teoria bancária intitulado “Free Banking Theory”, The New Palgrave: A Dictionary of Money and Finance, Macmillan Press, Londres e Nova York, 1992, vol. II, pp. 196-197. Por outro lado, como aponta Oskari Juurikkala, a atual discussão entre partidários do sistema bancário livre com 100% de coeficiente de caixa e com reserva fiduciária, é um reflexo fiel do que defendem Victor Modeste e Cernuschi, em consonância com J. Gustave Courcelle-Seneuil na França do século XIX. Ver o artigo “The 1866 False-Money Debate in the Journal des Economistes: Déjà vu for Austrians?”, ob. cit.

[104] Lawrence H. White, Free Banking in Britain: Theory, Experience and Debate, 1800-1845, Cambridge University Press, Londres e Nova York 1984; Competition and Currency: Essays on Free Banking and Money, New York University Press, Nova York, 1989; e também os artigos escritos juntamente com George A. Selgin, “How would the invisible hand handle money?”, Journal of Economic Literature, vol XXXII, n.º 4, Dezembro de 1994, pp. 1718-1749; e mais recentemente “In Defense of Fiduciary Media – or, We are Not Devo(lutionists), We are Misesians!”, The Review of Austrian Economics, vol. 9, n.º 2, 1996, pp. 83-107. José Antonio de Aguirre oferece-nos um resumo dos trabalhos de White nas pp. 247-251 do Anexo à edição espanhola do livro de Vera C. Smith Fundamentos de lo sistema bancário central e la libertad bancaria, ob. cit. José Anonio Aguirre fez também uma recolha exaustiva e extensíssima da “bibliografia complementar” que inclui na mencionada edição espanhola sobre o sistema bancário central e o sistema bancário livre. Por último, Lawrence H. White compilou os trabalhos mais importantes para a Escola Neobancária em três volumes sobre Free Banking: Volume I, 19th Century Thought; Volume II, History; Volumen III, Modern Theory and Policy, Edward Elgar, Aldershot, Inglaterra, 1993.

[105] George A. Selgin, “The Stability and Efficiency of Money Supply under Free Banking”, publicado noJournal of Institutional and Theoretical Economics, n.º 143, ano 1987, pp. 435-456, reeditado em Free Banking: Volume III, Modern Theory and Policy, Lawrence H. White (ed.), cit., pp. 45-66; The Theory of Free Banking: Money Supply under Competitive Note Issue, Rowman & Littlefield, Totowa, Nova Jersey, 1988; os artigos escritos com Lawrence H. White, citados na nota anterior; e “Free Banking and Monetary Control”, The Economic Journal, vol. 104, n.º 427, novembro de 1994, pp. 1449-1459. Existe um breve resumo  avaliativo das teorias de Selgin realizado por José Antonio de Aguirre e incluído no citado Anexo ao livro de Vera C. Smith, pp. 255-270.

[106] Stephen Horwitz, “Keynes’ Special Theory”, Critical Review: A Journal of Books and Ideas, Verão-Outono de 1989, vol. III, nn. 3-4, pp. 411-434; “Misreading the Myth´: Rothbard on the Theory and History of Free Banking”, publicado como cap. XVI de The Market Process: Essays in Contemporary Austrian Economics, Peter J. Boettke e David L. Prychitko (eds.), Edward Elgar, Aldershot, Inglaterra, 1994, pp. 166-176; e também os seus livros Monetary Evolution, Free Banking and Economic Order, Westview Press, Oxford 1992 eMicrofoundations and Macroeconomics, Routledge, Londres, 2000.

[107] Kevin Dowd, The State and the Monetary System, Saint Martin’s Press, Nova York 1989; The Experience of Free Banking, Routledge, Londres, 1992; e Laissez-Faire Banking, Routledge, Londres e Nova York, 1993.

[108] David Glasner, Free Banking and Monetary Reform, Cambridge University Press, Cambridge 1989; “The Real-Bills Doctrine in the light of the Law of Reflux”, History of Political Economy, vol. 24, n.º 4, inverno de 1992, pp. 867-894.

[109] Leland B. Yeager e Robert Greenfield, “A Laissez-Faire Approach to Monetary Stability”, Journal of Money, Credit and Banking, n.º XV(3), agosto de 1983, pp. 302-315, reeditado como capítulo XI do volume III de Free Banking, Lawrence H. White (ed.), ob. cit., pp. 180- 195; Leland B. Yeager e Robert Greenfield, “Competitive Payments Systems: Comment”, American Economic Review, n.º 76(4), setembro de 1986, pp. 848-849; Leland B. Yeager, “The Perils of Base Money”, The Review of Austrian Economics, 14:4, 2001, pp. 251-266; The Fluttering Veil: Essays on Monetary Disequilibrium, Liberty Fund, Indianapolis 1997.

[110] Richard Timberlake, “The Central Banking Role of Clearinghouse Associations”, Journal of Money, Credit and Banking, n.º 16, fevereiro de 1984, pp. 1-15; “Private Production of Scrip – Money in the Isolated Community”, Journal of Money, Credit and Banking, n.º 4, outubro de 1987, (19), pp. 437-447; “The Government’s Licence to Create Money”, The Cato Journal: An Interdisciplinary Journal of Public Policy Analysis, vol. IX, n.º 2, outono de 1989, pp. 302-321.

[111] Milton Friedman e Anna J. Schwartz, “Has Government any Role in Money?”, Journal of Monetary Economics, n.º 17, ano 1986, pp. 37-72, reeditado como cap. XXVI do livro The Essence of Friedman, Kurt R. Leube (ed.), Hoover Institution Press, Stanford University, Califórnia, 1986, pp. 499-525.

[112] Assim, o próprio Selgin afirma que “despite […] important differences between Keynesian analysis and the views of other monetary-equilibrium theorists, many Keynesians might accept the prescription for monetary equilibrium” que oferece no livro. Ver George A. Selgin, The Theory of Free Banking: Money supply under Competitive Note Issue, ob. cit., pp. 56 e 59.

[113] A análise detalhada pode ser consultada, por exemplo, em George A. Selgin, The Theory of Free Banking: Money Supply under Competitive Note Issue, ob. cit., caps. IV, V e VI, e especialmente a p. 34 e as pp. 64-69.

[114] Stephen Horwitz defende que Lawrence White: “explicitly rejects the real-bills doctrine and endorses a different version of the ‘needs of trade’ idea. For him the ‘needs of trade’ means the demand to hold bank notes. On this interpretation, the doctrine states that the supply of bank notes should vary in accordance with the demand to hold notes. As I shall argue, this is just as acceptable as the view that the supply of shoes should vary to meet the demand for them.” Stephen Horwitz, “Misreading the Myth: Rothbard on the Theory and History of Free Banking”, ob. cit., p. 169. White parece defender a nova versão da doutrina da velha Escola Bancária sobre as “necessidades do comércio” nas pp. 123-124 do seu livro Free Banking in Britainjá citado. Contra a tese de Horwitz, Amasa Walker afirma que, no que respeita aos meios fiduciários: “the supply does not satisfy the demand: it excites it. Like an unnatural stimulus taken into human system, it creates an increasing desire for more; and the more it is gratified, the more insatiable are its cranings.”Amasa Walker, The Science of Wealth: A Manual of Political Economy, Little, Brow & Co., Boston 1869, 5.ª edição, p. 156.

[115] “Free banking thus works against short-run monetary disequilibrium and its business cycle consequences.” George A. Selgin e Lawrence H. White, “In Defense of Fiduciary Media, or, We are NotDevo(lutionists), We are Misesians!”, op. cit., pp. 101-102.

[116] Joseph T. Salerno afirma que, de acordo com Mises, os aumentos na demanda de moeda não apresentam qualquer problema de coordenação, desde que o sistema bancário não tente se ajustar a eles pela criação de novos créditos. Desta forma, mesmo um aumento da poupança (ou seja, uma diminuição no consumo) que se manifeste integralmente num aumento dos saldos de caixa (entesouramento), e não em empréstimos que provoquem despesas em bens de investimento, levaria à poupança efetiva dos bens e serviços de consumo da comunidade e a um processo de alargamento da estrutura produtiva que a tornasse mais intensiva em capital. Neste caso, o aumento dos saldos de tesouraria estimularia um aumento do poder de compra do dinheiro e, logo, uma diminuição dos preços nominais dos bens de consumo e dos serviços dos diferentes fatores de produção. No entanto, em termos relativos, surgiria a disparidade de preços característica de um período de crescimento da poupança e de intensificação da estrutura produtiva. Ver Joseph T. Salerno, “Mises and Hayek Dehomogenized”, publicado em The Review of Austrian Economics, vol. VI, n.º 2, ano 1993, pp. 113-146, e especialmente as pp. 144 e ss; e também Ludwig von Mises, Human Action, ob. cit., pp. 520-521. Neste mesmo artigo, Salerno crítica White por este defender a tese de que Mises era o protótipo dos teóricos modernos da Escola de atividade bancária livre, sem notar que Mises sempre criticou os postulados essenciais da Escola Bancária e que só defendeu o sistema bancário livre para alcançar o objetivo final de obter um sistema bancário com um coeficiente de caixa de 100%. Ver as pp. 137 e ss do artigo citado, bem como a nota 119 deste capítulo.

[117] Recordemos que o objetivo de Hayek em Prices and Production era precisamente: “to demonstrate that the cry for an ‘elastic’ currency which expands or contracts with every fluctuation of ‘demand’ is based on a serious error of reasoning.” Ver a p. xiii do “Prefácio” de Hayek à primeira edição de Prices and Production, Routledge, Londres 1931.

[118] Mark Skousen afirma que um sistema de padrão-ouro puro com um coeficiente de caixa de 100% para o sistema bancário seria mais elástico do que o sistema proposto por Hayek na nota anterior e que não teria o defeito de responder às “necessidades do comércio”: a diminuição dos preços estimularia a produção de ouro gerando uma expansão moderada da oferta monetária que não teria efeitos cíclicos. Skousen conclui que“based on historical evidence, the money supply (the stock of gold) under a pure gold standard would expand [annually] between 1 to 5 percent. And, most importantly, there would be virtually no chance of a monetary deflation under 100 percent gold backing of the currency.” Mark Skousen, The Structure of Production, ob. cit., p. 359.

[119] O próprio Selgin reconhece que: “Mises’s support for free banking is based in part on his agreement with Cernuschi, who (along with Modeste) believed that freedom of note issue would automatically lead to 100 percent reserve banking”; e igualmente que Mises “believed that free banking will somehow lead to the suppression of fractionally based inside monies.” Ver George A. Selgin, The Theory of Free Banking: Money Supply under Competitive Note Issue, ob. cit., pp. 62 e 164. Lawrence H. White tenta dar uma interpretação distinta da posição de Mises, apresentando-o como o protótipo do defensor moderno de umo sistema bancário livre com reserva fracionária. Ver Lawrence H. White, “Mises on Free Banking and Fractional Reserves”, em A Man of Principle: Essays in Honor of Hans F. Sennholz, John W. Robbins e Mark Spangler (eds.), Grove City College Press, Grove City, Pensilvânia 1992, pp. 517-533. Salerno, em consonância com Selgin, respondeu a White que: “to the extent that Mises advocated the freedom of banks to issue fiduciary media, he did so only because his analysis led him to the conclusion that this policy would result in a money supply strictly regulated according to the Currency Principle. Mises’s desideratum was […] to completely eliminate the distortive influences of fiduciary media on monetary calculation and the dynamic market process.” Joseph T. Salerno, “Mises and Hayek De-Homogenized”, The Review of Austrian Economies, ob. cit., pp. 137 e ss. e p. 146.

[120] Ludwig von Mises, Human Action, ob. cit., p. 442, nota 17 (grifos nossos). Esta passagem pode ser traduzida da seguinte forma: “A noção de expansão de crédito “normal” é absurda. A emissão de meios fiduciários adicionais, independentemente da sua quantidade, desencadeia sempre alterações na estrutura de preços, cuja descrição é tarefa da teoria do ciclo.” Mises acrescenta que: “Free banking […] would […]not hinder a slow credit expansion” (Human Action, ob. cit., p.443). Julgo que aqui Mises dá uma visão demasiado otimista do sistema bancário livre com reserva fracionária, especialmente se compararmos esta afirmação com o que escreveu alguns anos antes em Theory of Money and Credit (1924): “It is clear that banking freedom per se cannot be said to make a return to gross inflationary policy impossible.” Ludwig von Mises, Theory of Money and Credit, ob cit., p. 436 (p. 408 da edição alemã).

[121] “The Banking School failed entirely in dealing with these problems. It was confused by a spurious idea according to which the requirements of business rigidly limit the maximum amount of convertible banknotes that a bank can issue. They did not see that the demand of the public for credit is a magnitude dependent on the banks’ readiness to lend, and that banks which do not bother about their own solvency are in a position to expand circulation credit by lowering the rate of interest below the market rate.” Ludwig von Mises, Human Action, ob. cit., pp. 439-440. Recordemos ainda que o processo se alimenta de forma expansiva à medida que os créditos concedidos são devolvidos pelos devedores com base nos créditos recém-criados.

[122] Ludwig von Mises, Human Action, ob. cit., pp. 427-428 (grifos nossos). A tradução poderá ser: “Esta primeira etapa do processo inflacionário pode durar muito anos. Enquanto durar, os preços de muitos bens e serviços não estarão ainda ajustados à nova relação monetária. Existirão ainda pessoas no país que não terão percebido que estão perante uma revolução dos preços que acabará por resultar num aumento considerável de todos os preços, embora o valor deste aumento não seja o mesmo nos vários bens e serviços. Estas pessoas continuam a acreditar que os preços irão, um dia, descer. Ao esperarem por esse dia, restringem as compras e simultaneamente aumentam os seus saldos de caixa.” Além disso, nesta etapa, os meios fiduciários recém-criados costumam acabar por ser investidos temporariamente em títulos mobiliários e bens de capital cuja acelerada subida de preços é um das manifestações iniciais mais características do boominflacionário.

[123] Curiosamente, os teóricos modernos da escola de atividade bancária livre, tal como os keynesianos e os monetaristas, estão obcecados por pretensas mutações súbitas e unilaterais na demanda de moeda, sem notar que essas mutações costumam ser endógenas e ocorrer ao longo de um ciclo econômico iniciado anteriormente como resultado de mutações na oferta de moeda nova criado pelo sistema bancário em forma de créditos. Tirando estes casos, só circunstâncias excepcionais, como guerras e desastres naturais, podem levar a um aumento súbito da demanda de moeda. As variações sazonais são comparativamente menos importantes e um sistema bancário livre com coeficiente de caixa de 100% poderia fazer-lhes frente com movimentos sazonais de ouro e alterações ligeiras de preços.

[124] Ver Jörg Guido Hülsmann, “Free Banking and Free Bankers”, The Review of Austrian Economics, vol 9, n.º 1, 1996, especialmente as pp. 40-41.

[125] Recorde-se a análise das pp. 517-522. Ver ainda David Laidler, “Free Banking Theory”, The New Palgrave Dictionary of Money and Finance, ob. cit., vol. II, p. 197.

[126] George A. Selgin, The Theory of Free Banking Money Supply under Competitive Note Issue, ob. cit., p. 82.

[127] Ver, por exemplo, Anna J. Schwartz, “The Theory of Free Banking”, manuscrito apresentado na reunião geral da Mont Pèlerin Society, p. 3.

[128] Mark Skousen, The Structure of Production, op. cit., cap. 8, p. 269 e p. 359.

[129] Também não se pode descartar a ocorrência de expansões de crédito ainda maiores no caso de choques na oferta de ouro, embora Selgin tenda a minorar a sua importância. George A. Selgin, The Theory of Free Banking: Money Supply under Competitive Note Issue, ob. cit., pp. 129-133.

[130] Recordemos que, para Mises (nota 120 anterior), “It is clear that banking freedom per se cannot be said to make a return to gross inflationary policy impossible”, especialmente se a ideologia prevalecer inflacionária entre os agentes econômicos: “Many authors believe that the instigation of the banks’ behavior comes from outside, that certain events induce them to pump more fiduciary media into circulation and that they would behave differently if these circumstances failed to appear. I was also inclined to this view in the first edition of my book on monetary theory. I could not understand why the banks didn’t learn from experience. I thought they would certainly persist in a policy of caution and restraint, if they were not led by outside circumstances to abandon it. Only later did I become convinced that it was useless to look to an outside stimulus for the change in the conduct of the banks […] We can readily understand that the banks issuing fiduciary media, in order to improve their chances for profit, may be ready to expand the volume of credit granted and the number of notes issued. What calls for special explanation is why attempts are made again and again to improve general economic conditions by the expansion of circulation credit in spite of the spectacular failure of such efforts in the past. The answer must run as follows: According to the prevailing ideology of businessman and economist-politician, the reduction of the interest rate is considered an essential goal of economic policy. Moreover, the expansion of circulation credit is assumed to be the appropriate means to achieve this goal.” Ludwig von Mises, On the Manipulation of Money and Credit, Percy L. Greaves, Jr. (ed.), Free Market Books, Nova York 1978, pp. 135-136.

[131] “Crises have reappeared every few years since banks […] began to play an important role in the economic life of people.” Ludwig von Mises, On the Manipulation of Money and Credit, Percy L. Greaves, Jr. (ed.), op. cit., p. 134.

[132] F.A. Hayek, The Pure Theory of Capital, ob. cit., p. 378 (a tradução desta passagem pode ser encontrada na nota 65 do capítulo VII).

[133] F.A. Hayek, The Pure Theory of Capital, ob. cit., p. 394 (a tradução desta passagem encontra-se na nota 65 do capítulo VII). Este parece ser o caso extremo de um aumento da poupança que se manifesta inteiramente numa subida dos saldos de meios fiduciários e que Selgin e White utilizam para ilustrar a sua teoria. Ver George A. Selgin e Lawrence H. White, “In Defense of Fiduciary Media – or, We are NotDevo(lutionists), We are Misesians!”, ob. cit., pp. 104-105.

[134] Esta hipótese é perfeitamente possível, como reconhecem os próprios Selgin e White quando afirmam que “an increase in savings is neither necessary nor sufficient to warrant an increase in fiduciary media”. George A. Selgin e Lawrence H. White, “In Defense of Fiduciary Media – or, We are Not Devo(lutionists), We are Misesians!”, ob. cit., p. 104. Leland Yeager, por sua vez, considera que todo o possuidor de meios fiduciários (inside money) está “poupando” caindo no erro que trataremos na seção seguinte. Ver o seu artigo “The Perils of Base Money”, ob. cit., p. 261.

[135] Selgin e White reconhecem implicitamente esse aspecto ao afirmarem que: “benefits accrue to bank borrowers who enjoy a more ample supply of intermediated credit, and to everyone who works with the economy’s consequently larger stock of capital equipment”. George A. Selgin e Lawrence H. White, “In Defense of Fiduciary Media – or, We are Not Devo(lutionists), We are Misesians!”, ob. cit., p. 94.

[136] “We deny that an increase in fiduciary media matched by an increased demand to hold fiduciary mediais disequilibrating or sets in motion the Austrian business cycle.” George A. Selgin e Lawrence H. White, “In Defense of Fiduciary Media – or, We are Not Devo (lutionists), We are Misesians!”, ob. cit., p. 102-103.

[137] John Maynard Keynes, The General Theory of Employment, Interest and Money, ob. cit., p. 83. Esta tese, que já comentamos e traduzimos no capítulo VII, é um resultado da identidade tautológica entre poupança e investimento que subjaz toda a obra de Keynes e, de acordo com Benjamin Anderson, equivale a identificar a inflação com a poupança.

[138] George A. Selgin, The Theory of Free Banking, ob. cit., pp. 54-55. A tradução desta passagem poderia ser: “Manter a moeda emitida pelos bancos é efetuar poupança voluntária. Sempre que um banco expande os meios fiduciários pela concessão de novos empréstimos e da realização de investimentos, são os possuidores desses meios os que, em última instância, proporcionam um crédito, e o que emprestam são os recursos reais que poderiam ter adquirido se, em vez de manter os correspondentes saldos de meios fiduciários, os gastassem. Quando a expansão ou a contração dos depósitos bancários se efetua em conformidade com as variações na procura de meios fiduciários, a quantidade de capital real proporcionada pelos bancos aos que recebem o empréstimo é igual à quantidade oferecida voluntariamente aos bancos pelo público. Nestas condições, os bancos são simplesmente intermediários de fundos emprestáveis.”

[139] George A. Selgin, “The Stability and Efficiency of Money Supply under Free Banking”, ob. cit., p. 440. A tradução seria a seguinte: “Todos os possuidores de depósitos à vista emitidos por um banco livre proporcionam a esse banco um empréstimo no valor dos referidos depósitos.”

[140] Como é possível conceber que uma nota de banco ou um depósito, que é moeda, seja também “ativo financeiro” que represente que o possuidor entregou hoje dinheiro a um terceiro em troca de uma quantidade de dinheiro no futuro? A ideia de que notas e depósitos são “ativos financeiros” mostra a duplicação de meios que o sistema bancário com reserva fracionária gera a partir do nada: por um lado, o dinheiro emprestado a um terceiro, e de que ele desfruta, e, por outro lado, o pretenso ativo financeiro ou titulo que representa a operação e que também é dinheiro. Por outras palavras, os ativos financeiros são títulos ou certificados que significam que alguém renunciou a dinheiro presente para entregá-lo a outro em troca de uma quantidade (maior) de dinheiro futuro. Se, por sua vez, o ativo financeiro for também dinheiro (para o seu possuidor), então verifica-se uma evidente duplicação inflacionária de meios de pagamento no mercado e o empréstimo é concedido sem necessidade de que alguém tivesse feito poupança anteriormente.

[141] A moeda é um bem presente perfeitamente líquido. Em relação ao sistema no conjunto, os meios fiduciários não são um “ativo financeiro”, uma vez que nunca são levantados, antes circulam indefinidamente passando de mão em mão, pelo que são moeda (ou, para ser mais exato, substitutos monetários perfeitos). Pelo contrário, um ativo financeiro representa a entrega de bens presentes (geralmente em forma de dinheiro) em troca de bens futuros (normalmente, também unidades monetárias) numa data determinada, e a sua criação responde a um aumento de poupança real por parte do agente econômico. Ver Gerald P. O’Driscoll, “Money: Menger’s Evolutionary Theory”, History of Political Economy, n.º 18, 4, 1986, pp. 601-616.

[142] “First off, it is plainly false to say that the holding of money, i.e., the act of not spending it, is equivalent to saving […] In fact, saving is not-consuming, and the demand for money has nothing to do with saving or not-saving. The demand for money is the unwillingness to buy or rent non-money goods-and these include consumer goods (present goods) and capital goods (future goods). Not-spending money is to purchase neither consumer goods nor investment goods. Contrary to Selgin, then, matters are as follows: Individuals may employ their monetary assets in one of three ways. They can spend them on consumer goods; they can spend them on investment; or they can keep them in the form of cash. There are no other alternatives. […] Unless time preference is assumed to have changed at the same time, real consumption and real investment will remain the same as before: the additional money demand is satisfied by reducing nominal consumption and investment spending in accordance with the same pre-existing consumption/investment proportion, driving the money prices of both consumer as well as producer goods down and leaving real consumption and investment at precisely their old levels.” Hans-Hermann Hoppe, “How is Fiat Money Possible? – or The Devolution of Money and Credit”, em The Review of Austrian Economics, vol. 7, n.º 2 (1994) , pp. 72-73.

[143] A crítica, na nossa opinião injustificada, de Selgin a Machlup encontra-se na nota da p. 184 do seu livroThe Theory of Free Banking. Analisando os nossos diagramas, Selgin consideraria que todo o volume de crédito representado pela superfície “A” do Gráfico VIII-2 seria “crédito transferido” (transfer credit) porque é“credit granted by banks in recognition of people’s desire to abstain from spending by holding balances of inside money” (ibidem, p. 60), ao passo que, para Machlup (e para mim), pelo menos a superfície “B” do Gráfico VIII-4 representaria “crédito criado” (ou seja, created credit ou expansão de crédito), uma vez que os agentes econômicos não restringem o consumo no volume representado pela superfície “C”. Este aspecto passa também despercebido a Leland Yeager no seu artigo “The Perils of Base Money”, ob. cit.

[144] Selgin explica que o sistema que propõe tem uma vantagem adicional, que se consubstancia no fato de os agentes econômicos que mantenham saldos de caixa em forma de meios fiduciários criados pelo sistema bancário livre poderem daí obter uma rentabilidade financeira e um conjunto de serviços bancários (de pagamento, contabilidade, caixa, etc.) “livre de custos”. Selgin, no entanto, não se refere ao custo que pode ser provocado pelo sistema bancário livre com reserva fracionária, materializado em booms artificiais, má distribuição dos recursos e crises econômicas. Além disso, ignora aquele que para nós é o custo mais importante. E que é o fato de os efeitos negativos do descumprimento dos princípios por parte do sistema bancário livre causar uma tendência para que se estabeleça um banco central, prestamista de última instância, que apoia os banqueiros e cria liquidez de forma a assegurar aos cidadãos a recuperação dos depósitos em qualquer momento. No que respeita à pretensa “vantagem” de obter juros nos depósitos e de não ter de pagar os custos decorrentes dos serviços de caixa e contabilidade proporcionados pelos bancos, não se pode saber se, em termos líquidos, os juros que os agentes econômicos receberiam dos empréstimos realmente poupados que efetuassem num sistema bancário com um coeficiente de reserva de 100%, subtraídos do custo dos serviços de depósito, caixa, contabilidade, etc. correspondentes, seriam iguais, superiores ou inferiores aos juros reais que recebem atualmente nas contas correntes à ordem (sem o efeito da diminuição do poder de compra do dinheiro que o sistema bancário atual gera de forma crônica).

[145] Até agora foram estudados profundamente cerca de sessenta casos históricos concretos de sistemas bancários livres. A conclusão geral a que se chegou foi a de que bank failure rates were lower in systems free of restrictions on capital, branching and diversification (e.g. Scotland and Canada) than in systems restricted in these respects (England and the United States)”, o que é irrelevante do ponto de vista da tese deste livro, uma vez que os referidos estudos não clarificam se houve ciclos de expansão e recessão econômica. Ver The Experience of Free Banking, Kevin Dowd (ed.), ob. cit., pp. 39-46. E ainda Kurt Schuler e Lawrence H. White, “Free Banking History”, The New Palgrave Dictionary of Money and Finance, Peter Newman, Murray Milgate e John Eatwell (eds.) Macmillan, Londres 1992, vol. 2, pp. 198-200 (a citação literal que apresentamos nesta nota está na p. 108 deste último artigo).

[146] George A. Selgin, “Are Banking Crises a Free-Market Phenomenon?”, manuscrito apresentado na reunião regional da Mont Pèlerin Society, Rio de Janeiro, 5-8 de Setembro de 1993, pp. 26-27.

[147] Lawrence H. White, Free Banking in Britain: Theory, Experience and Debate, 1800- 1845, ob. cit.

[148] Murray N. Rothbard, “The Myth of Free Banking in Scotland”, publicado em The Review of Austrian Economics, vol. II, Lexington Books, ano 1988, pp. 229-245, e especialmente a p. 232.

[149] Sidney G. Checkland, Scottish Banking: A History, 1695-1973, Collins, Glasgow 1975. O próprio White reconhece no seu livro que a história de Checkland é o trabalho definitivo sobre a história do sistema bancário escocês.

[150] Embora haja ainda muito trabalho por fazer, os estudos históricos sobre sistemas de banca livre com reserva fracionária, com muito poucas (ou nenhumas) restrições legais e sem um banco central, parecem confirmar a tese de que estes sistemas eram capazes de desencadear expansões de crédito substanciais e de provocar recessões econômicas. Foi o que aconteceu, como já sabemos graças a Carlo M. Cipolla, nos mercados financeiros de Itália nos séculos XIV e XVI (ver o capítulo II, seção 3), bem como nos casos da Escócia e do Chile que comentamos no texto.

[151] Albert O. Hirschman, no seu artigo “Courcelle-Seneuil, Jean-Gustav” (The New Palgrave: A Dictionary of Economics, ob. cit., vol. I, pp. 706-707) afirma que os chilenos chegaram até a demonizar Courcelle-Seneuil, considerando-o culpado de todos os males econômicos e financeiros que o Chile sofreu durante o século XIX. Por sua vez, Murray N. Rothbard considera que esta demonização é injusta e deve-se ao fato de o mau funcionamento do sistema bancário livre introduzido por Courcelle-Seneuil no Chile ter desprestigiado também as demais iniciativas positivamente liberalizadoras protagonizadas por Seneuil noutros campos (minério, etc.). Ver Murray N. Rothbard, “The Other Side of the Coin: Free Banking in Chile”, Austrian Economics Newsletter, Inverno de 1989, pp. 1-4. George Selgin respondeu ao artigo de Rothbard sobre o sistema bancário livre no Chile no seu trabalho “Short-Changed in Chile: The Truth about the Free-Banking Episode”, Austrian Economics Newsletter, Primavera-Inverno de 1990, pp. 5 e ss. O próprio Selgin reconhece que o período 1866-1874 de banca livre no Chile foi uma “era of remarkable growth and progress” durante a qual “Chile’s railroad and telegraph systems were developed, the port of Valparaiso was enlarged and improved, and fiscal reserves increased by onequarter.” Obviamente, de acordo com a teoria austríaca, todos estes fenômenos são, na verdade, um sintoma de que nesses anos se estava a verificar uma grave expansão de crédito que acabaria por se vir a reverter em forma de recessão (como, de fato, aconteceu). No entanto, Selgin atribui as crises bancárias subsequentes (não as recessões) à manutenção por parte do governo chileno de uma paridade artificial entre o ouro e a prata que, quando o valor do ouro aumentou, levou à saída massiva de reservas de ouro para fora do país (ver Selgin, ob. Cit.; pp. 5,6 e nota 3 da p.7).

[152] George A. Selgin, “Are Banking Crises a Free-Market Phenomenon?”, ob. cit., Tabela 1(b), p. 27.

[153] A tese de Rothbard parece ser confirmada por Raymond Bogaert quando este assinala que de 163 bancos criados em Veneza desde o final da Idade Média, existem provas documentadas de que pelo menos 93 faliram. Raymond Bogaert, Banques et banquiers dans les cités grecques, A.W. Sijthoff, Leyden, Holanda, 1968, nota 513 na p. 392.

[154] Assim, o próprio Selgin reconhece que “A 100 percent reserve banking crisis is an impossibility”. Ver George A. Selgin, “Are Banking Crises a Free-Market Phenomenon?”, ob. cit., p. 2.

[155] No que diz respeito à metodologia, estamos plenamente de acordo com esta posição de Stephen Horwitz (Ver o seu “Misreading the Myth´: Rothbard on the Theory and History of Free Banking”, ob. cit., p. 167). No entanto, é curioso que toda uma escola surgida com a análise dos resultados pretensamente benéficos do sistema bancário livre da Escócia tenha sido obrigada a acabar por deixar de se apoiar no resultado dos estudos históricos sobre o sistema bancário livre. Stephen Horwitz, num comentário à revisão do caso histórico do sistema bancário livre de Rothbard, conclui que “If Rothbard is correct about them, we should look more sceptically at Scotland as an example. But noting the existence of government interference cannot by itself defeat the theoretical argument. The Scottish banks were neither perfectly free nor a conclusive test case. The theory of free banking still stands, and its opponents need to tackle it on both the historical and the theoretical level to refute it” (p. 168). Foi precisamente isso que tentamos neste livro.

[156] Hans-Hermann Hoppe, “How is Fiat Money Possible? – or, The Devolution of Money and Credit”, publicado em The Review of Austrian Economics, vol. VII, no 2, ano 1994, p. 67.

[157] Ver, por exemplo, Lawrence H. White, Competition and Currency, New York University Press, Nova York 1989, pp. 55-56, y George Selgin, “Short-Changed in Chile: The Truth about the Free-Banking Episode”,Austrian Economics Newsletter, Inverno-Primavera de 1990, p. 5.

[158] Hans-Hermann Hoppe, “How is Fiat Money Possible? —or, The Devolution of Money and Credit”, ob. cit., pp. 70-71.

[159] O caráter multidisciplinar da análise crítica do sistema bancário com reserva fracionária, e, logo, a importância das considerações jurídicas e das econômicas, é não só o núcleo do presente livro, mas também foi posto em evidência por Walter Block no seu artigo “Fractional Reserve Banking: An InterdisciplinaryPerspective”, publicado como cap. III do livro Man, Economy, and Liberty: Essays in Honour of Murray N. Rothbard, Walter Block e Llewellyn H. Rockwell (eds.), The Ludwig von Mises Institute, Auburn University, Alabama, 1988, pp. 24-32. Walter Block assinala que é muito curioso que nenhum dos teóricos da escola moderna de bancos livres com reserva fracionária tenha efetuado qualquer análise crítica de caráter sistemático contra a proposta de estabelecer um sistema bancário com um coeficiente de caixa de 100%. De fato, tirando alguns comentários de Horwitz, os teóricos neobancários ainda não tentaram sequer demonstrar a razão por que um sistema bancário com 100% de reservas não garantirá um “equilíbrio monetário” livre de ciclos econômicos. Ver Stephen Horwitz, “Keynes’ Special Theory”, Critical Review, vol. III, nn. 3-4, Verão-Outono de 1989, nota de rodapé 18, pp. 431-432.

[160] Neste aspecto, a nossa posição é ainda mais exigente do que a enunciada por Alberto Benegas Lynch no seu livro Poder y razón razonable, Librería “El Ateneo” Editorial, Buenos Aires e Barcelona 1992, pp. 313-314.

[161] “Será castigado com as penas de oito a doze anos e multa de até dez vezes o valor facial da moeda: 1. O fabrico de moeda falsa” art. 386 do novo Código Penal. Assinale-se que na expansão de crédito, tal como na falsificação de dinheiro, o dano social é difuso, pelo que seria muito difícil, se não impossível, lutar contra este crime com base na demonstração dos danos sofridos pela parte prejudicada. Por isso, a tipificação do delito baseia-se na conduta (falsificação de notas) e não na identificação específica do dano pessoal provocado.

[162] Estas “cláusulas de opção” já estiveram em vigor nos bancos escoceses de 1730 a 1765, e reservavam o direito de suspender temporariamente o pagamento em espécie da notas que tinham emitido. Assim, referindo-se aos pânicos bancários, Selgin afirma que “Banks in a free banking system might however avoid such a fate by issuing liabilities contratually subject to a ‘restriction’ of base money payments. By restricting payments banks can insulate the money stock and other nominal magnitudes from panic-related effects.”George A. Selgin, “Free Banking and Monetary Control”, em The Economic Journal, novembro de 1994, p. 1455. O fato de Selgin pensar recorrer a esta cláusulas para evitar os pânicos é tão significativo quanto à “solvência” da sua própria teoria como é surpreendentemente do ponto de vista jurídico que se pretenda basear um sistema na expropriação, mesmo que parcial e temporária, do direito de propriedade dos depositantes e possuidores de notas, os quais, em tempo de crise, se pretende converter em prestamistas forçosos, em vez de continuarem a ser verdadeiros depositantes possuidores de unidades monetárias, ou mais especificamente, substitutos monetários perfeitos. Por último, é preciso lembrar que o próprio Adam Smith afirma que: “the directors of some of those [Scottish] banks sometimes took advantage of this optional clause, and sometimes threatened those who demanded gold and silver in exchange for a considerable number of their notes, that they would take advantage of it, unless such demanders would content themselves with a part of what they demanded.” Ver Adam Smith, An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, ob. cit., Livro II, Capítulo II, pp. 394-395. Sobre as “cláusulas de opção”, consultar Parth J. Shah “The Option Clause in Free Banking Theory and History: A Reappraisal”, manuscrito apresentado na 2nd Austrian Scholars Conference, Auburn University, 4-5 de Abril de 1997, posteriormente publicado em The Review of Austrian Economics, vol. 10, no 2, 1997, pp. 1-25.

[163] É curioso observar que muitos teóricos da Escola do sistema bancário livre, como White, Selgin e outros, não percebem que o sistema bancário com reserva fracionária é ilegítimo do ponto de vista dos princípios gerais do Direito e, em vez de proporem a abolição, propõem a sua completa “liberalização” e privatização, com eliminação do banco central. Esta medida iria, de fato, pôr fim aos abusos praticamente ilimitados que as autoridades cometeram no campo financeiro, mas não impede a possibilidade de que se cometam (em menor escala) abusos no campo privado. Esta situação é semelhante à que aconteceria se o Estado permitisse o exercício sistemático do assassinato, roubo ou qualquer outro crime. Não há dúvida de que a privatização destas atividades criminais (eliminando o exercício sistemático das mesmas por parte do governo) tenderia a “melhorar” sensivelmente a situação, uma vez que o grande poder criminal do Estado desapareceria e seria possível que, de forma espontânea, os agentes econômicos privados desenvolvessem procedimentos de prevenção e defesa em relação aos referidos crimes. No entanto, a privatização não é uma solução definitiva para o problema apresentado pela atividade criminal. Esta solução só será encontrada por meio da persecução por todos os meios possíveis dos crimes cometidos, mesmo que realizados por agentes privados. Assim, podemos concluir, em consonância com Murray N. Rothbard, que num sistema econômico ideal de mercado livre, “fractional-reserve bankers must be treated not as mere entrepreneurs who made unfortunate business decisions but as counterfeiters and embezzlers who should be cracked down on by the full majesty of the law. Forced repayment to all the victims plus substantial jail terms should serve as a deterrent as well as to meet punishment for this criminal activity.” Murray N. Rothbard, “The Present State of Austrian Economics”, Journal des Economistes et des Etudes Humaines, Vol. VI, n.º 1, Março de 1995, pp. 80-81.

[164] Julgo que Leland Yeager acabou por aceitar implicitamente a minha tese sobre a inviabilidade do sistema bancário livre com reserva fracionária quando propôs recentemente a abolição de todos os coeficientes de caixa e a proibição (forçosa?) do uso de todo o dinheiro (mercadoria ou de outro tipo) surgido à margem do sistema bancário (base money). Aparte o seu caráter coercivo, este sistema monetário de bancos livres “sem” qualquer coeficiente de caixa e puramente fiduciário, continuará a estar submetido (de forma agravada) a todas as possibilidades de expansão de crédito e geração de ciclos que já demonstramos neste capítulo poderem ser provocadas por qualquer sistema de bancos livres com reserva fracionária. Ver Leland Yeager, “The Perils of Base Money”, ob. cit. Ver também a nota 102 do próximo capítulo.

 

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