Moeda, Crédito Bancário e Ciclos Econômicos

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9 – Uma Proposta de Reforma do Sistema Bancário. A Teoria do Coeficiente de Caixa de 100%

Neste último capítulo, e depois de uma breve retrospectiva da evolução histórica das propostas feitas no século XX para estabelecer um coeficiente de caixa de 100% para os bancos, vamos apresentar uma proposta de reforma do sistema bancário que se fundamenta no exercício livre da atividade bancária, mas submetido aos princípios tradicionais do Direito que regulam o contrato de depósito bancário de moeda (coeficiente de caixa de 100%).  Depois, veremos quais são as vantagens deste sistema em relação ao sistema bancário e financeiro atual, bem como em relação ao sistema bancário livre com reserva fracionária.  Mais adiante, analisaremos e responderemos às diferentes críticas feitas à proposta de reserva de 100% para em seguida apresentarmos um programa de transição por etapas que torne possível passar do sistema bancário e financeiro atual para o modelo proposto.  Terminaremos o capítulo com um conjunto de comentários sobre a possível aplicação de nossas recomendações aos casos pontuais do sistema monetário europeu e da reconstrução monetária e financeira que se está ocorrendo nos antigos países do socialismo real.  O livro termina com um resumo das conclusões mais importantes.

 

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A História moderna das Teorias a favor da proposta do coeficiente de caixa de 100%

 

Como já tivemos oportunidade de verificar, a desconfiança em relação ao exercício da atividade bancária com reserva fracionária remonta, pelo menos, aos teóricos da Escola de Salamanca nos séculos XVI e XVII, David Hume no século XVIII, os teóricos da escola de Jefferson e Jackson durante as décadas posteriores à fundação do Estados Unidos e a um importante grupo de teóricos da Europa continental do século XIX (Cernuschi e Modeste na França, Geyer, Tellkampf e Michaelis na Alemanha).  Além disso, já no século XX, famosos economistas, como Ludwig von Mises e outros, e pelo menos quatro Prêmios Nobel da Economia (F.A. Hayek, Milton Friedman, James Tobin e Maurice Allais) defenderam, em algum momento, o estabelecimento do coeficiente de caixa de 100% para os depósitos à vista efetuados pelos bancos.

 

A proposta de Ludwig von Mises

O primeiro economista do século XX a propor o estabelecimento de um sistema de bancos com um coeficiente de caixa de 100% para os depósitos à vista foi Ludwig von Mises na primeira edição do seu livroThe Theory of Money and Credit, publicada em 1912.  No final desta primeira edição, literalmente reproduzido na segunda, Mises concluía:

Os meios fiduciários têm uma natureza ligeiramente diferente da moeda; sua oferta afeta o mercado da mesma forma que a oferta de moeda propriamente dita; as variações na quantidade têm a mesma influência no valor objetivo de troca da moeda que a quantidade de moeda propriamente dita.  Assim, devem ser submetidos aos mesmos princípios estabelecidos para a moeda; deve dedicar-se a eles o mesmo empenho que se dedica à eliminação, na medida do possível, da influência humana sobre a relação de troca entre a moeda e os demais bens econômicos.  A possibilidade do surgimento de flutuações temporárias nas relações de troca entre bens de ordens superiores e inferiores devido à emissão de meios fiduciários e as consequências perniciosas relacionadas com a divergência entre as taxas naturais e monetárias de juro são circunstâncias que levam à mesma conclusão.  É óbvio que a única forma de acabar com a influência humana sobre o sistema de crédito é por meio da eliminação de toda a emissão adicional de meios fiduciários.  A ideia básica da Lei de Peel deveria ser reafirmada e mais completamente implementada do que foi na Inglaterra do seu tempo, incluindo na proibição legislativa a emissão de crédito na forma de saldos bancários.

 

Mises acrescenta: “Seria um erro supor que a organização moderna do câmbio terá de continuar a existir.  Ela traz em si o germe da sua própria destruição; o desenvolvimento dos meios fiduciários levá-la-á necessariamente ao colapso.”[1]

Mais tarde, Mises volta a tratar o modelo ideal para o sistema bancário no livro Geldwertstabilisierung und Konjunkturpolitik (Estabilização monetária e política cíclica), publicado em 1928.  Aí podemos ler:

The most important prerequisite of any cyclical policy, no matter how modest its goal may be, is to renounce every attempt to reduce the interest rate, by means of banking policy, below the rate which develops on the market.  That means a return to the theory of the Currency School, which sought to suppress all future expansion of circulation credit and thus all further creation of fiduciary media.  However, this does not mean a return to the old Currency School program, the application of which was limited to banknotes.  Rather it means the introduction of a new program based on the old Currency School theory, but expanded in the light of the present state of knowledge to include fiduciary media issued in the form of bank deposits.  The banks would be obliged at all times to maintain metallic backing for all notes —except for the sum of those outstanding which are not now covered my metal — equal to the total sum of the notes issued and bank deposits opened.  That would mean a complete reorganization of central bank legislation.  By this act alone, cyclical policy would be directed in earnest toward the elimination of crises.[2]

 

Dois anos depois, num memorando apresentado a 10 de outubro de 1930 em Genebra perante a Comissão Financeira da Liga das Nações com o título “The Suitability of Methods of Ascertaining Changes in the Purchasing Power for the Guidance of International Currency and Banking Policy” Mises apresentou suas ideias, perante os especialistas monetários e bancários da época, da seguinte forma:

It is characteristic of the gold standard that the banks are not allowed to increase the amount of notes and bank balances without a gold backing, beyond the total which was in circulation at the time the system was introduced.  Peel’s Bank Act of 1844, and the various banking laws which are more or less based on it, represent attempts to create a pure gold standard of this kind.  The attempt was incomplete because its restrictions on circulation included only banknotes, leaving out of account bank balances on which cheques could be drawn.  The founders of the Currency School failed to recognize the essential similarity between payments by cheque and payments by banknote.  As a result of this oversight, those responsible for this legislation never accomplished their aim.

 

Mais tarde, Mises explica que o sistema bancário com um coeficiente de caixa de 100% operando com um padrão-ouro levaria a uma ligeira tendência para a descida dos preços, o que favoreceria a generalidade dos cidadãos ao aumentar os rendimentos reais, não por meio de um aumento nominal das remunerações (que se mantêm relativamente constantes), mas pela redução contínua dos preços do bens e serviços de consumo.  Mises considera este sistema monetário e bancário muito superior ao sistema atual afetado pela inflação crônica e os ciclos recorrentes de expansão e recessão.  Referindo-se à situação de depressão econômica por que passava o mundo na época, Mises conclui que: “the root cause of the evil is not in the restrictions, but in the expansion which preceded them.  The policy of the banks does not deserve criticism for having at last called a halt to the expansion of credit, but, rather, for ever having allowed it to begin.”[3]

Dez anos depois deste memorando apresentado na Liga das Nações, Mises volta a defender o coeficiente de caixa de 100% na primeira edição alemã do seu abrangente tratado de Economia, publicado com o títuloNationalökonomie: Theorie des Handelns und Wirtschaftens.  Nesta obra, Mises repete a tese de que as ideias fundamentais da Escola Monetária (Currency School) exigiam também a aplicação do coeficiente de reserva de 100% para todos os meios fiduciários, ou seja, não apenas para as notas de banco, mas também para os depósitos bancários.  Além disso, defende a abolição do banco central, assinalando que, enquanto tal instituição existir, mesmo que se proíba estritamente a nova emissão de meios fiduciários (notas e depósitos), o sistema estará sempre sujeito ao risco de que dificuldades orçamentárias de “emergência” sejam utilizadas para justificar politicamente a emissão de novos meios fiduciários com vistas a ajudar o financiamento das necessidades do estado.  Mises responde assim, implicitamente, aos teóricos da Escola de Chicago que, durante os anos 1930, como veremos mais adiante, propuseram o estabelecimento do coeficiente de reserva de 100% para a atividade bancária, mas mantendo o caráter fiduciário do dinheiro base e o controle da sua emissão por parte do banco central.  Segundo Mises, esta solução não é a melhor, uma vez que, embora estabeleça do coeficiente de caixa de 100 %, o dinheiro continuará a depender de um banco central, pelo que estará sujeito a todo o tipo de pressões e influências, nomeadamente ao perigo de que, em situações de emergência financeira, o estado utilize o seu poder de emissão de moeda para se financiar a si mesmo.  A melhor solução será pois, segundo Mises, o estabelecimento de um sistema bancário livre, ou seja, sem banco central, mas submetido aos princípios tradicionais do Direito (e, logo, com um coeficiente de caixa de 100%).[4] Ora, neste livro, ao defender o coeficiente de caixa de 100%, Mises critica não só a existência de um banco central, mas também o sistema bancário livre com coeficiente de reserva fracionária, embora limitasse muito a emissão de meios fiduciários, não conseguiria eliminar completamente a expansão de crédito nem os fenômenos recorrentes de boom e recessão econômica.[5]

Em 1949, é publicada pela Yale University a primeira edição inglesa do tratado de Economia de Ludwig von Mises com o título Human Action: A Treatise on Economics.  Nesta versão inglesa, Mises repete os argumentos da edição alemã, mas refere-se expressamente ao plano proposto por Irving Fischer para estabelecer um coeficiente de reserva de 100% nos bancos.  Mises tem um opinião negativa do plano de Fischer, não por incluir uma proposta do coeficiente de caixa de 100%, que partilha por completo, mas pelo fato de Fischer querer combiná-la com a manutenção do banco central e a adoção de uma unidade monetária indexada.  De fato, segundo Mises, mesmo que se restabeleça o coeficiente de caixa de 100%, se continuar a existir um banco central:

It would not entirely remove the drawbacks inherent in every kind of government interference with banking.  What is needed to prevent any further credit expansion is to place the banking business under the general rules of commercial and civil laws compelling every individual and firm to fulfill all obligations in full compliance with the terms of the contract.[6]

 

Por último, Mises volta a apresentar as ideias sobre o coeficiente de caixa de 100% no Anexo sobre “Reconstrução Monetária”, que inclui na reedição inglesa publicada em 1953 de The Theory of Money and Credit.  Aí, Mises afirma expressamente que:“the main thing is that the government should no longer be in a position to increase the quantity of money in circulation and the amount of checkbook money not fully —that is, 100 percent— covered by deposits paid in by the public”.  Ademais, neste mesmo Anexo, Mises propõe um processo de transição para o sistema ideal que teria como objetivo:

No bank must be permitted to expand the total amount of its deposits subject to check or the balance of such deposits of any individual customer, be he a private citizen or the U.S.  Treasury, otherwise than by receiving cash deposits in legal-tender banknotes from the public or by receiving a check payable by another domestic bank subject to the same limitations.  This means a rigid 100 percent reserve for all future deposits; that is, all deposits not already in existence on the first day of the reform.[7]

 

Embora mais adiante tenhamos a oportunidade fazer referência ao sistema de transição para o sistema bancário ideal, podemos observar que Mises, em consonância com os escritos de 1928, propõe a aplicação do mesmo sistema de transição utilizado pela Lei de Peel para as notas de banco (cujo coeficiente de 100% em moeda metálica só foi exigido para as novas notas criadas).[8]

 

F.A.  Hayek e o coeficiente de reserva de 100%

A primeira vez que Hayek, sem dúvida o melhor discípulo de Mises, se referiu ao coeficiente de caixa de 100% foi quando, aos 25 anos de idade, e após regressar de uma visita de estudo aos Estudos Unidos, publicou o artigo “The Monetary Policy of the United States after the Recovery from the 1920 Crisis”.  Neste artigo, Hayek faz uma análise muito crítica da política monetária que estava sendo desenvolvida pela Reserva Federal norte-americana com vista a manter estável o poder de compra do dólar, num ambiente de grande aumento de produtividade, que já estava dando origem à significativa expansão de crédito que, em última instância, viria a provocar a Grande Depressão.  Numa nota de rodapé deste artigo seminal, Hayek refere-se, pela primeira vez na vida, ao coeficiente de caixa de100 %, afirmando:

As we have already emphasized, the older English theoreticians of the currency school had a firmer grasp of this than the majority of economists who came after them.  The currency school hoped also to prevent cyclical fluctuations by the regulation of the note issue they proposed.  But since they took only the effects of the note issue into account and neglected those of deposit money, and the restrictions imposed upon bank credit could always be got round by an expansion of transfers through bank deposits, Peel’s Bank Act and the central bank statute modelled upon it could not achieve this aim.  The problem of the prevention of crises would have received a radical solution if the basic concept of Peel’s Act had been consistently developed into the prescription of 100 per cent gold cover for bank deposits as well as notes.[9]

 

Doze anos depois, no notável Monetary Nationalism and International Stability, publicado em 1937, F. A. Hayek refere-se novamente ao estabelecimento de um sistema bancário baseado num coeficiente de caixa de 100%.  Contrariando a versão dessa proposta feita na época pelos teóricos da Escola de Chicago, que pretendiam sustentá-la no papel-moeda emitido pelo banco central, Hayek considera que a solução ideal seria combinar a proposta do coeficiente de caixa de 100% para a atividade bancária com regresso ao padrão-ouro, de forma que todas as notas e depósitos bancários tivessem uma cobertura de 100% em ouro.  Desta maneira seria possível obter um sistema monetário mundial que evitaria as manipulações e o “nacionalismo monetário” dos governos.  Hayek conclui que: “The undeniable attractiveness of this proposal lies exactly in the feature which makes it appear somewhat impracticable, in the fact that in effect it amounts […] to an abolition of deposit banking as we know it.”[10]

Por fim, quase quarenta anos depois, F. A. Hayek volta a se ocupar de temas bancários e monetários no famoso trabalho Denationalization of Money.  Embora este livro tenha sido utilizado pelos teóricos modernos da Escola do sistema bancário livre com reserva fracionária para justificar o próprio modelo, não há dúvida de que Hayek propõe o sistema bancário livre e de emissão privada de unidades monetárias com o objetivo de que acabe por preponderar o modelo bancário com um coeficiente de reserva de 100%.  De fato, na parte dedicada à mudança de política no sistema bancário comercial, Hayek conclui que a grande maioria dos bancos: “clearly would have to be content to do their business in other currencies.  They would thus have to practise a kind of ‘100 percent banking’, and keep a full reserve against all their obligations payable on demand.” Hayek acrescenta numa dura crítica ao atual sistema bancário: “An institution which has proved as harmful as fractional reserve banking without the responsibility of the individual bank for the money (i.e.  cheque deposits) it created cannot complain if support by a government monopoly that has made its existence possible is withdrawn.”[11]

 

Murray N.  Rothbard e a proposta de um padrão-ouro puro com um coeficiente de reserva de 100%

Em 1962, o professor Murray N. Rothbard, no já clássico artigo intitulado “The Case for the 100 Percent Gold Dollar”, incluído no livro editado por Leland B.  Yeager intitulado In Search of a Monetary Constitution[12](que também contém artigos de James M.  Buchanan, Milton Friedman, Arthur Kemp e outros), desenvolve pela primeira vez a proposta a favor do padrão-ouro baseado num sistema bancário livre com um coeficiente de caixa de 100%.  Neste trabalho, Rothbard critica todos quantos pretendem voltar ao padrão-ouro standardapoiado num sistema bancário de reserva fracionária e controlado pelos bancos centrais, propondo aquela que considera ser a única solução coerente e estável a longo prazo: um sistema bancário livre com um coeficiente de reserva de 100%, a abolição do banco central e o estabelecimento de um padrão-ouro puro.  De acordo com Rothbard, assim seria possível evitar não só os ciclos recorrentes de auge e recessão provocados pela atividade bancária com reserva fracionária, mas também a possibilidade de que, embora possa se estabelecer um coeficiente de caixa de 100%, como defendiam os teóricos da Escola de Chicago nos anos 1930, a manutenção do banco central deixa todo o sistema vulnerável às necessidades políticas e financeiras de cada momento.

A nosso ver, a principal contribuição de Rothbard é, no entanto, a profunda fundamentação jurídica que dá à proposta.  De fato, Rothbard acompanha a análise econômica de um estudo multidisciplinar, essencialmente de natureza jurídica, que tem como intuito demonstrar que o exercício da atividade bancária com um coeficiente de reserva de 100% não é mais do que a consequência lógica da aplicação dos princípios tradicionais do Direito ao campo bancário.  Assim, neste aspecto concreto, a tese do presente livro é apenas o desenvolvimento e a ampliação da originalmente apresentada por Rothbard.  Em particular, Rothbard compara o banqueiro que exerce sua atividade com um coeficiente de reserva fracionária com o delinquente que comete o delito de apropriação indébita porque:

[He] takes money out of the company till to invest in some ventures of his own.  Like the banker, he sees an opportunity to earn a profit on someone else’s assets.  The embezzler knows, let us say, that the auditor will come on June 1 to inspect the accounts; and he fully intends to repay the ‘loan’ before then.  Let us assume that he does; is it really true that no one has been the loser and everyone has gained? I dispute this; a theft has occurred, and that theft should be prosecuted and not condoned.  Let us note that the banking advocate assumes that something has gone wrong only if everyone should decide to redeem his property, only to find that it isn’t there.  But I maintain that the wrong —the theft — occurs at the time the embezzler takes the money, not at the later time when his ‘borrowing’ happens to be discovered.[13]

 

Embora Rothbard tenha apresentado corretamente os aspectos jurídicos do problema, fê-lo seguindo a tradição jurídica anglo-saxônica e não notou que a cobertura jurídica de sua tese é ainda maior na tradição jurídica da Europa continental, baseada no direito romano, tal como explicamos nos primeiros capítulos deste livro.[14]

 

Maurice Allais e a defesa europeia do coeficiente de caixa de 100%

Na Europa, a defesa de um sistema bancário submetido a um coeficiente de caixa de 100% foi protagonizada pelo francês Maurice Allais, Prêmio Nobel da Economia em 1988.  De fato, Allais afirmou recentemente que:

Le mécanisme du crédit tel qu’il fonctionne actuellement et qui est fondé sur la couverture fractionnaire des dépôts, sur la création de monnaie ex nihilo, et sur le prêt à long terme de fonds empruntés à court terme, a pour effet une amplification considérable des désordres constatés.  En fait, toutes les grandes crises des dix-neuvième et vingtième siècles ont résulté du développement excessif du crédit, des promesses de payer et de leur monétisation, et de la spéculation que ce développement a suscitée et rendue possible.[15]

 

Embora Maurice Allais cite frequentemente Ludwig von Mises e Murray N. Rothbard e sua análise econômica sobre o efeito da atividade bancária com reserva fracionária como geradora de crises econômicas seja impecável e esteja muito influenciada pela teoria austríaca do ciclo econômico, a verdade é que, no final, o autor propõe a manutenção do banco central como responsável último pelo controle e crescimento da base monetária (a uma percentagem pré-fixada de 2% ao ano).[16] Allais considera que apenas o estado, e não os banqueiros, deve tirar proveito do efeito de expropriação decorrente da possibilidade de criar moeda.  Assim, a sua proposta de 100% não é apenas a consequência lógica da aplicação de princípios tradicionais do Direito, como acontece com Murray N. Rothbard.  Trata-se, sobretudo, de um instrumento que facilitará aos governos o exercício de uma política monetária estável ao impedir a expansão elástica e perturbadora do crédito gerado do nada por todo o sistema bancário com reserva fracionária.  Neste sentido, Maurice Alllais não faz mais do que seguir a antiga tradição da Escola de Chicago a favor do coeficiente de caixa de 100% para tornar mais eficaz e previsível a política monetária dos governos.

 

A antiga tradição da Escola de Chicago a favor do coeficiente de reserva de 100%

A prescrição da Escola de Chicago a favor do coeficiente de caixa de 100% remonta a um escrito anônimo de seis páginas intitulado “Banking and Currency Reform” que Henry C.  imons, Lloyd W. Mints, Aaron Director, Frank H.  Knight, Henry Schultz, Paul H.  Douglas, Albert G. Hart e outros puseram em circulação em 16 de março de 1933.[17] Este plano de reforma bancária da Escola de Chicago foi mais tarde ampliado por Albert G. Hart no seu artigo “The ‘Chicago Plan’ of Banking Reform”, publicado em 1935.  Neste artigo, Hart reconhece expressamente que a paternidade da proposta corresponde, em última instância, como já vimos, ao professor Ludwig von Mises.[18] Mais tarde, em novembro de 1935, James W. Angell publicou um exaustivo artigo em defesa dessa posição e analisando seus diferentes aspectos, com o título “The 100 Percent Reserve Plan”,[19] seguido de um trabalho de Henry C. Simons intitulado “Rules versus Authorities in Monetary Policy”, de fevereiro de 1936.[20]

Henry C. Simons é o teórico da Escola de Chicago que mais se aproxima da tese de que o coeficiente de reserva de 100%, mais do que uma mera proposta de política econômica, é uma exigência da estrutura institucional de regras fundamental para uma economia de mercado funcionar corretamente.  De fato, segundo Simons:

A democratic, free-enterprise system implies, and requires for its effective functioning and survival, a stable framework of definite rules, laid down in legislation and subject to change only gradually and with careful regard for the vested interests of participants in the economic game.[21]

 

No entanto, Henry C. Simons defende o coeficiente de caixa de 100% com o objetivo essencial de restaurar o controle completo do governo sobre a quantidade e valor da moeda em circulação.  A proposta tinha sido efetuada um ano antes, num panfleto intitulado “A Positive Program for Laissez- Faire: Some Proposals for a Liberal Economic Policy” e publicado em 1934, onde afirmava que os bancos de depósito que mantivessem:

100 per cent reserves, simply could not fail, so far as depositors were concerned, and could not create or destroy effective money.  These institutions would accept deposits just as warehouses accept goods.  Their income would be derived exclusively from service charges — perhaps merely from moderate charges for the transfer of funds by check or draft  […]  These banking proposals define means for eliminating the perverse elasticity of credit which obtains under a system of private, commercial banking and for restoring to the central government complete control over the quantity of effective money and its value.”[22]

 

Às contribuições de Simons[23] seguiram-se as de Fritz Lehmann, publicadas no seu artigo “100 Percent Money”,[24] bem como o artigo editado em setembro de 1936 por Frank D. Graham com o título “Partial Reserve Money and the 100 Percent Proposal”.[25]

Irving Fischer fez a compilação destas propostas no livro 100 Percent Money,[26] e, já depois da Segunda Guerra Mundial, foram retomadas com a publicação, em 1948, do livro de Henry C. Simons Economic Policy for a Free Society e o de Lloyd W. Mints Monetary Policy for a Competitive Society.[27] Finalmente, em 1959, foi publicado o livro de Milton Friedman A Program for Monetary Stability.[28] Tal como os predecessores, Friedman recomenda que “o sistema atual seja substituído por um em que se exija 100% de reservas obrigatórias”.[29] A única diferença proposta por Friedman é a do pagamento de juros sobre essas reservas de 100%.  Numa interessante nota de rodapé, Friedman afirma que poderia ser obtida uma aproximação a este objetivo mediante um sistema bancário completamente livre, tal como defende Gary Becker.[30]

Tirando Henry Simons, que é quem mais se aproxima das exigências jurídico-institucionais da proposta do coeficiente de reserva de 100%,[31] a generalidade dos teóricos da Escola de Chicago defenderam-na exclusivamente por razões pragmáticas, acreditando, que com este requisito, a política monetária do governo seria mais fácil e previsível.  Assim, os teóricos de Chicago pecavam por ingenuidade ao pensar que os governos poderiam e pretendiam desenvolver uma política estável em todas as circunstâncias.[32] Esta ingenuidade é paralela e semelhante à que, como já vimos, se verifica nos teóricos modernos da Escola Neomonetária defensores do sistema bancário livre com reserva fracionária quando acreditam que os mecanismos espontâneos de liquidação e compensação interbancária poderiam, em todas as circunstâncias, pôr uma trava à expansão simultânea e orquestrada de grande parte dos bancos.  Não percebem que, embora com mais limitações do que atualmente, o sistema bancário livre com reserva fracionária não evita a criação de meios fiduciários e, logo, não protege o mercado contra crises econômicas.  Por isso, conclui-se que a única solução adequada para alcançar uma sociedade sem privilégios e ciclos econômicos é a de uma atividade bancária livre, mas submetida ao Direito, ou seja, exercida com um coeficiente de reserva de 100%.[33]

 

2

nossa proposta de reforma do sistema bancário

 

A proposta de reforma do sistema bancário que se deduz logicamente da análise realizada no presente livro consiste, por um lado, em submeter as instituições relacionadas ao mercado financeiro aos princípios tradicionais do Direito e, por outro, em eliminar os organismos governamentais que até agora se dedicaram a controlar e dirigir o sistema financeiro.  De nossa parte, caso queiramos obter um sistema financeiro e monetário verdadeiramente estável e proteger tanto quanto for humanamente possível nossas economias de crises e recessões será necessário estabelecer: 1) a completa liberdade de escolha de moeda; 2) o sistema de liberdade bancária e a abolição do banco central; e, mais importante, 3) o respeito e o cumprimento por parte de todos os agentes envolvidos no sistema de liberdade bancária das normas e princípios tradicionais do Direito, em geral, e do importante princípio segundo o qual ninguém deve gozar do privilégio de poder emprestar o que recebeu em depósito à vista, em particular.  Ou seja, é preciso manter em todos os momentos um sistema bancário com um coeficiente de reserva de 100%.  A seguir vamos comentar com mais pormenor cada um dos elementos de nossa proposta

 

a)   A total liberdade de escolha de moeda

Trata-se de privatizar a moeda, eliminando a intervenção do estado e do banco central no que diz respeito à emissão e ao controle do valor.  Isto exige a derrogação das disposições de curso legal que obrigam todos os cidadãos a aceitar, mesmo contra a vontade, a unidade emitida pelo estado como meio liberatório de todos os pagamentos.  A derrogação das leis de curso legal ou forçoso é, assim, um elemento imprescindível em todo o processo de liberalização do mercado financeiro.  Esta “despenalização da moeda”, nas palavras de Hayek, permitiria aos agentes econômicos, dotados de uma informação de primeira mão muito superior quanto às circunstâncias particulares de tempo e lugar, decidirem, em cada caso, o tipo de unidade monetária mais conveniente para os contratos.

Não é possível teorizar a priori sobre a evolução futura da moeda.  A presente análise teórica se limitará, forçosamente, a constatar que a moeda é uma instituição que surge de forma espontânea, tal como o Direito, a linguagem e outras instituições jurídicas e econômicas que envolvem um enorme volume de informação e vão aparecendo de forma evolutiva, ao longo de um período de tempo muito prolongado, em que participam muitas gerações de seres humanos.  Além disso, e tal como acontece com a língua, há uma tendência para a preponderância de determinadas instituições que, no processo social de tentativa e erro, mostram cumprir melhor a função.  Só a prova, ao longo do processo evolutivo e espontâneo do mercado, pode fazer com que as instituições mais adequadas para a cooperação social prevaleçam, sem que nenhuma pessoa ou grupo de pessoas disponha da inteligência e informação necessárias para criar ex novo este tipo de instituições.

Tais reflexões são plenamente aplicáveis ao surgimento e à evolução da moeda,[34] pelo que, neste campo, devemos ter especial cuidado com as propostas de criação de uma moeda artificial, por muitas vantagens que a priori pareçam ter.[35]

Assim, a única interpretação da nossa proposta de liberdade de escolha de moeda é a de que, no processo de transição que analisaremos mais adiante, se privatize o dinheiro atualmente existente substituindo-o pelo dinheiro que ao longo da história e de forma evolutiva, foi prevalecendo de geração em geração; o ouro.[36]De fato, não faz sentido tentar introduzir abruptamente uma nova unidade monetária geral no mercado fazendo tábua rasa dos milhares de anos de evolução nos quais o ouro prevaleceu como dinheiro de forma espontânea.  Além disso, de acordo com o teorema da regressão do dinheiro, a introdução de uma nova unidade monetária seria impossível, uma vez que nenhum tipo de moeda pode ser utilizado numa sociedade como meio de troca geralmente aceito sem que se sustente num processo histórico muito prolongado que derive da utilização industrial ou comercial original do bem em questão (tal como ocorreu com o ouro e a prata).  Desta forma, a nossa proposta baseia-se em privatizar a moeda atual substituindo-a pelo equivalente metálico em ouro e deixando que o mercado retome a livre evolução a partir do momento da transição, confirmando o ouro como moeda de aceitação geral ou dando entrada de forma espontânea e gradual a outros padrões monetários.[37]

 

b)   O sistema de completa liberdade bancária

Com esta segunda proposta pretendemos mostrar que é preciso revogar a legislação bancária e eliminar os bancos centrais, bem como, em geral, quaisquer organismos governamentais dedicados a controlar e intervir no mercado financeiro ou bancário.  Deverá ser possível que os bancos se estabeleçam com total liberdade, quer no que diz respeito ao objeto social, quer no que se refere à forma jurídica.  Como já foi revelado pelo grande Laureano Figuerola e Ballester em 1869, é preciso deixar “a escolha das formas bancárias ao interesse individual, que saberá eleger as melhores, de acordo com as condições e as circunstâncias de tempo e de local”.[38] Contudo, a defesa da liberdade bancária não envolve a admissão de que os bancos possam exercer a atividade com um coeficiente de reserva fracionário.  Nesta altura deve ser já completamente claro que o exercício da atividade bancária deve estar submetido aos princípios tradicionais do Direito, e que estes exigem a manutenção permanente de um coeficiente de reserva de 100% no que concerne aos depósitos realizados à vista nos bancos.  Por isso, o descumprimento desta norma não deve ser justificado pela liberdade bancária, uma vez que não só constitui a violação de um princípio tradicional do Direito como leva a uma cadeia consequências muito negativas para a economia.  Os aspectos jurídicos e os econômicos estão intimamente relacionados e não é possível violar impunemente os princípios jurídicos e morais sem que se provoquem graves consequências para o processo espontâneo de cooperação social.  Por conseguinte, o limite da liberdade bancária não deverá ser o estabelecido pelo quadro de princípios gerais do Direito.  É precisamente nisto que consiste o terceiro elemento essencial da nossa proposta, que vamos comentar a seguir.[39]

c)    Submissão de todos os agentes envolvidos no sistema de liberdade bancária às normas e princípios tradicionais do Direito e, em particular, ao coeficiente de 100% de reserva para os depósitos à vista

Pouco nos resta aqui acrescentar em relação à proposta de estabelecimento do coeficiente de reserva de 100% para a atividade bancária.  Toda a análise deste livro se dedica a justificar este terceiro elemento da nossa proposta, que se encontra íntima e logicamente ligado aos outros dois.  De fato, a única forma de eliminar o órgão central de planificação estatal relacionado com a moeda e ao sistema financeiro (banco central) é permitir que a sociedade volte a utilizar a moeda privada que de forma evolutiva surgiu ao longo da história (o ouro e, em menor grau, a prata).  Da mesma forma, uma economia de mercado livre só pode funcionar com base na estrutura constituída pelas normas do direito material que, aplicadas a cada caso da atividade bancária, exigem o estabelecimento de um sistema bancário completamente livre, mas em que seja sempre respeitado o princípio da manutenção de um coeficiente de caixa de 100% nos contratos de depósito à vista.

A combinação dos três elementos anteriores constitui o núcleo essencial de uma proposta para reformar e privatizar definitivamente o sistema monetário e bancário moderno, libertando-o dos obstáculos que o perturbam atualmente e, em especial, da intervenção do banco central e dos privilégios concedidos pelo estado aos agentes mais importantes do setor financeiro.  Com esta reforma seria possível o desenvolvimento de instituições bancárias verdadeiramente consonantes com a economia de mercado, que facilitariam a acumulação de capital bem investido e o desenvolvimento econômico, evitando os desajustamentos e as crises provocados pelo sistema atual, fortemente controlado e centralizado.

 

Como seria o sistema financeiro e bancário numa sociedade inteiramente livre?

Podemos afirmar, em consonância com Israel M. Kirzner, que hoje é impossível saber qual é o conhecimento e quais são as instituições que serão criadas de forma espontânea pelos empresários que participem no sistema financeiro e bancário do futuro livremente se puderem atuar sem sofrer nenhum tipo de coerção institucional por parte do estado e se estiverem submetidos apenas ao quadro jurídico de normas materiais exigido pelo funcionamento de qualquer mercado.  Como sabemos, a mais importante de todas as normas é o princípio do coeficiente de reserva de 100%.[40]

Independentemente do que acabamos de dizer, podemos intuir, em consonância com F.  A.  Hayek,[41] um desenvolvimento espontâneo de um conglomerado de sociedades e fundos de investimento (mutual fund banking)[42], nos quais seria investida uma parte dos “depósitos” atuais.  Graças à existência de importantes mercados secundários, estes fundos de investimento estariam dotados de grande liquidez, mas, como é lógico, não dariam aos participantes a garantia de receber em qualquer altura o valor nominal das contribuições.  Tal como no caso de qualquer outro título no mercado secundário de valores, este estaria sujeito à evolução do valor de mercado das participações correspondentes.  Desta forma, uma mudança súbita (mas pouco provável) na taxa social de preferência temporal daria lugar a oscilações generalizadas no valor das referidas participações.  Estas variações de valor afetariam apenas os possuidores das respectivas participações, e não, como acontece agora, todos os cidadãos, que, ano após ano, assistem a uma diminuição significativa do poder de compra das unidades monetárias de origem estatal que são obrigados a utilizar.

É muito possível que, juntamente com este sistema generalizado de fundos de investimento, se desenvolva toda uma rede de entidades dedicadas a proporcionar serviços de pagamento, de transferências, de contabilidade e, em geral, serviços de caixa para os clientes.  Estas entidades operariam em concorrência livre e cobrando os respectivos preços de mercado pela prestação dos serviços.

Por fim, e sem qualquer ligação com o crédito, é possível o desenvolvimento de um conjunto de entidades privadas dedicadas à extração, concepção e oferta das diferentes formas de moeda privada, ganhando, também, uma margem de lucro (seguramente pequeno) pela prestação dos serviços.  Dizemos “extração” porque não temos qualquer dúvida de que, num ambiente de liberdade completa, prevalecerá sempre uma forma de moeda metálico, que, pelo menos, reúna as características essenciais que até agora só o ouro ofereceu.  São elas: imutabilidade, grande homogeneidade e, sobretudo, escassez, uma vez que a moeda cumpre melhor sua função se for mais escassa e, também, se for mais difícil que haja aumentos ou diminuições significativas do volume em prazos relativamente curtos de tempo.[43]

 

3

Análise das vantagens dos sistema proposto

 

Nesta seção, vamos analisar as principais vantagens comparativas que um sistema bancário livre submetido ao Direito, com um coeficiente de caixa de 100%, e utilizando uma forma de moeda completamente privada (ouro), tem sobre um sistema de planificação financeira central (banco central) que controla atualmente o sistema bancário e financeiro de todos os países.

 

  1. O sistema proposto evita as crises bancárias.  — Efetivamente, até os defensores mais famosos do sistema bancário livre com reserva fracionária reconheceram que o estabelecimento do coeficiente de caixa de 100% acabaria com as crises bancárias.[44] De fato, as crises dos bancos advêm da inerente falta de liquidez destas instituições quando exercem a atividade usando a maior parte da moeda que recebem em depósitos à vista para conceder empréstimos.  Se for exigido, em conformidade com os princípios tradicionais do Direito que regulam o depósito irregular, que aquele que recebe a moeda mantenha sempre um tatundem equivalente a 100% da quantia recebida, é evidente que os depositantes poderão retirar em qualquer momento o valor depositado sem submeter os respectivos bancos a qualquer tipo de tensão financeira.

É possível que os bancos, no exercício de outras atividades diferentes das do depósito, por exemplo, atuando como intermediários dos empréstimos, cheguem a ter dificuldades econômicas como consequência de erros empresariais ou de má gestão.  No entanto, nestes casos, a simples aplicação dos princípios do direito concursal[45] será suficiente para liquidar ordeiramente este tipo de operações dos bancos, sem afetar em nada a garantia de devolução dos depósitos recebidos à vista.  Do ponto de vista jurídico e econômico, este segundo tipo de “crises” bancárias não tem qualquer relação, nem qualitativa nem quantitativamente, com as tradicionais crises que afetaram os bancos desde que estes começaram a atuar com um coeficiente de reserva fracionária.  A única possibilidade de evitá-las é precisamente acabar com este tipo de atividade.

  1.  O sistema proposto evita as crises econômicas cíclicas.  — Como vimos, teórica e historicamente, os ciclos sucessivos de auge artificial e recessão econômica afetam as economias de mercado desde que os bancos começaram a atuar com um coeficiente de reserva fracionária e, de forma ainda mais profunda, quando começaram a fazê-lo legalmente depois da obtenção do respectivo privilégio do governo, sobretudo depois da criação do banco central como prestamista de última instância capaz de proporcionar ao sistema a liquidez necessária em momentos de apuro.  E embora o banco central tenha reduzido a frequência das crises bancárias, não foi capaz de acabar com as recessões econômicas que, pelo contrário, em muitos casos se tornaram mais graves e profundas.

Um sistema bancário respeitador dos princípios tradicionais do Direito de propriedade (coeficiente de caixa de 100 %) protegeria as nossas sociedades de crises econômicas recorrentes.  De fato, nessas condições não seria possível a existência de uma expansão artificial do crédito sem que, previamente, se tivesse verificado um crescimento paralelo da poupança voluntária e real da sociedade.  Assim, não é possível imaginar uma distorção da estrutura produtiva, resultado da descoordenação entre o comportamento dos agentes econômicos que investem e o dos que poupam.  A melhor garantia para evitar os desajustamentos intertemporais na estrutura produtiva é o cumprimento dos princípios tradicionais do Direito que se encontram inseridos na lógica mais íntima das instituições jurídicas relacionadas com o contrato de depósito irregular e com o direito de propriedade.[46]

É evidente que, ao contrário do que acreditavam os teóricos da Escola de Chicago (que defenderam o coeficiente de caixa de 100% para os bancos), o objetivo de acabar com as crises e recessões econômicas exige também a privatização completa da moeda (padrão-ouro puro).  Isto porque, caso se mantenha o banco central como instituição responsável pela emissão de moeda puramente fiduciária, nunca haveria a garantia de que esta instituição não conseguisse, via operações de mercado aberto na bolsa de valores, reduzir temporária e artificialmente as taxas de juro e injetar uma liquidez artificial nos mercados de capital, que, no fim, teria exatamente os mesmos efeitos descoordenadores sobre a estrutura produtiva de uma expansão de crédito iniciada pelos bancos privados sem cobertura de poupança real.[47] Os principais teóricos da Escola de Chicago que defenderam o requisito de 100% das reservas (Simons, Mints, Fisher, Hart e Friedman), fizeram-no com o objetivo fundamental de facilitar a política monetária e evitar as crises bancárias (ponto 1 anterior).  No entanto, devido ao instrumental analítico de tipo macroeconômico-monetarista que utilizavam, não perceberam que, ainda mais grave do que as crises bancárias, eram as crises de natureza cíclica e econômica que o sistema bancário de reserva fracionária impunha sobre a estrutura produtiva.  Só a completa abolição dos meios de curso legal ou forçoso e uma privatização completa da moeda estatal atualmente existente poderá evitar que instituições de natureza governamental provoquem ciclos econômicos, mesmo quando é exigido um coeficiente de caixa de 100% para os bancos privados.

Por fim, é preciso reconhecer que o sistema proposto não conseguiria evitar a totalidade das crises e recessões econômicas, mas apenas os ciclos recorrentes de auge e depressão que sofremos atualmente (e que, em termos de gravidade e número são a imensa maioria).  Continuaríamos sem poder evitar as crises isoladas e pontuais que tenham origem, por exemplo, em guerras, catástrofes naturais e fenômenos similares, que, por afetarem rápida e subitamente a confiança dos agentes econômicos e suas valorações de preferência temporal, deem lugar a choques na estrutura produtiva que exigem importantes e dolorosos reajustamentos.  Contudo, não vamos nos deixar enganar pensando, como faz um setor da doutrina (basicamente os teóricos da chamada “nova macroeconomia clássica”), que todas as crises econômicas se devem à existência de choques externos, sem ser capazes de reconhecer que a maioria tem uma origem endógena autoalimentada precisamente pela expansão de crédito produzida pelo setor bancário e orquestrada pelos bancos centrais.  Na ausência desse efeito perturbador sobre o crédito, o número de choques seria reduzido ao mínimo, não só por desaparecer a principal causa da instabilidade que afeta as nossas economias, mas também porque, como veremos adiante, ao haver uma maior disciplina no comportamento fiscal dos governos, o sistema proposto abortaria a tempo muitas políticas geradoras de irresponsabilidade financeira e até de violência, conflitos e guerras que, em última instância, são também, sem dúvida, responsáveis pelo aparecimento pontual de choques externos que afetam muito negativamente a economia.

  1.  O sistema proposto é o que está mais em conformidade com o direito de propriedade.  — O estabelecimento de um coeficiente de reserva de 100% nos contratos de depósito à vista realizados com os bancos apaga o pecado original que viciou juridicamente o nascimento desta instituição.  Como vimos no nosso estudo histórico sobre a evolução dos bancos, os governos são responsáveis por, num primeiro momento, terem ignorado o caráter fraudulento da atividade bancária com reserva fracionária e, num segundo momento, quando perceberam melhor os efeitos do sistema, por, em vez de terem definido e defendido adequadamente os princípios tradicionais do direito de propriedade, terem se tornado cúmplices e, mais tarde, os principais impulsionadores dos correspondentes processos expansivos, sempre com o objetivo de conseguir um financiamento mais fácil para os seus projetos políticos.  A evolução da instituição à margem dos princípios jurídicos só teve consequências negativas: levou a que fosse cometido todo o tipo de comportamentos fraudulentos e irresponsáveis; gerou expansões de crédito artificiais e, de forma recorrente, recessões econômicas e crises sociais muito prejudiciais; e, em última instância, tornou inevitável o aparecimento do banco central e de todo um emaranhado de regulamentos administrativos sobre temas financeiros e bancários que não conseguiu atingir os objetivos e que surpreendentemente, ainda hoje, já no século XXI, continua a atuar da mesma forma desestabilizadora sobre as economias do mundo.
  2. O modelo proposto fomenta um crescimento econômico estável e sustentado que reduz ao máximo as tensões e os custos de transação trabalhista e de outros tipos relacionados com o desenvolvimento econômico.  — Mais de noventa anos de inflação crônica mundial e expansão de crédito continuada e, em muitos períodos, completamente descontrolada corromperam os hábitos de comportamento dos agentes econômicos, de forma que, hoje em dia, a maioria das pessoas pensa que a inflação e a expansão de crédito são necessárias para estimular o desenvolvimento econômico.  Além disso, generalizou-se a opinião de que quando uma economia não experimenta um boom econômico é porque se encontra numa situação de “estagnação”.  As pessoas não reconhecem que é sempre provável que as expansões econômicas rápidas e exageradas tenham uma causa artificial e que deverão reverter inevitavelmente em forma de recessão.  Em síntese, habituamo-nos a viver em economiasmaníaco-depressivas e adaptamos o nosso comportamento a um esquema instável e perturbador de desenvolvimento econômico.

No entanto, depois da reforma proposta, este modelo “maníaco-depressivo” de desenvolvimento econômico poderia ser substituído por outro muito mais estável e sustentado.  De fato, não só seriam evitadas as expansões artificiais, com a tensão envolvida a todos os níveis (econômico, meio-ambiental, social e pessoal), como as inevitáveis recessões que chegam depois de cada expansão.  No modelo proposto, o sistema monetário seria rígido e inelástico, tanto no que se refere ao crescimento da quantidade de moeda em circulação como, sobretudo, no que diz respeito às possíveis diminuições ou contrações.  Efetivamente, o coeficiente de caixa de 100% impediria o aumento expansivo da oferta monetária em forma de créditos, sendo que esta oferta só aumentaria de forma natural na mesma proporção do aumento anual do estoque mundial de ouro.  O estoque mundial de ouro tem vindo a aumentar a uma média situada entre 1 e 3% ao ano durante os últimos cem anos.[48] Assim, supondo um aumento médio da produtividade em torno de 3%, o modelo de crescimento econômico com um sistema monetário padrão-ouro puro e um coeficiente de 100% para os bancos provocaria uma redução suave e constante dos preços dos bens e serviços de consumo, que não só é perfeitamente compatível, do ponto de vista teórico e prático, com um desenvolvimento continuado e sustentado da economia, como garante que os resultados beneficiem todos os cidadãos em forma de aumento constante do poder de compra das suas unidades monetárias.[49]

Este modelo de aumento de produtividade e desenvolvimento econômico com uma oferta monetária que cresce a um ritmo reduzido (à volta de 1 %) gera, pela diminuição dos preços (assumindo um aumento de produtividade de 3% e um aumento da oferta monetária de 1%, os preços tenderiam a descer cerca de 2% ao ano), um aumento nos rendimentos reais dos fatores de produção e, sobretudo, dos salários, o que reduziria enormemente os custos de transação que se derivam atualmente da negociação coletiva.  Neste modelo, os rendimentos reais de todos os fatores de produção, especialmente os dos trabalhadores, seriam atualizados automaticamente, o que permitiria a eliminação da negociação coletiva, que gera atualmente tantas tensões e conflitos nas economias ocidentais.  De fato, esta negociação ficaria reduzia a casos pontuais nos quais, por exemplo, um maior aumento da produtividade ou do preço de mercado dos serviços laborais correspondentes levasse à necessidade de negociar aumentos de rendimentos ainda maiores do que os que se verificariam automaticamente todos os anos, com a diminuição do nível geral dos preços.  Alem disso, nestes casos, nem sequer seria necessária a intervenção dos sindicatos (embora não se exclua essa possibilidade), uma vez que as próprias forças de mercado, movidas pelo desejo empresarial de obter lucros, provocariam espontaneamente os aumentos de rendimentos que se justificassem em termos relativos.  Desta forma, na prática, a negociação coletiva ficaria limitada a casos isolados em que, ao verificar-se um aumento da produtividade inferior à média, fosse necessário efetuar determinadas reduções nos salários nominais (em todo o caso, geralmente sempre inferiores à queda do nível geral dos preços).[50]

Por fim, é preciso referir que a principal virtude do caráter rígido do sistema monetário proposto consiste em fazer com que seja impossível que ocorram contrações ou diminuições súbitas na oferta monetária, tal como se verificam agora de forma inevitável na etapa recessiva do ciclo econômico que segue qualquer expansão.  Por conseguinte, a vantagem mais importante da reforma que propomos é, talvez, a eliminação completa da etapa de contração de crédito que se verifica sempre depois do boom e que é um dos sinais mais importantes das crises econômicas que afetam nossas economias de forma recorrente.  O estoque mundial de ouro é imutável e acumulou-se ao longo da história da civilização, pelo que a redução súbita e significativa é inimaginável em qualquer momento futuro.  Uma das características mais importantes do ouro e, quiçá, a mais influente para a preponderância evolutiva como moeda por excelência, é a homogeneidade, imutabilidade e permanência ao longo dos séculos.  Por isso, a principal vantagem do modelo que propomos é que, do ponto de vista da quantidade de moeda em circulação, evitaria a repetição das diminuições súbitas do volume do crédito, e, logo, da moeda em circulação, que até hoje têm vindo a afetar os sistemas monetários e de crédito “elásticos” que imperam no mundo.  Em suma, o padrão-ouro puro com 100% de reservas impede o aparecimento de deflações, entendidas como toda a diminuição da quantidade de moeda ou crédito em circulação.[51]

  1. O sistema proposto acabaria com a especulação financeira febril e com os efeitos negativos decorrentes.  — Fechar a caixa de Pandora da criação de moeda pela expansão de crédito por parte dos bancos implica, também, eliminar os incentivos que provocam todo o tipo de comportamentos individuais inescrupulosos e fraudulentos e que têm efeitos tremendamente negativos, corrompendo os hábitos estabelecidos da poupança e do trabalho bem feito; ou seja, do esforço econômico efetuado de forma constante, honesta, responsável e com os olhos postos no longo prazo.[52] Da mesma forma, seria evitada a especulação desenfreada na bolsa de valores, e as ofertas públicas de aquisição de ações, em si mesmas não prejudiciais, só seriam efetuadas nas situações em que existissem verdadeiras razões objetivas de tipo econômico, e não como mera consequência da grande facilidade de obter financiamento externo graças à expansão de crédito criada do nada pela banca.  Ou seja, como diz Maurice Allais:

Les offres publiques d’achat sont fondamentalement utiles, mais la le?gislation les concernant doit e?tre re?forme?e.  Il n’est pas souhaitable qu’elles puissent être finance?es par des moyens de paiement cre?e?s ex nihilo par le système bancaire, ou par l’émission des junk bonds, comme c’est le cas aux États-Unis.[53]

 

No mercado, a oferta expansiva de créditos sem cobertura de poupança atrai a própria demanda, muitas vezes encarnada em agentes econômicos sem escrúpulos que pretendem apenas aproveitar-se das enormes vantagens que, em prejuízo do resto da população, obtêm com o uso de meios de pagamento recém-criados antes de todos os outros.

  1. O sistema proposto reduz ao mínimo as funções econômicas do estado e, em particular, permite eliminar o banco central.  — O sistema que propomos tornaria redundantes a Reserva Federal, o Banco Central Europeu, o Banco de Inglaterra, o Banco de Espanha ou qualquer outra autoridade, banco central ou organismo de natureza oficial, público ou governamental, com o monopólio da emissão de moeda e de controle e direção, como órgão central de planificação monetária do sistema bancário e financeiro de cada país.  É uma ideia que até destacados políticos, como o presidente norte-americano Andrew Jackson no século XIX, entenderam na perfeição e que o levou a se opor frontalmente ao estabelecimento de qualquer banco central.  Infelizmente, sua influência foi reduzida e não foi possível evitar a criação do sistema atual de planificação central no campo bancário e financeiro, com todos os efeitos negativos que teve e continua a ter sobre as nossas economias.[54]

Além disso, é preciso recordar que todo o sistema monetário de natureza fiduciária baseado no monopólio da emissão de moeda por parte do estado tenderá, como explica a Escola da Escolha Pública, a ser explorado pelos grupos privilegiados de interesse e pelos protagonistas da ação política.  De fato, a tentativa de conseguir votos comprando-os com fundos criados do nada constitui uma tentação irresistível para os políticos, que foi analisada pelos teóricos do denominado “ciclo político”, entre outros.[55] Acresce que a possibilidade de expandir a moeda e o crédito permite que os políticos se financiem sem recorrer a impostos, sempre impopulares e dolorosos, e ao mesmo tempo, faz com que a diminuição do poder de compra da moeda jogue a seu favor, devido ao caráter progressivo que os impostos habitualmente têm sobre o rendimento.  É, por isso, muito importante encontrar um sistema monetário que permita eliminar a intervenção do estado nos campos monetário e financeiro, como faz o sistema que propomos.  Mises resume muito bem esse argumento da seguinte forma:

The reason for using commodity money is precisely to prevent polítical influence from affecting directly the value of the monetary unit.  Gold is the standard money […] primarily because an increase or decrease in the available quantity is independent of the orders issued by polítical authorities.  The distinctive feature of the gold standard is that it makes changes in the quantity of money dependent on the profitability of gold production.[56]

 

Vemos, pois, que o padrão-ouro com um coeficiente de reserva de 100% é uma instituição que, do ponto de vista positivo, resultou das escolhas efetuadas por milhões e milhões de agentes econômicos no mercado ao longo de um prolongado processo evolutivo e, em sentido negativo, permite alcançar de forma efetiva o objetivo vital de bloquear a propensão que todos os governos têm de se imiscuir e manipular o sistema monetário e de crédito.[57]

  1. O sistema proposto é o mais compatível com o sistema democrático.  — Um dos princípios mais importantes do sistema democrático é que o financiamento das atividades públicas deverá ser objeto de discussão e decisão explícita por parte dos representantes políticos.  O sistema atual de monopólio da criação de moeda por parte de um organismo público e dos bancos, que detêm um coeficiente de reserva fracionário de reservas permite que se crie do nada capacidade de compra a favor do estado e de determinados particulares e empresas, em prejuízo do resto da população.  Esta possibilidade é aproveitada sobretudo pela administração, que a utiliza como mecanismo para se financiar, sem ter de recorrer à via mais evidente e politicamente custosa que seria o aumento dos impostos.  Embora os governos tentem ocultar este mecanismo de financiamento exigindo retoricamente que os orçamentos sejam financiados de forma “ortodoxa”, sem recorrer directamente ao financiamento do deficit por meio da emissão de moeda, na prática o resultado é muito semelhante quando uma parte significativa da dívida pública emitida pelos governos para financiar o déficit é, posteriormente, comprada pelos bancos centrais com a moeda recém-criado que emitem (processo indireto de monetarização da dívida pública).  Realce-se, ainda, que a expropriação oculta da população, permitida pelo processo inflacionário, beneficia não só os governos, mas também os próprios banqueiros.  De fato, ao exercerem sua atividade com um coeficiente de reserva fracionária, e à medida que não se virem obrigados pelo governo a dedicar a totalidade da expansão de crédito a financiar o setor público (comprando títulos de dívida pública), os banqueiros expropriam de forma diluída e gradual uma parte importante do poder de compra das unidades monetárias dos cidadãos, acumulando numerosos ativos nos balanços que são o resultado acumulado deste processo histórico de expropriação.  Assim, as  exigências dos banqueiros no sentido de não terem de dedicar uma parte substancial dos ativos para financiar o déficit público devem ser entendidas como uma discussão entre os “cúmplices” do processo de expansão de crédito efetuado em prejuízo dos cidadãos.  Estes banqueiros acabam por “negociar” entre si que parte dos “lucros” obtidos caberá a cada um.

Em contraste com o sistema anterior, o padrão-ouro puro com um coeficiente de reserva de 100% não só obrigaria a que os estados explicitassem completamente as despesas e fontes de receitas, impedindo que recorressem ao financiamento oculto envolvido na inflação e na expansão de crédito, como impediria que os banqueiros privados tirassem proveito de uma parte significativa do “imposto inflacionário”.  Este aspecto foi claramente analisado por Maurice Allais, para quem:

Comme toute création monétaire équivaut par ses effets à un véritable impôt prélevé sur tous ceux dont les revenus se voient diminués par la hausse des prix qu’elle engendre inévitablement, le profit qui en résulte, considérable à vrai dire, devrait revenir à l’État en lui permettant ainsi de réduire d’autant le montant global des ses impôts.”[58]

 

No entanto, ao contrário de Allais, consideramos muito mais conveniente que o estado renuncie ao poder de emissão de moeda, de forma a ser obrigado a financiar com base em impostos, e com absoluta transparência, todas as despesas.  Deste modo, os cidadãos sentem diretamente a totalidade dos custos e se veem assim suficientemente motivados para submeter todos os organismos públicos ao necessário controle.

  1. O sistema proposto fomenta a cooperação harmoniosa e pacífica entre as nações.  Uma análise da história dos conflitos militares dos últimos dois séculos revela claramente que grande parte dos conflitos militares que assolaram a humanidade poderia ter sido evitada, na totalidade ou teria tido um desenvolvimento menos violento, não fora a crescente influência dos estados em matéria monetária e, em última instância, o controle que conseguiram sobre a criação de meios de pagamento e da expansão de crédito.  Por isso, pode afirmar-se sem risco de erro que a inflação alimentou e estimulou o desenvolvimento dos conflitos bélicos: se os cidadãos das nações envolvidas em cada um estivessem conscientes do verdadeiro custo, os teriam evitado no devido tempo por meio dos respectivos mecanismos democráticos ou exigido aos governos uma saída negociada muito antes de atingirem os incríveis graus de destruição e dano à humanidade que infelizmente geraram.  Por isso, concordamos com a afirmação de Ludwig von Mises, para quem:

One can say without exaggeration that inflation is an indispensable intellectual means of militarism.  Without it, the repercussions of war on welfare would become obvious much more quickly and penetratingly; war-weariness would set in much earlier.[59]

 

Por outro lado, o estabelecimento de um padrão-ouro puro com um coeficiente de reserva de 100% implicaria, de fato, o estabelecimento, em todo o mundo, de um padrão monetário único.  Além disso, não haveria necessidade de um banco central internacional, evitando-se assim o risco de manipulação da oferta monetária e do crédito mundial.  Desta forma, obter-se-iam todas as vantagens do padrão-único internacional sem nenhum dos inconvenientes que têm os organismos intergovernamentais relacionados com a moeda.  Este sistema não levantaria qualquer tipo de suspeita quanto à perda de soberania dos correspondentes estados, podendo todas as nações e grupos sociais beneficiar da existência de uma mesma unidade monetária não regulada nem manipulada por ninguém.  Assim, o padrão-ouro puro com um coeficiente de reserva de 100% estimularia a integração econômica internacional, num quadro jurídico harmonioso e mutuamente satisfatório que minimizaria os conflitos sociais, favorecendo o intercâmbio voluntário e a paz entre as nações.

 

4

Resposta às possíveis objeções

à nossa proposta de reforma monetária

 

Embora ainda não tenha sido feita nenhuma crítica integrada, coerente e sistemática ao projeto de reforma do sistema bancário apresentado neste livro,[60] foram efetuadas, isolada e assistematicamente, uma série de objeções à proposta de estabelecer um sistema bancário com um coeficiente de reserva de 100%, que vamos apresentar a seguir e analisar separadamente.

 

1.  “Os bancos desapareceriam ao perder a razão de ser e a principal fonte de receitas“.  — Esta crítica não tem fundamento.  A única coisa que os bancos perderiam com o estabelecimento de um coeficiente de caixa de 100% seria a possibilidade de criar créditos ex nihilo, ou seja, não cobertos por um aumento da poupança voluntária.  Desta forma, seria impossível que o sistema bancário no conjunto expandisse o crédito, e, por conseguinte, a oferta monetária, o que geraria ciclos recorrentes de auge e depressão.

No entanto, poderia continuar a ser desenvolvido todo um conjunto de áreas de atividade, totalmente legítimas, satisfazendo de forma positiva as necessidades dos consumidores.  Refirimo-nos neste sentido a atividade de verdadeira intermediação de crédito que consiste em emprestar com um diferencial os fundos que os bancos receberam anteriormente dos clientes em forma de empréstimo (não de depósito à vista).  Da mesma forma, e na atividade de bancos de depósitos (com um coeficiente de 100%), poderiam proporcionar um serviço de guarda e custódia, cobrando o preço de mercado correspondente e combinando-o, até, com a prestação de outros serviços de caráter periférico (pagamentos e transferências, contabilidade das operações efetuadas em nome dos clientes, etc.).  Se acrescentarmos ainda a atividade de custódia e gestão de valores mobiliários, a de aluguel de caixas e cofres de segurança, etc., podemos ter uma ideia bastante completa do amplíssimo leque de atividade que poderiam continuar a ser desenvolvidas pelos bancos.

Assim, não há qualquer justificação para pensar que o restabelecimento do coeficiente de caixa de 100% redundaria na “morte” dos bancos privados.  Haveria apenas uma modificação, em grande medida, evolutiva e não traumática, da estrutura e operacionalidade dos bancos.  Já referimos que o mais provável é que houvesse uma tendência para o desenvolvimento de um sistema bancário constituído por uma rede de fundos de investimento, de entidades dedicadas ao depósito com um coeficiente de caixa de 100% e de empresas especializadas em proporcionar serviços de contabilidade e de caixa aos clientes.  Por isso, podemos concluir, tal como Ludwig von Mises, que:

It is clear that prohibition of fiduciary media would by no means imply a death sentence for the banking system, as is sometimes asserted.  The banks would still retain the business of negotiating credit, of borrowing for the purpose of lending.”[61]

 

Em síntese, os bancos poderiam continuar a exercer um grande número de atividades, satisfazendo as necessidades dos consumidores e obtendo assim lucros legítimos.

2.  “O sistema proposto diminuiria em grande medida o crédito disponível, provocando uma subida da taxa de juro e dificultando o desenvolvimento econômico.” — Esta é a crítica popular mais frequentemente ouvida, vinda sobretudo dos agentes econômicos (empresários, políticos, jornalistas, etc.) que mais se deixam influenciar pelas características externas e mais visíveis do sistema econômico.  De acordo com esta crítica, impossibilitar que os bancos criem créditos do nada tornaria o financiamento de muitas empresas mais difícil, fazendo subir ceteris paribus a taxa de juro e colocando barreiras ao desenvolvimento econômico.  Esta objeção fundamenta-se no fato de, graças à expansão de crédito, hoje em dia praticamente qualquer projeto de investimento, por mais deslocado que pareça, pode conseguir financiamento sem grandes problemas, caso estejamos na fase em que os bancos não receiam expandir os créditos.  A expansão de crédito alterou os hábitos tradicionais da “cultura empresarial” que se baseavam numa consideração muito mais prudente, responsável e cuidada antes de decidir iniciar um determinado projeto de investimento.

Em todo o caso, é um erro grave pensar que o crédito desapareceria num sistema bancário baseado num coeficiente de caixa de 100%.  Pelo contrário, continuariam a ser emprestados fundos, mas única e exclusivamente aqueles que anteriormente tivessem sido poupados voluntariamente pelos agentes econômicos.  Trata-se, em suma, de assegurar que só se empresta aquilo que se poupou, de forma que a oferta e a procura de bens presentes e futuros no mercado se mantenham coordenadas, evitando os profundos desajustamentos que o atual sistema bancário produz e que, em última instância, geram crises e recessões econômicas.

Além disso, a ideia de que o sistema atual de empréstimos que são dedicados ao investimento possa, em última instância, superar a poupança voluntária da sociedade é pura ficção.  Como sabemos, ex post, poupança e investimento são sempre idênticos e se, ex ante, os bancos fazem empréstimos a um ritmo superior ao da poupança voluntária (por meio de um processo de expansão de crédito), os empresários tenderão a equivocar-se em massa dedicando os escassos recursos poupados da sociedade a projetos de investimento desproporcionados que nunca poderiam ser levados a bom termo.

Assim, esta segunda crítica não se justifica: com um coeficiente de 100% continuará a ser emprestado aquilo que for poupado, mas o que se poupar tenderá a ser investido de forma proporcionada e correta.  E se, de início, determinados projetos empresariais tiverem mais dificuldade em obter financiamento, tratar-se-á da manifestação lógica do são funcionamento do único mecanismo no mercado capaz de bloquear atempadamente o início dos projetos de investimento não rentáveis, impedindo o desenvolvimento indevido e descoordenado, que o sistema atual estimula nas etapas de boom  de crédito.

No que respeita à taxa de juro, não existe qualquer motivo para pensar que a longo prazo o seu valor seria maior no sistema proposto do que no atual.  De fato, a taxa de juro depende, em última instância, das variações subjetivas de preferência temporal dos agentes econômicos, que, no nosso modelo não seriam afetadas pela delapidação massiva de bens de capital provocada pela repetição de recessões econômicas.  Além disso, é evidente que, em igualdade de circunstâncias, num sistema como o que propomos, a taxa de juro tenderia a ser muito reduzida em termos nominais, uma vez que o prêmio respectivo decorrente da evolução esperada do poder de compra da moeda seria negativo na maioria das vezes.  A componente de risco, por sua vez, dependeria também da tendência de redução dos projetos de investimento que se empreendessem depois de um período sem recessões econômicas.  Podemos, assim, concluir que, no que se refere à taxa de juro, não existe qualquer tipo de base teórica para supor que seriam mais elevados do que são atualmente.  Pelo contrário, existem muito boas razões para considerar que, tanto em termos reais como em termos nominais, as taxas de juro de mercado seriam mais reduzidas do que estamos habituados a observar atualmente.[62]

Pelo exposto, o desenvolvimento econômico não se veria debilitado com um sistema de padrão-ouro puro e um coeficiente de caixa de 100%.  Antes, seria estabelecido um modelo de desenvolvimento estável e continuado, livre das reações maníaco-depressivas a que penosamente nos habituamos e nas quais são regular e infelizmente mal investidos importantíssimos recursos escassos da sociedade, em grave prejuízo do crescimento econômico e do desenvolvimento harmonioso.

3.  “O modelo proposto penalizaria quem beneficia do presente sistema bancário e financeiro”.  — Por vezes, surgiu o argumento de que o sistema proposto penalizaria indevidamente todos quantos tiram proveito do atual sistema financeiro e bancário.  Entre os seus principais beneficiários podemos incluir, em primeiro lugar, o governo, que, como já sabemos, consegue financiar-se (direta e indiretamente) através da expansão de crédito sem ter de recorrer ao aumento de impostos, uma medida politicamente dolorosa.  Depois, haveria que mencionar os próprios banqueiros (que lucram com os mesmos procedimentos do governo, mas de forma direta e privada), e também os depositantes dos bancos, na medida em que recebem uma taxa de juro dos depósitos e não pagam pelo conjunto de serviços periféricos prestados pelos bancos.[63]

Porém, esta crítica não tem em conta que muitos dos pretensos “lucros” que os particulares obtêm do sistema não são lucros de fato.  Efetivamente, não é exato argumentar que atualmente os depositantes recebem benefícios substanciais (em forma de serviços de caixa, pagamento e contabilidade) sem pagar por eles, uma vez que, na verdade, o custo desses benefícios é assumido na íntegra (de forma explícita ou implícita) pelos próprios depositantes.

No que diz respeito aos juros explícitos, estes muitas vezes podem ser obtidos com os depósitos e trata-se de uma “remuneração” na maioria das vezes compensada pela contínua diminuição do poder de compra da unidade monetária sofrida pelos depositantes.  No sistema proposto de coeficiente de reserva de 100%, o poder de compra das unidades monetárias depositadas não só se manteria inalterado, mas também, como já vimos, cresceria de forma suave e constante.  Este importantíssimo benefício para todos os cidadãos pode ser considerado muito superior à pretensa “vantagem” de receber uma taxa de juro explícita que dificilmente compensa a desvalorização da moeda.  Desta forma, atualmente, na maior parte dos casos, a taxa de juro real recebida com os depósitos (deduzida a diminuição do poder de compra da moeda) é quase nula ou mesmo negativa.

Numa sociedade com um padrão-ouro puro e um coeficiente de reserva de 100%, todos os cidadãos tirariam proveito do contínuo e gradual aumento do poder de compra das suas unidades monetárias, recebendo juros pelas poupanças efetivamente realizadas e se vendo obrigados a pagar, de forma explícita e transparente, o preço de mercado dos serviços legítimos que decidiram contratar dos respectivos bancos.  O sistema proposto seria, pois, muito mais claro e seguramente mais favorável para a população em geral do que o atual sistema bancário e financeiro.[64]

O argumento de que os governos e os banqueiros não poderia continuar a tirar proveito do sistema atual, mais do que um defeito que possa fundamentar uma crítica à nossa proposta, é um resultado positivo que a justifica prima facie.  De fato, acima já valorizamos a grande importância do impedimento de que os governos possam se financiar de forma oculta pela inflação e a expansão do crédito.  E não é preciso repetir o obscuro fundamento jurídico e dos efeitos prejudiciais do poder de emissão de créditos e depósitos dos bancos privados.

4.  “O coeficiente de reserva de 100% é uma intervenção de caráter administrativo contrária à liberdade contratual das partes”.  Ouve-se frequentemente o argumento, geralmente proveniente dos membros da Escola Neobancária moderna defensora do sistema bancário livre com reserva fracionária, de que é “inadmissível”, do ponto de vista “liberal”, colocar entraves à liberdade contratual das partes e, concretamente, a que os depositantes acordem livremente com os banqueiros em abrir contas à vista com um coeficiente de reserva fracionária.  Ora, já vimos nos três primeiros capítulos deste livro que a exigência de manter um coeficiente de caixa de 100% para os depósitos à vista, longe de ser um intromissão administrativa inadmissível (“legislação via mandatos”, na terminologia hayekiana), é apenas a aplicação natural dos princípios tradicionais do direito de propriedade ao contrato de depósito irregular de moeda (“lei em sentido material”, na terminologia hayekiana).[65] Além disso, o total conhecimento das partes da causade um contrato que decidam efetuar é condição necessária, mas nunca razão suficiente para, de acordo com os princípios tradicionais do Direito, conceder legitimidade à operação.  De fato, se como consequência desse contrato se causam prejuízos a terceiros, o mesmo será ilegítimo e nulo de pleno direito por ser contrário à ordem pública.[66] Segundo a análise deste livro, esta falta de legitimidade é precisamente igual à da atividade bancária com reserva fracionária, que não só dá lugar à criação adicional de meios de pagamentos em prejuízo de toda a população, que vê diminuir o poder de compra das unidades monetárias,[67] como engana de forma geral os empresários, levando-os a investir onde e quando não devem, dando origem a ciclos recorrentes de auge e depressão que têm um custo muito doloroso em termos humanos, econômicos e sociais.

Por fim, é necessário responder ao argumento por vezes ouvido[68] segundo o qual a prova de que os agentes econômicos não estão dispostos a, voluntariamente, estabelecerem um sistema bancário baseado no coeficiente de caixa de 100% se encontra na possibilidade de, atualmente, acordarem um sistema semelhante com total liberdade (e, no entanto, não o fazem) utilizando os serviços de cofres de segurança que os bancos prestam ao mercado.  Para contrariar este argumento é preciso considerar não só que o serviço de cofre de segurança não tem qualquer relação com o contrato de depósito irregular de um bem fungível como é a moeda (uma vez que se refere a um típico contrato de depósito regular de coisas específicas), mas também que dificilmente poderia considerar-se que o negócio de cofres de segurança (cujo custo é preciso pagar e que não proporciona, do ponto de vista subjetivo dos clientes, os mesmos serviços do contrato de depósito bancário de moeda) poderia competir em igualdade de circunstâncias com o atual sistema de depósitos com reserva fracionária.  De fato, atualmente é comum conceder-se juros pelos depósitos (como reconhecimento implícito de que se está a fazer um uso indevido dos mesmos).  Além disso, são oferecidos serviços de valor sem um custo explícito, o que torna impossível que os contratos voluntários de depósito com um coeficiente de caixa de 100% possam competir e prosperar, sobretudo num contexto inflacionário no qual o poder de compra da moeda não deixa de diminuir.  Este contra-argumento é muito semelhante ao que poderia ser feito em relação aos bens públicos proporcionados pelo estado, aparentemente sem um custo direto para o usuário.  Isto faz com que seja muito difícil que, num contexto de mercado livre, as empresas privadas que queiram proporcioná-los cobrando o preço de mercado possam prosperar, dada a desleal e privilegiada concorrência que sofrem por parte dos serviços públicos, que oferecem os seus serviços aos cidadãos “sem custo” e que, em última instância, veem as elevadas perdas serem suportadas por todos por intermédio de impostos inseridos no orçamento de estado.[69]

5.  “Não é possível evitar que as “inovações” financeiras façam ressurgir a atividade bancária com reserva fracionária.” — De acordo com este argumento, quaisquer precauções legislativas tomadas para proibir o exercício da atividade bancária com reserva fracionária e, logo, para estabelecer um coeficiente de reserva de 100% para os depósitos à vista, serão, em última instância, sempre contornadas por novos negócios jurídicos e “inovações” financeiras que, em fraude à lei ou não, por uma ou outra via, tenderão a alcançar o mesmo fim.  Assim, o próprio Hayek afirmava já em 1937 que:

It has been well remarked by the most critical among the originators of the scheme that banking is apervasive phenomenon and the question is whether, when we prevent it from appearing in its traditional form, we will not just drive it into other and less easily controllable forms.[70]

 

Hayek citava como precedente mais notável a Lei de Peel de 1844, uma vez que, ao esquecer-se de alargar o coeficiente de caixa de 100% à criação de depósitos, fez com que a expansão monetária a partir de então tomasse sobretudo a forma de depósitos, e não de notas.[71]

O primeiro comentário que podemos fazer a esta objeção é que, mesmo que fosse justificada, não se trataria, de forma nenhuma, de um argumento contra a tentativa de alcançar o objetivo ideal de definir e defender adequadamente os princípios tradicionais do direito de propriedade no que diz respeito aos depósitos à vista.  De fato, em muitos outros contextos, por exemplo, no de natureza criminal, se verifica que, embora do ponto de vista técnico seja muitas vezes difícil aplicar e, sobretudo, defender corretamente os princípios tradicionais do Direito, isso não implica que os seres humanos não devam fazer todos os esforços necessários para definir e defender o quadro jurídico de forma adequada.[72]

Além disso, também não é verdade que o fenômeno da atividade bancária com reserva fracionária tenha um caráter tão “onipresente” que seja, na prática, impossível lutar contra ele.  Ao longo deste livro estudamos diferentes negócios jurídicos que, em fraude à lei, foram concebidos como tentativas de “disfarçar” como outros contratos o que não eram nada mais do que depósitos bancários irregulares de moeda.  Vimos as operações com pacto de recompra pelo valor nominal, as opções de venda ou puts “americanas”, os chamados “depósitos” a prazo, que na prática funcionam com verdadeiros depósitos à vista, e também de depósitos à vista instrumentados por intermédio da instituição, completamente alheia, do seguro de vida.  Ora, todos estes negócios jurídicos, e quaisquer outros semelhantes que possam ser criados no futuro, são facilmente identificáveis e tipificáveis pelo direito civil e penal, tal como propusemos na seção 2 (nota 39) deste capítulo.  Na verdade, é relativamente simples para qualquer juiz ou observador imparcial analisar se a essência de um operação permite a retirada em qualquer momento dos fundos inicialmente depositados e se, do ponto de vista subjetivo, os seres humanos se comportam na assunção de que determinados títulos são moeda, ou seja, um meio de troca geralmente aceito e dotado de uma liquidez perfeita em todo o momento.

Acresce que a criação de novos negócios e contratos jurídicos para contornar os princípios jurídicos que deveriam regular a atividade bancária se verificou num contexto em que os agentes econômicos não eram capazes de identificar até que ponto esta atividade era ilegítima e produzia um grave dano econômico e social.  Se, a partir de agora, os responsáveis jurídicos e as autoridades públicas identificarem claramente os problemas que analisamos neste livro, será muito mais fácil perseguir os comportamentos desviantes que se desenrolem no campo financeiro.  Não surpreende que, depois da Lei de Peel de 1844, os depósitos bancários tenham se expandido de forma desproporcionada, uma vez que, naquela altura, a teoria econômica ainda não tinha sido capaz de verificar a absoluta identidade existente entre os depósitos bancários e as notas de banco no que respeita à natureza e aos efeitos.  Se a Lei de Peel fracassou no seu objetivo, não foi pelo caráter “onipresente” do negócio bancário com reserva fracionária, mas sim, precisamente, porque os seres humanos não foram capazes de perceber que as notas de banco e os depósitos bancários tinham a mesma natureza e conduziam aos mesmos efeitos econômicos.  Hoje, pelo contrário, graças à teoria econômica, os juízes dispõem de um instrumental analítico, cujo valor que não pode ser desmentido, para os orientar na identificação correta das condutas penalmente tipificadas e na emissão de normas jurisprudenciais justas e ponderadas em relação a todos os casos de dúvida com os quais se possam ver confrontados na prática.

Por fim, é preciso fazer alguns esclarecimentos importantes sobre o conceito de “inovação” no mercado financeiro e, sobretudo, sobre a diferença essencial existente entre as chamadas “inovações financeiras” e as inovações tecnológicas e empresariais que se introduzem nos sectores industriais e comerciais.  Assim como qualquer inovação tecnológica que se introduza com êxito no campo do comércio e da indústria deverá ser bem aceite, uma vez que tende a aumentar a produtividade e a satisfazer melhor os desejos dos consumidores, no âmbito financeiro, que se desenvolve num quadro imutável de princípios jurídicos estáveis e previsíveis, as inovações deverão ser vistas inicialmente com desconfiança e receio.  De fato, no campo financeiro e bancário, as inovações podem ser consideradas positivas quando se referem, por exemplo, à introdução de novos equipamentos e programas informáticos, canais de distribuição, etc.  No entanto, quando afetam directamente o papel dos princípios essenciais do direito que deverão constituir o quadro inalienável no qual se move toda a instituição, essas “inovações” tenderão a dar origem a um grave dano social, pelo que devem ser perseguidas e rejeitadas.  Assim, não deixa de ser sarcástico chamar “inovação financeira” ao que, em última instância, não pretende senão contornar os princípios gerais do direito que são vitais para o são desenvolvimento e correta manutenção de uma economia de mercado.[73]

Os produtos financeiros adequam-se aos diversos tipos de contratos que tradicionalmente se formaram no direito e cuja estrutura essencial não é possível modificar sem forçar nem violar os princípios jurídicos mais elementares.  Por isso, a introdução de “novos” produtos financeiros só será possível através diferentes combinações de contratos jurídicos legítimos e pré-existentes, embora a possibilidade de inovar neste campo seja muito limitada.  É também preciso recordar que, muitas vezes, as “inovações” são forçadas pela necessidade de fazer frente à verocidade fiscal dos governos bem como ao emaranhado de legislação fiscal que desenvolvem em cada circunstância histórica e que, com o objetivo de diminuir na medida do possível o pagamento de impostos, obriga a que se efetuem os mais estranhos, forçados, complicados e antinaturais negócios jurídicos.[74] Daí à violação direta dos princípios tradicionais do Direito é um passo, e a experiência demonstra que, dada tentação imposta pelos grandes lucros que se obtêm com o exercício da atividade bancária com reserva fracionária, muitos não o temem dar.  É, no entanto, imprescindível, manter, neste campo, um atitude de constante e rigorosa vigilância e prevenção quanto ao cumprimento dos princípios tradicionais do Direito.

6.  “O sistema proposto não permitiria que a oferta monetária crescesse ao mesmo ritmo que o desenvolvimento da economia.” — Os agentes econômicos habituaram-se ao atual ambiente inflacionário e pensam que é impossível o desenvolvimento econômico sem que exista uma certa taxa de expansão de crédito e inflação.  Além disso, várias escolas de teóricos da economia mostraram-se favoráveis ao crescimento da demanda efetiva e tendem a reforçar os sempre muito populares apelos em favor da inflação.  No entanto, tal como os agentes econômicos se adaptaram a um ambiente inflacionário, também se habituariam a viver num ambiente no qual se verificasse um aumento contínuo e gradual do poder de compra da unidade monetária.

Aqui, é importante distinguir novamente conceitos diferentes do termo “deflação” (e “inflação”) que se confundem na discussão e na análise teórica.  Deflação pode designar uma diminuição ou contração absoluta na oferta monetária, ou a consequência que, geralmente (mas não sempre), se obtém de tal contração, ou seja, um aumento no poder de compra da unidade monetária ou, se preferível, uma diminuição do “nível” geral dos preços.  O que é evidente é que o sistema proposto de padrão-ouro puro com um coeficiente de reservas de 100% é completamente inelástico no que diz respeito a contrações e, por conseguinte, impede completamente o aparecimento da deflação entendida como diminuição da oferta monetária, coisa que o sistema atual não é capaz de garantir, como se verifica recorrentemente em cada crise econômica.[75]

Se por “deflação” entendermos uma diminuição do nível geral dos preços ou um aumento do poder de compra da unidade monetária, é claro que, caso a produtividade geral da economia cresça a um ritmo superior ao do aumento da oferta monetária, tal “deflação” estaria presente no sistema monetário que propomos.  Este é o modelo de desenvolvimento econômico que explicamos mais acima e que teria a vantagem não só de evitar as crises e recessões econômicas, mas também de estender a todos os cidadãos os benefícios do desenvolvimento econômico, fazendo crescer de forma continuada e gradual o poder de compra das unidades monetárias em poder de cada um.

Temos de reconhecer que o sistema proposto não asseguraria uma unidade monetária com poder de compra imutável.  Esse é um objetivo impossível e, mesmo que fosse conseguido não traria quaisquer vantagens, a não ser a possibilidade de eliminar o prêmio que se inclua na taxa de juro em função das expectativas sobre a evolução do poder de compra da moeda.  No entanto, para os nossos objetivos, o importante é que a evolução do poder de compra da moeda siga uma tendência facilmente previsível pelos agentes econômicos, de forma a que a tenham em conta na tomada de decisão.  Isto seria suficiente para evitar que se verifiquem redistribuições indevidas e precipitadas do rendimento entre credores e devedores, como aconteceu até agora sempre que ocorreu um choque expansivo de crédito ou monetário, que os agentes econômicos não conseguiram prever a tempo.

Tem sido defendido que caso o crescimento da oferta de moeda metálica se verificar a um ritmo inferior ao do aumento da produtividade da economia, haverá um aumento do poder de compra da unidade monetária (ou uma diminuição do nível geral dos preços), que, em algumas circunstâncias, poderia até superar a taxa social de preferência temporal incluída na taxa de juro de mercado.[76] Embora a taxa social de preferência temporal dependa das valorações subjetivas dos seres humanos e, portanto, a evolução não possa ser conhecida teoricamente a priori, é preciso reconhecer que, caso diminua para níveis muito baixos devido a um aumento substancial da propensão para a poupança na sociedade, poderá ser verificado o efeito referido.  No entanto, em nenhuma circunstância se daria o caso de as taxas de juro de mercado serem zero nem, tampouco, de atingirem um valor negativo.  Efetivamente, em primeiro lugar entraria em jogo o conhecido “Efeito Pigou”, em virtude do qual o crescimento do poder de compra da unidade monetária provocaria uma subida do valor dos saldos reais de caixa dos agentes econômicos, que aumentariam a riqueza real e estimulariam um aumento do consumo, levando, assim, ao restabelecimento de uma taxa social de preferência temporal mais elevada.[77] Em segundo lugar, continuariam sempre a ser financiados por meio de uma taxa de juro positiva para todos os projetos de investimento nos quais se obtivesse um rentabilidade esperada em forma de lucros contábeis superiores à taxa de juro positiva que em cada momento preponderasse no mercado, por mais baixa que fosse.  É preciso ter em conta que as reduções graduais da taxa de juro de mercado tendem a elevar o valor atual dos bens de capital e dos projetos de investimento: uma diminuição de 1 a 0,5 % duplicará o valor atual dos bens de capital de grande duração, e o mesmo acontecerá de novo se as taxas baixarem de 0,5 para 0,25 %.  Por isso, não é possível que as taxas de juro nominal cheguem a zero: à medida que se aproximem desse limite, o crescimento do valor atual dos bens de capital será tal, que surgirão enormes oportunidades de obter elevados lucros empresariais que garantam um fluxo constante e inesgotável de oportunidades de investimento.

Assim, o que é previsível é que, no modelo proposto, as taxas de juro nominais alcancem valores historicamente reduzidos.  De fato, se em média pode ser previsto um aumento da produtividade de cerca de 3%, e um crescimento das reservas de ouro mundiais de 1%, a ligeira “deflação” de cada ano oscilará aproximadamente 2%.  Se considerarmos razoável uma taxa de juro em termos reais, já incluindo a sua componente de risco, situada em cerca de 3-4 %, poderia esperar-se que a taxa de juro de mercado se situasse entre os 1 e 2 % ao ano, com oscilações muito pequenas de cerca de metade de um quarto de ponto.  Um quadro como o que acabamos de descrever pode parecer “de outra galáxia” para os agentes econômicos que viveram apenas em ambientes inflacionários baseados na expansão monetária e de crédito, mas seria uma situação muito favorável e a que os agentes econômicos se habituariam sem maiores problemas.[78]

Os pretensos perigos da “deflação” foram levados ao exagero até por membros da Escola Neobancária de atividade bancária livre com reserva fracionária.  Assim, Stephen Horwitz questiona a redução suave e continuada dos preços no nosso modelo e defende que, tal como agora se verificam mudanças repentinas na subida dos preços, verificar-se-iam também diminuições súbitas (!).  Horwitz não percebe que tais diminuições súbitas com um padrão monetário rígido à contração são praticamente impossíveis, salvo em circunstâncias excepcionais de catástrofes naturais, guerras e fenômenos extraordinários semelhantes.  Em circunstâncias normais, não há razão para que a demanda de moeda aumente de forma drástica.  Na verdade, iria diminuindo de forma gradual à medida que o crescimento do poder de compra da unidade monetária fizesse com que os agentes econômicos não precisassem de manter saldos de caixa tão elevados.[79]

O modelo de “deflação” contínua, ligeira e gradual que se verificaria no sistema de padrão-ouro puro com coeficiente de reserva de 100%, não só não impediria um desenvolvimento econômico sustentado e harmonioso, como o impulsionaria energicamente.  Além disso, foi algo verificado várias vezes na história.  Por exemplo, já referimos neste livro o caso dos Estados Unidos durante o período compreendido entre a Guerra Civil, em 1867, e 1879, tal como se viram forçados a reconhecer os próprios Milton Friedman e Anna J.  Schwartz, para quem este período:

[It] was a vigorous stage in the continued economic expansion that was destined to raise the United States to a first rank among the nations of the world.  And their coincidence casts serious doubts on the validity of the now widely held view that secular price deflation and rapid economic growth are incompatible.[80]

 

7.  “A manutenção de um padrão-ouro puro com um coeficiente de reserva de 100 % seria muito custosa em termos de recursos econômicos e, portanto, funcionaria como uma trava ao desenvolvimento econômico.” — O argumento de que um padrão-ouro puro seria muito custoso em termos de recursos econômicos foi já enunciado por John Maynard Keynes, para quem este padrão não era mais do que uma “relíquia bárbara” do passado.  Este argumento passou a estar incluído nos manuais mais comuns.  Paul A.  Samuelson, por exemplo, diz, “[it] is absurd to waste resources digging gold out of the bowels of the earth, only to inter it back again in the vaults of Fort Knox”.[81] É evidente que a manutenção de um padrão-ouro puro, com uma ligeira “deflação”, ou seja, com um aumento constante e gradual do poder de compra da unidade monetária, geraria um incentivo continuado para se procurar e extrair maiores quantidades de ouro, dedicando-se assim válidos recursos econômicos escassos à procura, extração e distribuição do metal amarelo.  Embora as estimativas realizadas sobre o custo econômico deste padrão monetário não sejam unânimes, podemos até, seguindo Leland B.  Yeager, chegar a admitir, para o bem da discussão, que tais custos seriam de cerca de 1% do Produto Interno Bruto mundial.[82] E é óbvio que imprimir papel-moeda é muito mais “barato” do que extrair ouro da terra a um custo próximo do 1% do Produto Interno Bruto mundial.

No entanto, usar o pretenso custo do padrão-ouro para rejeitar este sistema monetário, Como fizeram Keynes e Samuelson, é muito enganador.  Não se trata de comparar simplesmente o custo de produção do papel-moeda.  É preciso também comparar os custos globais (diretos e indiretos) de cada um dos sistemas monetários.  Nessa comparação, é preciso ter em conta não só o grave prejuízo econômico e social provocado pela repetição cíclica de depressões econômicas, mas também todo o tipo de custos de um padrão monetário elástico e completamente fiduciário e controlado pelo estado.  Neste sentido, não podemos deixar de referir-nos ao trabalho de Roger W.  Garrison, “The Costs of a Gold Standard”.[83] Neste artigo, Roger Garrison estima os custos de oportunidade decorrentes de um padrão monetário puramente fiduciário, comparando-os com os custos próprios de um padrão-ouro puro com coeficiente de reserva de 100%.  Segundo o autor:

The true costs of the paper standard would have to take into account (1) the costs imposed on society by different polítical factions in their attempts to gain control of the printing press, (2) the costs imposed by special-interest groups in their attempts to persuade the controller of the printing press to misuse its authority (print more money) for the benefit of special interests, (3) the costs in the form of inflation-induced misallocation of resources that occur throughout the economy as a result of the monetary authority succumbing to the polítical pressures of the special interests, and (4) the costs incurred by businesses in their attempts to predict what the monetary authority will do in the future and to hedge against likely, but uncertain, consequences of monetary irresponsibility.  With these considerations in mind, it is not difficult to believe that a gold standard costs less than a paper standard.[84]

 

Acrescentaria ainda o elevado custo decorrente da manutenção de toda a rede mundial de bancos centrais e organizações internacionais (Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, etc.) com os seus bem pagos funcionários, numerosos meios econômicos dedicados ao recolhimento de informação estatística e ao financiamento de trabalhos “de pesquisa”, congressos e reuniões internacionais, juntamente com o elevado custo decorrente da superprodução de serviços bancários em forma de multiplicação exagerada de sucursais bancárias, com a consequente delapidação de recursos humanos e econômicos.[85] Não surpreende, pois, que até Milton Friedman, um autor que começou por considerar, como a maioria, que o custo do padrão-ouro era demasiado elevado, tenha, mais tarde, mudado de opinião e concluído que do ponto de vista econômico não existe qualquer problema de custo de oportunidade no que diz respeito ao padrão-ouro puro.[86]

Em suma, podemos concluir que um sistema monetário e bancário baseado no padrão-ouro puro com um coeficiente de reserva de 100% para a atividade bancária é uma “instituição social” básica para o correto funcionamento de qualquer economia de mercado.  As instituições sociais podem definir-se como todo o esquema de padrões de comportamento que se formou de modo espontâneo e evolutivo ao longo de períodos de tempo muito prolongados, como resultado da contribuição e participação de múltiplas gerações de seres humanos nos processos sociais.  Assim, as instituições como o padrão-ouro, o direito de propriedade ou a família envolvem um enorme volume de informação e foram provadas nos contextos históricos e nas mais variadas circunstâncias particulares de tempo e lugar.  Por isso, não podemos prescindir impunemente deste tipo de instituições bem como dos princípios morais sem se incorrer em custos sociais elevadíssimos.  Os padrões de comportamento, as tradições e os princípios morais, longe de ser “repressivos e inibidoras tradições sociais” (tal como irresponsavelmente foram classificadas por autores com Rousseau e, em geral, os teóricos “cientistas”), são apenas pautas de conduta que tornaram possível a evolução e o desenvolvimento da civilização.  Quando o ser humano endeusa a razão (e no campo da teoria econômica haveria que mencionar conjuntamente keynesianos e monetaristas como principais culpados de terem caído neste tipo de comportamento) e pensa que as instituições sociais podem ser “melhoradas”, modificadas e reconstruídasex novo pelo ser humano, este, carente de tão fundamentais guias e referências de atuação, acaba indefectivelmente por racionalizar as suas mais atávicas e primitivas paixões, pondo assim em perigo os processos sociais espontâneos de cooperação e coordenação social.  O padrão-ouro e o princípio do coeficiente de reserva de 100% são uma parte indivisível das fundamentais instituições sociais que servirão como “piloto automático” ou guia no comportamento prático dos seres humanos nos processos de cooperação social.  A sua eliminação irresponsável gera custos desproporcionados e imprevisíveis, que se consubstanciam em tensões e desajustamentos sociais que comprometem o avanço pacífico e harmonioso da humanidade.

8.  “O estabelecimento de um sistema como o proposto faria o mundo depender excessivamente de países como a África do Sul e a extinta União Soviética, que foram até agora os maiores produtores de ouro” — O perigo da pretensa dependência do padrão-ouro em relação à produção de ouro da África do Sul e das nações que hoje integram a extinta União Soviética foi muito exagerado.  Além disso, baseia-se no erro de não considerar que, embora estes países participem com uma proporção significativa na nova produção de ouro todos os anos (a África do Sul com 34% e a extinta União Soviética com 18% da nova produção do metal amarelo),[87] a importância relativa desses novos volumes de produção tendo em conta os estoques de ouro atualmente existentes no mundo (e que, dado o seu caráter imutável e indestrutível, foram sendo acumulados ao longo da história da civilização) é praticamente insignificante (não superior a 0,5% ao ano).  De fato, a maior parte do estoque mundial de ouro está distribuída pelos países da União Europeia, América e Sul da Ásia.  Além disso, terminada a guerra fria, não se percebe nenhum tipo de comportamentos perturbador que nações como a África do Sul ou a extinta União Soviética, cuja produção anual de ouro é uma fração verdadeiramente insignificante do volume total do metal amarelo disponível no mundo poderiam ter (ademais, esses países seriam os primeiros prejudicados por qualquer política de redução artificial da produção de ouro).

De qualquer forma, é preciso reconhecer que a transição para um sistema monetário como o que propomos iria aumentar, como vamos ver na seção seguinte, várias vezes (talvez mais de vinte) o valor de mercado que a moeda tem hoje em termos das atuais unidades monetárias.  Assim, é inevitável que, num primeiro momento e de uma só vez, se verifique uma significativa mais-valia a favor dos atuais possuidores de ouro e, em particular, das empresas extratoras e distribuidoras.  Não obstante, o desejo de evitar que determinados terceiros tirem proveito de forma pretensamente imerecida do restabelecimento de um sistema monetário socialmente tão benéfico como o que propomos constitui, de alguma forma, um argumento prima faciecontra o mesmo.[88]

9.  “O pretenso fracasso do coeficiente de 100% de reserva na Argentina do general Perón.” No século XX, existe um caso histórico em que, pelo menos retoricamente, se pretendeu estabelecer um coeficiente de reserva de 100% para a atividade bancária.  No entanto, neste caso, a reforma não foi acompanhada de uma privatização global do sistema monetário e da eliminação do banco central.  Em vez disso, procedeu-se à nacionalização completa do crédito, o que levou a uma grande subida da inflação e a profundas distorções de crédito que assolaram a economia argentina.  Por isso, não podemos considerar este exemplo como uma ilustração dos inconvenientes da proposta de reforma que apresentamos.  Pelo contrário: é a confirmação histórica perfeita dos graves efeitos da intervenção do setor público sobre o campo financeiro, monetário e de crédito.  Analisemos mais detidamente a história da “experiência” argentina.

A reforma iniciou-se pouco depois de o general Perón assumir o governo da Argentina em 1946 e foi levada a cabo por meio do decreto-lei n.º 11.554, homologado pela lei 12.962.  Nestas disposições jurídicas estabeleceu-se a nacionalização dos depósitos dos bancos, declarando-se oficialmente que, a partir de então, a nação argentina asseguraria todos os depósitos.  Na explicação dos motivos destes textos legislativos, dizia-se o seguinte:

De fato, a partir do momento em que todos os depósitos ficam nos bancos por conta do Banco Central, esses depósitos já não “pesam”, por assim dizer, sobre os bancos, o que evita que alarguem para além dos limites úteis a margem dos créditos.  Desta forma, será possível alcançar um crédito são, mais orientado para motivos econômicos de largo alcance do que para propósitos puramente financeiros.[89]

 

Contudo, apesar desta retórica aparentemente correta, a reforma bancária de Perón estava condenada ao fracasso desde o início.  De fato, a reforma sustentou-se numa completa nacionalização do setor monetário e bancário, pelo que a responsabilidade quanto à concessão de novos créditos ficou nas mãos de um Banco Central, cujos responsáveis dependiam diretamente do governo.  Ou seja, em vez da privatização completa das instituições financeiras e monetárias e de fazer com que o crédito coincidisse de forma espontânea com as taxas de poupança do país, o Banco Central iniciou uma concessão privilegiada e sem critério de créditos expansivos, que chegaram ao sistema econômico por meio de operações de mercado aberto na bolsa ou, sobretudo, pela concessão de desconto aos bancos mais favoráveis ao poder político.

Na reforma, definiu-se que, todos os anos, o Banco Central poderia realizar operações de mercado aberto de até 15% do valor total da massa monetária.  Da mesma forma, foi completamente eliminada a cobertura de ouro da moeda argentina, bem como a relação pré-existente entre esta e o ouro.  A lei n.º 13571 de 1949 modificou ainda a constituição do Conselho de Administração do Banco Central e determinou que o presidente fosse o próprio Ministro das Finanças, pelo que a instituição se converteu numa mera dependência do poder estatal.  Por último, a reforma estabeleceu que o crédito seria concedido a partir de então pelo Banco Central em forma de desconto aos diferentes bancos, sem qualquer limite quanto ao volume e capacidade de expansão, sendo este enorme poder utilizado para privilegiar as instituições mais favoráveis ao regime político vigente na ocasião.  Como consequência, apesar da sua retórica inicial, a reforma de Perón provocou um crescimento sem precedentes no volume de crédito, uma enorme expansão nos meios de pagamento e uma grande inflação que distorceu grandemente a estrutura produtiva do país, dando lugar a uma profunda recessão econômica da qual a Argentina demorou muitos anos a recuperar.  Assim, por exemplo, nos nove anos da primeira etapa de Perón (de 1946 a 1955), a circulação monetária aumentou em mais de 970%, e a cobertura de ouro e divisas das notas emitidas diminuiu de 137% em 1946 para pouco mais de 3,5% em 1955.

A reforma foi derrogada com a revolução que destituiu o general Perón em 1956 e que restabeleceu a privatização dos depósitos.  Esta medida não foi, no entanto, capaz de acabar com o caos financeiro e os bancos reiniciaram, com renovado entusiasmo, a política expansiva, continuando assim a política iniciada pelo Banco Central durante os anos de Perón, o que tornou crônica e mundialmente famosa a hiperinflação argentina.[90]

Podemos, pois, concluir que a experiência argentina procurou apenas reservar para o governo a exclusividade das vantagens da expansão de crédito, impedindo que os bancos privados tirassem proveito de uma parte substancial da mesma, como vinham fazendo até então.  No entanto, nunca houve intenção de privatizar o sistema monetário e abolir o Banco Central.  A reforma peronista revelou, como já comentamos neste livro, que um coeficiente de caixa de 100% pode distorcer de forma igualmente grave a economia caso se mantenha o monopólio do Banco Central no que diz respeito à emissão de moeda e à concessão de créditos e se, por razões políticas, a autoridade monetária empreende uma política de expansão de crédito (ou criando e concedendo créditos diretamente ou por compras em mercado aberto na bolsa de valores).  O fracasso da experiência argentina do general Perón, longe de ser uma ilustração histórica das desvantagens do coeficiente de reserva de 100%, é uma confirmação da necessidade de que tal reforma seja sempre acompanhada de uma privatização completa da moeda e da eliminação do banco central.

Em suma, o sistema argentino de Perón procurou impedir a criação expansiva de créditos por parte do sistema bancário privado.  No entanto, substituiu essa atividade por uma criação expansiva de créditos sem cobertura de poupança real ainda maior, protagonizada pelo Banco Central e pelo próprio estado, pelo que, afinal, o dano provocado no sistema monetário, financeiro e econômico do país foi ainda mais profundo.  De nada vale, portanto, acabar com um processo de expansão de crédito (o dos bancos privados com um coeficiente de reserva fracionária) para substitui-lo por outro ainda maior levado a cabo diretamente pelo estado.[91]

10.  “A reforma proposta não poderia ser levada a cabo por nenhum país isolado, exigindo um difícil e custoso acordo internacional.” — Embora conviesse que o estabelecimento de um padrão-ouro com um coeficiente de reserva de 100% fosse efetuado internacionalmente e um acordo neste sentido facilitasse enormemente a transição para o novo sistema, não há razão para que, enquanto tal acordo internacional não for possível, os diferentes estados não tentem de forma isolada aproximar-se do sistema monetário ideal.  Foi precisamente isto que Maurice Allais propôs para a França antes da integração na União Monetária Europeia em 2002,[92] ao indicar que o estabelecimento do coeficiente de reserva de 100% e a manutenção de uma política monetária muito rigorosa por parte do banco central (que permitisse um crescimento da oferta monetária não superior a 2% ao ano) seriam um primeiro passo na direção correta, que os Estados Unidos, a União Europeia, o Japão, a Rússia ou qualquer outro país poderia seguir por si só.  Esta ideia deve ser levada em linha de conta na avaliação dos diferentes sistemas de unificação monetária que foram levadas a cabo em determinadas áreas econômicas proeminentes, e, concretamente, na União Europeia, e que teremos oportunidade de comentar mais aprofundadamente na seção seguinte.

Além disso, o estabelecimento de taxas de câmbio fixas, mas passíveis de revisão, entre os diferentes países poderia fazer com que as nações de uma área econômica se vissem obrigadas a seguir a liderança dos estados que decidissem dar passos mais seguros e claros na direcção ideal, iniciando-se desta forma uma tendência irresistível para a consecução do objetivo proposto.[93]

 

5

Análise econômica do processo de reforma e transição para o sistema monetário e bancário proposto

 

Para começar esta seção, é preciso tecer algumas considerações gerais acerca das problemáticas de toda a estratégia política para levar a cabo reformas econômicas em qualquer campo: financeiro, de crédito ou monetário.

 

Alguns princípios estratégicos básicos

O maior perigo de qualquer estratégia de reforma é o de se cair no pragmatismo político do dia a dia, esquecendo os objetivos primordiais do que se pretende obter, em virtude da pretensa “impossibilidade” política da obtenção a curto prazo.  Esta estratégia é muito perigosa e, no passado, teve efeitos muito prejudiciais sobre os diferentes programas de reforma.  De fato, o pragmatismo levou sistematicamente a que, para conseguir a manutenção do poder político, os políticos tenham chegado a consensos e adotado decisões ad hoc, muitas vezes essencialmente incoerentes e contrárias ao que deveriam ser os objetivos últimos.  Além disso, o fato de a discussão se ter centrado exclusivamente em saber o que era ou não exequível a curto prazo, desprezando ou esquecendo os objetivos iniciais, impediu a realização do necessário estudo aprofundado e dos processos de divulgação dos referidos objetivos aos cidadãos, o que levou a uma perda contínua das possibilidades de criação de uma coligação de interesses em favor da reforma, que foi sendo relegada para segundo plano por outros projetos, considerados mais urgentes a curto prazo.

A estratégia política mais adequada para a reforma que propomos deverá basear-se, portanto, num princípio de natureza dual.  Esta estratégia consiste, por um lado, em estudar constantemente e educar o público sobre os grandes benefícios que poderiam ser obtidos ao conseguir atingir os objetivos finais de médio e longo prazo e, por outro lado, em realizar a curto prazo uma política de aproximação gradual dos objetivos, sempre coerente.  Só esta estratégia permitirá fazer com que seja possível a médio e longo prazo o que hoje parece muito difícil de alcançar.[94]

Voltando agora ao tema da reforma bancária das economias de mercado, nas seções seguintes vamos propor um processo de reforma das atuais estruturas que foi pensado tendo em conta a estratégia descrita e os princípios essenciais analisados teoricamente neste livro.

 

Etapas da reforma do sistema bancário e financeiro

O Quadro IX-1 mostra as cinco etapas básicas de um processo de reforma do sistema bancário e financeiro.  No nosso esquema, as etapas evoluem de forma natural da direita para a esquerda, ou seja, de sistemas mais regulados (ou de planificação central do setor bancário e financeiro) para sistemas menos regulados (no quais o banco central foi abolido e os bancos funcionam num regime de completa liberdade submetida ao Direito — com um coeficiente de caixa de 100%).

A primeira etapa corresponde ao sistema bancário de “planificação central”, ou seja, fortemente controlado e regulado por um banco central e que prevaleceu na maioria dos países ocidentais até agora.  O banco central tem o monopólio da emissão de moeda e determina em cada momento o montante total da base monetária e as taxas de juro de redesconto que se aplicam aos bancos privados.  Estes operam com reserva fracionária expandindo o crédito sem cobertura de poupança real sobre a base de um multiplicador bancário de crescimento da moeda fiduciário controlado pelo banco central.  Assim, o banco central, orquestra a expansão de crédito e aumenta a quantidade de moeda por meio de compras de mercado aberto (que, total ou parcialmente, monetarizam a dívida pública dos governos) e dá instruções aos bancos sobre as maiores ou menores facilidades na concessão de créditos.  Esta etapa se caracteriza pela independência da política monetária dos diferentes países (nacionalismo monetário), num contexto internacional mais ou menos caótico de taxas de câmbio flexíveis que, muitas vezes, são utilizadas como uma poderosa arma competitiva no comércio internacional.  O sistema provoca de forma recorrente uma grande expansão inflacionária e de crédito que distorce a estrutura produtiva, gerando etapas sucessivas de booms nas bolsas de valores e expansões econômicas artificiais que são seguidas de graves crises e recessões econômicas que tendem a se estender a nível mundial.

Na segunda etapa, o processo de reforma avança um pouco na direção certa.  Estabelece-se legalmente a “independência” do banco central em relação ao governo e há tentativas de chegar a uma regra monetária (geralmente intermediária) que mostre qual o objetivo de política monetária seguida pelo banco central.  Esse objetivo costuma ser estabelecido na forma de um crescimento monetário superior ao aumento da produtividade (entre 4 e 6%).  Tal modelo foi o desenvolvido pelo Bundesbank na República Federal da Alemanha e imediatamente continuado pelo Banco Central Europeu, o que teve influência nos projetos posteriores de reforma de outros bancos centrais do resto do mundo.  Trata-se de um sistema que estimula um aumento da cooperação internacional entre os diferentes bancos centrais e que promove, mesmo em grandes áreas geográficas cuja uniformidade econômica e comercial é maior, o estabelecimento de um sistema monetário comum ou, pelo menos, de taxas de câmbio fixas (mas passíveis de serem revistas) que acabe com a anarquia competitiva própria do contexto caótico das taxas de câmbio flexíveis.  Como consequência, a expansão de crédito torna-se mais moderada, embora não seja completamente eliminada, pelo que as crises nas bolsas e as recessões econômicas, apesar de menos graves do que na primeira etapa, continuam a ocorrer.[95]

Na terceira etapa, mantém-se um banco central independente e dá-se um passo radical na reforma com a exigência do estabelecimento de um coeficiente de caixa de 100% para os bancos privados.  Como referimos no início deste capítulo, isto seria levado a efeito, do ponto de vista legal, por meio de alterações legislativas nos respectivos códigos comercial e penal.  Estas alterações legislativas permitiriam a eliminação da maior parte da legislação administrativa atual emanada pelo banco central para controlar as entidades de depósito e de crédito, de forma que a única responsabilidade seria reduzida para assegurar um crescimento da oferta monetária igual ou ligeiramente inferior, como defende Maurice Allais (cerca de 2% ao ano), ao crescimento da produtividade do sistema econômico.

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A importância da terceira e das subsequentes etapas da reforma: a possibilidade de aproveitá-las para amortizar a dívida pública ou as obrigações do sistema de pensões da Previdência Social

A reforma a efetuar no exercício da atividade bancária giraria em torno da ideia de converter os atuais bancos privados em meros gestores de fundos de investimento.  Em particular, depois do anúncio e da explicação da reforma aos cidadãos, deveria ser dada a oportunidade aos titulares dos atuais depósitos à vista (ou seus equivalentes) para, num prazo prudente, poderem manifestar o desejo de optar, ou não, por substitui-los por participações em fundos de investimento (com a advertência de que, se tomassem essa opção, deixariam de ter o valor dos depósitos garantidos e de que a necessidade de liquidez os obrigaria a vender as participações no mercado da bolsa de valores, obtendo o preço que tiverem em cada momento).[96] Cada antigo depositante que optasse por esta solução receberia um número de participações estritamente proporcional ao valor dos depósitos tendo em conta o total de depósitos de cada banco.  Cada banco transferiria os seus ativos para um fundo de investimento que englobaria o total de bens e direitos de cada banco (excluindo, basicamente, a parte correspondente aos seu patrimônio líquido).

Decorrido o prazo de opção para que os atuais titulares dos depósitos manifestem a vontade sobre se preferem continuar a sê-lo ou, pelo contrário, se pretendem trocar os depósitos por participações dos futuros fundos de investimento que venham a ser criados depois da reforma, o banco central, seguindo as indicações de Frank H.  Knight,[97] deverá imprimir em notas de curso legal um valor global idêntico ao somatório de todos os depósitos à vista e equivalentes que se encontrem contabilizados em todos os balanços dos bancos sob o seu controle (excluindo o valor sobre o qual tenha sido exercida a referida opção de troca).  É evidente que a emissão desta notas de curso legal por parte do banco central não será de forma alguma inflacionária, uma vez que servirá, única e exclusivamente, para consolidar o montante total de depósitos à vista (e equivalentes), sendo as referidas notas transferidas como colateral para todos os bancos num valor idêntico aos respectivos depósitos de cada um.  Desta forma, seria possível estabelecer de imediato o princípio do coeficiente de caixa de 100%, devendo proibir que os bancos voltassem a conceder empréstimos com base em depósitos à vista.  De qualquer forma, estes depósitos deveriam manter sempre um equilíbrio perfeito com a manutenção de uma reserva (em forma de notas em poder dos bancos) integralmente igual ao volume de depósitos à vista ou equivalentes.

Realce-se que Hart propõe que a nova moeda criada pelo banco central como colateral dos depósitos seja entregue a título de presente aos bancos.  Ora, se a entrega for efetuada desta forma, é óbvio que no balanço dos bancos será gerada uma enorme mais-valia, precisamente no valor dos depósitos à vista que tenham ficado consolidados a 100%.

No entanto, podemos nos perguntar: a quem deve corresponder a soma dos ativos contábeis dos bancos que superem o seu patrimônio líquido? A operação que acabamos de descrever mostra que, historicamente, os bancos privados, ao exercerem a atividade com um coeficiente de reserva fracionária, foram criando meios de pagamento em forma de créditos criados do nada, pelos quais expropriaram, de forma gradual e diluída, uma parte da riqueza do restante dos cidadãos.  O montante global da riqueza assim expropriada pela atividade bancária (via processo idêntico ao dos efeitos nos impostos que a inflação tem sobre o governo), depois de levada em conta a diferença entre as receitas e as despesas das entidades bancárias em cada exercício, é representado precisamente pelos ativos dos bancos em forma de imóveis, sucursais, equipamentos e, sobretudo, pela soma dos investimentos em empréstimos à indústria e ao comércio, em títulos de valores adquiridos ou não na bolsa e em títulos de dívida pública emitidos pelo governo.[98]

É muito difícil admitir a proposta de Hart segundo a qual a reforma deve se basear em oferecer aos bancos o valor das notas de que necessitem para alcançar um coeficiente de caixa de 100%, uma vez que isso levaria a que a soma dos ativos atuais dos bancos privados, ao não ser necessária em termos contábeis como colateral dos depósitos, passaria, do ponto de vista contábil, necessariamente, a ser considerada propriedade dos acionistas dos bancos.  Esta solução, que também foi proposta por Murray N.  Rothbard,[99] não parece equitativa, uma vez que se há grupo de agentes econômicos que historicamente tirou proveito do privilégio de conceder, de forma expansiva, créditos sem cobertura de poupança real, esse é, precisamente, o constituído pelos acionistas dos bancos (na medida em que tão lucrativa atividade não lhes tenha sido, por sua vez, expropriada pelo governo, obrigando-os a utilizar uma parte da massa monetária que criaram para financiar o próprio estado).

A soma dos ativos da atividade bancária privada pode e deve ser transferida para os ativos de um conjunto de fundos de investimento imobiliário, cuja gestão deverá ser a atividade principal das entidades bancárias privadas depois de efetuada a reforma.  Quem deverão ser os titulares das participações correspondentes a esses fundos de investimento e cujo valor no momento da conversão coincidirá com o valor agregado de todos os ativos do sistema bancário (exceção feita aos que correspondam ao patrimônio líquido dos seus accionistas)? Propomos que estas participações nos fundos de investimento de nova criação que se constituam como ativos dos bancos sejam trocados pelos títulos vigentes da dívida pública que tenham sido emitidos em todos os estados que se encontrem constrangidos por um grande valor de dívida pública.  A ideia é muito simples: os detentores de títulos de dívida pública em vigor verão os títulos trocados pelas correspondentes participações nos fundos de investimento que sejam constituídos com os ativos dos bancos.[100] Desta forma, seria eliminada grande parte (ou até a totalidade) da dívida emitida pelo estado, favorecendo a todos os cidadãos, que, a partir do momento da reforma, deixariam de ter de financiar, por impostos, o pagamento dos respectivos juros da dívida.  Além disso, os atuais titulares da dívida pública não sairiam prejudicados, uma vez que os os títulos de rendimento fixo seriam trocados ou substituídos por participações em fundos de investimento, que, a partir do momento da reforma, teriam um valor de mercado reconhecido e uma rentabilidade determinada.[101] Existem ainda outras possíveis obrigações do estado (por exemplo, no campo das pensões da Previdência Social pública) cuja troca pelas correspondentes participações nos fundos de investimento criados com os ativos dos bancos poderia também ser realizada alternativa ou complementarmente e com efeitos econômicos muito benéficos.

O Quadro IX-2 apresenta de forma esquemática a forma como ficaria dividido o patrimônio do ativo e do passivo contábil do balanço agregado dos bancos, depois de consolidados todos os depósitos com um coeficiente de reserva de 100% e de criados os respectivos fundos de investimento com os ativos.  A partir desse momento, a atividade dos bancos consistiria fundamentalmente na gestão dos fundos de investimento constituídos com os ativos, sendo que podem obter novos empréstimos (diretamente ou em forma de novas participações nos referidos fundos) e investi-los cobrando uma pequena percentagem pela intermediação e/ou gestão desse tipo de negócios.  Da mesma forma, poderiam continuar a desenvolver as demais atividades (legítimas) que exerciam até esse momento (prestação de serviços de pagamento, transferências, caixa, contabilidade, etc.) cobrando os preços de mercado correspondentes pelos serviços.

Em todo o caso, na terceira etapa, manter-se-ia a cooperação internacional (e as taxas de câmbio fixas mas passíveis de revisão) e, depois da consolidação dos depósitos com um coeficiente de reserva de 100%, a expansão de crédito seria completamente eliminada.  Como dissemos, o banco central limitar-se-ia a aumentar a quantidade de moeda numa pequena percentagem, utilizando tal aumento para financiar parte das despesas do estado, como propõe Maurice Allais,[102] e nunca para efetuar compras de mercado aberto ou expandir diretamente o crédito, como foi feito sem qualquer controle na tentativa fracassada de reforma bancária na Argentina do general Perón.  Como consequência das reformas anteriores, as crises bolsistas e as recessões econômicas seriam praticamente eliminadas e, a partir de então, o comportamento no mercado de poupadores e investidores seria muito mais coordenado.

 

Gráfico IX-2

Balanço Agregado dos BANCOS

(convertidos em meros gestores de fundos)

 

 
S ATIVO

S PASSIVO

 

 
Ativos correspondentes ao Patrimônio Líquido próprio (dos acionistas do banco).

=

Patrimônio Líquido existente antes da reforma (propriedade dos acionistas do banco).
 

 
Notas de banco emitidas como colateral do montante agregado de depósitos e entregues aos bancos para que mantenham um coeficiente de caixa de 100%, a partir do momento da reforma.

=

S Depósitos à vista e equivalentes cujos titulares não decidem converter em participações no fundo.  (Corresponde à maior parte do passivo contábil dos bancos antes da reforma.)
 

 
Soma do resto dos Ativos do sistema bancário que são transferidos para fundos de investimento pelos bancos.  (A dívida pública em poder dos bancos é cancelada contabilmente.)

=

S de participações dos fundos de recém-criação que se trocam pelos títulos vigentes de dívida pública e, se possível, são usados para liquidar parcial ou totalmente outras obrigações estatais (pensões públicas, etc.).
 

 
TOTAL ATIVO

=

TOTAL PASSIVO

     
O total M (oferta monetária) é o mesmo antes e depois da consolidação dos depósitos à vista com um coeficiente de caixa de 100% em notas de banco.

 

 

Na nossa opinião, o estabelecimento de um coeficiente de caixa de 100% é uma condição necessária e prévia para a abolição definitiva do banco central, que deveria acontecer na quarta etapa.  De fato, depois do ssitema bancário privado estar submetido ao Direito, seria exigida a completa liberdade bancária, sendo possível eliminar os resquícios de legislação proveniente do banco central e, até, o próprio banco central.  Isto exigiria a substituição da atual moeda fiduciário emitido de forma monopolista pelo banco central por uma moeda privada que, devido à impossibilidade de dar um salto no vazio estabelecendo um padrão monetário artificial que não tenha surgido de forma evolutiva, deveria ser constituído por aquilo que a Humanidade considera historicamente que é a moeda por excelência: o ouro.[103] Murray N.  Rothbard estudou aprofundadamente o processo de troca de todas as notas emitidas pelo banco central americano (Reserva Federal) por ouro, o que seria feito depois do estabelecimento de um coeficiente de caixa de 100% para todos os depósitos bancários.  Com base em dados de 1981, chega à conclusão de que o preço por onça de ouro em dólares que permitiria fazer esta troca seria de 1,696 dólares por onça.  Nos últimos 15 anos, este preço aumentou consideravelmente, pelo que, tendo em conta que, em 1997, o preço do ouro era de cerca de 350 dólares a onça, é evidente que, num país com uma economia tão importante como os Estados Unidos, a privatização completa da moeda fiduciária e sua troca por ouro exigiria aumentar o valor do ouro em cerca de vinte vezes o valor atual a preços de mercado.[104] Este aumento significativo do preço do ouro levaria inicialmente a um substancial aumento da oferta, o que, no entanto, só se verificaria uma vez e não teria graves efeitos perturbadores sobre a estrutura produtiva real.[105]

Depois da estabilização das condições relativas à produção e à distribuição de ouro, poderíamos dizer que nos encontramos na quinta e última etapa do processo de privatização do sistema financeiro e bancário, que se caracterizaria pela liberdade bancária absoluta (submetida ao Direito e, portanto, com um coeficiente de reserva de 100% nos depósitos à vista) e pela existência de um padrão-ouro único mundial com 100% de reservas, num contexto de ligeira e gradual  “deflação” e de crescimento econômico continuado e sustentado.  De qualquer forma, o processo evolutivo de experimentação no campo monetário e financeiro continuaria e não é possível prever se o ouro continuaria a ser indefinidamente a moeda eleita pelo mercado como meio de troca ou se, no futuro, a variação das circunstâncias e condições da sociedade daria origem, de forma espontânea e evolutiva, ao surgimento de um padrão alternativo (bimetálico ou não).

Nesta quinta e última etapa, na qual um único padrão-ouro se alargaria a todo o mundo, seria conveniente chegar a um acordo internacional entre os diferentes países que, com o objetivo de evitar que a transição referida tivesse efeitos reais desnecessários (para lá do inevitável choque inicial de feição inflacionária provocado pela maior afluência de ouro ao mercado decorrente do aumento do valor), exigiria o estabelecimento prévio de uma estrutura de taxas de câmbio fixas entre todas as divisas.  Desta forma é possível avaliar de forma homogênea toda a oferta mundial de meios fiduciários, redistribuindo as quantias de ouro dos bancos centrais de todo o mundo pelos agentes econômicos e os bancos privados dos diferentes países numa proporção correspondente aos depósitos e notas de cada um.

Assim terminaria a última etapa do processo de privatização do setor bancário e financeiro e se reiniciaria o processo espontâneo de experimentação do mercado no âmbito monetário e financeiro, processo esse que foi historicamente interrompido com a nacionalização da moeda e a criação e consolidação dos bancos centrais.

 

A aplicação da teoria da reforma do sistema financeiro e bancário ao processo de unificação monetária europeia e à construção do setor financeiro nas antigas economias do socialismo real

As considerações anteriores sobre a reforma do sistema bancário e financeiro ocidental podem ser úteis para a concepção e a gestão do sistema monetário europeu, que tanto interesse gerou entre os especialistas na matéria.[106] Têm pelo menos a vantagem de indicar sempre qual é a direção adequada que o sistema monetário europeu deve ter e os perigos que é preciso evitar.  Assim, parece evidente que seria bom evitar um sistema de moedas nacionais monopolistas competindo entre si num contexto caótico de taxas de câmbio flexíveis, bem como criar e manter um banco central europeu que impeça a concorrência entre moedas num amplo espaço econômico, não afronte os objetivos da reforma bancária (coeficiente de caixa de 100%), não assegure uma estabilidade monetária pelo menos tão grande como a que teria a moeda nacional mais estável em cada momento histórico e seja, em suma, um obstáculo definitivo para efetuar posteriores reformas que consistam na eliminação do órgão central de planificação financeira (banco central).  Por isso, podemos, talvez, argumentar que o modelo mais praticável e adequado a curto e médio prazo seria o de introduzir em toda a Europa uma completa liberdade de escolha de moedas públicas e privadas de dentro e de fora da União Europeia.  As moedas nacionais, que, por razões de tradição, continuassem a ser utilizadas seriam colocadas num sistema de taxas de câmbio fixas[107] que disciplinaria o comportamento da política monetária de cada país em função da que tivesse uma política mais solvente e estável em cada momento.  Desta forma, ao menos ficaria aberta a porta para que, no futuro, qualquer Estado-nação da União Europeia tivesse a possibilidade de avançar nas três linhas de reforma monetária e bancária fundamentais (liberdade de escolha de moeda, liberdade bancária e coeficiente de caixa de 100% para os depósitos à vista).  Assim, como afirma Maurice Allais, os estados forçariam os demais membros da União e seguir a boa liderança monetária.

Como se optou pelo caminho de estabelecer um Banco Central Europeu, devemos insistir que as críticas ao mesmo e à moeda única europeia se baseiem na falta de aproximação ao ideal do padrão-ouro puro com um coeficiente de reserva de 100%, e não, como se ouve de muitos teóricos liberais (principalmente da Escola de Chicago), no fato de impossibilitar a sobrevivência do velho nacionalismo monetário com taxas de câmbio flexíveis.  Um padrão monetário único para toda a Europa e tão rígido quanto possível, além de representar uma saudável aproximação ao padrão-ouro puro, pode completar o quadro institucional do sistema de comércio livre europeu ao impedir as manipulações monetárias de cada país membro e ao obrigar os países com estruturas mais rígidas (por exemplo, a Espanha) a efetuar as reformas flexibilizadoras que sejam necessárias para poder competir num ambiente em que o recurso a uma política monetária nacional inflacionista para acomodar as próprias inflexibilidades estruturais já não seja possível.

O mesmo poderia ser dito em relação ao necessário estabelecimento de um sistema bancário e financeiro para as antigas economias de socialismo real da Europa Oriental.  Embora seja necessário reconhecer que, depois de décadas num sistema de planificação central, a situação inicial destas economias é muito desfavorável.  A verdade é que, a atual situação de transição para uma economia de mercado constitui uma oportunidade única extremamente importante para evitar os graves erros que até agora cometemos no Ocidente neste campo e para procurar avançar imediatamente para a terceira ou quarta etapa do nosso projeto de reforma.  No caso da extinta União Soviética, cujas abundantes reservas de ouro permitiriam o estabelecimento de um padrão-ouro puro, isso seria muito benéfico para esse país, que saltaria direto para a quarta etapa de forma perfeitamente possível.  De qualquer forma, se estes países não aprenderem com o Ocidente e pretenderem, copiando toscamente o Ocidente, estabelecer um sistema bancário de reserva fracionária dirigido por um banco central, os problemas financeiros de cada momento levarão à adoção de políticas descontroladas de expansão de crédito, com um grave prejuízo para a estrutura produtiva.  Favorecer-se-á, assim, a especulação desenfreada, dando ensejo a um clima de descontentamento social que poderá até pôr em perigo a transição global destas sociedades para uma economia de mercado plena.[108]

 

6

CONCLUSÃO: O SISTEMA BANCÁRIO NUMA SOCIEDADE LIVRE

 

A teoria da moeda, do crédito bancário e dos mercados financeiros constitui o desafio teórico mais importante para a Ciência Econômica no limiar do século XXI.  De fato, não é demais afirmar que depois de resolvido o “gap teórico” representado pela análise do socialismo, o campo mais desconhecido e ao mesmo tempo mais importante foi o monetário.  Como tentamos mostrar pormenorizadamente ao longo deste livro, nesta área continuam a imperar os erros metodológicos, a confusão teórica e, como consequência, a coação sistemática de origem governamental.  As relações sociais que envolvem a moeda são, de longe, as mais abstratas e difíceis de entender, pelo que o conhecimento social gerado pelas mesmas é o mais vasto, complexo e inapreensível.  Tudo isto fez com que a coação sistemática exercida pelos governos e bancos centrais neste campo seja, de longe, a mais danosa e prejudicial.  Em todo o caso, o atraso intelectual da teoria monetária e bancária não deixou de ter efeitos graves sobre a evolução da economia mundial, como prova o fato de, já em pleno século XXI, as economias de mercado continuarem a ser afetadas por graves ciclos recorrentes de auge e recessão.

No entanto, a reflexão econômica sobre os problemas bancários é muito antiga e pode remontar até mesmo, como vimos, aos teóricos da Escola de Salamanca.  Mais próxima de nós, encontra-se a discussão entre a “Escola Bancária” e a “Escola Monetária”, por meio da qual foram definidos os alicerces do desenvolvimento posterior da doutrina.  Por outro lado, esforçamo-nos por demonstrar que não existe coincidência total entre a Escola defensora da liberdade bancária e a Escola Bancária, por um lado, e a Escola defensora do banco central e a Escola Monetária, por outro.  De fato, embora muitos dos defensores da liberdade bancária tenham sustentado a sua posição nos falazes e defeituosos argumentos inflacionistas da Escola Bancária, e a maioria dos teóricos da Escola Monetária tenham pretendido atingir os objetivos de solvência financeira e estabilidade econômica por meio da criação de um banco central que pusesse fim aos abusos, houve, desde o início, distintos teóricos da Escola Monetária que consideraram impossível e utópico pensar que o banco central não iria agravar ainda mais os problemas que surgissem.  Estes estudiosos estavam conscientes de que a melhor forma de limitar a criação de meios fiduciários e de obter a estabilidade monetária era por intermédio de um sistema bancário livre submetido, tal como os demais agentes econômicos, aos princípios tradicionais do direito civil e comercial (ou seja, um coeficiente de caixa de 100% para os depósitos à vista).  Paradoxalmente, quase todos os defensores da Escola Bancária acabaram por aceitar de bom grado o estabelecimento de um banco central que, como prestamista de última instância, asseguraria e perpetuaria os privilégios expansionistas de uma atividade bancária privada que, cada vez com mais afinco, pretendia dedicar-se ao lucrativo “negócio” de criar meios fiduciários pela expansão de crédito, sem ter de se preocupar muito com problemas de liquidez, graças à cobertura dada em todos os momentos por um banco central, prestamista de última instância.

Além disso, os teóricos da Escola Monetária (Currency School), embora corretos em quase todas as contribuições teóricas, foram incapazes de perceber que os defeitos que atribuíram corretamente à liberdade de emissão de meios fiduciários em forma de notas por parte dos bancos estavam igualmente presentes, embora de forma oculta e sub-reptícia e, logo, mais perigosa, no “negócio” de concessão expansiva de créditos com base em depósitos à vista dos bancos.  Estes teóricos também erraram ao proporem, como política mais adequada, o estabelecimento de uma legislação que acabava apenas com a liberdade de emissão de notas sem lastro em ouro metálico, bem como a constituição de um banco central para defender os princípios monetários mais solventes.  Só Ludwig von Mises, seguindo a tradição de Modeste, Cernuschi, Hübner e Michaelis, foi capaz de notar que a prescrição dos teóricos da Escola Monetária a favor do banco central era errônea e que a melhor e única maneira de atingir os saudáveis princípios monetários da Escola era por meio de um sistema de bancos livres submetidos, sem privilégios, ao direito privado (com um coeficiente de caixa de 100%).

O fracasso da maioria dos teóricos da Escola Monetária foi fatal.  Estes teóricos foram os responsáveis pelo fato da Lei de Peel de 1844, apesar das boas intenções, ter esquecido de eliminar a criação de crédito fiduciário, como fez em relação às notas de banco.  Alem disso, acabaram por dar cobertura ao estabelecimento de um sistema de bancos centrais que, mais tarde, e sobretudo devido à influência negativa dos teóricos da Escola Bancária, acabou por ser utilizado para justificar e estimular políticas de descontrole monetário e excesso financeiro muito piores do que as que originalmente se procurava resolver.

Por isso, não podemos considerar que o banco central, entendido como órgão de planificação central no campo bancário e monetário, é um produto natural do desenvolvimento dos processos de mercado.  Pelo contrário, foi imposto de forma coerciva a partir de fora como resultado da tentativa dos governos para tirarem proveito das muito lucrativas possibilidades proporcionadas pelos bancos com reserva fracionária.  Na realidade, os governos se desviaram da função essencial ao deixarem de definir e defender adequadamente o direito de propriedade dos depositantes dos bancos e ao tirarem proveito, em benefício próprio, das possibilidades praticamente ilimitadas de criação de moeda e de crédito dadas pelo estabelecimento de um coeficiente de reserva fracionário (para as notas e os depósitos).  Assim, em grande medida, os governos encontraram na violação dos princípios do direito de propriedade no que respeita aos depósitos à vista essa tão ansiada pedra filosofal que lhes deu a possibilidade de se financiarem ilimitadamente, sem terem de recorrer aos impostos.

A implantação de um verdadeiro sistema bancário livre deverá ser acompanhado pelo restabelecimento do coeficiente de reserva de 100% das quantidades recebidas em forma de depósitos à vista, cuja violação inicial é a origem de todos os problemas bancários e monetários que deram origem ao sistema financeiro atual, fortemente controlado e regulado pelos estados.

Trata-se, em última instância, de aplicar ao campo bancário e monetário a importante ideia seminal de Hayek segundo a qual, sempre que uma regra tradicional de conduta é violada, seja por coerção institucional do governo ou por meio da concessão de privilégios especiais a certas pessoas ou entidades, mais cedo ou mais tarde, acabarão sempre por surgir consequências muito prejudiciais e não desejadas em grave prejuízo do processo espontâneo de cooperação social.

Como vimos nos três primeiros capítulos deste livro, a norma tradicional de conduta violada no caso do negócio bancário é o princípio do Direito segundo o qual, no contrato de depósito de bens fungíveis (por exemplo, dinheiro), a tradicional obrigação de custódia, elemento essencial no depósito não fungível, se materializa na exigência de que se mantenha, em todos os momentos, uma reserva de 100% do bem fungível (dinheiro) recebido em depósito, de forma que qualquer uso dessa quantia, particularmente a concessão de créditos com base no mesmo, sempre encerra uma violação desse princípio e, logo, um ato ilegítimo de apropriação indevida.

Ao longo da história, os banqueiros não demoraram a sentir-se tentados a violar a referida norma tradicional de conduta, usando o dinheiro dos depositantes em benefício próprio.  Num primeiro momento, isto aconteceu de forma envergonhada e secreta, uma vez que os banqueiros ainda tinham a consciência de que se tratava de um procedimento errado.  Só mais tarde, numa altura em que obtiveram do governo oprivilégio de utilizar o dinheiro dos depositantes, quase sempre em forma de créditos, que, inicialmente, foram muitas vezes concedidos ao próprio governo, conseguiram que a violação do princípio tradicional do Direito fosse efetuada de forma aberta e legal.  Inicia-se desta forma a já tradicional relação de cumplicidade e a coligação de interesses entre governos e bancos, o que explica as relações de “compreensão” e de “cooperação” existentes entre os dois tipos de instituições que, hoje em dia, podem ser observadas, com pequenas diferenças, em todos os países ocidentais e em quase todas as circunstâncias.  Na verdade, os banqueiros depressa notaram que a violação do princípio tradicional do Direito mencionado levava a uma atividade financeira que lhes proporcionava grandes lucros, mas que exigia a existência de um prestamista de última instância, o banco central, que lhes proporcionasse a necessária liquidez em momentos de apuro, momentos esses que a experiência demonstrava acabavam sempre por aparecer, mais cedo ou mais tarde, de forma recorrente.  Além disso, o banco central seria também responsável por orquestrar de forma conjunta e coordenada o crescimento da expansão de crédito, impondo a todos os cidadãos o curso legal ou forçoso da moeda monopolista por ele emitida.

Não obstante, as negativas consequências sociais deste privilégio concedido aos banqueiros (mas não a qualquer outro indivíduo ou entidade) não foram, no entanto, inteiramente compreendidas até aos desenvolvimento, por parte de Mises e Hayek, da chamada teoria austríaca do ciclo econômico, que se sustenta na teoria monetária e do capital e que analisamos nos capítulos V a VII deste livro.  Em suma, o que os teóricos da Escola Austríaca demonstraram foi que empenhar-se em perseguir o objetivo teoricamente impossível (do ponto de vista jurídico-contratual e técnico-econômico) de oferecer um contrato constituído de elementos essencialmente incompatíveis entre si, que tenta de combinar simultaneamente elementos próprios dos fundos de investimento (e, em especial, o que consiste na possibilidade de obter juros dos depósitos realizados) com elementos do contrato tradicional de depósito (que, por definição permitirá a retirada do seu valor nominal em qualquer momento), mais cedo ou mais tarde, mas sempre de forma inevitável, levará a inevitáveis reajustamentos espontâneos, primeiro em forma de expansões descontroladas da oferta monetária, inflação, má distribuição generalizada dos recursos produtivos a nível microeconômico e, por fim, recessão, liquidação dos erros induzidos pela expansão de crédito na estrutura produtiva e desemprego massivo.

É necessário que se compreenda que o privilégio concedido aos bancos para poder exercer a atividade com um coeficiente de reserva fracionário representa um evidente atentado à correta definição e defesa dos direitos de propriedade dos depositantes por parte das autoridades governamentais, definição e defesa essas que são indispensáveis para o correto funcionamento de toda a economia de mercado.  Como acontece sempre que os direitos de propriedade não são definidos e defendidos adequadamente, verifica-se um efeito de “tragédia dos bens comuns”, em virtude do qual os bancos estão especialmente inclinados para tentar expandir, antes e em maior grau do que os concorrentes, a base de crédito.  Por isso, o sistema bancário baseado em reserva fracionária tende sempre à expansão mais ou menos descontrolada, mesmo nos casos em que é “vigiado” por um banco central que, ao contrário do que normalmente ocorreu até agora, se preocupe seriamente (e não apenas retoricamente) em estabelecer limites.

Em síntese, o objetivo essencial da política monetária deveria consistir em submeter os bancos aos princípios tradicionais do direito civil e comercial, de acordo com os quais cada indivíduo e cada empresa deverá cumprir as próprias obrigações (coeficiente de caixa de 100%) respeitando os termos acordados em cada contrato.

Por outro lado, temos de ser críticos em relação à maior parte da literatura que, a partir da publicação do livro de Hayek, intitulado Denationalization of Money, no final da década de 1970, defendeu o modelo de bancos livres com reserva fracionária.  A conclusão mais importante que podemos retirar de toda essa literatura é que os autores não percebem que cometem frequentemente os velhos erros da Escola Bancária.  É o que acontece com os trabalhos de White, Selgin e Dowd.  Nada temos a objetar em relação à insistência sobre as vantagens de autocontrole das expansões de crédito que se obtêm com um sistema de compensação interbancária, e, neste sentido, o sistema proposto por eles ofereceria melhores resultados do que o atual sistema de bancos centrais, tal como salientou inicialmente Ludwig von Mises.  No entanto, os bancos livres com reserva fracionária não deixam de ser uma segunda escolha, que não seria capaz de impedir uma conduta coligada dos diferentes bancos como resultado de uma onda de otimismo excessivo na concessão de créditos.  De qualquer forma, esses autores não percebem que, enquanto subsistir o privilégio de reserva fracionária, será, na prática, impossível prescindir do banco central.  Em suma, como temos vindo a argumentar neste livro, a única forma de acabar com o órgão de planificação central no campo bancário e de crédito (banco central) é eliminando o privilégio de reserva fracionária do qual, atualmente, os banqueiros tiram proveito.  Trata-se de um condição necessária, mas não suficiente, uma vez que exige ainda a abolição completa do sistema bancário central e a privatização da moeda fiduciária queo sistema criou até agora.

Caso se pretenda defender um sistema financeiro e monetário verdadeiramente estável, que proteja, na medida do possível, nossas economias, será necessário: (1) assegurar a completa liberdade de escolha da moeda, a partir de um padrão metálico (ouro) que substituiria todos os meios fiduciários até agora emitidos; (2) estabelecer um sistema de liberdade bancária; e (3) o mais importante, fazer com que todos os agentes envolvidos no sistema de liberdade bancária a partir desse momento respeitem e cumpram, em geral, as normas e os princípios tradicionais do Direito e, em particular, o princípio segundo o qual ninguém, nem sequer os banqueiros, pode gozar do privilégio de emprestar aquilo que recebeu em depósito à vista (ou seja, estabelecer um sistema bancário livre com um coeficiente de reserva de 100%).

Enquanto os princípios teóricos e jurídicos essenciais associados à moeda, ao crédito bancário e aos ciclos econômicos não forem completamente entendidos pelos especialistas na matéria e, em geral, pelos cidadãos, receamos que o mundo continue a sofrer graves recessões econômicas, que irão se repetir enquanto os bancos centrais mantiverem o poder de emitir papel moeda de curso legal e enquanto os bancos privados gozarem do privilégio concedido pelos governos para operar com uma reserva fracionária.  E, concluímos o presente livro como o começamos, afirmando que, para nós, depois da histórica queda teórica e real do socialismo, o principal desafio que os economistas profissionais e os amantes da liberdade enfrentam neste século é o de lutar com todas as forças intelectuais contra a instituição do sistema bancário central e contra a manutenção do privilégio que, hoje, gozam aqueles que exercem a atividade bancária privada.

 

 

 

 

 



[1] Ludwig von Mises, Theorie des Geldes und der Umlaufsmittel, Duncker & Humblot, Munique e Leipzig (1.ª edição, 1912), 2.ª edição, 1924, pp. 418-419. A citação literal de Mises é a seguinte: “Es leuchtet ein, dass menschlicher Einfluss aus dem Umlaufsmittelwesen nicht anders ausgeschaltet werden kann als durch die Unterdrückung der weiteren Ausgabe von Umlaufsmitteln. Der Grundgedanke der Peelschen Akte müsste wieder aufgenommen und durch Miteinbeziehung der in Form von Kassenführungsguthaben ausgegebenen Umlaufsmittel in das gesetzliche Verbot der Neuausgabe in vollkommenerer Weise durchgeführt werden als dies seinerzeit in England geschah… Es wäre ein Irrtum, wollte man annehmen, dass der Bestand der modernen Organisation des Tauschverkehres für die Zukunft gesichert sei. Sie trägt in ihrem Innern bereits den Keim der Zerstörung. Die Entwicklung des Umlaufsmittels muss notwendigerweise zu ihrem Zusammenbruch führen.” A passagem que transcrevemos no texto foi traduzida a partir da mais recente edição do livro (Unión Editorial, 1997), pp. 377- 378 e 379; os grifos foram acrescentados e não se encontram no texto original. Estas reflexões estão incluídas nas pp. 446-448 da melhor e última edição inglesa do livro de Mises, The Theory of Money and Credit, Liberty Classics, Indianapolis, 1981 (tradução de H.E. Batson originalmente publicada em 1934 por Jonathan Cape em Londres e em 1953 pela Yale University Press nos Estados Unidos).

[2] Ludwig von Mises, Geldwertstabilisierung und Konjunkturpolitik, Verlag von Gustav Fischer, Jena 1928, p. 81. Este livro foi traduzido do inglês por Bettina Bien Greaves e publicado em 1978 no volume de obras sobre teoria monetária de Ludwig von Mises intitulado On the Manipulation of Money and Credit, Percy L. Greaves (ed.), Freemarket Books, Nova York 1978, pp. 57-173. A passagem do texto principal encontra-se nas pp. 167-168, e poderia ser traduzida da seguinte forma: “O requisito mais importante de qualquer política cíclica, independentemente do objetivo, é renunciar a qualquer intenção de, por meio da política bancária, reduzir a taxa de juro a níveis mais baixos do que os usados no mercado. Isto significa voltar à teoria da Escola Monetária, que procurava eliminar toda a expansão futura do crédito e, logo, toda a criação adicional de meios fiduciários. Não quer dizer, contudo, voltar ao antigo programa da Escola Monetária cuja aplicação se limitou às notas de banco. Trata-se, isso sim, de introduzir um novo programa baseado na velha teoria da Escola Monetária, mas ampliado à luz do estado atual do conhecimento teórico para incluir os meios fiduciários que sejam emitidos em forma de depósitos bancários. Os bancos deveriam ser obrigados a manter, em todo o momento, uma cobertura em metal igual à soma total das notas emitidas e depósitos bancários abertos. Desta forma, a política cíclica dirigir-se-ia da forma mais eficaz possível à eliminação das crises econômicas.” A exceção entre travessões incluída na passagem em inglês e não traduzida aqui por razões de clareza indica que Mises, na senda da Lei de Peel, só exige o coeficiente de 100% em relação à nova emissão de meios fiduciários (depósitos e notas de banco), deixando sem cobertura metálica “o estoque dos mesmos que já tenha sido emitido no momento em que se inicie a reforma”. A proposta de Mises seria um grande passo em frente e, na prática, poderia ser levada a cabo com facilidade e sem dar origem inicialmente a mutações significativas no valor de mercado do ouro. Não é, no entanto, perfeita, uma vez que deixaria os bancos sem cobertura de caixa em relação ao volume de notas e de depósitos emitidos no passado e, logo, muito vulneráveis a crises bancárias de confiança que caso viessem a ocorrer. Por isso, neste capítulo, propomos um programa mais radical que consiste em estabelecer o coeficiente de caixa de 100% para todos os meios fiduciários (já emitidos ou por emitir). A proposta de Mises foi recentemente desenvolvida ao pormenor por Bettina Bien Greaves, “How to Return to the Gold Standard”, The Freeman: Ideas on Liberty, novembro de 1995, pp. 703-707.

[3] Este memorando tinha sido esquecido e foi redescoberto nos arquivos da Liga das Nações quando Richard M. Ebeling preparava os materiais para o livro Money, Method and the Market Process: Essays by Ludwig von Mises, Richard M. Ebeling (ed.), Kluwer Academic Publishers, Dordtrecht, Holanda, 1990, pp. 78-95. A passagem do texto aparece na página 90-91 e pode ser traduzida da seguinte forma: “Uma das características do gold standard é não permitir que os bancos aumentem a quantidade de notas, sem o respectivo lastro em ouro, para um nível superior ao existente em circulação quando o sistema foi introduzido. A Lei de Peel de 1844 e as várias leis bancárias que, em maior ou menor medida, nela se baseiam representam tentativas de criar um padrão-ouro puro desse tipo. A tentativa foi incompleta porque as suas restrições à circulação incluíam apenas as notas de banco, deixando de fora os saldos das contas bancárias contra os quais se podem levantar os cheques. Os fundadores da Escola Bancária não reconheceram a similaridade essencial entre os pagamentos efetuados mediante cheque e os efetuados com notas de banco. Como resultado deste erro, os responsáveis da referida legislação não foram capazes de atingir os objetivos […] A raiz do mal está não nas restrições, mas na expansão que as precedeu. A política dos bancos não deve ser criticada por ter acabado por parar a expansão de crédito, mas por ter permitido que essa expansão tivesse começado” (grifos nossos).

[4] Vejamos como explica Mises a sua posição de maneira literal: “Wenn heute, dem Grundgedanken der Currency-Lehre entsprechend, auch für das Kassenführungsguthaben volle-hundertprozentige-Deckung verlangt wird, damit die Erweiterung der Umlaufsmittelausgabe auch in dieser Gestalt unterbunden werde, dann ist das folgerichtiger Ausbau der Ideen, die jenem alten englischen Gesetz zugrundelagen … Auch das schärfste Verbot der Erweiterung der Umlaufsmittelausgabe versagt gegenüber einer Notstandsgesetzgebung.” Ludwig von Mises, Nationalökonomie: Theorie des Handelns und Wirtschaftens, 1.ª edição publicada por Editions Union, Genebra 1940; para esta citação, utilizei a 2.ª edição de Philosophia Verlag, Munique 1980, p. 403.

[5] Neste sentido, é especialmente ilustrativa a nota de rodapé que Mises inclui na p. 402 deNationalökonomie e que diz: “Für die Katallaktik ist der Begriff ‘normale Kreditausweitung’ sinnlos. Jede Kreditausweitung wirkt auf die Gestatlung der Preise, Löhne und Zinssätze und löst den Prozess aus, den zu beschreiben die Aufgabe der Konjunkturtheorie ist.” Esta nota foi traduzida posteriormente para inglês na p. 442 da 3.ª edição revista de Human Action, ob. cit., da seguinte forma: “The notion of ‘normal’ credit expansion is absurd. Issuance of additional fiduciary media, no matter what its quantity may be, always sets in motion those changes in the price structure the description of which is the task of the theory of the trade cycle. Of course, if the additional amount issued is not large, neither are the inevitable effects of the expansion.” Esta afirmação de Mises gerou grande confusão entre os membros da Escola Austríaca defensores do sistema de liberdade bancária com reserva fracionária (White, Selgin, Horwitz, etc.), uma vez que demonstra que o sistema que defendem, de acordo com o próprio Mises, não deixaria de estar submetido às fases de expansão e recessão próprias do ciclo econômico (embora devamos reconhecer que com menor gravidade do que a experimentada nos sistemas bancários atuais cobertos por um banco central).

[6] Ludwig von Mises, Human Action: A Treatise on Economics, 3.ª edição, ob. cit., p. 443. A tradução do texto principal é a seguinte: A reforma de Fischer “não viria a acabar com os inconvenientes inerentes a todo o tipo de interferência governamental nos bancos. O que é preciso para prevenir qualquer expansão ulterior do crédito é submeter o negócio bancário aos princípios tradicionais do direito comercial e civil, obrigando a que cada empresa e indivíduo cumpra as obrigações de acordo com os termos estritos estabelecidos em cada contrato.” Como se pode ver, esta afirmação de Mises tem o mérito de mostrar, pela primeira vez, que a origem dos problemas apresentados pelo sistema bancário tem relação com o fato dos participantes não estarem submetidos aos princípios tradicionais do Direito. Esta é a ideia essencial que viria a ser desenvolvida por Murray N. Rothbard mais tarde e que constitui o núcleo da tese essencial que defendemos neste livro.

[7] Ludwig von Mises, The Theory of Money and Credit, Liberty Classics, Indianápolis 1981, pp. 481 e 491. A tradução desta passagem poderia ser a seguinte: “A nenhum banco deve ser permitido que expanda o montante total dos depósitos ou o saldo dos depósitos de qualquer cliente, seja ele cidadão particular ou o Tesouro dos Estados Unidos, a menos que receba depósitos em moeda de curso legal ou em cheques que possam ser pagos por outro banco nacional sujeito às mesmas limitações. Isto significa uma reserva rígida de 100 % para todos os depósitos futuros, ou seja, para todos os depósitos que não existissem já no primeiro dia da reforma” (grifos nossos).

[8] Apesar das claríssimas afirmações de Mises a favor do coeficiente de caixa de 100%, sua defesa da liberdade bancária como procedimento indireto para a aproximação ao ideal da reserva de 100%, e, logo, de um sistema bancário submetido aos princípios tradicionais do Direito, levou a que alguns teóricos austríacos da Escola Neobancária moderna tenham interpretado de forma conveniente a posição de Mises como se fosse defensor, em primeiro lugar, da liberdade bancária com reserva fracionária e, em segundo, do exercício da atividade bancária com um coeficiente de reserva de 100%. Entre os autores que defendem esta posição, destacam-se Lawrence H. White, “Mises on Free Banking and Fractional Reserves”, cap. 35 de A Man of Principle: Essays in Honor of Hans F. Sennholz, Grove City College Press, Grove City, Pensilvânia, 1992, pp. 517-533. Num interessante artigo, Joseph T. Salerno, mostrou recentemente que a posição de White carece de fundamento “because he overlooks important passages in the very works of Mises that he cites, and because he ignores significant developments in Mises’ theory of money that occurred between the publication of the first German edition of The Theory of Money and Credit in 1912 and the publication ofNationalökonomie in 1940.” Ver: Joseph T. Salerno, “Mises and Hayek Dehomogenized”, The Review of Austrian Economics, vol. 6, n.º 2, 1993, pp. 137-146.

[9] F.A. Hayek, “The Monetary Policy of the United States after the Recovery from the 1920 Crisis”, capítulo I de Money, Capital and Fluctuations: Early Essays, Roy McCloughry (ed.), The University of Chicago Press, Chicago 1984, p. 29. Este artigo é a tradução para inglês da parte teórica do artigo originalmente publicado em alemão com o título “Die Währungspolitik der Vereinigten Staaten seit der Überwindung der Krise von 1920”, Zeitschrift für Volkswirtschaft und Socialpolitik, n.º 5, ano de 1925, vols. I-III, pp. 25-63 e vols. IV-VI, pp. 254-317. A tradução para português é a seguinte: “Como já destacamos, os antigos teóricos ingleses da Escola Monetária tinham um conhecimento mais sólido do que a maioria dos economistas que lhes seguiram. A Escola Monetária procurou também prevenir as flutuações econômicas regulando a emissão de notas. Mas uma vez que só tiveram em conta os efeitos da emissão de notas e se esqueceram dos efeitos da emissão de moeda constituído pelos depósitos bancários, foi sempre possível contornar as restrições estabelecidas à emissão de notas por meio da expansão dos depósitos bancários. Desta forma, nem a Lei de Peel nem o estatuto do banco central estabelecido de acordo com a mesma foram capazes de alcançar os objetivos. O problema da prevenção das crises teria recebido uma solução radical se o conceito básico da Lei de Peel, que consiste num coeficiente de reservas de ouro de 100%, tivesse sido aplicado coerentemente não só para notas, mas também para os depósitos bancários” (grifos nossos).

[10] F.A. Hayek, Monetary Nationalism and International Stability, Longmans, Londres 1937, reedição de Augustus M. Kelley, Nova York , 1971, pp. 81-84, e especialmente a p. 82. Hayek elogia sobretudo a proposta de 100% ,“because it goes to the heart of the problem” (p. 81). O único inconveniente que Hayek vê nesta proposta, aparte de ser “somewhat impracticable”, é que parece duvidoso que os depósitos bancários sem cobertura não aparecessem com outra forma jurídica, uma vez que “banking is a pervasive phenomenon” (p. 82). Mais adiante responderemos a esta objeção (grifos nossos).

[11] F. A. Hayek, Denationalization of Money, The Institute of Economic Affairs, Londres 1976, pp. 94-95, e também a p. 55. Estas passagens encontram-se na p. 119 da 2.ª edição revista e ampliada publicada em 1978. A tradução poderia ser a seguinte: “teria de se contentar, obviamente, com operar noutras moedas. Os banqueiros teriam de atuar como ‘bancos a 100%’ e manter reservas à vista equivalentes a todas as obrigações a pagar […] Uma instituição que demonstrou ser tão prejudicial como o sistema bancário de reserva fracionária sem responsabilização individual dos bancos em relação à moeda (por exemplo, depósitos à vista) que criavam não pode se queixar da perda do apoio estatal que tornou possível sua existência”.

[12] In Search of a Monetary Constitution, Leland B. Yeager (ed.), Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 1962. Além disso, Hayek defende o estabelecimento de uma distinção radical entre a pura atividade bancária de depósito (exercida com um coeficiente de caixa de 100%) e os bancos de investimento, que se limitariam a emprestar fundos que os clientes lhe tivesse emprestado anteriormente, concluindo: “I expect that it will soon be discovered that the business of creating Money does not go along well with the control of large investment portfolios or even control of large parts of industry” (p. 119-120 da segunda edição de 1978). Pode encontrar-se uma crítica incisiva e acertada às propostas de Hayek sobre a desnacionalização da moeda e o estabelecimento de uma moeda baseada num índice de mercadorias (que têm apenas uma relação indireta com o objeto de estudo deste livro) em Murray N. Rothbard, “The Case for a Genuine Gold Dollar”, publicado em The Gold Standard, Llewellyn H. Rockwell (ed.), Lexington Books, Lexington, Massachusetts, 1985, pp. 2-7.

[13] Murray N. Rothbard, “The Case for a 100 Percent Gold Dollar”, The Ludwig von Mises Institute, Auburn University, Alabama, 1991, pp. 44-46. A tradução poderia ser a seguinte: “O banqueiro que exerce a sua atividade com um coeficiente de reserva fracionário é comparável à pessoa que tira dinheiro do caixa da empresa para o investir em atividades próprias. Tal como o banqueiro, vê a oportunidade de obter um benefício utilizando os ativos de outra pessoa. O delinquente sabe, digamos, que o auditor virá no dia 1 de junho para inspeccionar as contas; pretende desde logo repor o “empréstimo” antes dessa data. Suponhamos que o faça. Será verdade que ninguém perdeu e todos ganharam? Não concordo com tal afirmação. Foi cometido um roubo, e essa apropriação indébita deveria ser perseguida, e não perdoada. Os partidários da banca assumem que algo está errado apenas se alguém que decida reclamar a sua propriedade descubrir que ela não está disponível. No entanto, eu defendo que o dano — o roubo — ocorre no momento em que o delinquente se apropria do dinheiro, e não posteriormente quando o ‘empréstimo’ é descoberto.”

[14] Em setembro de 1993, apresentei, pela primeira vez, a Murray N. Rothbard o resultado das minhas investigações sobre o fundamento jurídico-romano do depósito bancário e a posição da Escola de Salamanca a esse respeito. Rothbard entusiasmou-se. Mais tarde, encorajou-me a publicar um breve resumo de minhas conclusões num artigo para The Review of Austrian Economics, que, infelizmente, não pôde ver publicado devido ao seu inesperado falecimento a 7 de janeiro de 1995. Outras obras importantes de Rothbard onde o tema é tratado são What has Government done to our Money?, Rampart College, Santa Ana, Califórnia, 1974 (reeditado em 1990 pelo Ludwig von Mises Institute da Universidade de Auburn); The Mystery of Banking, ob. cit.; Man, Economy and State, ob. cit., pp. 703-709; e os artigos “The Myth of Free Banking in Scotland”, The Review of Austrian Economics, n.º 2, ano de 1988, pp. 229-245, e “Aurophobia: or Free Banking on What Standard?”, The Review of Austrian Economics, n.º 6, vol. I, 1992, pp. 99-108. Além de Rothbard, nos Estados Unidos, os que atualmente defendem o coeficiente de caixa de 100% para a atividade bancária, dentre outros, Hans-Hermann Hoppe, The Economics and Ethics of Private Property, Kluwer Academic Publishers, Dortrecht, Holanda, 1993, pp. 61-93; e “How is Fiat Money Possible? — or The Devolution of Money and Credit”, The Review of Austrian Economics, vol. VII, n.º 2, 1994, pp. 49-74; Joseph T. Salerno, “Gold Standards: True and False”, The Cato Journal: An Interdisciplinary Journal of Public Policy Analysis, vol. III, n.º 1, primavera de 1983, pp. 239-267; e também “Mises and Hayek Dehomogenized”, The Review of Austrian Economics, vol. VI, n.º 2, 1993, pp. 137-146; Walter Block, “Fractional Reserve Banking: An Interdisciplinary Perspective”, cap. III de Man, Economy and Liberty: Essays in Honor of Murray N. Rothbard, The Ludwig von Mises Institute, Auburn University, Alabama, 1988, pp. 24-32; e Mark Skousen, The Economics of a Pure Gold Standard, Praxeology Press, Auburn University, Alabama, 1977 e 1988. O último trabalho é uma tese de doutoramento sobre o coeficiente de caixa de 100% para o sistema bancário, sendo especialmente meritória a exaustiva revisão que faz de toda a bibliografia existente até à data sobre a matéria. Estes teóricos, tal como Rothbard, pertencem à antiga tradição norte-americana, que se remonta a Jefferson e Jackson, de defesa de uma atividade bancária rigorosamente submetida aos princípios do Direito, com coeficiente de caixa de 100%. No século XIX, o teórico mais importante deste movimento foi Amasa Walker, The Science of Wealth, Little Brown, Boston, 1867, 3.ª edição, pp. 138-168 e 184-232.

[15] Maurice Allais, “Les conditions monétaires d’une économie de marchés: des enseignements du passé aux réformes de demain”, publicado em Revue d’économie politique, n.º 3, Maio-Julho de 1993, pp. 319-367. A passagem é retirada da p. 326 e poderia ser traduzida da seguinte forma: “O mecanismo de crédito tal como funciona atualmente, baseado na cobertura fracionária de depósitos, a criação de dinheiro ex nihilo e o empréstimo a longo prazo de fundos emprestados a curto prazo, agrava substancialmente as perturbações referidas. De fato, todas as grandes crises do século XIX e do século XX foram resultado de um desenvolvimento excessivo do crédito, das promissórias e da monetarização e especulação provocadas e possibilitadas por esta expansão” (grifos nossos). As teses de Maurice Allais, que foram lançadas ao grande público num conhecido artigo publicado no Le Monde a 29 de outubro de 1974 com o título “Les faux monnayeurs” encontram-se nos capítulos VI-IX do livro L’impôt sur le capital et la réforme monétaire, Hermann Éditeurs, setembro de 1989, pp. 155-257. Também na França foi publicada, em 1994, a minha avaliação crítica do sistema bancário com reserva fracionária em: Jesús Huerta de Soto, “Banque centrale ou banque libre: le débat théorique sur les réserves fractionnaires”, Journal des économistes et des études humaines, Paris e Aix-en-Provence, vol. V, n.º 2/3, junho-setembro de 1994, pp. 379-391.

[16] Ver, por exemplo, as citações de Murray N. Rothbard incluídas nas pp. 316, 317 e 320 do livro de Maurice Allais L’impôt sur le capital et la réforme monétaire, já citado, Ver também as referências a Amasa Walker na p. 317 e, sobretudo, a Ludwig von Mises, cujo livro The Theory of Money and Credit é perfeitamente conhecido por Allais, que o cita em diversos lugares, entre outros, nas pp. 355, 307 e 317. Além disso, Maurice Allais presta uma apaixonada homenagem a Ludwig von Mises, quando refere o seguinte: “Si une société libérale a pu être maintenue jusqu’à présent dans le monde occidental, c’est pour une grande part grâce à la courageuse action d’hommes comme Ludwig von Mises (1881-1973) qui toute leur vie ont constamment défendu des idées impopulaires à l’encontre des courants de pensée dominants de leur temps.Mises était un homme d’une intelligence exceptionnelle dont les contributions a la science économique ont été de tout premier ordre. Constamment en butte à de puissantes oppositions, il a passé ses dernières années dans la gêne, et sans l’aide de quelques amis, il n’aurait guère pu disposer d’une vie décente. Une société qui n’est pas capable d’assurer à ses élites, et en fait à ses meilleurs défenseurs, des conditions de vie acceptables, est une société condamnée” (p. 307). Embora na prática Maurice Allais coincida plenamente com a análise e as prescrições da Escola Austríaca em matéria monetária e dos ciclos, distancia-se claramente da mesma ao abraçar o desenvolvimento matemático do modelo do equilíbrio geral, o que dá ensejo a erros profundos na análise, que comentei noutro lugar (Jesús Huerta de Soto, Socialismo, cálculo econômico e función empresarial, ob. cit., pp. 248-249). Assim, Pascal Salin concluiu que Maurice Allais não pode ser classificado como um economista liberal do estilo de Hayek, mas antes um “engenheiro social” que a nível individual possui fortes conotações liberais e cuja análise da Escola Austríaca classificaria claramente de “construtivista” ou “cientificista”. Ver Pascal Salin, “Un économiste liberal?”, artigo no prelo, p. 12. Salin publicou um trabalho em que analisa a teoria austríaca do ciclo econômico e as prescrições de política bancária que dela se derivam. Ver Pascal Salin, “Macro-Stabilization Policies and the Market Process”,Economic Policy and the Market Process: Austrian and Mainstream Economics, Groenveld, K., Maks, J.A.H. e Muysken, J. (eds.), North-Holland, Amesterdã, 1990, pp. 201-221.

[17] Ver Ronnie J. Phillips, The Chicago Plan & New Deal Banking Reform, M.E. Sharpe, Armouk, Nova York 1995, pp. 191-198.

[18] Albert G. Hart, “The ‘Chicago Plan’ of Banking Reform”, Review of Economic Studies, n.º 2, 1935, pp. 104-116. A referência aos professores Mises e Hayek encontra-se no rodapé da p. 104. Outro curioso antecedente do Plano de Chicago encontra-se no livro de Frederick Soddy, Prêmio Nobel de Química, Wealth, Virtual Wealth and Debt, E.P. Dutton, Nova York 1927, e do qual Knight fez uma recensão positiva nesse mesmo ano, “Review of Frederick Soddy’s Wealth, Virtual Wealth and Debt“, The Saturday Review of Literature, 16 de Abril de 1927, p. 732.

[19] James W. Angell, “The 100 Percent Reserve Plan”, The Quarterly Journal of Economics, novembro de 1935, vol. L, n.º 1, pp. 1-35.

[20] Henry C. Simons, “Rules versus Authorities in Monetary Policy”, Journal of Political Economy, XLIV, n.º 1, fevereiro de 1936, pp. 1-30.

[21] Henry C. Simons, “Rules versus Authorities in Monetary Policy”, ob. cit., reeditado como cap. VII do livroEconomic Policy for a Free Society, The University of Chicago Press, Chicago, 1948, pp. 160-183. A passagem aparece na p. 181 e poderia ser traduzida da seguinte forma: “Um sistema democrático de livre empresa exige e requer para o funcionamento e a sobrevivência efetiva um quadro estável de regras definidas, estabelecidas na legislação e sujeitas a mudanças apenas graduais e efetuadas considerando cuidadosamente os interesses particulares dos participantes no jogo econômico.” É muito significativo que esta análise jurídico-institucional de Simons se encontre incluída precisamente no artigo em que faz a sua proposta de reforma bancária baseada no 100% de coeficiente de caixa.

[22] Henry C. Simons, “A Positive Program for Laissez-Faire: Some Proposals for a Liberal Economic Policy”, publicado originalmente como “Public Policy Pamphlet”, n.º 15, Harry D. Gideonse, University of Chicago Press, Chicago 1934, e reeditado como cap. II de Economic Policy for a Free Society, obra já citada, pp. 64-65. A tradução do texto poderia ser a seguinte: “Os bancos de depósitos que mantenham 100% de reservas simplesmente não podem falhar no que se refere aos depositantes, nem podem criar ou destruir dinheiro efetivo. Estas instituições aceitariam os depósitos da mesma forma que os armazéns aceitam depósitos de bens. O seu rendimento derivar-se-ia exclusivamente dos serviços prestados, talvez apenas de cobrar despesas moderadas pela transferência de fundos por intermédio de cheques […] Esta proposta bancária estabelece os meios para eliminar a perversa elasticidade do crédito que surge no âmbito de um sistema de bancos privados comerciais e para restaurar o completo controle do governo central sobre a quantidade e o valor de moeda efetiva.” Sobre Henry Simons, consultar Walter Block, “Henry Simons is Not a Supporter of Free Enterprise”, The Journal of Libertarian Studies, vol. 16, n.º 4, outono de 2002, pp. 3-36.

[23] Henry C. Simons acrescenta na nota 7 da página 320 da sua obra Economic Policy for a Free Society que“there is likely to be extreme economic instability under any financial system where the same funds are made to serve at once as investment funds for industry and trade and as the liquid cash reserves of individuals. Our financial structure has been built largely on the illusion that funds can at the same time be both available and invested — and this observation applies to our savings banks (and in lesser degree to many other financial institutions) as well as commercial, demand-deposit banking.”

[24] Fritz Lehmann, “100 Percent Money”, Social Research, vol. III, n.º 1, pp. 37-56.

[25] Frank D. Graham, “Partial Reserve Money and the 100 Percent Proposal”, American Economic Review, XXVI, 1936, pp. 428-440.

[26] Irving Fisher, 100 Percent Money, Adelphi Company, Nova York 1935.

[27] Lloyd W. Mints, Monetary Policy for a Competitive Society, Nova York 1950, pp. 186-187.

[28] Milton Friedman, A Program for Monetary Stability, Fordham University Press, Nova York, 1959. As ideias de Friedman sobre o coeficiente de 100% foram publicadas pela primeira vez em 1953, no artigo “A Monetary and Fiscal Framework for Economic Stability”, American Economic Review, vol. 38, n.º 3 (1948), pp. 245-264.

[29] Milton Friedman, ob. cit., p. 104.

[30] Friedman não faz referência a Mises, que, quase cinquenta anos antes, em alemão, e vinte e cinco anos antes, em inglês, já tinha apresentado minuciosamente a mesma teoria. Milton Friedman, ob. cit., nota n.º 10 da p. 106. A proposta de Gary Becker só foi publicada recentemente: Gary S. Becker, “A Proposal for Free Banking”, cap. II de Free Banking, Volume III: Modern Theory and Policy, Lawrence H. White (ed.), Edward Elgar, Aldershot, 1993, pp. 20-25. Embora pudesse ser classificado como pertencente à Escola Neobancária moderna defensora dos sistema bancário livre com reserva fracionária, Gary Becker reconhece que, em todo o caso, a proposta de 100% seria muito superior ao atual sistema bancário e financeiro (p. 24). A crítica de Rothbard a Milton Friedman pode ser encontrada em “Milton Friedman Unraveled”, The Journal of Libertarian Studies, vol. 16, n.º 4, outono de 2002, pp. 37-54.

[31] Irving Fischer também tratou os aspectos jurídicos do coeficiente de caixa de 100%, afirmando que neste sistema: “demand deposits would literally be deposits, consisting of cash held in trust for the depositor […]the check deposit department of the bank would become a mere storage warehouse for bearer money belonging to its depositors”. Irving Fisher, 100 Percent Money, ob. cit., p. 10. Infelizmente, a teoria econômica subjacente de Fischer era a monetarista, pelo que nunca chegou a entender de que forma a expansão de crédito provocada pela banca com reserva fracionária afetava a estrutura de etapas produtivas da sociedade. Além disso, Fischer propôs o estabelecimento de um standard indexado e a manutenção do controle da política monetária por parte do governo, o que, como vimos, levou a uma incisiva crítica de Ludwig von Mises (Human Action, ob. cit., pp. 442-443). Particularmente, a utilização da equação de troca monetarista na análise o levou a cometer erros substanciais de análise teórica e de previsão econômica, uma vez que não notou que o crescimento da oferta monetária, além dos efeitos macroeconômicos previstos pela sua fórmula, perturbava a estrutura produtiva alimentando, inexoravelmente, a crise e a recessão. Assim, na segunda metade dos anos vinte, Fischer pensava que a expansão econômica se manteria “indefinidamente”, sem perceber que tinha uma base artificial que estava condenada ao fracasso. De fato, a Grande Depressão de 1929 apanhou-o completamente de surpresa e quase o arruinou. Sobre a curiosa personalidade desse economista americano, consultar as obras de Irving N. Fisher, My Father Irving Fisher, A Reflection Book, Nova York, 1956, e a recente biografia de Robert Loring Allen, Irving Fisher: A Biography, Blackwell Publishers, Cambridge, Massachusetts, 1993.

[32] Como refere Pascal Salin no seu artigo sobre Maurice Allais: “Toute l’histoire monétaire montre que l’État a refusé de respecter les règles monétaires et que la source ultime de l’inflation provient de ce défaut institutionnel”. Pascal Salin, “Maurice Allais: un économiste liberal?”, ob. cit., p. 11. Não podemos, portanto, confiar que um banco central mais ou menos influenciado pela política de cada momento possa manter, mesmo que queira, uma política monetária que proteja a sociedade dos males do ciclo econômico, mesmo que se estabeleça um coeficiente de caixa de 100% para os bancos privados. Isto acontece porque nada garante que o banco central não possa financiar diretamente as despesas do Estado ou que, por meio de empréstimos aos bancos privados ou por operações em mercado aberto, não possa adquirir títulos de dívida pública em massa e outros em Bolsa, injetando liquidez no sistema via mercado de capitais e distorcendo temporariamente a taxa de juro e a estrutura de etapas produtivas da sociedade, o que ativaria os mecanismos inexoráveis do ciclo econômico provocando uma grande depressão. Este é um argumento prima facie contra a manutenção do banco central e que aconselha que o restabelecimento dos princípios do Direito na atividade bancária privada seja acompanhado pela completa liberalização e abolição do banco central. O tradicional intervencionismo da Escola de Chicago é discutido em “Symposium: Chicago versus the Free Market”, The Journal of Libertarian Studies, vol. 16, n.º 4, outono de 2002.

[33] Também pelo lado keynesiano, James Tobin, Prêmio Nobel de Economia em 1981, propôs um sistema de “deposit currency” que inclui muitos aspectos do Plano de Chicago a favor do 100% de reservas. Ver “Financial Innovation and Deregulation in Perspective”, Bank of Japan Monetary and Economic Studies, n.º 3, 1985, pp. 19-29. Ver ainda os comentários que Charles Goodhart faz à proposta do coeficiente de 100% de Tobin em The Evolution of Central Banks, ob. cit., pp. 87 e ss. Mais recentemente, Alex Hocker Pollock voltou a defender um sistema algo semelhante ao coeficiente de caixa de 100% para o sistema bancário no artigo “Collateralized Money: An Idea Whose Time Has Come Again?”, Durrell Journal of Money and Banking, vol. V, n.º 1, Março de 1993, pp. 34-38. O principal inconveniente na proposta de Pollock é o fato de considerar que o coeficiente de 100% deverá se manter, não em moeda, mas em ativos com um valor de mercado facilmente liquidável.

[34] Sobre a teoria do surgimento das instituições, em geral, e da moeda, em particular, consultar Carl Menger, Untersuchungen über die Methode der Socialwissenschaften und der Politischen Ökonomie insbesondere, Duncker & Humblot, Leipzig 1883; e “On the Origin of Money”, Economic Journal, junho de 1892, pp. 239-255. É preciso ainda recordar o teorema regressivo da moeda enunciado por Ludwig von Mises, segundo o qual o preço ou poder de compra da moeda é determinado pela oferta e procura. Por sua vez, esta é determinada não pelo poder de compra de hoje, mas pelo conhecimento que o ator formou sobre o poder de compra que a moeda tinha ontem. Daí, o poder de compra de ontem ser determinado por uma demanda de moeda que se forma sobre a base do conhecimento que se tinha a respeito do poder de compra de anteontem, e assim sucessivamente até chegar ao momento da história em que, pela primeira vez, um determinado bem começou a ter procura como meio de troca. Assim, este teorema reflete a teoria de Menger sobre o surgimento e a evolução espontânea da moeda, mas aplicada retroactivamente. O teorema regressivo de Mises tem uma importância capital em qualquer projeto de reforma do sistema monetário e explica a razão por que não podem ser dados “saltos no escuro” neste campo, com o objetivo de introduzirex novo sistemas monetários que não sejam o resultado da evolução e que estariam, tal como aconteceu com o Esperanto em relação à língua, irremissivelmente condenados ao fracasso. Sobre o teorema regressivo da moeda, consultar Ludwig von Mises, Human Action, ob. cit., pp. 409-410, 425 e 610. Também não pode ser aceita a proposta do meu amigo J. P. Centi de introduzir uma constelação de moedas privadas de tipo “electrônico” que competiriam entre si no contexto (caótico) de taxas de câmbio flexíveis. Esta proposta ignora os fundamentos do teorema regressivo da moeda, confunde a moeda (mercadoria, fiduciário) com o procedimento utilizado para transferi-lo (cheque de papel, cartão de plástico) e, além disso, ignora o resultado da evolução histórica da humanidade no âmbito monetário a favor do ouro. Ver: J. P. Centi, “Toward Fiat Private Competitive Moneys”, em Austrian Economics Today I, The International Library of Austrian Economics, K.R. Leube (ed.), vol. 7, FAZ Buch, Frankfurt 2003, pp. 89-104. Ver ainda, a próxima nota 103.

[35] A proposta mais conhecida sobre a desnacionalização da moeda foi feita por F.A. Hayek em 1976 no seuDenationalisation of Money: Analysis of the Theory and Practice of Concurrent Currencies, Institute of Economic Affairs, Londres 1976 (2ª edição de 1978). As intenções de Hayek a favor de padrões monetários artificiais começaram, no entanto, trinta anos antes: “A Commodity Reserve Currency”, Economic Journal, LIII, n.º 210, junho-setembro de 1943, pp. 176-184 (incluído como cap. X de Individualism and Economic Order, ob. cit., pp. 209-219). Embora pensemos que a análise mengeriana que Hayek faz sobre a evolução das instituições é correta e que seria importante que, no campo monetário, houvesse experimentação privada própria dos mercados, consideramos lamentável que, em última instância, Hayek tenha proposto um padrão completamente artificial como nova unidade monetária, constituído por uma cesta de mercadorias variadas. Embora a proposta de Hayek possa ser interpretada como um procedimento para voltar a moeda tradicional (padrão-ouro com um coeficiente de reservas de 100%), é indubitável que Hayek tenha sofrido críticas, sendo chamado de “cientista” e “construtivista” por economistas austríacos que julgaram muito severamente suas propostas. Entre estes teóricos destacam-se Murray N. Rothbard, Hans-Hermann Hoppe e Joseph T. Salerno, “Mises and Hayek Dehomogenized”, ob. cit. As mesmas críticas são aplicáveis a Leland B. Yeager, “The Perils of Base Money”, ob. cit., p. 262.

[36] Caso prefira, podemos considerar também a prata como padrão metálico subsidiário e paralelo, que poderia coexistir com o ouro, se assim desejassem os agentes econômicos, à taxa de câmbio flutuante determinada pelo mercado em cada momento. É preciso reconhecer ainda que o desaparecimento do uso monetário da prata foi precipitado pelo estabelecimento por parte dos governos do século XIX de taxas de câmbio fixas entre o ouro e a prata que subvalorizaram artificialmente esta última. Ver Murray N. Rothbard,Man, Economy and State, ob. cit., pp. 724-726.

[37] O padrão-ouro que propomos não tem nada que ver com o padrão-ouro standard que se utilizou até aos anos 1930 e que se sustentava na existência de bancos centrais e num sistema bancário com um coeficiente de reserva fracionária, ou como indica acertadamente Milton Friedman: “a real honest-to-God gold standard[…] would be one in which gold was literally money and money literally gold, under which transactions would literally be made in terms either of the yellow metal itself, or of pieces of paper that were 100 percent warehouse certificates for gold.” Milton Friedman, “Has Gold Lost its Monetary Role?”, em Milton Friedman in South Africa, Meyer Feldberg, Kate Jowel e Stephen Mulholland (eds.), Graduate School of Business of the University of Capetown, Joanesburgo 1976. Sobre a teoria econômica do ouro, consultar o cap. VIII, “The Theory of Commodity Money: Economics of a Pure Gold Standard” do livro de Mark Skousen The Structure of Production, ob. cit., pp. 265-281.

[38] Laureano Figuerola, Escritos econômicos, edição e estudo preliminar de Francisco Cabrillo Rodríguez, Instituto de Estudios Fiscales, Madrid 1991, p. 268. Esta afirmação que nem os próprios Mises e Hayek poderiam ter feito de forma mais acertada e precisa, encontra-se no memorial que Laureano Fiquerola apresentou às Cortes Contituyentes a 22 de fevereiro de 1869.

[39] Em suma, trata-se de substituir o atual emaranhado de legislação administrativa sobre o controle e a disciplina das entidades de crédito por uns meros artigos estabelecidos nos códigos penal e comercial. Assim, para o caso espanhol, toda a legislação bancária poderia ser derrogada e substituída simplesmente pelos novos artigos 180 e 182 do Código Comercial cujo texto poderia ter o seguinte teor (escrevemos em itálico aquilo que difere da redação atual):

Artigo 180: “Os bancos conservarão em metálico nos cofres a totalidade  do valor dos depósitos e contas correntes e das notas em circulação.”

Artigo 182: “O valor das notas em circulação, juntamente com a soma dos depósitos e das contas correntes, não poderá exceder, em nenhum caso, o valor da reserva metálica de que cada banco disponha em qualquer momento” (desaparece “a anotação” existente no artigo 182 vigente que ao valor da reserva metálica acrescenta “os valores em carteira realizáveis num prazo máximo de 90 dias”).

Nos artigos do Código Comercial, não é preciso fazer referência às operações realizadas em fraude da lei para mascarar um verdadeiro contrato de depósito (operações com pacto de recompra, com opções putamericanas, etc.), uma vez que pela própria técnica jurídica da doutrina seriam nulas. No entanto, e para evitar a possibilidade de que alguma inovação financeira acabe por se converter em moeda antes da declaração jurisprudencial de nulidade, conviria acrescentar ao art. 180 o seguinte: “A mesma obrigação dever ser cumprida por todas as pessoas físicas e jurídicas que, em fraude à lei, realizem negócios jurídicos que mascarem um verdadeiro contrato de depósito de moeda.”

No que diz respeito ao Código Penal, as reformas a efetuar no caso espanhol seriam muito reduzidas. No entanto, para esclarecer ainda mais o conteúdo do artigo 252 do novo Código Penal e torná-lo compatível com a redação que propomos para os artigos 180 e 182 do Código Comércial, a formulação deveria ser a seguinte:

Artigo 252: “Serão castigados com as penas assinaladas os que, em prejuízo de outrem, desviarem ou se apropriarem de moeda, bens ou qualquer outra coisa móvel ou ativo patrimonial que tiver recebido em depósito, depósito irregular ou bancário de moeda, comissão ou administração ou por qualquer outro títulosemelhante que produza obrigação de entrega ou devolução ou quem negar tê-los recebido […] A referida pena será agravada em 50% no caso de depósito necessário, depósito irregular ou bancário de moeda ou qualquer outro negócio que mascare, em fraude de lei, a realização de um depósito irregular de moeda.

Estas simples modificações no Código Comercial e no Penal permitiriam a revogação de toda a legislação de controle bancário que existe atualmente na Espanha, submetendo aos tribunais ordinários de Justiça a apreciação das condutas individuais que possam ser suspeitas de incorrerem em alguma das proibições mencionadas (com todas as garantias, como é óbvio, próprias de um Estado de Direito e que hoje primam pela ausência em grande parte dos atos administrativos de controle bancário).

[40] “We are not able to chart the future of capitalism in any specificity. Our reason for this incapability is precisely that which assures us the economic future of capitalism will be one of progress and advance. The circumstance that precludes our viewing the future of capitalism as a determinate one is the very circumstance in which, with entrepreneurship at work, we are no longer confined by any scarcity framework. It is therefore the very absence of this element of determinacy and predictability that, paradoxically, permits us to feel confidence in the long-run vitality and progress of the economy under capitalism.” Israel M. Kirzner, Discovery and the Capitalist Process, The University of Chicago Press, Chicago e Londres, 1985, p. 168.

[41] F.A. Hayek, Denationalization of Money: The Argument Refined, 2.ª edição ampliada, Institute of Economic Affairs, Londres 1978, pp. 119-120.

[42] Sobre o desenvolvimento desta rede de fundos de investimento mobiliário (mutual fund banking), consultar o artigo de Joseph T. Salerno “Gold Standards: True and False”, publicado em The Cato Journal, vol. III, n.º 1, primavera de 1986, e especialmente as pp. 257-258. Não é verdade que as participações nestes fundos de investimento acabariam por se converter em moeda, uma vez que não são títulos representativos de participações no mercado mobiliário e não garantiriam a possibilidade de recuperar o valor nominal dos investimentos efetuados, que estariam sempre submetidos à evolução do preço de mercado das respectivas obrigações e/ou ações. Ou seja, apesar da grande liquidez que poderiam alcançar, esta nunca seria imediata nem se referiria ao valor nominal que por definição têm as unidades monetárias. De fato, qualquer pessoa que precisasse de liquidez se veria obrigada a encontrar no mercado outra que estivesse disposta a fornecê-la pagando em ouro o valor de mercado das respectivas participações no fundo de investimento que desejasse vender. Assim, os fundos de investimento não podem assegurar nem o valor do capital investido ao adquirir a participação nem a taxa de juro do investimento. E caso se “assegurar” a liquidez, será apenas no sentido de que é relativamente fácil vender as participações do fundo no mercado (embora também não exista qualquer garantia de que a venda se possa levar a efeito em todas as circunstâncias, nem muito menos a um preço predeterminado).

[43] Assim, não é por um capricho da história que o ouro acabou por prevalecer num contexto de liberdade como moeda geralmente aceita, uma vez que reúne as características essenciais que, do ponto de vista dos princípios gerais do Direito e da teoria econômica, um meio de troca geralmente aceito deverá ter. Neste campo, como em muitos outros (família, direito de propriedade, etc.), a teoria econômica tem vindo a apoiar os resultados espontâneos do processo de evolução social.

[44] Entre outros, George A. Selgin para quem “a 100-percent reserve banking crisis is an impossibility”. George A. Selgin, “Are Banking Crises a Free-Market Phenomenon?”, ob. cit., p. 2.

[45] Ver: Francisco Cabrillo, Quiebra e liquidación de empresas: un análisis econômico del derecho español, Unión Editorial, Madrid 1989.

[46] Um definição correta do direito de propriedade no que ao contrato bancário de depósito de moeda diz respeito (coeficiente de caixa de 100%) e uma defesa adequada e exigente desse direito é, pois, o único requisito para alcançar um “sistema monetário estável”, objetivo que o próprio papa João Paulo II considerava ser uma das responsabilidades essenciais do Estado na Economia. Ver: João Paulo II, Centesimusannus: Aos Veneráveis Irmãos no Episcopado ao Clero às Familías religiosas aos Fiéis da Igreia Católica e a todos os Homens de Boa Vontade no centenário da Rerum Novarum, Libreria Editrice Vaticana, 2003. No mesmo lugar, João Paulo II refere que a economia de mercado “não se pode realizar num vazio institucional, jurídico e político”, em perfeita consonância com a exigência que defendemos neste livro quanto à aplicação dos princípios jurídicos ao campo concreto do contrato de depósito bancário de moeda.

[47] Como sabemos, o governo poderá também provocar descoordenação horizontal (intratemporal) na estrutura produtiva se financiar parte dos gastos com base na emissão de novos meios de pagamento.

[48] Ver a Mark Skousen, “The Theory of Commodity Money: Economics of a Pure Gold Standard”, em The Structure of Production, ob. cit., pp. 269-271. Skousen explica também que, dado o caráter imutável do ouro, o seu estoque mundial, acumulado ao longo da história, não se reduz, apenas aumenta, pelo que,ceteris paribus, um volume igual de produção mundial de ouro dá origem a um crescimento cada vez mais reduzido, em termos percentuais, da oferta monetária. No entanto, essa circunstância é compensada pelas melhorias e inovações tecnológicas no setor da extração, que fazem com que o volume mundial de ouro tenha crescido a uma média anual de entre 1 e 3% desde 1910. Por seu lado, Mises indica que o crescimento anual do estoque mundial de ouro tende a ajustar-se ao aumento gradual e secular da procura de moeda que é consequência do aumento da população. Assim, se esta cresce de 1 a 3% (ritmo parecido com o do aumento do ouro), a diminuição do nível de preços seria de cerca de 3% e os juros nominais oscilariam entre 0,25 e 1 % (assumindo um aumento médio da produtividade geral da economia de 3%). Ver Human Action, ob. cit., pp. 414-415. Mises não refere que a sã deflação secular causada pelo aumento da produtividade tende a provocar,ceteris paribus, uma diminuição gradual da procura de moeda, que faz com que as reduções nominais da taxa de juro não sejam tão evidentes.

[49] No seu livro Less Than Zero: The Case for a Falling Price Level in a Growing Economy, Institute of Economic Affairs (I.E.A.), Hobart Paper n.º 132, Londres, 1997, George A. Selgin defendeu que a melhor regra de política monetária é deixar que o nível geral dos preços caia em conformidade com o aumento da produtividade Embora esta proposta nos pareça essencialmente correta pelas razões apresentadas no capítulo VIII, não partilhamos inteiramente a tese de Selgin e, em especial, a de que a melhor medida institucional para alcançá-la seja estabelecer um sistema bancário livre com reserva fracionária.

[50] Mises, no já citado memorando que preparou para a Liga de Nações, expressa de forma brilhante e sintética as ideias anteriores: “If all expansion of credit by the banks had been effectively precluded, the world would have had a monetary system in which —even apart from the discoveries of gold in California, Australia, and South Africa— prices would have shown a general tendency to fall. The majority of our contemporaries will find that a sufficient ground for regarding such a monetary system as bad in itself,since they are wedded to the belief that good business and high prices are one and the same thing. But that is a prejudice. If we had had slowly falling prices for eighty years or more, we would have become accustomed to look for improvements in the standard of living and increases in real income through falling prices with stable or falling money income, rather than through increases in money income. At any rate, a solution to the difficult problem of reforming our monetary and credit system must not be rejected offhand merely for the reason that it involves a continuous fall in the price level. Above all, we must not allow ourselves to be influenced by the evil consequences of the recent rapid fall in prices. A slow and steady decline of prices cannot in any sense be compared with what is happening under the present system: namely, sudden and big rises in the price level, followed by equally sudden and sharp falls.” Ludwig von Mises, Money, Method and the Market Process, ob. cit., pp. 90-91. Itálico acrescentado.

[51] É preciso recordar que durante a Grande Depressão de 1929 houve uma contração da oferta monetária próxima dos 30%. Este tipo de contrações seria impossível com um padrão-ouro e um coeficiente de caixa de 100%, uma vez que o sistema monetário que propomos tem um caráter inelástico. Assim, no nosso modelo, a contração monetária, que muitos consideram (erroneamente) ter sido a principal causa da Grande Depressão, não se teria produzido em nenhum caso. Por outro lado, e como assinala Mark Skousen (Economics on Trial: Lies, Myths and Realities, Business One Irwin, Homewood, Illinois, 1991, pp. 133-138), é muito improvável que o padrão-ouro puro com um coeficiente de reserva de 100% dê lugar a um crescimento inflacionário dos preços durante algum período. De fato, desde 1942 até hoje, a oferta de ouro nunca cresceu a um percentagem superior a 5%, sendo a média de aumento de entre 1 e 3% ao ano, como já referimos.

[52] Maurice Allais referiu literalmente que a “spéculation, frénétique et fébrile, est permise, alimentée et amplifiée par le crédit tel qui fonctionne actuellement”. Maurice Allais, “Les conditions monétaires d’une économie de marchés”, ob. cit., p. 326. Não existe talvez forma mais sintética e elegante de referir-se ao que, de forma mais popular, se chegou a denominar desde há poucos anos na Espanha “cultura de pelotazo”[cultura do dinheiro fácil], o que foi, sem dúvida, alimentado e tornado possível pela expansão incontrolada do crédito por parte do sistema financeiro.

[53] Maurice Allais, “Les conditions monétaires d’une économie de marchés”, ob. cit., p. 347. A tradução poderá ser a seguinte: “As ofertas públicas de aquisição são fundamentalmente úteis, mas a sua legislação terá de ser reformada. Não é desejável que possam ser financiadas através de meios de pagamento criados ex nihilo pelo sistema bancário ou pela emissão de junk bonds (obrigações especulativas) como é o caso nos Estados Unidos.”

[54] Por isso, temos de ser especialmente críticos em relação a autores como Alan Reynolds, Arthur B. Laffer, Marc A. Miles e outros que pretendem estabelecer um pseudo-padrão-ouro no qual o protagonismo da política monetária e de crédito continua a ser assegurado pelo banco central, mas com referência ao ouro. Friedman classificou acertadamente este pseudo-padrão-ouro como: “a system in which, instead of gold being money, gold was a commodity whose price was fixed by governments” (ver Milton Friedman, “Has Gold Lost its Monetary Role?”, ob. cit., p. 36). As propostas de Laffer e Miles podem ser encontradas no livro de ambos os autores intitulado International Economics in an Integrated World, Scott & Foresman, Oakland, Nova Jérsia, 1982. Pode ser encontrada uma breve e brilhante crítica a estas propostas em Joseph T. Salerno, “Gold Standards: True and False”, ob. cit., pp. 258-261.

[55] Ver, por exemplo, o cap. V dedicado ao “Ciclo Político-Econômico” do livro de Juan Francisco Corona Ramón, Una introducción a la teoría de la decisión pública (“Public Choice”), Institución Nacional de Administración Pública, Alcalá de Henares, Madrid 1987, pp. 116-142, e a bibliografia aí citada e na nota 57 do capítulo VI.

[56] Ludwig von Mises, On the Manipulation of Money and Credit, ob. cit., p. 22 (grifos nossos). A passagem do texto poderia ser traduzida da seguinte forma: “A razão do uso de moeda commodity é prevenir que o valor da unidade monetária seja influenciado politicamente. O ouro é a moeda padrão [?] em primeiro lugar porque um aumento ou diminuição na quantidade disponível do mesmo independe das ordens advindas das autoridades políticas. A principal característica do padrão-ouro é fazer com que as mudanças na quantidade de moeda dependam dos lucros que se posam obter com a produção de ouro.”

[57] Ludwig von Mises, The Theory of Money and Credit, ob. cit., p. 455, onde lemos, “thus the sound-money principle has two aspects. It is affirmative in approving the market’s choice of a commonly used medium of exchange. It is negative in obstructing the goverment’s propensity to meddle with the currency system.”Assim, consideramos a nossa proposta muito superior à efetuada pela escola do “constitucionalismo monetário”, que pretende resolver os problemas atuais por intermédio do estabelecimento de regras constitucionais sobre o crescimento monetário e os mercados bancários e financeiros. O constitucionalismo monetário não é necessário existir um padrão-ouro com um coeficiente de reserva de 100%. Além disso, não conseguiria evitar as tentações sentidas pelos políticos para manipular o crédito e a moeda.

[58] “Uma vez que toda a criação monetária equivale, nos seus efeitos, a um verdadeiro imposto sobre todos aqueles cujos rendimentos são reduzidos pelo crescimento dos preços que inevitavelmente gera, o lucro dela derivada, que, na verdade, é considerável, deveria reverter para o Estado, permitindo-lhe reduzir o montante global dos impostos.” Maurice Allais, “Les conditions monétaires d’une économie de marchés”, ob. cit., p. 331. Maurice Allais acrescenta ainda no mesmo lugar que um dos paradoxos mais curiosos do nosso tempo é que, embora a opinião pública se tenha sensibilizado para os grandes perigos da utilização pelo governo da máquina de fabricar dinheiro, continua a ignorar completamente e a não estar sensibilizada para os perigos idênticos que o sistema de expansão de crédito sem cobertura de poupança tem em relação ao exercício da atividade bancária com um coeficiente de reserva fracionário. Na Espanha, Juan Antonio Gimeno Ullastres estudou o efeito da inflação nos impostos sem se referir, infelizmente, às consequências da expansão de crédito sobre a atividade bancária com reserva fracionária, no artigo “Un impuesto llamado inflación”, publicado em Homenaje a Lucas Beltrán, Editorial Moneda e Crédito, Madrid 1982, pp. 803-823.

[59] Ludwig von Mises, Nation, State and Economy: Contributions to the Politics and History of our Time, New York University Press, Nova York e Londres, 1983, p. 163, e também Human Action, ob. cit., p. 442. Trata-se da tradução de Leland B. Yeager do livro publicado por Mises originalmente em alemão em 1919 com o título de Nation, Staat und Wirtschaft (Manzsche Verlags Buchhandlung, Viena e Leipzig 1919). A tradução desta passagem seria: “Poderíamos dizer sem exagero que a inflação é um meio intelectual indispensável de militarismo. Sem ela, as repercussões da guerra sobre o bem-estar tornar-se-iam óbvias de forma muito mais rápida e incisiva. O cansaço de guerra seria declarado muito antes.” Sobre esse importante tema, consultar também Joseph T. Salerno, “War and the Money Machine: Concealing the Costs of War Beneath the Veil of Inflation”, cap. 17 de The Costs of War: America’s Pyrrhic Victories, John V. Denson (ed.), Transaction Publishers, New Brunswick e Londres 1997, pp. 367-387. No entanto, o primeiro a evidenciar as estreitas relações existentes entre o militarismo e a inflação foi , de novo, o padre Juan de Mariana, Tratado e discurso sobre la moneda de vellón, ob. cit., p. 35.

[60] “Exhaustive research, however, fails to uncover any published critiques in this regard.” Walter Block, “Fractional Reserve Banking: An Interdisciplinary Perspective”, ob. cit., p. 31. As breves críticas de Leland Yeager à nossa proposta são devidamente respondidas nesta seção, “The Perils of Base Money”, ob. cit., pp. 256-257.

[61] Ludwig von Mises, The Theory of Money and Credit, ob. cit., p. 361. A tradução poderia ser: “É evidente que proibir a emissão de meios fiduciários não sognificaria, de modo algum, a morte do sistema bancário. Os bancos conservariam o negócio da intermediação dos créditos, de receber dinheiro para emprestá-lo outra vez.”

[62] Supondo, por exemplo, um crescimento médio da economia de cerca de 3% ao ano e um aumento da oferta monetária (estoque mundial de ouro) de 1,5%, verificar-se-ia uma muito ligeira deflação de 1,5 % ao ano.  Se a taxa de juro real de mercado é de 4% (três % de taxa natural e 1 de componente de risco), a taxa de juro nominal de mercado estaria situada numa margem próxima dos 2,5% ao ano. Na nota 48, assumimos taxas de juro nominais ainda mais reduzidas num contexto de aumento secular da procura de moeda induzida pelo crescimento da população.

[63] “Under competitive conditions the benefits are partly enjoyed by the holders of fractionally-backed bank liabilities themselves, whose gain takes the form of explicit interest payments or lowered bank service charges or a combination of these.” George Selgin, “Are Banking Crises a Free-Market Phenomenon?”, ob. cit., p. 3.

[64] “Il n’e a pas lieu de rendre gratuitement des services qui en tout état de cause ont un coût qu’il faut bien supporter. Si un déposant est affranchi des frais relatifs à la tenue de son compte, la banque doit les supporter. Dans la situation actuelle elle peut le faire, car elle bénéficie des profits correspondants à la création de monnaie par le mécanisme du crédit. Qui en supporte réellement le coût?: l’ensemble des consommateurs pénalisés par la hausse des prix entraînée par l’accroissement de la masse monétaire.”Maurice Allais, “Les conditions monétaires d’une économie de marchés”, ob. cit., p. 351.

[65] “The free market does not mean freedom to commit fraud or any other form of theft. Quite the contrary. The criticism may be obviated by imposing a 100 % reserve requirement, not as an arbitrary administrative fiat of the government, but as a part of the general legal defense of property against fraud. As Jevons stated: ‘It used to be held as a general rule of law, that any present grant or assignment of goods not in existence is without operation’, and this general rule need only be revived and enforced to outlaw fictitious money substitutes. Then banking could be left perfectly free and yet be without departure from 100 % reserves.” Murray Newton Rothbard, Man, Economy, and State, ob. cit., p. 709 (a citação de Jevons é de Money and the Mechanism of Exchange, ob. cit., pp. 211-212).

[66] Da mesma forma, um “contrato” livre e voluntário entre duas partes mediante o qual uma paga à outra para que esta assassine um terceiro, mesmo não existindo engano ou fraude e mesmo que o contrato seja feito com pleno conhecimento e voluntarismo por ambas as partes, seria um contrato nulo por ir contra a ordem pública e por ser efetuado em prejuízo de terceiros.

[67] Não nos estamos a referir à diminuição do poder de compra em termos absolutos, mas em termos relativos, em relação ao crescente poder de compra que a moeda experimentaria com um sistema bancário com 100% de reservas. Além disso, os efeitos econômicos da atividade bancária são, neste aspecto, idênticos aos provocados pela falsificação de moedas e notas de banco que, embora não seja possível identificar individualmente os prejudicados, se considera sem discussão dever ser castigada por ir contra a ordem pública.

[68] Este foi um dos argumentos críticos de Juan José Toribio Dávila no seu artigo “Problemas Éticos en los Mercados Financieros”, apresentado nos Encuentros sobre la dimensión ética de las instituciones e mercados financieros, que tiveram lugar em Madrid em Junho de 1994 sob os auspícios da Fundación BBV. Toribio Dávila argumentava ainda que uma política monetária estável poderia ser alcançada com qualquer coeficiente de caixa, sem levar em conta as razões relativas à impossibilidade teórica da planificação central, em geral, e da sua aplicação ao campo financeiro, em particular, e que fazem com que não seja possível que os bancos centrais possam ou queiram calcular adequadamente a demanda de moeda nem controlar a oferta que, pretensamente, se devia acomodar à demanda. Além disso, Toribio Dávila esquece os profundos efeitos de descoordenação que de todo o crescimento da oferta monetária em forma de expansão de crédito sem cobertura de poupança real têm a estrutura produtiva. Por último, são evidentes as relações entre o coeficiente de caixa de 100% e a ética na atividade das instituições financeiras. De fato, a ligação manifesta-se não só na rede de comportamentos eticamente irresponsáveis próprios da especulação febril gerada pela expansão de crédito, mas também no fato inquestionável de que as crises e recessões econômicas têm a sua origem na violação de um princípio ético segundo o qual deve ser mantido um coeficiente de reserva de 100 % em relação aos contratos de depósito à vista de moeda.

[69] Além disso, Jörg Guido Hülsmann explicou que a Lei de Gresham impede que os depósitos com 100% de reserva possam competir com os emitidos com reserva fracionária. Ver o artigo “Has Fractional-Reserve Banking Really Passed the Market Test?”, The Independent Review, vol. 7, n.º 3, Inverno 2003, pp. 392-422 e, em especial, las pp. 408-409.

[70] F.A. Hayek, Monetary Nationalism and International Stability, ob. cit., p. 82. No mesmo sentido, pode consultar-se Henry C. Simons, “Rules versus Authority in Monetary Policy”, ob. cit., p. 17. A tradução da passagem do texto poderia ser: “Foi referenciado pelos mais críticos entre os pais do esquema que a atividade bancária é um fenômeno omnipresente e a questão é se, ao impedirmos que apareça na forma tradicional, não estaremos fazendo com que reapareça noutras formas menos fáceis de controlar.”

[71] Quão diferente (e melhor) teria sido a história econômica dos últimos 150 anos se a Lei de Peel não tivesse esquecido de estabelecer o coeficiente de caixa de 100% também para os depósitos — e não apenas para as notas de banco! Não consideramos completamente adequado o argumento de Hayek sobre a pretensa impossibilidade de separar de forma radical os diferentes instrumentos em que a moeda pode se materializar como meio de troca geralmente aceito, de forma que existiria apenas um “contínuo” de diferentes graus de liquidez que tornaria ainda mais difícil o problema de identificar quando se está ou não a respeitar os princípios tradicionais do Direito que são defendidos neste livro. Pelo contrário, e de acordo com Menger, na prática consegue-se sempre distinguir adequadamente entre o é moeda e os demais instrumentos de grande liquidez que, porém, não chegam a ser um meio de troca geralmente e imediatamente aceito. A distinção entre os dois tipos de bens fundamenta-se no fato de que a moeda não é apenas um instrumento altamente líquido, mas sim o único bem perfeitamente líquido. Por isso, os seres humanos estão dispostos a procurá-lo mesmo que não recebam quaisquer juros pela sua posse, ao passo que no caso de outros instrumentos de fronteira que carecem de liquidez perfeita, os seus titulares exigem receber juros pela manutenção. A distinção essencial, baseada na existência ou não de liquidez perfeita (ou seja, de perda ou não da sua disponibilidade perfeita e imediata), entre o dinheiro e outros meios periféricos foi desenvolvida por Gerald P. O’Driscoll no artigo “Money: Menger’s Evolutionary Theory”, publicado em History of Political Economy, n.º 18, 4, 1986, pp. 601-616.

[72] Assim, por exemplo, é perfeitamente possível assassinar um homem utilizando venenos cada vez mais sofisticados que não deixam nenhum rasto e que tornam muito difícil a coleta de provas sobre a verdadeira origem e natureza do homicídio cometido, isso não impede que se tenha qualquer dúvida de que assassinar vá contra os princípios essenciais do Direito e de que devemos dedicar todo o esforço necessário para prevenir ou repreender este tipo de conduta.

[73] Além disso, existem inovações financeiras, como as ofertas públicas de aquisição de acções (OPA), que, em si mesmas, não violam qualquer princípio tradicional do direito e cumprem uma função legítima no mercado, mas que se pervertem completamente num contexto em que se exerça a banca com reserva fracionária e se possa expandir o crédito sem a respectiva cobertura de poupança real. Uma análise concisa, e, ao mesmo tempo, exaustiva das “inovações” financeiras que se verificaram como consequência do incorretamente denominado processo de “desregulação financeira” (e que, em grande medida, consistiu em diminuir a sujeição do sector financeiro aos princípios tradicionais do direito) pode ser encontrada no livro de Luis Barrallat, La banca española en el año 2000: un sector en transición, Ediciones de las Ciencias Sociales, Madrid 1992, pp. 172-205. Realce-se que grande parte das chamas “inovações” financeiras se desenvolvem no ambiente da especulação febril que alimenta a expansão de crédito provocada pelo sistema bancário com reserva fracionária.

[74] Este é, portanto, outro caso que ilustra perfeitamente os graves efeitos corruptores que o intervencionismo fiscal e econômico do Estado tem sobre o conceito de lei material, os hábitos sociais de respeito pela mesma e o sentido de justiça. Foi tratado in extenso em Jesús Huerta de Soto, Socialismo, cálculo econômico e función empresarial, ob. cit., pp. 126-133.

[75] Depois do crash da bolsa em outubro de 1987 só foi possível evitar momentaneamente a contração de crédito graças à injeção de doses maciças de liquidez no sistema por todos os bancos centrais. No entanto, na recessão econômica subsequente (1990-1992) estes bancos mostraram-se impotentes para fazer com que os agentes econômicos recebessem nova moeda emprestada, mesmo depois de fixarem taxas de juro em níveis historicamente reduzidos, que chegaram a atingir 2-3 % nos Estados Unidos. No Japão, a taxa de juro chegou a atingir os 0,15 % sem que fossem obtidos os efeitos expansivos esperados. Mais recentemente, a história repetiu-se depois da crise da bolsa de 2001-2002 e do estabelecimento pela Reserva Federal Americana da taxa de juro de 1 % (o seu nível mais baixo em mais de 40 anos).

[76] Este é o argumento apresentado por C. Maling no seu artigo “The Austrian Business Cycle Theory and its Implications for Economic Stability under Laissez-Faire”, cap. 48 de Friedrich A. Hayek: Critical Assessments, J.C. Wood e R. N. Woods, Routledge, Londres 1991, vol. II, p. 267.

[77] Sobre o “Efeito Pigou”, consultar artigo de Don Patinkin intitulado “Real Balances”, publicado no vol. IV de The New Palgrave: A Dictionary of Economics, ob. cit., pp. 98-101.

[78] “In a world of a rising purchasing power of the monetary unit everybody’s mode of thinking would have adjusted itself to this state of affairs, just as in our atual world it has adjusted itself to a falling purchasing power of the monetary unit. Today everybody is prepared to consider a rise in his nominal or monetary income as an improvement to his material well-being. People’s attention is directed more toward the rise in nominal wage rates and the money equivalent of wealth than to the increase in the supply of commodities. In a world of rising purchasing power for the monetary unit they would concern themselves more with the fall in living costs. This would bring into clearer relief the fact that economic progress consists primarily in making the amenities of life more easily accesible.” Ludwig von Mises, Human Action, ob. cit., p. 469.

[79] Stephen Horwitz, “Keynes’ Special Theory”, Critical Review, vol. III, nn. 3 e 4, nota de rodapé 18 das pp. 431-432. Horwitz afirma ainda que os teóricos austríacos que defendem o coeficiente de caixa de 100% não foram capazes de explicar a razão por que uma diminuição da procura de moeda tenha necessariamente de ser diferente da oferta, no que diz respeito à possibilidade de ocorrência de crises econômicas. Horwitz ignora por completo que é a concessão de meios fiduciários sem cobertura de poupança real, ou seja, a expansão de crédito, que distorce a estrutura produtiva e gera as crises, e não a diminuição generalizada na demanda de moeda, cujo único efeito, ceteris paribus, consiste em diminuir o poder de compra da unidade monetária, sem afetar, necessariamente, a criação de créditos sem cobertura de poupança real e, logo, a estrutura produtiva da sociedade. Assim, é preciso refutar a conclusão de Horwitz segundo a qual “100 percent reserve banking is insufficiently flexible to maintain monetary equilibrium”, uma vez que é baseada numa análise teoricamente incorreta que não toma em devida consideração os mecanismos de descoordenação que se verificam no ciclo econômico.

[80] Milton Friedman e Anna J. Schwartz, A Monetary History of the United States, 1867-1960, ob. cit., p. 15. A tradução desta passagem poderia ser: “Durante este período, verificou-se uma etapa vigorosa de expansão contínua que estava destinada a elevar os Estados Unidos ao primeiro lugar entre as nações do mundo. E a sua coincidência gera sérias dúvidas sobre a validade do ponto de vista até agora amplamente defendido de que uma deflação secular dos preços e um rápido desenvolvimento econômico são incompatíveis.” Compare-se esta afirmação com a conclusão idêntica a que chega Ludwig von Mises no seu Money, Method and the Market Process, ob. cit., pp. 90-91. Num memorando de 1930, Mises explica esta mesma ideia aos especialistas do Comitê Financeiro da Liga das Nações. Ver, também, o detalhado estudo econômico do período 1873-1896 incluído por George A. Selgin no livro Less Than Zero: The Case for a Falling Price Level in a Growing Economy, ob. cit., pp. 49-53.

[81] Paul A. Samuelson, Economics, 8.ª edição, Macmillan, Nova York, 1970: “É absurdo dedicar recursos a extrair ouro das entranhas da terra para logo voltar a enterrá-lo nos sótãos de Fort Knox.”

[82] Leland B. Yeager, “Introduction” em The Gold Standard: An Austrian Perspective, Llewellyn H. Rockwell (ed.), Lexington Books, Lexington, Massachusetts, 1985, p. x.

[83] Roger W. Garrison, “The Costs of a Gold Standard”, cap. IV do livro The Gold Standard: An Austrian Perspective, ob. cit., pp. 61-79.

[84] Roger W. Garrison, “The Costs of a Gold Standard”, em The Gold Standard, ob. cit., p. 68. A tradução seria a seguinte: “Os verdadeiros custos de um padrão fiduciário baseado no papel-moeda teriam de ter em conta (1) os custos impostos à sociedade por diferentes fações políticas na tentativa de ganhar o controle da máquina de emitir moeda, (2) os custos impostos pelos grupos de interesse especiais na sua tentativa de persuadir o responsável pela emissão de moeda a utilizar a própria autoridade para imprimir mais dinheiro em benefício de grupo de interesse especial em questão, (3) os custos em forma de má distribuição de recursos induzida pela inflação que geralmente ocorre na economia sempre que a autoridade monetária sucumbe às pressões políticas dos grupos privilegiados de interesse, e (4) os custos em que incorrem as empresas na sua tentativa de prever o que a autoridade monetária fará no futuro e de se proteger contra as ações e consequências prováveis, mas sempre incertas, da irresponsabilidade monetária. Tendo em conta estas considerações não é difícil acreditar que um padrão-ouro custa menos do que um padrão-ouro baseado em dinheiro fiduciário.”

[85] Roger W. Garrison lembra-nos ainda que os recursos reais dedicados à produção e à distribuição do ouro são, em grande parte, inevitáveis, uma vez que o metal amarelo, independentemente de se converter ou não no padrão-ouro monetário, continua a ser extraído, refinado, distribuído e guardado, sendo que se dedica um substancial volume de recursos a todo este tipo de atividades. Ver: Roger W. Garrison, “The Costs of a Gold Standard”, em The Gold Standard, ob. cit., p. 70.

[86] Ver Milton Friedman e Anna J. Schwartz, “Has Government any Role in Money?”, publicado originalmente no Journal of Monetary Economics, n.º de janeiro de 1986, pp. 37-62. É evidente que um padrão ouro puro com um coeficiente de reserva de 100% deveria atrair fortemente os monetaristas, uma vez que estabeleceria o equivalente a uma regra monetária relativamente estável e tornaria impossíveis as contrações súbitas da oferta monetária, dado o caráter indestrutível dos estoques de ouro, eliminando assim completamente os exercício discricional da autoridade governamental sobre o campo monetário. Deste ponto de vista, e por razões de estrita coerência, não surpreende que os teóricos monetaristas como Friedman tenham vindo a aproximar-se cada vez mais do padrão-ouro que, até agora, desdenhavam.

[87] Mark Skousen, Economics on Trial, ob. cit., p. 142.

[88] Como refere Murray N. Rothbard: “Depending on how we define the money supply —and I would define it very broadly as all claims to dollars at fixed par value— a rise in gold price sufficient to bring the gold estoque to 100 per cent of total dollars would require a ten —to twenty— fold increase. This of course would bring an enormous windfall gain to the gold miners, but this does not concern us. I do not believe that we should refuse an offer of a mass entry into Heaven simply because the manufacturers of harps and angels’ wings would enjoy a windfall gain.” Murray N. Rothbard, “The Case for a 100 Percent Gold Dollar”, ob. cit., p. 68 (itálico acrescentado). Em todo o caso, é preciso reconhecer, como faz Rothbard, que esse crescimento do valor do ouro levaria, sobretudo durante os primeiros anos depois da transição, a um enorme estímulo da indústria dedicada à extração e à distribuição de ouro, modificando, assim, em certa medida, a atual estrutura do comércio internacional e dos fluxos migratórios e de capital. Mais tarde, Murray N. Rothbard mudou de opinião e, com o objetivo de evitar que os bancos enriquecessem de forma ilegítima, propôs que a conversão para ouro se efetuasse com base nas notas de banco, forçando uma deflação da massa monetária correspondente ao volume total de depósitos à vista. Apesar desta mudança de posição de Rothbard, pensamos que a nossa proposta (que apresentamos mais adiante) é muito superior, uma vez que evita a desnecessária deflação que a proposta dele geraria. Ver: Murray N. Rothbard, “The Solution”, The Freeman: Ideas on Liberty, novembro de 1995, pp. 697-702.

[89] Podemos encontrar uma breve e clara descrição do sistema bancário estabelecido pelo general Perón no artigo de José Heriberto Martínez, “El Sistema monetario e bancario argentino”, publicado em Homenaje a Lucas Beltrán, Editorial Moneda e Crédito, Madrid 1982, pp. 435-460. A passagem do texto aparece nas pp. 447-448.

[90] Curiosamente, no novo e breve parênteses peronista de 1973, foi restabelecida a nacionalização dos depósitos bancários, mais tarde abolida a 24 de março de 1976, altura em que as forças armadas puseram fim ao regime de Perón e assumiram o poder. O que aconteceu depois já pertence à história econômica e mostrou que o sistema de “liberdade” e irresponsabilidade bancária que entrou em vigor a partir de então foi quase tão perturbador como o desenvolvido antes por Perón. Por fim, a quebra da caixa de conversão peso-dólar, instaurada pró Domingo Cavallo dez anos antes, ilustra de novo na perfeição outro dos princípios teóricos essenciais desenvolvidos neste livro: que é impossível um sistema bancário com reserva fracionária sem prestamista de última instância.

[91] Em síntese, o que a experiência de Perón demonstrou foi o fracasso da nacionalização do crédito, e não do coeficiente de reserva de 100%, dando origem a todos os efeitos negativos que Ludwig von Mises tinha previsto em 1929 no seu artigo sobre a nacionalização do crédito: Ludwig von Mises, Die Verstaatlichung des Kredits: Mutalisierung des Kredits, Travers-Borgstroem Foundation, Berna, Munique e Leipzig 1929. Este trabalho foi posteriormente traduzido para inglês com o título “The Nationalization of Credit?” e publicado em A Critique of Interventionism: Inquiries into the Economic Policy and the Economic Ideology of the Present, Arlington House, Nova York, 1977, pp. 153-164.

[92] Ver Maurice Allais “Une objection générale: la construction européenne”, pp. 359- 360 do seu artigo já citado “Les conditions monétaires d’une économie de marchés”.

[93] De qualquer forma, o estabelecimento do padrão-ouro com um coeficiente de reserva de 100% em economias tão importantes como a norte-americana e a europeia seria um exemplo de liderança de enorme importância no campo monetário, que não poderia ser ignorada pelos demais países, que se veriam obrigados a seguir os passos dessas nações em favor da mesma reforma.

[94] Ver o já clássico trabalho de William H. Hutt, Politically Impossible…?, Institute of Economic Affairs, Londres 1971. Uma análise muito semelhante à apresentada no texto, mas em relação à reforma da Segurança Social, é desenvolvida no meu artigo “Teoría de la crisis e reforma de la seguridad social”, publicado em Jesús Huerta de Soto, Estudios de economía política, Unión Editorial, Madrid 1994, cap. XVI, pp. 250-284. Finalmente, atualizei, desenvolvi e apresentei minhas ideias sobre a melhor maneira de levar à prática as reformas políticas de liberalização econômica em Jesús Huerta de Soto, “El economista liberal e la política”, em Manuel Fraga: homenaje académico, Fundación Cánovas del Castillo, Madrid 1997, volume I, pp. 763-788. Versão inglesa, “A Hayekian Strategy to Implement Free Market Reforms”, em J.B. Backhaus, W. Heijmann, A. Nantjes e J. van Ophem (eds.), Economic Policy in an Orderly Framework: Liber Amicorum for Gerrit Meijer,Lit Verlag, Münster 2003, pp. 231-254.

[95] José Antonio de Aguirre, no “Anexo” que escreveu para a edição espanhola do livro de Vera C. Smith,Fundamentos de la banca central e de la libertad bancaria (ob. cit., especialmente pp. 280-282), demonstrou que o estudo e a polêmica entre as diferentes escolas que analisam o processo de privatização do setor financeiro, monetário e bancário deu pelo menos lugar a que tenha surgido um consenso generalizado a favor da independência das autoridades monetárias, que se materializou em diversas reformas legislativas ocorridas em diferentes países do mundo (incluindo a União Europeia).

[96] O depositante num banco é possuidor de “dinheiro”, na medida em que estaria disposto a conservar os depósitos mesmo que não recebesse qualquer tipo de juros do banco. O fato de, num sistema bancário com reserva fracionária, terem confundido os depósitos com os empréstimos torna aconselhável, em nossa opinião, que se conceda a opção para que, durante um período de tempo prudente, os titulares dos depósitos decidam se os vão converter ou não em participações dos futuros fundos de investimento que venham a se constituir com os ativos dos bancos. Desta forma, tornar-se-ia claro que parte dos depósitos é subjetivamente considerada dinheiro e que parte seria considerada verdadeiro empréstimo aos bancos (o que implica uma perda da disponibilidade da moeda durante um período de tempo), evitando-se assim que, terminada a reforma, se verifiquem desnecessárias e perturbadoras as transferências em massa de investimentos dos possuidores dos depósitos para as participações dos fundos. Como assinala Ludwig von Mises: “The deposits subject to cheques have a different purpose (than the credits loaned to banks). They are the businessman’s cash like coins and bank notes. The depositor intends to dispose of them day by day.He does not demand interest, or at least he would entrust the money to the bank even without interest.”Ludwig von Mises, Money, Method and the Market Process, ob. cit., p. 108.

[97] “The necessary reserve funds will be created by printing paper money and put it in the hands of the banks which need reserves by simple gift. Even so, of course, the printing of this paper would be non-inflationary, since it would be immobilized by the increased reserve requirements.” Ver: Albert G. Hart “‘The Chicago Plan’ of Banking Reform”, ob. cit. pp. 105-106, e a nota de rodapé n.º 1 da p. 106, onde atribui a paternidade desta proposta a Frank H. Knight.

[98] O fato das notas de banco e os depósitos criados do nada pelo sistema bancário com reserva fracionária gerarem um patrimônio que se poderia considerar lucro dos próprios bancos foi demonstrado originalmente por Mises, como já explicamos no capítulo IV deste livro ao referirmos o caráter permanente e indefinido da fonte de financiamento que caracteriza esses depósitos. O fato de, contabilmente, os créditos criados do nada se terem enquadrado com os depósitos, também criados do nada, oculta o público em geral o fato econômico fundamental de que os depósitos são, em última instância, dinheiro, ou melhor, substitutos monetários perfeitos, que nunca se retiram do sistema bancário, bem como o fato de que os ativos dos bancos são um numeroso patrimônio expropriado de forma diluída aos demais cidadãos, do qual só as instituições bancárias e seus acionistas tiram proveito. É curioso que os próprios banqueiros acabaram por estar implícita ou explicitamente conscientes deste fato, tal como nos indica Karl Marx: “quando emite notas que não estejam cobertas pela reserva metálica acumulada nos cofres, o banco cria signos de valor que não são simplesmente meios de circulação, mas também, para ele, capital adicional — embora fictício — no valor nominal destas notas não cobertas. Naturalmente, este capital adicional rende ao banco um lucro adicional. Em Bank Acts, 1857, Wilson pergunta a Newmarch: n.º 1563 a circulação das próprias notas de banco, ou seja, o valor que em média permanece nas mãos do público completa o capital efetivo desse banco, não é verdade? Absolutamente verdade”. “1564. Todo o lucro que o banco obtém com esta circulação é, portanto, um lucro que provém do crédito e não de um capital realmente possuído por ele? Com certeza”.” Marx conclui, pois, que “os bancos criam crédito e capital, primeiro, mediante a emissão de notas de banco próprias; segundo, mediante ordens de pagamento e, terceiro, por meio do pagamento de letras descontadas, cuja capacidade de crédito é estabelecida primordial e essencialmente, pelo menos quanto ao distrito local em causa, pelo endosso do banco.” Karl Marx, El capital: crítica de la economía política, tradução de Wenceslao Roces, Fondo de Cultura Econômica, México 1973, vol. III, pp. 508-509 (itálicos acrescentados).

[99] Sobre o processo de transição para estabelecer um coeficiente de caixa de 100%, consultar Murray N. Rothbard, The Mystery of Banking, ob. cit., pp. 249- 269. Em geral, estamos plenamente de acordo com o programa de transição concebido por Rothbard, exceto no que diz respeito ao presente que pretende fazer aos bancos permitindo que fiquem com os ativos que historicamente têm vindo a expropriar da população e que, na minha opinião, seria completamente justificado utilizar para os outros fins que explicamos no texto. O próprio Rothbard reconhece esse ponto fraco da argumentação quando afirma que “The most cogent criticism of this plan is simply this: Why should the banks receive a gift, even a gift in the process of privatizing the nationalized hoard of gold? The banks, as fractional reserve institutions are and have been responsible for inflation and unsound banking” (p. 268). Rothbard parece guiar-se pela solução que propõe no próprio livro com o objetivo de evitar que a conversão para o 100% só seja efetuada em relação às notas e não aos depósitos, o que seria, evidentemente, deflacionário. No entanto, aparentemente, não se lembrou da ideia que propomos no texto. Além disso, é preciso recordar que, como já referimos no final da nota 87, pouco antes do falecimento, Rothbard mudou de opinião e propôs trocar por ouro apenas as notas em circulação (deixando à margem os depósitos bancários).

[100] O ideal seria que a mencionada troca fosse efetuada aos respectivos preços de mercado, dos títulos da dívida pública e das participações dos correspondentes fundos de investimento. Para isso seria necessário que estes se criassem e estivessem algum tempo no mercado antes que se processasse a troca correspondente (sobretudo considerando o volume de depositantes que previamente optassem por deixar de o ser, convertendo-se em titulares de fundos.

[101] Exemplificando, é preciso assinalar que o montante global dos depósitos à vista e equivalentes existentes em Espanha, em 1997, rondava os 60 trilhões de pesetas, sendo o valor da dívida pública vigente em mãos de particulares nessa data de quase 40 trilhões. Desta forma, a troca que propomos poderia ser efetuada sem maiores traumas e permitiria amortizar, de uma vez toda, a dívida pública sem prejudicar os possuidores, nem criar tensões inflacionistas desnecessárias. Por outro lado, é preciso recordar que os bancos são titulares de uma parte importante da dívida pública viva, pelo que, no seu caso, em vez de se efetuar a troca, se faria um mero cancelamento contábil. A diferença entre os 60 trilhões de depósitos à visa e equivalentes que se consolidariam com um coeficiente de caixa de 100 % e os 40 trilhões de dívida pública poderia ser utilizada para realizar parcialmente uma troca semelhante em relação a outras obrigações financeiras do Estado (no âmbito das pensões públicas da Previdência Social, por exemplo). Em todo o caso, o montante disponível para fazer este tipo de trocas é o que restaria depois da subtração dos valores correspondentes aos titulares de depósitos que livremente tivessem optado por a eles renunciar, decidindo trocá-los por participações de valor equivalente nos referidos fundos de investimento.

[102] Maurice Allais exige não só que o crescimento monetário seja utilizado para financiar as despesas correntes do Estado (diminuindo-se desta forma os impostos diretos e, concretamente, o imposto sobre o rendimento), mas também que a atividade de bancos de depósito (com um coeficiente de reserva de 100%) seja radicalmente separada da de bancos de investimento, dedicados a emprestar a terceiros o dinheiro que previamente tiver recebido em forma de empréstimo. Ver: Maurice Allais, “Les conditions monétaires d’une économie de marchés”, ob. cit. Pode ser encontrada uma análise detalhada das medidas de transição propostas por Allais nas pp. 319-320 do livro L’Impôt sur le capital et la réforme monétaire, ob. cit. A separação radical entre os bancos de depósito e os bancos de investimento é defendida também por F.A. Hayek na obra Denationalisation of Money, ob. cit.

[103] A impossibilidade de substituir a atual moeda fiduciária por padrões monetários privados de natureza artificial é uma conclusão teórica do “teorema regressivo da moeda” que explicamos na nota 34 acima. Por isso, Murray N. Rothbard é especialmente crítico em relação a autores como Hayek, Greenfield ou Yeager, que, em determinados momentos, propuseram a criação de um sistema monetário artificial baseado numa “cesta de mercadorias”. De acordo com Rothbard, “it is precisely because economic history is pathdependent that we don’t want to foist upon the future a system that will not work, and that will not work largely because such indices and media cannot emerge ‘organically’ from individual actions on the market. Surely, the idea in dismantling the government and return (or advancing) to a free market is to be as consonant with the market as possible, and to eliminate government intervention with the greatest possible dispatch. Foisting upon the public a bizarre scheme at variance with the nature and functions of money and of the market, is precisely the kind of technocratic social engineering from which the world has suffered far too much in the twentieth century.” Murray N. Rothbard, “Aurophobia: or Free Banking on what Standard?”, The Review of Austrian Economics, vol. VI, n.º 1, 1992, nota de rodapé 14 da p. 107. O curioso título deste artigo de Rothbard tem como objetivo realçar a insistência de muitos teóricos em prescindir do ouro (que é a moeda histórica por excelência) quando realizam as sua elucubrações mentais acerca de qual seria a moeda privada ideal. Sobre a crítica ao teorema regressivo da moeda feita por Richard H. Timberlake (ver o seu artigo “A Critique of Monetarist and Austrian Doctrines on the Utility and Value of Money”, The Review of Austrian Economics, n.º 1, 1987 pp. 81-96), consultar o artigo de Murray N. Rothbard “Timberlake on the Austrian Theory of Money: A Comment”, publicado em The Review of Austrian Economics, vol. II, ano 1988 pp. 179-187. Rothbard assinala acertadamente que Timberlake se empenha em considerar que a moeda tem, como qualquer outro bem, uma utilidade subjetiva direta, sem notar que, ao contrário dos bens de consumo e de produção, a única utilidade da moeda é como meio de troca, pelo que é irrelevante o volume absoluto da mesma para cumprir a função. Assim, é imprescindível recorrer ao “teorema regressivo da moeda” (que não é mais do que uma versão retrospectiva da teoria de Menger sobre o surgimento evolutivo da moeda) para explicar de que forma os agentes econômicos calculam o próprio poder de compra em função do que tiveram no passado, evitando assim cair num vicioso raciocínio circular.

[104] Murray N. Rothbard, “The Case for a Genuine Gold Dollar”, cap. I de The Gold Standard: An Austrian Perspective, ob. cit., p. 14.

[105] Assim, seria desnecessária e prejudicial a proposta feita em 1937 por F. A. Hayek. Em referência ao estabelecimento de um coeficiente de reserva de 100% para os bancos num contexto de padrão-ouro, Hayek concluía que: “it would clearly require as an essential complement an international control of the production of gold, since the increase in the value of gold would otherwise bring about an enormous increase in the supply of gold. But this would only provide a safety valve probably necessary in any case to prevent the system from becoming all too rigid.” F.A. Hayek, Monetary Nationalism and International Stability, ob. cit., p. 82. Em todo o caso, o choque inflacionário inicial poderia ser minorado se, durante os anos anteriores à passagem para a quarta etapa, os bancos centrais injetassem os seus 2% de aumento da oferta monetária em forma de compras de mercado aberto do metal amarelo.

[106] Ver, por exemplo, o livro España e la unificación monetaria europea: una reflexión crítica, Ramón Febrero (ed.), Editorial Abacus, Madrid, 1994. Outros trabalhos de interesse sobre esta polêmica são os de Pascal Salin, L’unité monétaire européene: au profit de qui?, publicado por Economica, Paris, 1980; e também o trabalho de Robin Leigh Pemberton, The Future of Monetary Arrangements in Europe, Institute of Economic Affairs, Londres, 1989.

[107] Sobre as diferentes ideias de Europa e o papel das nações, pode consultar-se Jesús Huerta de Soto, “Teoría del Nacionalismo Liberal”, em Estudios de Economía Política, ob. cit., cap. 18, pp. 197-213. A prescrição a favor das taxas de câmbio fixas é tradicional entre os teóricos da Escola Austríaca que a consideram como um second best de aproximação ao sistema monetário ideal de padrão-ouro em que os fluxos econômicos se veriam livres de perturbações monetárias desnecessárias. A análise mais exaustiva sobre as taxas de câmbio fixas na Escola Austríaca está incluída no livro de F. A. Hayek, Monetary Nationalism and International Stability, obra já citada. Por sua vez, Mises também defende as taxas de câmbio fixas (ver o livro Omnipotent Government: The Rise of the Total State and Total War, Arlington House, Nova York 1969, p. 252 e também Human Action, ob. cit., pp. 750-791). Uma boa análise do ponto de vista austríaco da teoria econômica a favor das taxas de câmbio fixas pode ser encontrada no livro de José Antonio de Aguirre La moneda única europea, Unión Editorial, Madrid 1990, pp. 35 e ss.

[108] No capítulo VI (nota 108), já nos referimos às graves crises bancárias que deflagraram na Rússia, na República Checa, na Romênia, na Albânia, na Letônia e na Lituânia, por estes países não terem seguido as recomendações que apresentamos no texto. Ver ainda Richard Layard e Andrea Richter, “Who Gains and Who Loses from Russian Credit Expansion?”, Communist Economies and Economic Transformation, vol. 6, n.º 4, 1994, pp. 459-472. Sobre os diferentes problemas enfrentados pelos projetos de reforma monetária nos países ex-comunistas, consultar, entre outros, The Cato Journal, vol. XII, n.º 3, Inverno de 1993; e também o trabalho de Stephen H. Hanke, Lars Jonung e Kurt Schuler, Russian Currency and Finance, Routledge, Londres 1993, onde os autores propõem o estabelecimento de um sistema de “caixa de conversão” como modelo ideal de transição monetária para a extinta União Soviética. Pelas razões indicadas na nota 89, consideramos este projeto de reforma muito menos adequado do que a nossa proposta de estabelecer um padrão-ouro puro com um coeficiente de caixa de 100% usando as substanciais reservas de ouro da Rússia.

 

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