CAPÍTULO IV – LUDWIG VON MISES E O INÍCIO DO DEBATE SOBRE O CÁLCULO ECONÓMICO
Neste capítulo e nos próximos, nos propomos a analisar minuciosamente o debate em torno da impossibilidade do cálculo econômico nas economias socialistas. A estatura científica das personalidades envolvidas, o seu nível teórico e a influência que teve no desenvolvimento posterior da nossa ciência fazem deste debate um dos mais importantes — e repleto de consequências — da história do pensamento econômico. Descreveremos as contribuições mais importantes de cada autor, bem como as fases e os aspectos mais significativos da controvérsia. Faremos também uma análise critica da versão mais generalizada, e na nossa opinião errônea, do seu conteúdo e desenvolvimento, e tentaremos explicar as razões para a sua predominância até os dias atuais. Começaremos neste primeiro capítulo a analisar os antecedentes históricos do debate e a estudar em profundidade a contribuição essencial de Ludwig von Mises, que o originou.
1. ANTECEDENTES
Só a compreensão adequada de que a sociedade e o mercado funcionam como ordem espontânea que resulta da interação constante de milhões de seres humanos poderia tornar evidente, na história do pensamento econômico, que o socialismo é um erro intelectual e, logo, algo impossível do ponto de vista teórico e prático. Embora a tradição de pensamento ou concepção da sociedade que apresentamos nos dois capítulos anteriores possa remontar há mais de dois mil anos,[1] a verdade é que ela foi se formando com grandes dificuldades ao longo dos séculos e sempre em constante conflito com o racionalismo construtivista, que justifica a coerção e a violência sistemáticas e para o qual o ser humano se orienta de forma quase inevitável. Desde o antigo kosmos dos gregos, entendido como ordem natural ou espontânea criada independentemente da vontade deliberada dos humanos, e da mais remota tradição jurídica romana,[2]passando pelas contribuições já mais recentes dos teóricos espanhóis e de Cantillon, Turgot e Menger, até chegar a Mises, Hayek e os demais pensadores liberais contemporâneos, há todo um caminho repleto de dificuldades e, em muitas das suas etapas, completamente inundado pela «maré negra» do cientismo.
A ideia básica que constitui a essência da nossa crítica ao socialismo é a de que nenhum ser humano ou grupo de seres humanos pode dispor da informação ou do conhecimento necessário para organizar coordenadamente a sociedade por meio de mandatos coercivos. Esta ideia surge como corolário natural da concepção da sociedade enquanto ordem espontânea. Assim, não surpreende que não tenha sido enunciada de forma elaborada até muito recentemente, embora tenha sido defendida, pelo menos de forma embrionária, há muito mais tempo. Assim, por exemplo, sabemos, graças a Cícero, que Catão considerava o sistema jurídico romano muito superior aos outros porque «na~o se deve a` criac¸a~o pessoal de um homem, mas de muitos; na~o foi fundado durante a vida de nenhum indivi´duo em particular, e sim atrave´s de va´rios se´culos e gerac¸o~es. Pois jamais houve, no mundo, um homem ta~o inteligente capaz de prever tudo, e, mesmo que pude´ssemos concentrar todos os ce´rebros na cabec¸a de um so´ homem, seria impossi´vel para ele cuidar de tudo ao mesmo tempo, sem ter a experie^ncia que vem da pra´tica atrave´s de um longo peri´odo da histo´ria».[3]
Muitos séculos depois, Montesquieu e Turgot exploram a mesma ideia e afirmam, de forma ainda mais relevante para a questão que nos ocupa, que é contraditório pensar que o estado pode se ocupar simultaneamente quer dos grandes projetos quer de todos os pequenos detalhes que seriam necessários para os organizar.[4] Pouco mais de um século depois, em 1854, Gossen repete quase literalmente esta ideia, mas com o mérito de, pela primeira vez, o fazer para criticar expressamente o sistema comunista, chegando à conclusão de que a autoridade central projetada pelo comunismo com o objetivo de distribuir de forma coerciva os diferentes tipos de trabalho e a respectiva remuneração, rapidamente iria compreender que tinha assumido uma tarefa muito difícil para qualquer ser humano.[5] Vinte anos mais tarde, o também economista alemão Albert Schäffle, antecessor imediato de Menger como catedrático de Economia Política em Viena, demonstrou que, sem imitar o sistema de determinação de valores dos processos de mercado, seria inconcebível que o organismo de planejamento central pudesse distribuir de forma eficiente, quer do ponto de vista da quantidade quer do ponto de vista da qualidade, os recursos da sociedade.[6] E, no final do século, Walter Bagehot[7] observa de forma arguta que os homens selvagens primitivos eram incapazes de realizar até os cálculos estimativos de lucros e custos menos complexos, concluindo que em toda a sociedade industrial é imprescindível a contabilidade em unidades monetárias para estimar os custos de produção.
Uma outra contribuição que vale mencionar é a de Vilfredo Pareto. A avaliação que fazemos à influência de Pareto no debate posterior sobre o cálculo econômico socialista é ambivalente. Por um lado, a sua influência foi negativa na medida em que se concentrou na análise matemática do equilíbrio econômico, uma abordagem na qual se parte do princípio de que toda a informação necessária para a formulação da análise se encontra disponível, dando origem à ideia, mais tarde desenvolvida por Barone e repetida à exaustão, como veremos, por muitos outros economistas, de que o problema do cálculo econômico nas economias socialistas poderia ser resolvido matematicamente da mesma forma que tinha surgido e tinha sido resolvido pelos economistas matemáticos do equilíbrio, no caso de uma economia de mercado. Ressalte-se, porém, que nem Pareto nem Barone são inteiramente responsáveis pela interpretação equivocada que acabamos de comentar, uma vez que ambos mencionaram explicitamente a impossibilidade de solucionar o respectivo sistema de equações sem que se disponha da informação criada pelo próprio mercado. Concretamente, em 1897, Pareto chegou mesmo a afirmar que a solução do sistema de equações que descreve o equilíbrio, «na prática se encontrava para além da capacidade da análise algébrica, (…) sendo, neste caso, necessária uma troca de papéis, uma vez que a matemática não poderia continuar a ajudar a economia política, mas, pelo contrário, seria a economia que viria em auxílio da matemática. Por outras palavras, mesmo que todas as equações fossem conhecidas na realidade, o único procedimento para resolvê-las seria a observação da solução real dada pelo mercado.»[8] Pareto nega de forma explícita que seja possível dispor da informação necessária até para formular o sistema de equações que permitiria descrever o equilíbrio e, simultaneamente, coloca um problema colateral, que é o da impossibilidade algébrica de resolver na prática o sistema de equações que descreve formalmente o equilíbrio.
Em consonância com Pareto, Enrico Barone afirma, no seu conhecido artigo de 1908 dedicado à aplicação do paradigma iniciado por Pareto ao estado coletivista, que, mesmo que a dificuldade prática de resolver algebricamente o referido sistema de equações pudesse ser ultrapassada (não se constituindo como uma impossibilidade teórica), seria em todo o caso inconcebível (e, logo, agora sim, teoricamente impossível) obter a informação necessária para determinar os coeficientes técnicos que a formulação do respectivo sistema de equações exige.[9]
Apesar destas advertências tão claras (e isoladas), afirmamos anteriormente que a nossa avaliação quanto às contribuições de Pareto e Barone é ambivalente. De fato, embora ambos os autores se refiram explicitamente à dificuldade prática de resolver o correspondente sistema de equações, bem como à inultrapassável impossibilidade teórica de obter a informação necessária para descrever o equilíbrio, ao iniciarem um novo paradigma científico no campo da economia, baseado na utilização do método matemático para descrever, pelo menos em termos formais, o modelo de equilíbrio, Pareto e Barone se vêem inexoravelmente forçados a supor que, pelo menos nesses mesmos termos formais, a informação se encontra disponível. Desta forma, apesar das reservas levantadas de passagem por Pareto e Barone, um grupo muito numeroso de economistas que continuaram o paradigma por eles iniciado não chega a compreender completamente que a análise matemática do equilíbrio tem, no máximo, um valor hermenêutico ou interpretativo, mas não acrescenta nada à possibilidade de resolver teoricamente o problema que se coloca a qualquer órgão diretor que pretenda obter a informação prática necessária para planificar e coordenar coercivamente a sociedade.
O primeiro artigo a abordar de forma sistemática o problema econômico insolúvel que se colocaria numa sociedade coletivista é de autoria do economista holandês Nicolaas G. Pierson.[10] O artigo de Pierson é especialmente meritório, sobretudo tendo em conta que foi escrito em 1902. Pierson demonstra que o problema do valor em geral, e, em particular, o problema colocado por toda a ação humana no que se refere à necessidade de apreciar os fins e os meios, é indissociável da natureza humana, pelo que existirá sempre, não podendo ser anulado pelo estabelecimento de um sistema socialista. Pierson se refere ainda à grande dificuldade que constitui a realização de cálculos e avaliações na ausência de preços, criticando os projetos torpes de instituição prática do comunismo que tinham sido enunciados até então e, em concreto, o cálculo econômico em horas de trabalho. No entanto, apesar de todas estas importantes contribuições, Pierson demonstrou apenas intuições brilhantes, não tendo sido capaz de identificar completamente o problema colocado pelo caráter disperso da informação prática que é constantemente gerada e transmitida no mercado, e fora preciso esperar até à monumental contribuição de Mises para que o problema fosse, pela primeira vez, claramente enunciado. [11]
Muito pouco tempo antes de Mises, Wieser intui também o problema econômico fundamental ao afirmar, em 1914, que, na economia, a ação dispersa de milhões de indivíduos é muito mais eficaz do que a ação organizada desde cima por um único centro de poder, uma vez que este nunca «poderá chegar a se informar das inúmeras possibilidades econômicas existentes.»[12]
O sociólogo alemão Max Weber, na sua obra magna Economia e Sociedade, publicada postumamente em 1922 depois de um período prolongado de elaboração, se dedica expressamente aos problemas econômicos que surgiriam com a tentativa de pôr em prática o socialismo. De forma concreta, Weber salienta que os cálculos em espécie propostos por determinados socialistas não poderiam proporcionar uma solução racional para os problemas surgidos. Weber destaca em particular que a conservação e o emprego racional do capital só podem ser assegurados numa sociedade baseada na livre troca e no uso da moeda, pelo que a perda e destruição generalizadas dos recursos econômicos que um sistema socialista provocaria (sistema este sem cálculo econômico racional) fariam com que fosse impossível manter até os níveis de população que tinham sido atingidos na sua época nas áreas com maior densidade populacional.[13] Não temos nenhuma razão para não acreditar em Weber quando este afirma, em nota de rodapé, que só teve conhecimento do importantíssimo artigo de Mises quando o seu livro já se encontrava em impressão.
Por fim, em estreita relação com os trabalhos de Max Weber, nos resta assinalar a contribuição do professor russo Boris Brutzkus, que, no início dos anos vinte do século passado, e como resultado da sua investigação sobre os problemas práticos criados pelo estabelecimento do comunismo na Rússia soviética, chega a conclusões muito semelhantes às de Mises e Max Weber, indo ao ponto de afirmar explicitamente que o cálculo econômico nas sociedades de planejamento central, onde não existem preços de mercado, é uma impossibilidade teórica.[14]
Estas são, basicamente, as contribuições mais importantes e constituem a pré-história do debate sobre a impossibilidade do cálculo econômico nas economias socialistas. O denominador comum de todas elas é que, em geral, só de forma muito superficial e imperfeita atacam o problema constituído pelo socialismo e que, como vimos em detalhes no capítulo anterior, consiste na impossibilidade teórica de o órgão de planejamento central poder dispor da informação prática necessária para organizar a sociedade. Além disso, nenhuma destas contribuições foi capaz de despertar os teóricos socialistas da letargia em que se encontravam. Em geral, e na mais pura tradição marxista, estes se limitavam a criticar o sistema capitalista, sem lançar nenhuma luz sobre o problema fundamental de saber como haveria de funcionar o socialismo na prática. Só Kautsky, incitado pelo artigo de Pierson já comentado, e violando o acordo tácito existente a respeito entre o marxistas, se atreveu a tentar indicar qual deveria ser a futura organização socialista, conseguindo com isso não mais do que demonstrar a sua absoluta incompreensão sobre qual era o problema econômico fundamental que Pierson tinha levantado.[15] Seria preciso esperar até à fundamental contribuição de Mises para encontrar análises de algum interesse realizadas na perspetiva socialista. A única exceção é a do Dr. Otto Neurath,[16] que, em 1919, publicou um livro argumentando que as experiências da I Guerra Mundial tinham «demonstrado» que o planejamento central podia ser realizado perfeitamente in natura. Foi precisamente o livro de Neurath que motivou a fulgurante resposta de Ludwig von Mises, que tomou forma numa conferência pronunciada em 1919 e que constituiu a base do seu transcendental artigo publicado da primavera do ano seguinte, em 1920.[17]
2. A CONTRIBUIÇÃO ESSENCIAL DE LUDWIG VON MISES
Se há alguma coisa em que todos os participantes do debate sobre o cálculo econômico socialista estão de acordo é no fato dele ter começado oficialmente em 1920 com o famoso artigo de Mises «Die Wirtschaftsrechnung im Sozialistischen Gemeinwesen», ou seja, «O Cálculo Econômico na Comunidade Socialista».[18] Este artigo reproduz o conteúdo da conferência apresentada por Mises no ano anterior (1919) para a Nationalökonomische Gesellschaft (Sociedade Econômica) e na qual contestava a tese do livro de Otto Neurath publicado naquele mesmo ano. É difícil exagerar o grande impacto que o artigo de Mises teve entre os seus colegas economistas profissionais e entre os teóricos do socialismo. A sua lógica fria e estrita, clareza de exposição e o seu espírito provocador faziam com que fosse impossível que os seus argumentos permanecessem ignorados, tal como tinha acontecido em relação aos daqueles que o precederam. Assim, Otto Leichter salienta que cabe a Mises o mérito de ter sido o primeiro a chamar energicamente a atenção dos teóricos socialistas para a necessidade de resolver o problema do cálculo econômico.[19] E o economista socialista Oskar Lange, do qual teremos a oportunidade de falar in extenso mais adiante, escreveu, em tom irônico, que os serviços de Mises à teoria do socialismo eram tão importantes que devia ser erguida uma estátua em sua homenagem num lugar de honra no salão mais importante do órgão de planejamento central de todos os países socialistas.[20] Talvez não fosse de estranhar que, depois de tudo, e tendo em conta os acontecimentos históricos nos países de Leste, as irônicas afirmações de Lange se virassem contra ele como um bumerangue e que em muitas praças das capitais das antigas nações comunistas viessem a ser erguidas estátuas do jovem Mises, substituindo as já caducas e decadentes estátuas dos antigos líderes marxistas.[21]
Caráter e conteúdo básico da contribuição de Mises
Pela primeira vez, a contribuição essencial de Mises circunscreve-se à análise teórica sobre os processos de criação e transmissão de informação prática que constituem a sociedade e que analisamos em detalhes nos Capítulos II e III deste livro. Mises revela ainda uma utilização débil dos termos, e, mais do que falar de informação prática dispersa, se refere a um certo tipo de divisão intelectual do trabalho, que, segundo ele, constitui a essência do mercado, proporcionando e gerando a informação que possibilita o cálculo ou a estimativa econômica exigida por qualquer decisão empresarial. Mises afirma que «a distribuição do controle administrativo sobre os bens econômicos pelos indivíduos da sociedade que participam na sua produção exige uma espécie de divisão intelectual do trabalho que não é possível sem um sistema de cálculo e sem um mercado.»[22] Dois anos depois, em 1922, no seu tratado sistemático sobre o socialismo, Mises repete a mesma ideia de forma ainda mais clara: «Nas sociedades baseadas na divisão do trabalho, a distribuição dos direitos de propriedade dá origem a uma espécie de divisão intelectual ou mental do trabalho, sem a qual não seria possível qualquer tipo de produção ou economia»[23], e cinco anos mais tarde, em 1927, emLiberalismus, Mises conclui explicitamente que a sua análise se baseia na impossibilidade de, no socialismo, poder ser gerada a informação prática necessária, em forma de preços de mercado, para a divisão intelectual do conhecimento, que exige uma sociedade moderna e que só surge como consequência da capacidade criativa da ação humana ou função empresarial: «A objecção definitiva levantada pela economia contra a possibilidade de uma sociedade socialista é a de que esta exige a renúncia da divisão intelectual do trabalhoque consiste na cooperação de todos os empresários, proprietários de terras e trabalhadores, como produtores e consumidores, na formação de preços de mercado.»[24]
Outra contribuição fundamental de Mises foi a descoberta de que a informação que o mercado cria e gera de forma constante nasce do exercício da capacidade empresarial, tendo em conta as circunstâncias particulares de tempo e lugar que só são apreciadas por cada ser humano no contexto em que atua. Assim, o conhecimento prático empresarial tem origem no mercado como consequência da posição específica que cada agente ocupa no processo produtivo, pois se for impedido o livre exercício da empresarialidade e se tentar organizar coercivamente a sociedade desde cima, os empresários, ao não poderem agir livremente, deixarão de o ser e não chegarão sequer a ter consciência da informação que deixam de identificar e de criar, independentemente do grau de sucesso dos seus estudos ou qualificações profissionais de gestão.[25]Efetivamente, Mises afirma que «a ação e atitude comercial do empresário surge da sua posição no processo econômico e se perde quando essa posição desaparece. Quando um empresário bem-sucedido é nomeado gerente de uma empresa pública, poderá aplicar aguma experiência anterior no seu novo trabalho cotidiano. No entanto, deixa inevitavelmente de ser um empresário e se converte num burocrata como qualquer outro. O que faz o empresário não é o conhecimento de contabilidade, da organização empresarial, da correspondência comercial ou até um título de uma escola de ciências empresariais, mas sim o fato de ocupar uma posição característica no processo produtivo, que lhe permite identificar os seus interesses e os da sua empresa.»[26] Mises desenvolve e amplia esta mesma ideia no seu tratado sobre o socialismo, no qual chega à breve e clara conclusão de que «o empresário privado da posição característica que tinha na vida económica deixa de ser um homem de negócios. Por muita experiência e prática que possa trazer para o seu novo emprego, não deixará de ser apenas um alto funcionário.»[27]
Assim, na medida em que impede, pela força, o livre exercício da empresarialidade na área essencial dos fatores de produção (bens de capital e recursos da natureza), o socialismo não permite a transmissão nem o surgimento da informação prática que seria necessária para que o órgão de planejamento central pudesse distribuí-los de forma adequada. Uma vez que não surge, esta informação não pode ser levada em conta no cálculo estimativo que é necessário realizar em qualquer decisão econômica racional. Desta forma, no momento da tomada de decisão e da atuação, o órgão central de controle não tem a certeza de não estar renunciando à realização dos fins e objetivos que, na sua própria perspectiva, têm mais importância. As decisões econômicas no socialismo são, portanto, arbitrárias e se desenvolvem na mais absoluta obscuridade.
Chegando a este ponto, é muito importante salientar que o argumento de Mises é um argumento teórico sobre o erro intelectual que impregna toda a ideia socialista, uma vez que não é possível organizar a sociedade por meio de mandatos coercivos, dada a impossibilidade de o órgão de controle obter a informação necessária para tal objetivo. O argumento de Mises é um argumento teórico sobre a impossibilidade prática do socialismo.[28] Ou, por outras palavras, o argumento teórico por excelência, já que a teoria é apenas uma análise abstrata, formal e qualitativa da realidade, mas que nunca deve perder a sua relação com a esta. Pelo contrário, deverá ser tão relevante quanto possível para os casos e processos do mundo real. No entanto, é completamente incorreto pensar que a análise de Mises se referia à impossibilidade do socialismo do ponto de vista do modelo formal do equilíbrio ou da «pura lógica da escolha», como muitos autores prestigiados, incapazes de distinguir entre «teoria» e análise do equilíbrio erradamente afirmaram (como veremos adiante). De fato, já em 1920, o próprio Mises teve o cuidado de negar expressamente que a sua análise pudesse ser aplicada ao modelo de equilíbrio, o qual, ao pressupor na sua formulação que toda a informação necessária estará disponível, faz com que o problema econômico fundamental colocado pelo socialismo se considere resolvido ab initio e, logo, que passe despercebido para os teóricos do equilíbrio. Na verdade, o problema reside, precisamente, no fato de o órgão de controle não ter a informação de que necessita para saber se está ou não agindo de forma correta quando emite um édito ou mandato a favor ou contra determinado projeto econômico, pelo que não pode realizar qualquer cálculo ou estimativa econômica. Se se parte do princípio de que o órgão de controle dispõe de toda a informação necessária e de que, além disso, não existem alterações, é evidente que não se coloca qualquer problema de cálculo econômico, uma vez que se considera à partida que esse problema não existe. Assim, Mises afirma: «A economia em estado de equilíbrio pode dispensar o cálculo econômico, dado que em tais circunstâncias os eventos econômicos se repetem de forma recorrente; e se supormos que o ponto de partida de umaeconomia socialista estática coincide com o estado final de uma economia competitiva, poderemos conceber um sistema socialista de produção racionalmente controlado do ponto de vista econômico. No entanto, esta possibilidade tem apenas um interesse conceitual, uma vez que é impossível que o estado de equilíbrio ocorra na vida real, na qual a informação econômica está constantemente em mudança, pelo que o modelo estático é apenas uma suposição teórica sem ligação com as circunstâncias da vida real.»[29] O argumento de Mises é, portanto, um argumento de aspecto teórico sobre a impossibilidade lógica do socialismo, mas que leva em consideração uma teoria e uma lógica sobre a ação humana e sobre os processos sociais, dinâmicos e espontâneos reais a que a mesma dá lugar («praxeologia»), e não uma «lógica» ou uma «teoria» construídas sobre a «ação» mecânica exercida num ambiente de perfeito equilíbrio por seres «oniscientes», tão inumanos como alheios à realidade. Ou, como Mises deixou ainda mais claro dois anos depois no seu livro sobre o socialismo: «Na sociedade estacionária já não existe um problema para ser resolvido pelo cálculo económico, porque já teria de ter sido resolvido antes. Para usar terminologia popular, mas em geral insatisfatória, podemos dizer que o problema do cálculo econômico é um problema de dinâmica econômica, e não de economia estática.»[30] Esta afirmação de Mises se encaixa perfeitamente em toda a tradição mais característica da Escola Austríaca, tal como tinha sido iniciada por Menger, depois desenvolvida por Böhm-Bawerk e impulsionada na sua terceira geração pelo próprio Mises. Efetivamente, para Mises «o que distingue a Escola Austríaca e irá proporcionar-lhe fama imortal é precisamente o fato de ter desenvolvido uma teoria da ação econômica e não da “não ação” ou “equilíbrio econômico”.»[31] Assim, e uma vez que num estado de equilíbrio não é necessário qualquer tipo de cálculo econômico, não surpreende que as únicas pessoas capazes de descobrir o teorema da impossibilidade do cálculo econômico socialista tenham sido os cultivadores da uma Escola como a Austríaca, que focou o seu programa de investigação científica na análise teórica dos processos dinâmicos reais que operam no mercado, e não no desenvolvimento de modelos de equilíbrio mecanicistas mais ou menos parciais ou gerais.
Ficou assim demonstrado que a essência da teoria sobre a impossibilidade do socialismo que explicamos em detalhes nos Capítulos II e III deste livro já se encontra explicitamente enunciada no artigo escrito por Mises em 1920 e que estamos agora comentando. O trabalho de Mises teve um forte impacto no seu jovem discípulo F.A. Hayek, que, em consequência, abandou o «bem-intencionado» socialismo da sua primeira juventude e, a partir de então, dedicou um importante esforço intelectual para depurar e ampliar as contribuições do seu professor.[32] Desta forma, não é aceitável a tese, basicamente equivocada, segundo a qual existem dois argumentos diferentes contra a possibilidade do cálculo econômico nas economias socialistas. O primeiro destes argumentos seria simplesmente algébrico ou computacional, e teria sido apresentado inicialmente por Mises. De acordo com este argumento, o cálculo econômico não seria possível nos casos em que não existissem preços que permitissem a contabilidade de perdas e ganhos. O segundo argumento seria de natureza epistemológica, teria sido desenvolvido, basicamente, por F.A. Hayek e defenderia que o socialismo não poderia funcionar devido à impossibilidade de o órgão de planejamento central dispor da informação prática relevante e necessária para organizar a sociedade.[33] Na verdade, para Mises, os dois argumentos, computacional e epistemológico, são apenas duas inseparáveis faces da mesma moeda, uma vez que, por um lado, não é possível realizar qualquer cálculo econômico, nem as correspondentes estimativas, se não se dispuser da informação prática para executá-los em forma de preços de mercado, e, por outro lado, tal informação só se cria e gera constantemente como consequência do livre exercício da função empresarial que de forma contínua constata as relações de troca ou preços de mercado que ocorreram no passado e tenta entender ou descobrir quais serão os preços de mercado que existirão no futuro, atuando em consonância e resultando na efetiva formação de preços futuros. Nas palavra do próprio Mises, escritas em 1922: «São os empresários que criam a informação a que cada um ajusta os seus negócios e que, portanto, orienta as suas operações comerciais.»[34]
Estas considerações não impedem que se reconheça que o trabalho de Mises em 1920 ainda estava longe das aperfeiçoadas e depuradas contribuições que Hayek e o próprio Mises viriam a efetuar nas décadas posteriores e que viriam a culminar no desenvolvimento da análise da função empresarial e dos consequentes processos de geração e criação de informação, que já apresentamos nos Capítulos II e III deste livro. Por outro lado, é preciso ter em mente que a contribuição inicial de Mises estava fortemente influenciada por um ambiente marxista prévio que ele pretendia contestar e que o levou a salientar na sua análise sobretudo a necessidade do uso da moeda e a existência de preços para tornar possível o cálculo econômico. Assim, para situar o artigo de 1920 de Mises no seu contexto correspondente e adequado, dedicaremos o próximo tópico a estudar com algum detalhe qual era o ambiente marxista anterior que prevalecia no mundo acadêmico e intelectual no qual Mises se desenvolveu durante os anos imediatamente anteriores a 1920 e com o qual se familiarizou intimamente no seminário que Böhm-Bawerk dirigiu até o advento da I Guerra Mundial.
3. O FUNCIONAMENTO DO SOCIALISMO SEGUNDO MARX
Não há dúvida de que Mises elaborou o seu trabalho pioneiro tendo em mente sobretudo a concepção marxista do socialismo que prevalecia na Europa no início dos anos de 1920. Por isso, em primeiro lugar, é preciso dedicar algum espaço a identificar as ideias que circulavam na época sobre esse tema tão importante.
A primeira questão a colocar é se Karl Marx tinha uma ideia clara sobre como deveria funcionar na prática o sistema socialista que preconizava. Trata-se de uma questão importante não só porque Mises acusou reiteradamente Marx e os seus seguidores de tentarem imunizar-se em relação a todas as análises críticas ao sistema socialista com o simples argumento de que a referida análise seria irrelevante e «utópica», uma vez que o socialismo chegaria obrigatoriamente com um resultado inexorável da própria evolução do capitalismo, mas também porque o próprio Marx considerou que, dentro do seu esquema teórico, a especulação minuciosa e detalhada sobre os aspetos concretos do socialismo do futuro não era «científica». Apesar de tudo, e embora não haja dúvida de que a referida posição marxista foi utilizada de forma abusiva e sistemática para evitar a discussão teórica sobre as possibilidades reais de funcionamento do socialismo, na nossa opinião, na análise crítica do capitalismo, que constitui o cerne da argumentação socialista, é possível distinguir claramente, ainda que de forma implícita e embrionária, uma análise de como, de acordo com Marx, o socialismo deveria funcionar na prática.[35] Na nossa opinião, Marx estava tão influenciado e obcecado pelo modelo de ajuste e de equilíbrio de Ricardo que toda a sua teoria tenta justificar um equilíbrio normativo, no sentido de que, segundo Marx, o proletariado deve forçar coercivamente uma «coordenação» a partir de cima para acabar com as características típicas do capitalismo. É preciso ressaltar que, no que diz respeito à análise positiva e detalhada das realidades econômicas do sistema capitalista, Marx se concentra sobretudo, e paradoxalmente, no estudo dos desequilíbrios e desajustes que ocorrem no mercado, de forma que a teoria marxista é, antes de tudo, uma teoria do desequilíbrio que, por vezes, mostra curiosas coincidências com a análise dos processos de mercado desenvolvida pelos economistas da Escola Austríaca em geral e, em particular, pelos próprios Mises e Hayek.
Assim, curiosamente, Marx percebeu, até certo ponto, a forma como o mercado atuava, enquanto ordem espontânea e impessoal, como um processo criador e transmissor de informação que tornava possível pelo menos alguma coordenação na sociedade. De fato, em Grundrisse podemos ler: «Já se disse e se pode dizer que a grandeza e a beleza do mercado reside precisamente na sua interligação espontânea, nesse especial metabolismo material e mental que é independente do conhecimento e da vontade dos indivíduos, e que pressupõe a sua independência e indiferença recíproca. E, certamente, esta ligação objetiva é preferível à ausência de qualquer ligação, ou a ligações de aspecto apenas local baseadas nos laços de sangue ou em relações de tipo primitivo, natural ou de servilismo.»[36] (itálico acrescentado). Além disso, Marx reconhece explicitamente o papel desempenhado pelas instituições para permitir a aquisição e transmissão de informação prática no mercado e a importância que têm para o conhecimento dos agentes econômicos: «Juntamente com o desenvolvimento desta alienação, são feitos esforços para a ultrapassar: surgeminstituições onde cada indivíduo pode adquirir informação sobre a atividade dos demais, tentando ajustar convenientemente a sua. (…) Embora a oferta e a procura totais sejam independentes da ação de cada indivíduo, cada um tenta se informar sobre elas, de forma que, na prática, este conhecimento venha a ter influência sobre o total da oferta e da procura.»[37]
Ora, se Marx condena o mercado é precisamente porque o contrasta com um sistema econômico «ideal» no qual os indivíduos são capazes de subordinar todas as suas relações sociais a um controle comunal de aspecto centralizado e coercivo, que, acredita-se, permitirá que todo o processo social seja o resultado de uma organização consciente e deliberada, e não, como ocorre no mercado, um processo impessoal não concebido nem controlado conscientemente por ninguém e, logo, «alienante». Além disso, este controle organizado de toda a sociedade deverá ser realizado através da elaboração a priori de um plano detalhado que permita organizar toda a sociedade, da mesma forma que um arquiteto desenha com minúcia os planos de edificação antes da construção: «O que distingue o pior arquiteto da melhor das abelhas é que o arquiteto concebe a estrutura do seu edifício na imaginação antes de a erigir na realidade.»[38] É, portanto, através deste contraste exclusivo entre a «anarquia» da produção própria da ordem espontânea do mercado e a «perfeita organização» que acredita ser resultante do planejamento central que Marx critica o capitalismo e defende o sistema socialista que, segundo ele, inexoravelmente o substituirá.
É fácil verificar que o erro essencial de Marx reside em confundir, por um lado, os conceitos de informação prática e informação científica e, por outro, em pensar que a informação prática tem um caráter objetivo e pode ser «absorvida» pelo órgão central de planejamento. Marx ignora o caráter subjetivo, privativo, disperso, tácito, e não articulável da informação prática que apresentamos em detalhes no Capítulo II deste livro, e não percebe não só que, do ponto de vista científico, é impossível a coordenação centralizada dos desajustes sociais, mas também que o desenvolvimento e a criação constante de informação nova são um resultado exclusivo do processo empresarial capitalista e não são reproduzíveis de forma coerciva e centralizada. Ou seja, o surgimento de novas tecnologias, produtos, métodos de distribuição e, em geral, a geração de informação nova empresarial só é logicamente possível através do processo espontâneo de mercado tão criticado por Marx e que é impulsionado pela força da empresarialidade. E, neste sentido, se chega ao paradoxo de que, do seu próprio ponto de vista, o socialismo marxista é um socialismo utópico, uma vez que uma concepção adequada da natureza da informação que se cria e utiliza no mercado nos leva inevitavelmente à conclusão de que as próprias forças de evolução e desenvolvimento técnico e econômico fazem com que seja impossível que o mercado se encaminhe em direção a uma ordem social baseada na organização centralizada e coerciva de toda a informação prática.
É este, e não outro, o erro básico de Marx, e todos os seus outros equívocos em matéria econômica e social podem ser consideradas meras consequências específicas deste erro original radical. Assim, por exemplo, a sua teoria do valor do trabalho não é mais do que o corolário natural da crença de que a informação ou conhecimento é algo objetivo e inequivocamente discernível do ponto de vista de um observador externo. Nós, pelo contrário, sabemos que o valor é apenas uma ideia ou informação subjetiva, dispersa e inarticulável, ou seja, uma apreciação ou projeção da mente humana sobre as coisas ou meios econômicos, psicologicamente tanto mais intensa quanto o agente acredite subjetivamente que mais úteis serão os referidos meios para alcançar os fins pretendidos.
Esta concepção equivocada da teoria do valor invalida igualmente toda a teoria marxista da mais-valia e da exploração, não apenas por ignorar conscientemente os meios econômicos que, não sendo mercadorias, não incluíam qualquer tipo de trabalho na sua elaboração, mas, sobretudo, como logo demonstrou Bo¨hm-Bawerk,[39] pelo fato da análise marxista desconhecer completamente a categoria da preferência temporal, e o fato de toda a ação humana, em geral, e de todo o processo produtivo em particular, exigir tempo. Assim, Marx pretende que se pague aos trabalhadores não o valor do que produzem, mas consideravelmente mais do que isso, uma vez que exige que recebam o valor integral da sua contribuição para o processo produtivo que é avaliado, não no momento em que a contribuição é feita, mas sim no momento temporalmente posterior em que o processo produtivo já tenha terminado. Além disso, a análise da mais-valia de Marx é sustentada num raciocínio circular que nada explica. De fato, o suposto valor objetivo do trabalho é determinado com base no seu custo de reprodução em termos de bens que são necessários para o manter e que, por sua vez, seria determinado pelo trabalho incorporado nestes bens e assim sucessivamente, num vicioso raciocínio circular que não é capaz de explicar nada.
Marx considerava que o estado socialista ideal teria de organizar a sociedade como uma «imensa fábrica», toda ela planificada desde cima de forma «racional». Só assim se evitariam, na sua opinião, as grandes insuficiências e redundâncias próprias do sistema capitalista e, sobretudo, só dessa forma seria possível abolir todas as relações de mercado, em geral, e, em particular, a circulação da moeda, entendido como meio de troca. Assim, Marx afirma explicitamente que «no caso da produção socializada, a moeda é eliminada. A sociedade distribui o trabalho e os recursos pelos diferentes ramos de produção. Os produtores podem, para todos os efeitos, receber cupons de papel que lhes dêem direito a retirar a oferta social de bens de consumo em quantidade que corresponda ao tempo de trabalho realizado. Estes cupons não são moeda, não circulam.»[40] Noutro lugar, referindo-se ainda a estes cupons, Marx diz que são «não são mais meoda do que uma entrada para o teatro».[41] Marx transmite toda esta concepção aos seus discípulos, sendo esta popularizada na sua versão mais conhecida, a de Friedrich Engels, na obra Anti–Du¨hring, onde escreve que «[a] sociedade não tem mais do que calcular quantas horas de trabalho foram incorporadas numa máquina a vapor, em hectolitro de cereais da última colheita, ou em cem metros quadrados de tecido de determinada qualidade (…) a sociedade não atribuirá valores aos produtos; não expressará o fato simplicíssimo de que a produção de cem metros quadrados de tecido exige, suponhamos, mil horas de trabalho como hoje se faz de maneira tola e equivocada. (…) Sem dúvida, a sociedade terá necessidade de saber quanto trabalho precisa para produzir qualquer objeto de uso, terá de organizar o plano da produção em função dos instrumentos de produção, à frente dos quais aparece a força de trabalho. Em última análise, serão os efeitos úteis dos diversos objetos de uso — comparados primeiro entre si e, depois, em relação à quantidade de trabalho necessário para fabricá-los —que determinarão o plano de produção. O assunto se resolve simplesmente sem que, em nada, intervenha o famoso “valor”».[42] É, portanto, no contexto destas contribuições de Marx[43] e dos seus discípulos mais imediatos que devemos entender a ênfase do artigo de Mises apresentado em 1920 sobre a necessidade da existência da moeda e de preços monetários para tornar possível o cálculo econômico. Este é um dos aspectos que vamos comentar na tópico seguinte.
4. CONSIDERAÇÕES ADICIONAIS SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DE MISES
A refutação da análise de Marx feita por Mises
É importante levar em consideração que a demonstração por parte de Mises de que o socialismo se constitui como uma impossibilidade lógica é não só um argumento teórico sobre as possibilidades de desenvolvimento futuro do socialismo, mas também um forte e certeiro ataque ao coração da análise de Karl Marx. De fato, Mises concorda plenamente com Marx quando considera que num estado de equilíbrio não seria necessário qualquer tipo de moeda ou meio de troca, supondo que toda a informação é objetiva e está disponível para o órgão central de controle. Assim, Mises afirma expressamente: «moeda é necessariamente um “fator dinâmico”; não há lugar para moeda num sistema “estático”. Mas a própria noção de um sistema de mercado sem moeda é autocontraditória.»[44] Ora, como vimos, o argumento essencial de Mises não se refere a um tão hipotético quanto impossível modelo de equilíbrio no qual não se produzem alterações e todos os desajustes sociais desaparecem ao ser coercivamente coordenados desde cima por um órgão central de planejamento onisciente, possuidor de toda a informação relevante. Pelo contrário, para Mises, nestas circunstâncias, impossíveis na prática, não existiria qualquer problema de cálculo econômico. A contribuiçãoessencial de Mises consiste, precisamente, em ter demonstrado que é teoricamente impossível que no mundo real um órgão central de planejamento possa coordenar a sociedade coercivamente. Neste sentido, o trabalho de Mises não só demonstra a impossibilidade lógica do socialismo, como constitui o argumento teórico definitivo contra a teoria de Marx.
É óbvio que só alguém dotado de um conhecimento tão sutil e profundo sobre a forma como funcionam os processos de mercado na vida real é capaz de entender que não são possíveis o cálculo econômico e a coordenação social fora do mercado. No entanto, é preciso notar que os conceitos de preço de mercado e decompetência utilizados por Mises, a ausência dos quais é precisamente o que impede o cálculo econômico fora do mercado, não tem nada a ver com os conceitos de «preço» e «competência» utilizados pelos teóricos neoclássicos do equilíbrio. Para Mises, preço é qualquer relação histórica de troca que só surge, necessariamente, no processo competitivo movido pela força da função empresarial, e não um mero conceito paramétrico que indique os termos em que cada alternativa deverá ser oferecida em função das outras. Mais importante ainda é o fato de, segundo Mises, o termo concorrência ter um significado que é virtualmente o perfeito oposto daquele que é utilizado pela corrente neoclássica. Enquanto o denominado «modelo de concorrência perfeita» se refere a um determinado estado de equilíbrio no qual todos os participantes passivos se limitam a vender o mesmo produto a um dado preço, para Mises, concorrênciasignifica um processo dinâmico de rivalidade entre empresários que, mais do que vender a preços dados, o que fazem é tomar decisões de forma contínua e empreender novas ações e trocas que geram e criam informação nova, manifestada ou materializada constantemente em novos preços de mercado.
Mais adiante, no capítulo dedicado a Oskar Lange, teremos a oportunidade de estudar mais detalhadamente as diferenças existentes entre os conceitos de preço e de competência utilizados por Mises e os utilizados pelos economistas neoclássicos. Neste momento, o que importa salientar é que Mises, no seu artigo original de 1920, centrou o seu desafio basicamente na perspectiva do planejamento central implícito nas contribuições de Marx, e que já comentamos. Como Marx negou especificamente a necessidade do uso de preços monetários, é natural que Mises tivesse insistido com especial afinco na necessidade da existência de preços e moeda para tornar possível o cálculo econômico. Só mais tarde, quando os socialistas participantes no debate reconheceram finalmente a necessidade da existência de moeda e de preços, embora entendidos no seu sentido estritamente paramétrico para tornar o cálculo econômico possível, Hayek desenvolverá até às últimas consequências o argumento, também inicialmente apresentado pelo seu professor Mises, de que o cálculo econômico exige verdadeiros preços de mercado, e não apenas preços paramétricos, não sendo possível o exercício criativo da empresarialidade nem o ajuste e a coordenação que a sociedade exige sem a existência de mercados verdadeiramente competitivos e da propriedade privada dos fatores de produção. Relembremos, porém, que, como já referimos, todos os elementos básicos deste argumento essencial que posteriormente será depurado e aperfeiçoado por Hayek e pelo próprio Mises, referente ao papel da informação ou do conhecimento prático disperso no mercado, já estavam presentes de forma embrionária no trabalho inicial de Mises em 1920.
O cálculo monetário de perdas e ganhos
Na seção 2 do seu artigo de 1920, intitulada «A natureza do cálculo econômico», Mises distingue três tipos distintos de estimativas de valor que todo agente ou empresário pode realizar quando atua e que chama, respectivamente, de avaliações primárias, avaliações de consumo e avaliações de produção. Enquanto as avaliações primárias e as avaliações de consumo são realizadas diretamente pelo agente, ou seja, por meio de um cálculo in natura que exige apenas que cada agente compare, na sua escala subjetiva de valores, o lugar ocupado pelos diferentes fins e os meios de consumo necessários para os alcançar, as avaliações de produção, pelo contrário, são muito mais complexas, sobretudo numa estrutura produtiva como a moderna, que é composta por uma rede muito complexa de diferentes etapas produtivas, interligadas umas às outras de forma muito complicada e que duram períodos de tempo muito diferentes. Como afirma Mises, «a mente do homem é muito limitada para perceber a importância de um dos incontáveis e múltiplos fatores de produção.»[45] De fato, todas as decisões relativas aos fatores de produção são tão complicadas, que existem estimativas que só podem ser realizadas quando neles se inclui a informação proveniente dos preços monetários que são resultado do próprio processo do mercado. Apenas desta forma é possível eliminar, graças à função empresarial, os desajustes que existam na estrutura produtiva, estabelecendo-se assim a tendência de coordenação que possibilita a vida social.
O coração deste processo é constituído precisamente pelas estimativas de perdas e ganhos que os empresários fazem constantemente quando atuam no mercado dos fatores de produção. De fato, sempre que encontram uma oportunidade de lucro, os empresários agem para aproveitá-la, adquirindo fatores de produção a um preço de mercado ou custo monetário que, segundo as suas estimativas, será inferior ao preço de venda que se venha a obter pelo bem de consumo depois de tê-lo produzido. As perdas, pelo contrário, indicam que foi cometido um erro no momento de atuação e que foram destinados recursos escassos à produção de determinados serviços e bens de consumo quando existiam outros que eram mais urgentes ou importante para serem produzidos (aqueles que geram ganhos e lucros). Logicamente, quando compram e vendem fatores de produção e empreendem processos produtivos, os empresários não «agem» adaptando-se simplesmente a alguns «preços» paramétricos quiméricos. Antes, concordam de forma ativa e continuada com os verdadeiros preços de mercado nos quais vão inconscientemente incorporando a informação que a cada momento geram e descobrem. Sem moeda, sem propriedade privada e sem liberdade para o exercício da função empresarial não é possível que se gere, descubra e transmita constantemente esta informação nem, portanto, que se formem preços de mercado, os quais constituem o elemento ou a matéria prima essencial do cálculo econômico que possibilita a coordenação da vida em sociedade.
A aptidão prática do cálculo econômico
De acordo com Mises, existem três vantagens do cálculo econômico tal como realizado numa economia real de mercado. Em primeiro lugar, o cálculo econômico faz com que seja possível que se tenha em conta as valorações dos agentes econômicos que intervêm no processo social; em segundo lugar, o cálculo econômico orienta a ação, no sentido de que indica que tipo de processos produtivos devem ou não ser iniciados, o que é possível através dos indicadores ou dos «sinais» que as estimativas de perdas e de ganhos realizadas constantemente representam para os empresários; e, em terceiro lugar, o cálculo econômico permite que muitas das valorações relacionadas com a ação se reduzam ao denominador comum das unidades monetárias.
Mises admite expressamente que nem o cálculo econômico nem a moeda funcionam de forma perfeita numa economia de mercado. A moeda, como meio de troca, tem uma capacidade de compra que se modifica constantemente em diferentes direções e de forma imprevisível. E, no que se refere ao cálculo econômico, existem diversos bens e serviços em relação aos quais não se fazem compras nem vendas no mercado, basicamente por serem res extra commercium, e assim não permitem a realização de estimativas em termos de preços monetários (de fato, todo o argumento de Mises consiste em analisar as consequências que teria a conversão em res extra commercium de todos os bens de capital). Além disso, a aparente precisão da contabilidade (financeira e de custos) é enganadora, uma vez que as suas expressões numéricas ocultam o fato de todas elas se basearem em juízos subjetivos de natureza estritamente empresarial sobre como evoluirão os acontecimentos futuros. Mises ilustra esta ideia com o exemplo do cálculo de cotas de amortização, que, como expressão contabilística da depreciação, implica sempre uma estimativa empresarial sobre qual será o preço de mercado do substituto, quando, no futuro, o bem de produção estiver esgotado, física ou tecnologicamente.
Porém, apesar de todas as insuficiências e imperfeições, o cálculo econômico é o único guia que existe na sociedade para descobrir os desajustes que nela surgem. Trata-se de um instrumento que orienta a ação dos seres humanos para descobrir e coordenar esses desajustes, possibilitando assim a vida em sociedade. Dadas as características da informação ou do conhecimento prático e disperso que já analisamos no Capítulo II, não existe qualquer substituto para o cálculo econômico de mercado, e, embora este se baseie sempre em estimativas subjetivas e na informação proporcionada por preços de mercado que nunca são de equilíbrio, permite pelo menos que os empresários abdiquem de inúmeras possibilidades, alternativas e cursos de ação,que, mesmo quando tecnologicamente possíveis, não seriam economicamente viáveis. Ou seja, o cálculo econômico limita as possibilidades a se considerar empresarialmente para um número muito reduzido de alternativas que surgem a priori como potencialmente lucrativas, simplificando, assim, em grande medida o processo de tomada de decisão por parte do agente. Desta forma, Mises conclui que «há que se admitir que o cálculo econômico tem os seus inconvenientes e sérios defeitos, mas certamente não temos nada melhor para o substituir, e, para efeitos práticos, o cálculo realizado no âmbito de um sistema monetário sólido é sempre suficiente.»[46]
O cálculo como problema de caráter essencialmente econômico (e não técnico)
Segundo Mises, o estabelecimento de um regime socialista implica a eliminação da economia racional, uma vez que neste tipo de regime é impossível que existam verdadeiros preços e moeda, no sentido de que ambos têm numa economia real de mercado. Na perspectiva inicial da concepção socialista que já estudamos, e segundo a qual os preços e a moeda deveriam ser abolidos, é evidente que o cálculo econômico desapareceria completamente. E Mises dedica grande parte do seu artigo a criticar esta proposta. Como veremos adiante, as circunstâncias pouco se alteram se os socialistas, numa segunda linha de defesa, permitissem a existência de «preços» paramétricos, fixados pela autoridade de controle, e «unidades monetárias» que não são mais do que unidades de conta, pois, desta forma, voltaríamos ao problema da impossibilidade de criar e transmitir informação nova num contexto em que a função empresarial não é livre. O exercício sistemático da coerção institucional faz com que a informação não surja nem se transmita, portanto, em caso algum poderá se concentrar na «mente» do órgão diretor ou ser por ele utilizada.
Assim, o problema colocado pelo socialismo não é um problema de aspecto técnico ou tecnológico, no qual se assumem como dados os fins e os meios, bem como o resto da informação necessária para resolver um mero problema de maximização. Pelo contrário, o problema colocado pelo socialismo é estritamenteeconômico: surge quando existem muitos fins e meios que competem entre si e quando o conhecimento em relação a eles se encontra disperso na mente de inúmeros seres humanos e está constantemente sendo gerado ex novo, sendo que não é sequer possível conhecer todas as possibilidades e alternativas existentes nem a intensidade relativa com que se pretende perseguir cada uma delas.[47] Quando pretende resolver um problema de maximização, o engenheiro assume sempre que existem alternativas no mercado e preços de equilíbrio, e que ambos são conhecidos. Mas o problema econômico é muito distinto e consiste precisamente em descobrir quais são as alternativas de fins e meios, bem como os preços de mercado no futuro. Ou seja, o problema está em obter a informação necessária para visar e resolver o problema técnico. O cálculo econômico é uma estimativa possível graças à informação de que o processo empresarial cria e gera constantemente, e se este processo é impossibilitado pela força, a informação não surge e o cálculo econômico se torna impossível
A concentração empresarial e o cálculo econômico
O argumento desenvolvido por Mises pode se aplicar também à análise do limite teórico para o crescimento de qualquer «organização empresarial» que exista numa economia de mercado. De fato, pode se considerar que a empresa, no seu sentido de «firma», é apenas uma «ilha organizativa» ou de «planejamento»voluntária dentro do mercado, que surge de forma espontânea quando os seus promotores descobrem empresarialmente que em determinadas circunstâncias tal sistema é mais adequado para a conquista dos seus próprios objetivos. Qualquer firma exige um mínimo de organização de acordo com o plano e os mandatos emitidos pela direção. Na perspectiva do argumento original de Mises, é evidente que a possibilidade de organizar de forma eficiente uma empresa está inexoravelmente limitada pelo seu tamanho: existirá sempre um determinado tamanho crítico a partir do qual o volume e o tipo de informação de que o órgão de gestão necessita para dirigir eficientemente a sua empresa será tão grande e complicado, que ultrapassará em grande medida as suas capacidades de interpretação e compreensão, pelo que qualquer crescimento adicional tenderá a ser ineficiente e redundante.
Em termos de cálculo econômico, o argumento pode ser expresso dizendo que em qualquer firma aintegração vertical terá um limite máximo imposto pelo fato de, depois de incorporadas todas as etapas ao processo produtivo empresarial, desaparecerem do mercado as trocas relacionadas com alguma delas e, logo, não surgirem os respectivos preços de mercado para alguns bens de capital. Nesse momento, não poderão ser realizadas as transferências verticais dentro de cada firma com a orientação do cálculo econômico, sendo que haverá a tendência para que, sistematicamente, se cometam erros e ocorram ineficiências que, mais cedo ou mais tarde, revelarão ao empresário que é preferível descentralizar e não integrar verticalmente a empresa se ele não pretende colocar em perigo a sua capacidade competitiva.[48] Ou seja, num mercado livre, nunca se poderá verificar uma completa integração vertical em relação às etapas de qualquer processo produtivo, uma vez que isso impediria que se executasse o cálculo econômico necessário. Assim, no mercado existe uma lei econômica que fixa um limite máximo para o tamanho relativo de cada empresa.[49]
Na verdade, podemos até afirmar que, à medida que a divisão do conhecimento se torna mais ampla, profunda e detalhada, e, logo, os processos sociais e econômicos mais complexos, mais difícil será para uma empresa integrar-se verticalmente e ampliar o tamanho, uma vez que os órgãos de gestão terão um maior volume e um grau mais elevado de complexidade para interpretar e utilizar. Uma das consequências mais típicas da erradamente denominada «revolução tecnológica», e que não é nada mais do que o processo de ampliação expansiva e de aprofundamento da divisão do conhecimento próprios das economias de mercado modernas, foi a da inversão, em igualdade de circunstâncias, da tendência para o crescimento das chamadas «economias de escala». É cada vez mais evidente que, em muitas ocasiões, é mais rentável investir separadamente em diferentes empresas do que através de holdings ou conglomerados; e muitas empresas de grande porte estão descobrindo que só podem competir com as pequenas se incentivarem e favorecerem o surgimento de iniciativas internas de aspecto empresarial (intrapreneurship).[50] De fato, até a capacidade de um pequeno computador pessoal tornou obsoletas inúmeras «organizações voluntárias de planejamento», muitas delas de grande porte, que até agora eram consideradas típicas do mercado, e até imprescindíveis.
Este argumento demonstra também que a teoria de Marx, segundo a qual existe uma tendência inexorável no sistema capitalista para a concentração das empresas, é equivocada: a concentração empresarial não tenderá a ultrapassar o ponto a partir do qual as exigências do conhecimento ou informação por parte do órgão encarregado da gestão sejam tais que superem a sua própria capacidade de compreensão. Se uma firma ampliar continuamente o seu tamanho, chegará um momento a partir do qual se encontrará numa situação cada vez mais difícil, dado que terá de tomar as suas decisões cada vez mais «na obscuridade», ou seja, sem poder dispor da necessária informação para descobrir e avaliar as diferentes alternativas de produção ou os diferentes cursos de ação que poderia executar. Sem a ajuda da informação proporcionada pelos preços de mercado e pela função empresarial exercida pelos concorrentes, o seu comportamento será cada vez mais redundante e arbitrário. Assim, o planejamento central não pode ser considerado o resultado inexorável da futura evolução do capitalismo: a própria evolução do mercado fixa um limite à possibilidade de centralização de cada empresa, limite esse que é estabelecido, precisamente, pela capacidade de os seus órgãos gestores assimilarem informação e pelo desenvolvimento cada vez mais profundo, complexo e descentralizado da divisão social do conhecimento.[51]
5. PRIMEIRAS PROPOSTAS SOCIALISTAS DE SOLUÇÃO DO PROBLEMA DO CÁLCULO ECONÔMICO
O cálculo econômico em espécie
A ideia de que uma economia socialista poderia ser organizada sem a utilização da moeda pode remontar a Karl Marx, como vimos no tópico anterior. De fato, nesse nirvana ou modelo de equilíbrio que Marx considera que pode e deve ser coercivamente imposto pelo órgão diretor, não é preciso utilizar moeda, uma vez que se assume que toda a informação está dada e que não existe qualquer mudança. Bastará que período após período sejam produzidos os mesmos bens e serviços e que estes sejam distribuídos da mesma forma aos mesmos indivíduos. Essa ideia passa de Marx para Engels e, deste para um conjunto de teóricos que, de forma mais ou menos explícita, consideravam que o cálculo econômico não deveria constituir um problema mesmo que não existisse moeda.[52]
Independentemente da impossibilidade da informação necessária estar disponível para o órgão de coerção central, o problema das propostas que prevêem a realização do cálculo econômico in natura ou em espécie consiste simplesmente em ser impossível realizar qualquer cálculo, seja soma ou subtração, entre quantidades heterogêneas. De fato, se, por exemplo, o órgão diretor decide entregar, em troca por uma determinada máquina, 40 porcos, 5 tonéis de farinha, uma tonelada de manteiga e 200 ovos, como poderá perceber se não está entregando, do ponto de vista das suas próprias valorações, mais do que deveria? Ou, em outras palavras, se destinasse esses recursos a outras linhas de atividade, seria possível que o órgão de controle obtivesse fins de maior valor para si próprio? Talvez seja possível desculpar os teóricos socialistas por, inicialmente, não terem sido capazes de apreender o insolúvel problema que o caráter subjetivo, disperso e inarticulável do conhecimento empresarial constitui para o socialismo, mas o que não tem desculpa é que tenham caído no erro grosseiro de pensar que poderiam ser realizados cálculos racionais sem utilizar uma unidade monetária como denominador comum.
Por outro lado, o problema colocado pelo cálculo em espécie não só afeta as decisões relativas à produção, como se faz sentir nas decisões referentes à distribuição de bens e serviços de consumo. E existem diversos bens e serviços de consumo que não podem ser divididos por igual entre todos e cada um dos cidadãos, sendo absurdo pensar num sistema de distribuição que não utilize unidades monetárias.[53] Podemos concluir, portanto, aplicando aos teóricos socialistas que consideraram possível o cálculo em espécie, o seguinte comentário de Mises sobre Landauer: «Laudauer não consegue compreender que não é possível — e por que razão — adicionar e subtrair números de diferentes denominações. Assim, é impossível tentar ajudá-lo.»[54]
Apesar dos argumentos acima mencionados, não devemos nos deixar levar pela eqiuivocada impressão de que a razão essencial pela qual é impossível o cálculo econômico em espécie reside na impossibilidade de somar, subtrair e, em geral, operar com quantidades heterogêneas. O cerne do argumento essencial pelo qual o cálculo econômico sem utilização de preços de mercado e moeda é impossível já foi por nós descrito em detalhes no Capítulo III e é focado no caráter subjetivo, disperso e inarticulável do conhecimento prático humano. Assim, a questão não tem a ver com o fato de, mesmo que o conhecimento humano não tivesse estas características, ser impossível calcular economicamente em espécie por não ser possível realizar operações matemáticas com quantidades heterogêneas, mas sim com o contrário: mesmo que um ser hipotético tivesse a capacidade de realizar esses cálculos em espécie, continuaria intacta a impossibilidade lógica dele conseguir obter toda a informação necessária. O argumento da informação é, portanto, o argumento essencial, e o argumento da dificuldade do cálculo em espécie é um argumento muito potente, mas de caráter subsidiário.
O cálculo econômico em horas de trabalho
A adoção, por parte de Marx, da teoria objetiva do valor-trabalho explica porque diferentes teóricos socialistas tenham considerado natural a tentativa de solucionar o problema que nos ocupa através do cálculo em horas de trabalho. Embora aparentemente esta «solução» nos remeta diretamente para o debate sobre a teoria objetiva versus a teoria subjetiva do valor, em princípio, a análise sobre a possibilidade de realizar o cálculo econômico em horas de trabalho é independente da posição adotada sobre qual é a teoria correta do valor (a objetiva ou a subjetiva).
A solução proposta pelos teóricos mencionados consiste resumidamente em que o órgão diretor siga a pista do número de horas trabalhadas por cada trabalhador. Posteriormente, cada trabalhador receberia do órgão de controle um determinado número de cupons, correspondente ao número de horas trabalhadas, que poderia ser utilizado para trocar por uma pré-determinada quantidade de bens e serviços de consumo produzidos. A distribuição do produto social seria realizada através do estabelecimento de um registro estatístico do número de horas de trabalho exigidas para a produção de cada bem e serviço, e da distribuição de bens e serviços aos trabalhadores que estivessem dispostos a entregar em troca os respectivos cupons representativos das horas trabalhadas. Desta forma, o trabalhador teria direito a receber o equivalente em bens e serviços à produção de cada hora do seu trabalho.
É evidente que os referidos cupons não são moeda e que não existem preços de mercado para os bens e serviços, ou seja, relações de troca estabelecidas de forma voluntária pelas partes compradoras e vendedoras, uma vez que a proporção de entrega de bens e serviços em troca de cupons se encontra pré-estabelecida explicitamente em função do número de horas de trabalho exigido pela produção de cada bem.[55]
De acordo com Mises, o cálculo econômico em horas de trabalho apresenta dois problemas específicos insolúveis. Em primeiro lugar, mesmo no âmbito do quadro da própria teoria objetiva do valor-trabalho, não se pode aplicar o critério proposto de cálculo em relação a todos os processos produtivos nos quais sejam utilizados recursos da natureza que não sejam reproduzíveis. De fato, é evidente que não será possível a imputação de qualquer número de horas de trabalho relativo a qualquer recurso natural (por exemplo, o carvão) que, embora permita alcançar fins, seja economicamente escasso e não possa ser manufaturado utilizando horas de trabalho. Ou seja, por não se utilizar trabalho para produzir estes recursos, não é possível considerar nenhum número de horas de trabalho para realizar o necessário cálculo econômico que exigiria a tomada de decisões não arbitrárias em relação aos mesmos.
No entanto, existe ainda um segundo argumento específico contra o cálculo econômico em horas de trabalho. Este argumento parte do princípio de que a hora de trabalho não é uma quantidade uniforme e homogênea. Efetivamente, não existe um «fator trabalho», mas inúmeras categorias e classes distintas de trabalho que, à falta do denominador comum que constituem os preços monetários estabelecidos no mercado para cada tipo de trabalho, não podem ser somadas ou subtraídas devido ao seu caráter essencialmente heterogêneo. Trata-se de uma questão que não decorre apenas do fato da eficiência laboral variar de uns trabalhadores para outros, e até no mesmo trabalhador de acordo com o momento, as circunstâncias e condições nos quais desenvolva o seu trabalho, mas do fato das classes de serviços que o fator trabalho proporciona serem tão variadas e se modificarem de forma tão contínua que, na verdade, constituem tipos de serviços absolutamente heterogêneos que apresentam um problema idêntico ao já comentado no tópico anterior em relação ao cálculo econômico em espécie e que se baseava na impossibilidade de utilizar quantidades heterogêneas nos cálculos.
A doutrina marxista tradicional tentou combater este problema reduzindo as diferentes classes de trabalho ao chamado «trabalho simples socialmente necessário». Porém, esta redução das horas dos diferentes tipos ou classes de trabalho às horas de trabalho mais simples só é possível quando existe um processo de mercado no qual ambas sejam trocadas a um preço determinado pelos diferentes agentes econômicos. À falta deste processo de mercado, qualquer juízo comparativo sobre diferentes tipos de trabalho será arbitrário, o que implicará obrigatoriamente no desaparecimento do cálculo econômico racional. Assim, o problema consiste em não ser possível reduzir os diferentes tipos de trabalho a um denominador comum sem que antes exista um processo de mercado. Ora, o problema de reduzir horas heterogêneas de trabalho a uma quantidade comum é apenas um caso particular do problema mais geral, que já comentamos, representado pelo cálculo em espécie e que consiste na impossibilidade de reduzir fatores heterogêneos de produção a uma unidade comum.
Por fim, repita-se aqui que, tal como no caso anterior, mesmo que fosse possível imaginar a solução dos dois problemas específicos apontados (cálculo econômico no que se refere aos recursos da natureza não reproduzíveis e a impossibilidade de encontrar um denominador comum para as horas de trabalho), seria mantido o problema básico fundamental que se consubstancia no fato de não ser possível que o órgão planificador obtenha toda a informação prática relevante que se encontra dispersa na mente dos milhões de agentes que constituem a sociedade.
O cálculo econômico em unidades de utilidade
Por último, diversos autores socialistas que, com base nos argumentos antecipados por Mises, compreenderam a impossibilidade de realizar o cálculo em horas de fator trabalho, consideraram que o problema poderia ser resolvido utilizando como unidades de cálculo as «unidades de utilidade».[56] No entanto, esta é talvez uma proposta ainda mais absurda do que a relativa ao cálculo em horas de trabalho. A utilidade é um conceito estritamente subjetivo, que resulta da apreciação realizada por cada indivíduo sobre cada uma das unidades de meio de que dispõe no contexto de cada ação concreta na qual se vê envolvido. Não é possível medir a utilidade, mas apenas comparar a que advenha de diferentes cursos de ação quando da tomada de decisão. Da mesma forma, não é possível observar a utilidade nos diferentes indivíduos (uma vez que isso exigiria que fôssemos capazes de nos introduzirmos nas mentes das pessoas e nos fundirmos com as suas personalidades, valorações e experiências). Assim, a utilidade não pode ser observada, sentida ou medida por nenhum órgão central de coerção.
Além disso, nem sequer o homem que age «mede» a sua utilidade quando da tomada de decisão. Pelo contrário, realiza apenas comparações entre a utilidade que acredita que as diferentes alternativas lhe proporcionarão. Os preços de mercado, por outro lado, não expressam equivalências nem medem utilidades.[57] São simplesmente relações históricas de troca que não fazem mais do que demonstrar que as partes que intervieram nas trocas efetuaram valorações subjetivas diferentes e contrastantes, tornando as trocas possíveis.
Deve-se concluir que a tentativa de utilizar a utilidade como unidade para o cálculo econômico se constitui como um problema insolúvel, não só porque a utilidade não pode ser observada, mas também porque não existe unidade ou denominador comum de utilidade intersubjetiva que possa ser medido e utilizado na prática do cálculo econômico. O conceito de utilidade é tão subjetivo e inapreensível, que o argumento contra a possibilidade de realização de um cálculo econômico com base em unidades de utilidade nos leva de novo diretamente para o argumento base essencial, ou seja, a impossibilidade de o órgão central de coerção obter a informação prática necessária que se encontra dispersa nas mentes de todos os agentes econômicos e que a todo o momento se consubstancia num série interminável e constantemente em mutação de valorações pessoais ou juízos estimativos de utilidade sobre meios e fins.[58] ssionais e entre os teta os aconteciemntos a oportunidade de falar s economistas profissionais e entre os te
[1] Uma síntese da evolução na história do pensamento sobre a concepção da sociedade entendida como ordem espontânea pode ser encontrada no artigo de F.A. Hayek intitulado «Dr. Bernard Mandeville», incluído em New Studies in Philosophy, Politics, Economics and the History of Ideas, obra citada, pp. 249 a 266.
[2] Nos dois capítulos anteriores quisemos demonstrar que existe uma relação estreita entre a nossa concepção da sociedade e o direito, entendido no seu sentido material como o conjunto de normas abstratas de aplicação geral e equitativa a todos os seres humanos. Só o marco criado pelo direito, entendido neste sentido, torna possível o exercício da função empresarial e da ação humana e, com ele, a criação constante e a transmissão de informação dispersa que caracteriza o desenvolvimento da civilização. Assim, não é mera coincidência que os principais autores clássicos sobre o direito romano tenham formado parte da tradição filosófica que comentamos.
[3] «Nostra autem res publica non unius esset ingenio, sed multorum, nec una hominis vita, sed aliquod constitutum saeculis et aetatibus, nam neque ullum ingenium tantum extitisse dicebat, ut, quem res nulla fugeret, quisquam aliquando fuisset, neque cuncta ingenia conlata in unum tantum posse uno tempore providere, ut omnia complecterentur sine rerum usu ac vetustate.» Marco Túlio Cícero, De Re Publica, II, 1-2, The Loeb Classical Library, Cambridge, Massachusetts 1961, pp. 111-112. Existe uma boa tradução desta obra para castelhano de Antonio Fontán, Sobre la República, Gredos, Madri, 1974, pp. 86-87. No entanto, considero mais adequada a tradução do parágrafo citado realizada por Bruno Leoni, e que é, basicamente, a que reproduzimos no texto. Ver Bruno Leoni, Liberdade e a Lei, Instituto Ludwig von Mises Brasil, São Paulo 2010, 2.ª edição, p. 96. Trata-se da tradução do livro Freedom and the Law, Liberty Fund, Indianapolis, terceira edição ampliada, 1991 (1.ª edição 1961, 2.ª edição 1972). O livro de Leoni é excepcional sob todos os pontos de vista, não só por demonstrar o paralelismo existente, por um lado, entre o mercado e o direito consuetudinário ou Common Law e, por outro, entre a legislação positiva e o socialismo, mas também porque foi o primeiro jurista a compreender que o argumento de Ludwig von Mises sobre a impossibilidade do cálculo econômico no socialismo é apenas um caso particular «de uma compreensão mais geral de que nenhum legislador seria capaz de estabelecer sozinho, sem qualquer tipo de colaboração contínua por parte de todas as pessoas envolvidas, as regras que iriam governar o real comportamento de todos, na infinita relação que cada um tem com os outros. Nenhum levantamento de opinião pública, nenhum referendum,nenhuma consulta poderiam realmente colocar os legisladores em posição de determinar essas regras, não mais do que um procedimento semelhante poderia colocar os diretores de uma economia planejada em posição de descobrir a total demanda e oferta de todas as mercadorias e serviços. O verdadeiro comportamento das pessoas está continuamente se adaptando a condições que se transformam. Mais do que isso, o comportamento verdadeiro não deve ser confundido com expressões de opiniões como as que emergem das pesquisas de opinião pública e semelhantes, não mais do que a expressão verbal dos anseios e desejos deve ser confundida com a “efetiva” demanda no mercado». Bruno Leoni, A Liberdade e a Lei, obra citada, p. 32 (itálico acrescentado). Sobre a obra de Bruno Leoni, fundador da prestigiada revista Il Politicoem 1950, consultar a Omaggio a Bruno Leoni, editada por Pasquale Scaramozzino, Ed. A. Giuffrè, Milão 1969, bem como o artigo «Bruno Leoni in Retrospect», de Peter H. Aranson, Harvard Journal of Law and Public Policy, verão 1988. Leoni, tal como Polanyi, foi um homem multifacetado que desenvolveu uma intensa atividade nos campos universitário, empresarial, da advocacia, da arquitetura, da música e da linguística. Faleceu tragicamente assassinado por um dos seus inquilinos, ao qual tentava cobrar a renda, na noite de 21 de Novembro de 1967, quando contava 54 anos de idade.
[4] De fato, Montesquieu escreve no seu De l’esprit des Lois (1748) o seguinte: «C’est dans ces idées que Cicéron disait si bien: “Je n’aime point qu’un même peuple soit en même temps le dominateur et le facteur de l’univers”. En effect, il faudrait supposser que chaque particulier dans cet État et tout l’État même, eussent toujours la tête pleine de grands projects et cette même tête remplie de petits; ce qui est contradictoire.» Oeuvres Complètes. Avec des notes de Dupin, Crevier, Voltaire, Mably, Servant, La Harpe, etc., Chez Fermin Didot Frères Libraires, Paris 1843 (p. 350, De L’Esprit de Lois, Parte IV, Livro XX, Capítulo VI). Ainda assim, Bastiat assinala que o próprio Montesquieu caiu por vezes nas redes da engenharia social, como aconteceu quando elogiou os seus pretensos efeitos benéficos sobre os antigos, F. Bastiat, A Lei, Instituto Ludwig von Mises Brasil, São Paulo, 2010, pp. 34-36. A.R.J. Turgot, «Éloge de Gournay» (1759)Ouvres, Guillaumin, Paris 1844, vol. I, pp. 275 y 288.
[5] Hermann Heinrich Gossen, Entwicklung der Gesetze des Menschlichen Verkehrs und der daraus Fliessenden Regeln für Menschliches Handeln, Editorial Friedrich Vieweg und Sohn, Braunschweig 1854, p. 231. «Darum würde denn die von Kommunisten projectierte Zentralbehörde zur Verteilung der verschiedenen Arbeiten sehr bald die Erfahrung machen, dass sie sich eine Aufgabe gestellt habe, deren Lösung die Kräfte einzelner Menschen weit übersteigt.» Existe uma tradução para o inglês da obra de Gossen efetuada por Rudolph C. Blitz e publicada por The M.I.T. Press em Cambridge, Massachusetts 1983, com o título The Laws of Human Relations and The Rules of Human Action Derived Therefrom. A citação que acabamos de reproduzir em alemão encontra-se na p. 255 da versão inglesa com o seguinte texto: «Consequently, the central authority — projected by the communists — for the purpose of allocating the different types of labor and their rewards would soon find that it has set itself a task that far exceeds the power of any individual» (itálico acrescentado). A terceira edição alemã do livro de Gossen (Berlim, R.L. Praga 1927) inclui uma extensa Introdução («Einleitung») da autoria de F.A. Hayek na qual este argumenta que Gossen foi mais um precursor da escola matemática de Walras e Jevons do que da Escola Austríaca propriamente dita. Esta Introdução foi recentemente traduzida para o inglês por Ralph Raico e publicada emThe Trend of Economic Thinking. Essays on Political Economists and Economic History, volume III de The Collected Works of F.A. Hayek, Routledge, Londres 1991, pp. 352-371. É neste sentido que se deve interpretar o conteúdo da carta de Carl Menger a Léon Walras datada de 27 de janeiro de 1887 e na qual Menger encontra apenas alguns pontos de contato com Gossen, mas sem que exista coincidência nos pontos essenciais («nur in einigen Punkten, nicht aber in den entscheidenden Fragen zwischen uns Übereinstimmung, bez Ähnlichkeit der Auffassung»). Ver William Jaffé, Correspondence of Léon Walras and Related Papers, North-Holland, Amesterdão 1965, volume 2, p. 176, carta n.º 765.
[6] Die Quintessenz des Sozialismus, 18.ª edição, Editora F.A. Perthes, Gotha 1919, pp. 51-52 (a 1.ª edição é de 1874). De fato, Menger deve a obtenção da sua cátedra ao fato imprevisto de esta ter ficado vaga quando Schäffle foi nomeado Ministro do Comércio em fevereiro de 1871. No que se refere à inquestionável influência que o setor historicista da Escola da Economia Política alemã (Roscher, Hermann, Knies, etc.) teve sobre algumas das contribuições essenciais de Menger, consultar o artigo de Eric W. Streissler, «The influence of German Economics on the work of Menger and Marshall», publicado em Carl Menger and his Legacy in Economics, editado por Bruce J. Caldwell, Annual Supplement to volume 22 of History of Political Economy, Duke University Press, Durham 1990, p. 31-68. Edward Stanley fez uma crítica detalhada do socialismo no seu artigo «The Impracticability of Socialism», incluído em A Plea for Liberty. An argument against socialism and socialistic legislation, consisting of an Introduction by Herbert Spencer and Essays by Various Writers, Thomas Mackay (ed.), publicado originalmente em 1891 e reeditado em 1981 por Liberty Classics, Indianapolis, pp. 35-79.
[7] Walter Bagehot, Economic Studies, Longmans Green, Londres 1898, pp. 54-58. (Existe uma reimpressão publicada por Kelley, Clifton, Nova Jérsia 1973.)
[8] Reproduzimos integralmente o ponto n.º 217 do Capítulo III do Manuel D’Économie Politique de Pareto, reeditado pela Droz, em Genebra, em 1966, pp. 233 e 234: «Les conditions que nous avons énumérées pour l’équilibre économique nous donnent une notion générale de cet équilibre. Pour savoir ce qu’étaient certains phènomènes nous avons dû étudier leur manifestation; pour savoir ce que c’était que l’équilibre économique, nous avons dû rechercher comment il était déterminé. Remarquons, d’ailleurs, que cette determination n’a nullement pour but d’arriver à un calcul numérique des prix. Faisons l’hypothèse la plus favorable à un tel calcul; supposons que nous ayons triomphé de toutes les difficultés pour arriver à connaître les données du problème, et que nous connaissions les ophélimités de toutes les marchandises pour chaque individu, toutes les circonstances de la production des marchandises, etc. C’est là déjà une hypothèse absurde, et pourtant elle ne nous donne pas encore la possibilité pratique de résoudre ce problème. Nous avons vu que dans le cas de 100 individus et de 700 marchandises il y aurait 70.699 conditions (en réalité un grand nombre de circonstances, que nous avons jusqu’ici négligées, augmenteraient encore ce nombre); nous aurons donc à résoudre un système de 70.699 équations. Cela dépasse pratiquement la puissance de l’analyse algébrique, et cela la dépasserait encore davantage si l’on prenait en considération le nombre fabuleux d’équations que donnerait une population de quarente millions d’individus, et quelques milliers de marchandises. Dans ces cas les ròles seraient changés: et ce ne seraient plus les mathématiques que viendraient en aide à l’économie politique, mais l’économie politique qui viendrait en aide aux mathématiques. En d’autres termes si on pouvait vraiment connaître toutes ces équations, le seul moyen accesible aux forces humaines pour les résoudre, ce serait d’observer la solution pratique que donne le marché.» (itálico acrescentado). Existe uma tradução para o inglês de Ann S. Schwier, publicada com o título de Manual of Political Economy, Augustus M. Kelley, Nova Iorque, 1971 (a citação anterior encontra-se na p. 171 desta edição).
[9] Enrico Barone, «Il Ministro della Produzione nello Stato Colletivista», Giornale degli Economisti, set.-out. 1908, traduzido para o inglês por F.A. Hayek com o título de «The Ministry of Production in the Collectivist State», em Collectivist Economic Planning, ed. de F.A. Hayek, Augustus M. Kelley, Clifton 1975, Apêndice A, pp. 245 a 290. Concretamente, Enrico Barone afirma: «It is not impossible to solve on paper the equations of the equilibrium. It will be a tremendous — a gigantic — work: but it is not an impossibility… But it is franklyinconceivable that the economic determination of the technical coefficients can be made a priori… This economic variability of the technical coefficients is certainly neglected by the collectivists… It is on this account that the equations of the equilibrium with the maximum collective welfare are not soluble a priori, on paper» (pp. 287-288). É quase inimaginável que, depois destas tão claras afirmações de Barone, numerosos economistas, muitos deles economistas distintos como Schumpeter, tenham afirmado que Barone resolveu o problema da impossibilidade teórica do socialismo colocado por Mises. Estas afirmações demonstram que esses economistas, em primeiro lugar, não compreenderam a natureza do problema colocado por Mises; em segundo lugar, não leram cuidadosamente nem Barone nem Pareto; e, em terceiro lugar, a suposição de plena informação utilizada para descrever formalmente o equilíbrio é uma miragem capaz de enganar até as mentes mais brilhantes. Barone (1859-1924) teve uma vida intensa e curiosa, cheia de vicissitudes e dedicada, além da economia matemática, ao jornalismo e à escrita de roteiros de cinema (basicamente utilizando os amplos conhecimentos de história militar que tinha adquirido quando era Coronel Chefe do gabinete de história do Alto Estado Maior), participando ativamente desta forma no incipiente desenvolvimento da indústria cinematográfica italiana. Sobre Barone, pode ser consultado o artigo de Del Vecchio, «L’opera scientifica di Enrico Barone», Giornale degli Economisti, novembro de 1925; bem como o artigo «Barone» de F. Caffè, The New Palgrave: A Dictionary of Economics, obra citada, volume I, pp. 195-196.
[10] Nicolaas G. Pierson, «Het Waardeproblem in een socialistische Maatschappij», publicado no jornal holandês De Economist, volume I, 1902, pp. 423- 56. Mais tarde, este artigo foi traduzido para o inglês por G. Gardiner com o título «The problem of Value in the Socialist Community», e incluído como Capítulo II deCollectivist Economic Planning, obra citada, pp. 41 a 85. Pierson (1839-1909), muito influenciado pela Escola Austríaca, foi Governador do Banco Central, Ministro da Fazenda e Primeiro Ministro da Holanda. Ver a interessante biografia deste grande economista e homem de estado holandês de J.G. Van Maarseveen, Erasmus University, Roterdão 1981, bem como o artigo de Arnold Heertje «Nicolaas Gerard Pierson», publicado no volume III de The New Palgrave. A Dictionary of Economics, pp. 876.
[11] Não obstante, Mises afirma generosamente que Pierson «clearly and completely recognized the problem in 1902» (Socialism, obra citada, p. 117). Curiosamente, no mesmo lugar, e desta vez em relação a Barone, Mises afirma que «Barone did not penetrate to the core of the problem».
[12] Ver a nota 4 do próximo capítulo.
[13] Max Weber, Economy and Society, University of California Press, Berkeley 1978, Capítulo II, pontos 12, 13 e 14, pp. 100 e ss. Em concreto, Max Weber conclui que: «Where a planned economy is radically carried out, it must further accept the inevitable reduction in formal, calculatory rationality which would result from the elimination of money and capital accounting. This fundamental, and in the last analysis, unavoidable element of irrationality is one of the important sources of all “social” problems, and above all of the problems of socialism» (p. 111). Weber cita inclusivamente o artigo do professor Mises (p. 107), indicando que só o tinha lido quando o seu livro já estava escrito e preparado para impressão, sendo que podemos considerar que as contribuições de cada um dos autores foram concebidas de forma independente. Além disso, Max Weber tem o indiscutível mérito de ter sido o primeiro a demonstrar que o socialismo impossibilita o crescimento e desenvolvimento da população. De fato, de acordo com Weber «the possibility must be considered that the maintenance of a certain density of population within a given area is possible only on the basis of accurate calculation. Insofar as this is true, a limit to the possible degree of socialization would be set by the necessity of maintaining a system of effective prices», The Theory of Social and Economic Organization, publicado por The Press of Glencourt, Nova Iorque 1964, pp. 184-185. E, na verdade, segundo a análise que fizemos no Capítulo III, a extensão e profundidade da divisão do conhecimento tornava-se impossível num regime socialista, por não se permitir a livre geração e transmissão de informação prática nova. Para isso, será necessário duplicar um enorme volume de informação, o que, dadas as limitações da mente humana, obriga à manutenção de uma economia de mera subsistência com um reduzido volume de população.
[14] As contribuições de Brutzkus foram inicialmente publicadas em russo, na revista Economist, nos anos de 1921 e 1922. Depois foram traduzidas para o alemão em 1928 com o título Die Lehren des Marxismus im Lichte der russischen Revolution (Edit. H. Sack, Berlim 1928); e, por fim, traduzidas para o inglês e incluídas na obra do autor Economic Planning in Soviet Russia, publicada por Routledge, Londres 1935. (Existe uma reedição publicada em 1982 por Hyperion Press, Westport, Connecticut.) Recentemente, as contribuições de Brutzkus foram avaliadas de forma muito positiva, sobretudo por ter sabido combinar adequadamente os aspectos históricos e teóricos do problema, evitando a dissociação entre teoria e prática que a partir de então predominou no debate. Ver o livro de Peter J. Boettke, The Political Economy of Soviet Socialism (The Formative Years 1918-1928), Kluwer Academic Publishers, Dordrecht, Holanda 1990, pp. 30-35 e 41-42.
[15] Referimo-nos à conferência pronunciada por Kautsky em Delft a 24 de abril de 1902, cujo texto inglês surgiu em 1907 com o título The Social Revolution and on the Morrow of the Revolution, editorial Twenty Century Press, Londres. Antecedentes da posição de Kautsky podem ser encontradas na obra de G. Sulzer,Die Zukunft des Sozialismus, publicada em Dresden em 1899.
[16] Otto Neurath, Durch die Kriegswirtschaft zur Naturalwirtschaft, G.D.W. Callwey, Munique 1919. (Existe uma tradução para inglês, «Through War Economy to Economy in Kind», em Empiricism and Sociology, Editorial D. Reidel, Dordrecht, Holanda 1973.) Recorde-se que Otto Neurath foi durante um curto intervalo de tempo diretor da Zentralwirtschaftsamt da Baviera, que foi a agência responsável pelos planos de socialização durante a Räterepublik, ou casa soviética do regime revolucionário bávaro, que deteve brevemente o poder em Munique na primavera de 1919. Depois de falhada a revolução, quando Neurath foi processado, Max Weber testemunhou em sua defesa. Neurath faleceria em 1945. Ideia semelhante à de Otto Neurath apontou Otto Bauer na sua obra Der Weg zum Sozialismus («O caminho para o socialismo»), publicada em Viena por Ignaz Brand em 1919. Nesta obra, Bauer defende, tal como Neurath, a possibilidade do cálculo econômico em espécie, ou seja, sem utilização de unidades monetárias. Recentemente, o economista espanhol Juan Martínez-Alier reavaliou as contribuições de Neurath na sua obra Ecological Economics, Basil Blackwell, Oxford, segunda edição 1990, pp. 212-218. É interessante notar que tanto Neurath como Bauer assistiram com alguma regularidade ao seminário de Böhm-Bawerk no qual Ludwig von Mises participou ativamente até 1913. Enquanto as intervenções de Neurath se caracterizaram mais pelo seu fervor marxista do que pela sutileza intelectual, o também marxista Otto Bauer não teve outro remédio senão acabar por admitir que a teoria marxista do valor era insustentável e que a «resposta» de Hilferding a Böhm-Bawerk só serviu para demonstrar a incapacidade daquele para sequer compreender qual era a natureza do problema. A partir dessa data, Mises decidiu escrever uma análise crítica do socialismo, cujas ideias essenciais foram fruto das reflexões e observações que fez durante o seu serviço militar na I Guerra Mundial como capitão de artilharia, primeiro na frente oriental (Montes Cárpatos), e, depois de contrair febre tifóide, a partir de 1917, no Departamento de Economia do Ministério da Defesa Austríaco. Ver a este propósito a autobiografia intelectual de Ludwig von Mises intitulada Notes and Recollections, comentada e traduzida do alemão para o inglês por Hans F. Senholz, Libertarian Press, South Holland, Ilinois 1978, pp. 11, 40-41, 65-66 e 110-111, bem como a biografia de Mises de Jorg Guido Hülsman, Mises: The Last Knight of Liberalism, Ludwig von Mises Institute, Auburn, Alabama, 2007. De qualquer forma, as ideias de Mises sobre o socialismo eram o corolário lógico da notável integração teórica efetuada por Mises já em 1912 entre o mundo subjetivo das valorações individuais (ordinal) e o mundo externo das estimativas de preços de mercado fixados em unidades monetárias (cardinal) (Theorie des Geldes und der Umlaufsmittel, Duncker & Humblot, Munich e Leipzig 1912; existem três traduções para castelhano, uma de Antonio Riaño, publicada em Madri pela edit. Aguilar em 1936 com o título de Teoría del Dinero y del Crédito; outra de José María Clarmunda Bes, publicada com o mesmo título por Ediciones Zeus, Barcelona 1960; e uma terceira de Juan Marcos de la Fuente, Unión Editorial, Madri, 1997. A melhor edição inglesa é a publicada pela Liberty Press, Indianapolis, em 1981, com o título The Theory of Money and Credit, traduzida do alemão por H.E. Batson, e com prólogo de Murray N. Rothbard). A ponte entre estes dois mundos pode ser feita sempre que se verifica uma ação de troca interpessoal, que, motivada pelas valorações subjetivas das partes, se manifesta num preço monetário de mercado, ou relação histórica de troca em unidades monetárias que tem uma existência real quantitativa determinada e que pode ser utlizada mais tarde pelo empresário como informação valiosa para estimar a evolução futura dos acontecimentos e tomar decisões (cálculo econômico). Torna-se, assim, evidente que se se impede pela força a livre atuação humana, não se verificarão trocas interpessoais voluntárias, destruindo assim a ponte que elas constituem entre o mundo subjetivo das valorações diretas (ordinal) e o mundo externo dos preços (cardinal), o que impossibilita totalmente o cálculo econômico. Devo esta importante ideia sobre a evolução e coerência do pensamento misesiano a Murray N. Rothbard, «The End of Socialism and The Calculation Debate Revisited», The Review of Austrian Economics, volume 5, n.º 3, 1991, pp. 64-65. No entanto, penso que Rothbard, no seu desejo de marcar as diferenças existentes entre Hayek e Mises, não entende que o corte da relação descoberta por Mises entre o mundo das valorações subjetivas interiores e o mundo exterior dos preços constitui-se, antes de tudo, como um problema de falta de geração e transmissão do conhecimento ou informação (existente e futura) que são necessárias para possibilitar o cálculo econômico. Assim, pode se considerar que as contribuições de Mises e Hayek, com as suas evidentes e inevitáveis diferenças de ênfase e matiz, são parte indiscernível do mesmo argumento básico contra o cálculo econômico socialista: Mises se concentra mais nos problemas dinâmicos, ao passo que Hayek talvez tenha dado por vezes a impressão de se concentrar mais na problemática referente ao caráter disperso do conhecimento existente. Ver ainda, a este propósito, a nota 42 do Capítulo II.
[17] Duas excelentes análises da «pré-história» do debate sobre o cálculo econômico são as de F.A. Hayek, «Nature and History of the Problem», em Collectivist Economic Planning, obra citada, pp. 1 a 40; e a de David Ramsay Steele, intitulada «Posing the problem: the Impossibility of Economic Calculation under Socialism», publicada no Journal of Libertarian Studies, volume V, n.º 1, inverno de 1981, pp. 8 a 22. Tirando os trabalhos mencionados que constituem a referida «pré-história», até à aparição de Mises, e como assinala Rothbard («The End of Socialism and the Calculation Debate Revisited», obra citada, p. 51), o problema do socialismo era sempre visto como mais de tipo político e relacionado com os «incentivos», do que de natureza econômica. Dentre este tipo de trabalhos ingenuamente críticos, destaque-se a obra de William Hurrell Mallock, A Critical Examination of Socialism, originariamente publicada em 1908 e reeditada em 1990 por Transaction Publishers, New Brunswick.
[18] Publicado no Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, volume 47, abril de 1920, pp. 86-121. Mais tarde, este artigo foi traduzido para o inglês por S. Adler com o título de «Economic Calculation in the Socialist Commonwealth» e incorporado como Capítulo III em Collectivist Economic Planning (1933), obra citada, pp. 87 a 130. O conteúdo deste artigo é transferido por Mises, quase literalmente, para a obra que publica dois anos depois, em 1922, e em que critica sistematicamente o socialismo em todos os seus aspectos: Die Gemeinwirtschaft: Untersuchungen über den Sozialismus, Gustav Fischer, Jena 1922, traduzida para o inglês por J. Kahane em 1936 e publicada com o título de Socialism: An Economic and Sociological Analysis. Trata-se de uma tradução publicada em várias edições em diversos lugares, sendo a melhor de todas a da Liberty Classics, Indianapolis, 1981 (pp. 95-197). Recentemente, a versão inglesa do artigo seminal de Mises foi reeditada com uma introdução dupla de Yuri N. Maltsev (da Academia de Ciências da extinta URSS) e de Jacek Kochanowicz (Professor de Economia da Universidade de Varsóvia); e inclui um post-scriptum de Joseph T. Salerno intitulado «Why a Socialist Economy is Impossible» (The Ludwig von Mises Institute, Auburn University, Auburn, Alabama, 1990). Embora o artigo de Mises não esteja traduzido para o castelhano, existe uma tradução aceitável de Die Gemeinwirtschaft, da autoria de Luis Montes de Oca, publicada em 1961 no México pela Editorial Hermes com o título de Socialismo: Análisis Económico y Sociológico; em 1968 em Buenos Aires pelo Instituto Nacional de Publicaciones de Buenos Aires; reimpressa, pela terceira vez, pela Western Books Foundation (WFB), Nova Iorque, 1989; e, pela quarta, quinta e sexta vez (corrigida), pela Unión Editorial, Madri, 2003, 2005 e 2009. Esta mesma obra foi traduzida para o francês e publicada com um prefácio de François Perroux em 1952 (Librairie de Médecis, Paris).
[19] «To Ludwig von Mises really belongs the merit of having so energetically drawn the attention of socialists to this question. However, little it was the intention of Mises to contribute by this criticism to the positive development of socialist theory and praxis, yet honour must be given where honour is due», Die Wirtschaftsrechnung in der Sozialistischen Gesellschaft, Verlag der Wiener Volksbuchhandlung, Viena 1923, p. 74. A tradução para o inglês desta citação foi retirada da p. 5 do livro Economic Calculation in the Socialist Society, de Trygve J.B. Hoff, publicado por Liberty Press, Indianápolis, em 1981.
[20] «A statue of Professor Mises ought to occupy an honourable place in the great hall of the Ministry of Socialization or of the Central Planning Board of a socialist state … both as an expression of recognition for the great service rendered by him and as a memento of the prime importance of sound economic accounting.» Oskar Lange, «On the Economic Theory of Socialism», publicado em Review of Economic Studies, outubro de 1936, p. 53. Este artigo foi incluído no livro On the Economic Theory of Socialism, editado por B.E. Lippincott, The University of Minnesota Press, Minneapolis 1938 e 1964, pp. 55-143. (Existe uma tradução para o castelhano de Antonio Bosch e Alfredo Pastor, publicada pela Editorial Ariel, Barcelona 1973.) Mais recentemente o artigo de Oskar Lange voltou a ser parcialmente reeditado na obra Friedrich A. Hayek. Critical Assesments, ed. por J.C. Wood e R.N. Woods, Routledge, Londres, 1991, Capítulo 17, pp. 180-201.
[21] A estátua de Mises foi colocada, pelo menos, na biblioteca do Departamento de Teoria Econômica da Universidade de Varsóvia onde Oskar Lange deu as suas aulas, e precisamente ao lado do seu antigo gabinete. A colocação do busto de Mises foi realizada numa breve e emocionada cerimônia em setembro de 1990 e foi possível graças a George Koetter (ver Free Market, volume 9, n.º 2, fevereiro de 1991, p. 8, e igualmente The Journal of Economic Perspectives, volume 5, n.º 3, verão de 1991, pp. 214-215).
[22] Ludwig von Mises, «Economic Calculation in the Socialist Commonwealth», em Collectivist Economic Planning, obra citada, p. 102.
[23] Ludwig von Mises, Socialism, obra citada, p. 101.
[24] Ludwig von Mises, Liberalism, Cobden Press, São Francisco 1985. A edição original desta obra surgiu em 1927 com o título de Liberalismus, publicada por Gustav Fischer em Jena. Existe uma tradução para castelhano de Joaquín Reig Albiol, publicada pela Unión Editorial, Madri, em duas edições (1977 e 1982). A citação que acabamos de traduzir aparece, respectivamente, nas pp. 98 e 100-101 destas duas edições, com o seguinte teor: «He aquí por qué el orden socialista resulta inviable; tiene, en efecto, que renunciar a esa intelectual división del trabajo que mediante la cooperación de empresarios, capitalistas y trabajadores, tanto en su calidad de productores como de consumidores, permite la aparición de precios para cuantos bienes son objeto de contratación. Sin tal mecanismo, es decir, sin cálculo, la racionalidad económica se evapora y desaparece.»
[25] Esta ideia essencial de Mises tem um claro antecedente em Carl Menger, como demonstrou o conteúdo do caderno de apontamentos que o Príncipe herdeiro Rudolf elaborou a partir de 1876, praticamente todo ele ditado por Menger, que tinha sido oficialmente nomeado seu tutor e professor. De fato, nas pp. 50-51 do 6.º bloco dos referidos apontamentos podemos ler: «A government cannot possibly know the interest of all citizens. In order to help them it would have to take account of the diverse activities of everybody … However carefully designed and well intentioned institutions may be, they never will suit everybody. Only the individual himself knows exactly his interests and the means to promote them … Even the most devoted civil servant is but a blind tool within a big machine who treats all problems in a stereotyped manner with regulations and instructions. He can cope neither with the requirements of contemporary progress nor with the diversity of practical life. Therefore it seems impossible that all economic activities be treated in a stereotyped way, following the same rule with utter disregard for individual interests» (Archiduque Rudolf, Príncipe herdeiro da Áustria, Politische Oekonomie, Hefte, janeiro-agosto 1876, manuscrito pelo punho do próprio Príncipe, e depositado no Osterreichisches Staatsarchiv. Estes apontamentos, descobertos pela historiadora Brigitte Hamann, foram traduzidos para o inglês por Monika Streissler e David F. Good. Transcrevemos esta tradução tal como é citada por Erich W. Streissler, Carl Menger on economic policy: The Lectures to Crown Prince Rudolf, incluído em Carl Menger and his Legacy in Economics, editado por Bruce J. Caldwell, Annual Supplement to volume 22, History of Political Economy, Duke University Press, Durham, 1990, pp. 107-130 e, em especial, as pp. 120-121). É curioso assinalar que, de acordo com Mises, a trágica morte do arquiduque Rudolf deveu-se ao fato de Carl Menger, consciente do pernicioso efeito que a ampliação da envenenada corrente intelectual contra o liberalismo teria sobre o Império Austro-Húngaro, «had transmitted this pessimism to his young student and friend, Archduke Rudolf, successor to the Austro-Hungarian throne. The Archduke committed suicide because he despaired about the future of his empire and the fate of European civilization, not because of a woman (he took a young girl along in death who, too, wished to die, but he did not commit suicide on her account).» Ver Notes and Recollections, obra citada, p. 34.
[26] Ludwig von Mises, «Economic Calculation in the Socialist Commonwealth», em Collectivist Economic Planning, obra citada, pp. 120-121. Ver igualmente o interessante artigo de W. Keizer, «The Property Rights Basis of von Mises’ Critique of Socialism», manuscrito aguardando publicação e apresentado na First European Conference on Austrian Economics, Universidade de Maastrich, 9-10 de abril de 1992.
[27] Ludwig von Mises, Socialism, obra citada, p. 191. É, portanto, equivocada a dicotomia de Salerno («Ludwig von Mises as Social Rationalist», obra citada, pp. 45 e 55) segundo a qual, para Mises, o problema do socialismo se relacionava com o cálculo econômico e não com o conhecimento disperso, uma vez que os dois se encontram indissocialvelmente ligados. O próprio Mises não só insistiu, como vimos desde o início, na importância da «posição característica» do empresário no momento da obtenção da informação, como sempre concebeu a economia como uma ciência cujo objeto não eram coisas, mas informação ou conhecimento, entendidos como realidades espirituais («A economia não trata de coisas ou de objetos materiais tangíveis; trata de homens, de suas apreciações e das ações que daí deriva.», Ação Humana, obra citada, p. 125).
[28] «The dichotomy between “theoretical” and “practical” is a false one. In Economics, all arguments are theoretical. And since economics discusses the real world, these theoretical arguments are by their nature practical ones as well.» Murray N. Rothbard, Man, Economy, and State: A Treatise on Economic Principles, volume II, Nash Publishing, Los Angeles 1970, p. 549 (Scholar’s Edition, Mises Institute, 2004). De fato, não há nada mais prático do que uma boa teoria, e tanto o argumento de Mises como o dos economistas matemáticos que o criticaram são teóricos. Simplesmente, o argumento de Mises é um argumento teórico relevante para a prática real do funcionamento da economia de mercado e do socialismo; ao passo que o argumento dos economista matemáticos é um argumento teórico irrelevante, na medida em que se refere a um modelo de equilíbrio no qual se pressupõe que, por definição, o problema econômico já está resolvido, por se considerar que toda a informação necessária está dada e se encontra ao dispor do órgão de controle.
[29] Ludwig von Mises, «Economic Calculation in the Socialist Commonwealth», em Collectivist Economic Planning, obra citada, p. 109.
[30] Ludwig von Mises, Socialism, obra citada, pp. 120-121. Assim, não faz sentidfo a afirmação de Salerno segundo a qual o problema do cálculo econômico em Mises é um mero problema de maximização robbinsiana no qual os fins e os meios estão dados (Joseph T. Salerno, «Ludwig von Mises as Social Rationalist», obra citada, p. 46). Do ponto de vista dinâmico, nem os fins nem os meios estão dados. É necessário criá-los e descobri-los a cada momento. Calcular implica olhar para o futuro e, logo, criar informação nova.
[31] Ver a autobiografia intelectual de Mises, Notes and Recollections, obra citada, p. 36.
[32] «My thinking was inspired largely by Ludwig von Mises’ conception of the problem of ordering a planned economy… But it took me a long time to develop what is basically a simple idea», em F.A. Hayek «The Moral Imperative of the Market», publicado em The Unfinished Agenda. Essays on the political economy of government policy in honour of Arthur Seldon, Institute of Economic Affairs, Londres, 1986, p. 143.
[33] Diversos autores caíram no erro de acreditar que o argumento computacional não implica o argumento epistemológico e vice-versa. Ver, por exemplo, Chadran Kukathas, Hayek and Modern Liberalism, Clarendon Press, Oxford 1989, p. 57; Murray N. Rothbard, Ludwig von Mises: Scholar, Creator and Hero, Ludwig von Mises Institute, 1988, p. 38, e os trabalhos de J.T. Salerno já citados.
[34] Ludwig von Mises, Socialism, página 121.
[35] Assim, estamos basicamente de acordo com Don Lavoie, cujo capítulo sobre o socialismo marxista consideramos ser um dos mais acertados da sua obra Rivalry and Central Planning, obra citada, Capítulo II, pp. 28 a 47. Ver igualmente o livro de N. Scott Arnold, Marx’s Radical Critique of Capitalist Society: A Reconstruction and Critical Evaluation, Oxford University Press, Oxford 1990.
[36] Karl Marx, Grundrisse: Foundations of the Critique of Political Economy, Random House, Nova Iorque 1973, p. 161.
[37] Ibidem, p. 161.
[38] Karl Marx, Capital: A Critique of Political Economy, volume I, «The Process of Capitalist Production», International Publishers, Nova Iorque, 1967, p. 178. Noutros escritos Marx é ainda mais explícito no que se refere à sua defesa do planejamento central como único meio para organizar a atividade econômica: «The united cooperative societies are to regulate national production upon a common plan, thus taking it under their own control and putting an end to the constant anarchy and periodical convulsions which are the fatality of capitalist production», p. 213 de «The Civil War in France: Address of the General Council», em The First International and After: Political Writings, editado por D. Fernbach, Random House, Nova Iorque, volume III, pp. 187-268.
[39] Resumindo, os principais argumentos contra a teoria objetiva do valor trabalho e do seu principal corolário, a teoria marxista da exploração, são os seguintes: em primeiro lugar, não é certo que todos os bens econômicos sejam produto do trabalho. Por um lado, existem os bens da natureza, que, sendo escassos e úteis para alcançar fins humanos, constituem bens econômicos, embora não incorporem qualquer tipo de trabalho. Por outro lado, é evidente que dois bens, mesmo que incorporem uma quantidade idêntica de trabalho, podem ter um valor muito diferente se o período de tempo necessário para a sua produção for diferente. Em segundo lugar, o valor dos bens é subjetivo, uma vez que, como explicamos no segundo capítulo, o valor é apenas uma apreciação que o homem faz ao agir, projetando sobre os meios a importância que acredita que têm para alcançar um determinado fim. Por isso, bens que incorporem uma grande quantidade de trabalho podem ter um valor muito reduzido, e até não valer nada, se mais tarde o agente verificar que não têm utilidade para a obtenção de qualquer fim. Em terceiro lugar, os teóricos do valor-trabalho caem numa contradição insolúvel e num raciocínio circular, uma vez que, se o trabalho determina o valor dos bens econômicos e este é, por sua vez, determinado pelo valor dos bens econômicos necessários para o reproduzir e para manter a capacidade produtiva do trabalhador, nunca se chega a explicar o que é que, em última instância, determina o valor. Por fim, em quarto lugar, é óbvio que os defensores da teoria da exploração desconhecem de forma flagrante a lei da preferência temporal e, logo, a categoria lógica segundo a qual, em igualdade de circunstâncias, os bens presentes têm sempre um valor superior aos bens futuros. Este erro os leva a pretender que se pague ao trabalhador mais do que realmente produz, dado que defendem que se pague ao trabalhador, depois de este realizar o seu trabalho, o valor integral de um bem que só estará produzido depois de um período de tempo mais ou menos prolongado. Todas estas considerações criticas à teoria marxista do valor são analisadas com grande minúcia na obra clássica de Eugen von Böhm-Bawerk «The Exploitation Theory», em Capital and Interest, Libertarian Press, South Holland, Ilinois, 1959, volume I, Capítulo 12, pp. 241 a 321 (existe uma tradução para o espanhol com prólogo de Joaquín Reig Albiol e publicada com o título de La Teoría de la Explotación, Unión Editorial, Madri, 1976). Esta obra de Böhm-Bawerk é a tradução para o inglês do primeiro volume de sua obra-prima Kapital und Kapitalzins, que com o subtítulo de «Geschichte und Kritik der Kapitalzins-Theorien» foi publicada em quatro edições (1884, 1900, 1914 e 1921). Além disso, Böhm-Bawerk escreveu um artigo para demonstrar as inconsistências e contradições em que tinha caído Marx ao tentar corrigir no volume III de O Capital os errores e as contradições da sua teoria da exploração tal como tinha sido inicialmente desenvolvida no volume I da mesma obra. Este artigo tem como título «Zum Abschluss des Marxschen Systems», e foi publicado nas pp. 85 a 205 de Staatswissenschaftliche Arbeiten-Festgaben für Karl Knies zur Fünfundsiebzigsten Wiederkehr, Haering, Berlim, 1896. Utilizamos uma tradução para o inglês publicada com o título de «The Unresolved Contradiction in the Marxian Economic System», Capítulo IV de Shorter Classics of Eugen von Böhm-Bawerk, volume I, Libertarian Press, South Holland, Ilinois 1962, pp. 201 a 302 (existe uma tradução para castelhano deste artigo publicada com o título de «Una Contradicción no resuelta en el Sistema Económico Marxista», Libertas, n.º 12, maio de 1990, pp. 165 a 296, Buenos Aires). No campo marxista, só Rudolph Hilferding (1877-1941) tentou, sem sucesso, contestar os argumentos de Böhm-Bawerk em «Böhm-Bawerk’s Marx Kritik», publicado em 1904 no volume I de Marx-Studien, I.Brand, Viena. Comentando este artigo de Hilferding, Böhm-Bawerk conclui que «nothing in it has caused me to change my opinion in any respect», ver Capital and Interest, obra citada, volume I, pp. 472. O próprio Otto Bauer, teórico socialista que assistiu, como Hilferding e Mises, ao Seminário de Böhm-Bawerk, chegou até a dizer a Mises que Hilferding não chegou sequer a entender a essência da crítica de Böhm-Bawerk a Marx. Ver Mises,Notes and Recollections, obra citada, p. 40.
[40] Karl Marx, Capital: A Critique of Political Economy, volume II, «The Process of Circulation of Capital», International Publishers, Nova Iorque 1967, p. 358.
[41] Karl Marx, Capital: A Critique of Political Economy, volume I, «The Process of Capitalist Production», obra citada, p. 94.
[42] Friedrich Engels, Anti-Dühring ou a subversão da ciência pelo sr. Eugénio Dühring, Fernando Ribeiro de Mello/Edições Afrodite, Lisboa, 1971, pp. 379-380.
[43] Marx considerou ainda que as versões intervencionista e sindicalista do socialismo eram «utópicas». O intervencionismo porque procurava manter a forma «anárquica» de produção típica do mercado, corrigindo-a através de mandatos isolados provenientes do governo e destinador a obter os fins socialistas. Neste aspecto, Marx aceitou plenamente os argumentos contrários ao intervencionismo da Escola Clássica da Economia e considerou que a legislação social e trabalhista não poderia nunca alcançar os objetivos pretendidos, assim como é impossível alterar o fato de que existe a lei da gravidade. Assim, os salários não podem ser aumentados de forma substancial por meio de decretos oficiais, mesmo que assumamos que o estado ou o governo tenha o desejo sincero de o fazer. Por sua vez, os sindicalistas seriam utópicos, na medida em que nunca foram capazes de explicar como é que as diferentes indústrias e empresas independentes controladas pelos trabalhadores poderiam vir a coordenar as suas atividades de forma racional do ponto de vista da sociedade no seu conjunto. Marx não compreendeu, no entanto, que, como indicamos no texto, do seu próprio ponto de vista, o socialismo por ele desenvolvido também era utópico, uma vez que o surgimento da informação necessária para tornar possível o desenvolvimento econômico, tecnológico e social é incompatível com o planejamento central e coercivo.
[44] Ludwig von Mises, Ação Humana, obra citada, p. 306. Além disso, Mises considera, assim como Marx, que a suposto moeda utilizada num estado de equilíbrio, não teria de todo essa natureza. Mises não afirma, como faz Marx, que seria simplesmente um cupon idêntico, na sua função, a uma entrada para o teatro, mas que «it is merely a numéraire, an ethereal and undetermined unit of accounting of that vague and indefinable character which the fancy of some economists and the errors of many laymen mistakenly have attributed to money». Noutro trecho de Ação Humana, p. 485, Mises acrescenta que «é impossível atribuir qualquer função à troca indireta, aos meios de troca e à moeda numa tal construção imaginária cuja principal característica é a imutabilidade e a rigidez das circunstâncias. Onde não há incerteza quanto ao futuro, não há qualquer necessidade de encaixe. Como a moeda, necessariamente, só pode ser mantida em poder das pessoas sob a forma de encaixe, não havendo encaixe, não pode haver moeda. O uso de meios de troca e a manutenção de encaixes são condicionados pelo fato de que as condições econômicas variam. A moeda em si mesma é um elemento de troca; sua existência é incompatível com a ideia de um fluxo regular de eventos numa economia uniformemente circular.» Por outro lado, a melhor análise que eu conheço sobre as diferenças existentes entre o conceito de moeda num sistema de economia de mercado e num sistema socialista encontra-se em Trygve J.B. Hoff, Economic Calculation in the Socialist Society, Liberty Press, Indianápolis 1981, Capítulo VI, «Money in the formation of prices of consumer goods in a socialist society with each choice of goods and occupation», e sobretudo nas pp. 101-115. Hoff indica que embora o termo «moeda» seja usado nas economias de mercado e nas socialistas, na verdade o termo denota duas coisas radicalmente distintas, não só porque em regimes socialistas os preços têm uma função meramente paramétrica (ou seja, retrospectiva ou de ajuste e não prospectiva no sentido de incorporar e criar informação nova), mas também porque nos sistemas socialistas só podem ser adquiridos bens de consumo, sendo que a única loja disponível é a do estado.
[45] Ludwig von Mises, «Economic Calculation in the Socialist Commonwealth», em Collectivist Economic Planning, obra citada, p. 102.
[46] Ludwig von Mises, «Economic Calculation in the Socialist Commonwealth», em Collectivist Economic Planning, obra citada, p. 109.
[47] Assim, a nossa concepção do «econômico» não coincide com a concepção mais generalizada de origem robbinsiana utilizada pelos teóricos do equilíbrio, e segundo a qual o «problema econômico» consiste na distribuição de recursos que são escassos, mas conhecidos para fins que também estão dados. Na nossa opinião, esta concepção da «economia» é pobre, de interesse científico escasso e reduz a nossa ciência a uma simples amálgama, estreita e míope, de técnicas maximizadoras. Por outro lado, não surpreende que legiões de pseudoeconomistas, que não são mais do que técnicos de maximização, sejam incapazes de compreender com o pobre instrumental da sua técnica quais são as razões teóricas que impossibilitam o socialismo. O desenvolvimento da nossa ciência continuará difícil enquanto os seus cultivadores não forem capazes de distinguir claramente as diferenças radicais existentes entre ciência e técnica no campo da economia e, sob o pretexto de fazer ciência, se refugiarem na área, muito mais fácil, cômoda e segura, apesar das aparências, de uma técnica que é cientificamente irrelevante, uma vez que o seu desenvolvimento só é possível supondo que os problemas econômicos de verdadeiro interesse — gerar e descobrir a informação necessária — foram previamente resolvidos. Além disso, por fim, uma vez que o problema econômico só pode ser resolvido de forma espontânea e descentralizada por meio do livre exercício da interação humana ou função empresarial, a nosso ver, a economia se converte num ciência geral da ação humana e das suas implicações (praxeologia), cuja matéria-prima não são coisas objetivas (bens, serviços, etc.), mas entidades subjetivas de aspecto espiritual (ideias, valorações, informação). A concepção austríaca da economia como ciência não estritamente maximizadora (em termos estáticos e matemáticos) tem origem no próprio Menger. Neste sentido, A.M. Endres chega até a se referir ao «princípio mengeriano da não maximização». Ver o seu artigo «Menger, Wieser, Böhm-Bawerk, and the Analysis of Economic Behaviour», em History of Political Economy, volume 23, n.º 2, verão 1991, pp. 279- 299 e em especial a nota de rodapé n.º 5 da p. 281.
[48] Como afirma Murray N. Rothbard, «if there were no market for a product, and all of its exchanges were internal, there would be no way for a firm or for anyone else to determine a price for the good. A firm can estimate an implicit price when an external market exists; but when a market is absent, the good can have no price, whether implicit or explicit. Any figure could be only an arbitrary symbol. Not being able to calculate a price a firm could not rationally allocate factors and resources from one stage to another.» Man, Economy, and State. A Treatise on Economic Principles, Nash Publishing, Los Angeles, 1970, volume II, pp. 547-548.
[49] Este argumento já foi defendido em 1934 por Fritz Machlup para o qual, «whenever a firm (or concern) supplies the output of one of its departments as an input to another of its departments instead of selling it in a competitive market at a price established by supply and demand, the problem of artifical transfer prices or of jumbled cost-and-reserve figures arises. There may still be calculations, but not according to the economic principle of what Mises termed “economic calculations.”» «Closing Remarks», em The Economics of Ludwig von Mises. Toward a Critical Reappraisal, editado por Laurence S. Moss, Sheed and Ward, Kansas City 1976, e a bibliografia citada na p. 116. F.A. Hayek, por sua vez, chegou a uma conclusão muito parecida em outro contexto quando afirmou: «To make a monopolist charge the price that would rule under competition, or a price that is equal to the necessary cost, is impossible, because the competitive or necessary cost cannot be known unless there is competition. This does not mean that the manager of the monopolized industry under socialism will go on against his instructions, to make monopoly profits. But it does mean that since there is no way of testing the economic advantages of one method of production as compared with another, the place of monopoly profits will be taken by uneconomic waste.» Ver «Socialist Calculation II: The State of the Debate (1935)», Capítulo VIII de Individualism and Economic Order, Gateway Editions, Chicago 1972, p. 170. Incluído em Socialismo y guerra, Vol. 10, Obras Completas de F.A. Hayek, Unión Editorial, Madri, 1998.
[50] Esta argumentação se completa e está em sintonia com a análise formulada por Ronald H. Coase sobre a natureza da «firma» (entendida como «organização» interna de tipo voluntário) e os fatores determinantes do seu tamanho e desenvolvimento, em oposição ao uso do sistema alternativo representado por interrelações externas e que Coase qualifica erroneamente de relações baseadas na utilização do mercado e do sistema de preços. Segundo Coase, «it is easy to see when the State takes over the directions of an industry that, in planning it, it is doing something which was previously done by the price mechanism. What is usually not realized is that any businessman, in organizing the relations among his departments, is also doing something which could be organized through the price mechanism … In a competitive system, there is an “optimum amount of planning”! … The important difference between these two cases is that economic planning is imposed on industry, while firms arise voluntarily because they represent a more efficient method of organizing production.» «The Nature of the Firm», The Firm, the Market and the Law, The University of Chicago Press, Chicago, 1988, nota de rodapé n.º 14 da p. 37, e também The Nature of the Firm, Origins, Evolution and Development, ed. por Oliver E. Williamson e Sidney G. Winter, Oxford University Press, Oxford 1991, pp. 30-31. A tese de Mises seria, então, complementar a de Coase, no sentido de que a organização empresarial não só teria lucros decrescentes e custos crescentes, como resultaria num custo proibitivo logo que o mercado para determinados fatores de produção começasse a desaparecer. Assim, dentro dos processos de mercado, existe uma salvaguarda contra a possibilidade da sua eliminação através da integração vertical voluntária, salvaguarda esta constituída pela necessidade vital que o empresário sente de orientar a sua ação com base no cálculo econômico. Devemos ressaltar que, apesar de considerarmos, em certos aspectos, notável a sua análise, na nossa opinião Coase não foi capaz de ultrapassar a fronteira teórica a que o reconhecimento explícito da função empresarial obriga. Toda a teoria de Coase insiste obsessivamente nos «custos de transição», cujo conceito pressupõe a existência da informação necessária para identificar e calcular esses custos. No entanto, o problema econômico básico não é um problema de custos de transação, mas um problema empresarial, ou seja, de descoberta e criação da informação necessária, tanto no que se refere a novos fins, como no que se refere a novos meios necessários para os alcançar. Ou seja, a teoria de Coase continua sendo uma teoria estática ou de equilíbrio, que pressupõe um quadro dado de fins e meios e que ignora que antes do problema de «custos de transação» existe o problema, muito mais relevante, de identificar ou não empresarialmente quais são os cursos de ação mais adequados. Ou seja, «os custos de transação» podem não existir se não forem descobertos, e aqueles que subjetivamente se considerem como tal, podem, em qualquer momento, deixar de sê-lo ou ver-se radicalmente modificados se ocorrerem inovações ou descobertas empresariais. Desta forma, o problema não é a informação estar dada, embora, de forma dispersa ou disseminada e, por isso, muito «difícil» de obter. O problema é a informação não estar dada, e, se a função empresarial for bem exercida, pode ser criada ou descoberta constantemente informação nova prática sem qualquer custo: nos processos sociais dinâmicos o problema econômico não é colocado pelos «custos de transação», mas pela ineficiência-X, ou, se preferir, o genuíno erro empresarial, e só pode ser resolvido através do exercício criativo e não coercivo da função empresarial.
[51] Fecha-se assim o círculo da refutação teórica a Marx. Esta refutação se inicia cronologicamente com a análise crítica de Böhm-Bawerk sobre a teoria marxista da mais valia ou da exploração e sobre a teoria objetiva do valor-trabalho, que demonstrou a vacuidade da análise crítica marxista contra o capitalismo. O círculo se fecha com a contribuição de Ludwig von Mises, que se constitui como uma arma demolidora e definitiva contra Marx, ao demonstrar que o sistema alternativo socialista é teoricamente impossível uma vez que não permite o cálculo econômico. Deste argumento, podemos também deduzir, como importante subproduto ou corolário, a demonstração de que a teoria marxista sobre o processo de concentração capitalista é falsa.
[52] Entre os autores que acreditaram que o cálculo econômico era possível numa economia sem moeda, se destacam Karl Ballod, Nicolai Bucharin, Otto Neurath, Carl Landauer e Alexander B. Tschayanoff. Em geral, a ideia destes autores é a de que o estado teria que definir as necessidades de cada cidadão em função de critérios «objetivos» proporcionados pelos técnicos (biólogos, agrônomos, etc.). Depois, o correspondente departamento ou instituto de estatística teria de planificar quantos bens de consumo (notas, calças, camisas, etc.) teriam que ser produzidos durante o ano. Estes bens de consumo seriam distribuídos mais tarde entre os cidadãos de forma idêntica. As principais obras dos autores socialistas que defenderam o cálculo em espécie são, além da já referida de Otto Neurath, Durch die Kriegswirtschaft zur Naturalwirtschaft, e a sua Wirtschaftsplan und Naturalrechnung: von der sozialistischen Lebensordnung und von kommenden Menschen, Laub, Berlim 1925, as seguintes: Alexander B. Tschayanoff, «Zur Frage einer Theorie der Nichtkapitalistischen Wirtschaftssysteme», publicado em Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik 1923, n.º 51, pp. 577 a 613; N.I. Bukharin e E. Preobrazhensky, The ABC of Communism: A Popular Explanation of the Program of the Communist Party of Russia, University of Michigan Press, Ann Arbor 1966; Karl Ballod, Der Zukunftsstaat: Wirtschaftstechnisches Ideal und Volkswirtschaftliche Wirklichkeit, cuja quarta edição foi publicado em Berlim, Edit. Laub 1927; e, por último, Carl Landauer,Planwirtschaft und Verkehrswirtschaft, Duncker & Humblot, Munique 1931. É possível encontrar uma descrição detalhada das propostas destes autores em Trygve J.B. Hoff, Economic Calculation in the Socialist Society, obra citada, pp. 50 a 80. Sobre o economista Karl Ballod e a sua influência nas origens do planejamento na União Soviética, podem ser consultadas as pp. 12 e 13 da obra Les Economies Socialistes, de François Seurot, Presses Universitaires de France, Paris, 1983. A obra de Ballod foi publicada em russo em 6 edições entre 1903 e 1906, e os seus princípios foram seguidos de perto por Gleb Krjijanovskij quando Lenin o encarregou da missão de elaborar o Plano de Eletrificação (Plano Goelro) em 1920. Sobre Karl Ballod (1864-1933), que adotou o pseudônimo Atlanticus, da obra Nova Atlantis (1627) de Francis Bacon, pode ser consultado a proveitosa obra de Juan Martínez-Alier Ecological Economics, obra citada, pp. 199-205. No entanto, as conclusões de Martínez-Alier não levam em consideração a essência da empresarialidade explicada nos Capítulos II e III, bem como a forma como os recursos naturais são especialmente danificados onde quer que a função empresarial não possa agir livre de obstáculos institucionais, uma vez que não é gerada a informação necessária para tomar decisões adequadas sobre os referidos recursos. Neste sentido, ver a minha obra «Derechos de Propiedad y Gestión Privada de los Recursos de la Naturaleza», em Cuadernos del Pensamiento Liberal, obra citada.
[53] O próprio teórico socialista Karl Kautsky ridicularizou as ideais de Otto Neurath sobre o cálculo em espécie e concluiu que «it is obvious that bookkeeping in natura would soon lead to inextricable chaos.» Citado por T.J.B. Hoff, Economic Calculation in the Socialist Society, obra citada, p. 79. Além disso, Hoff demonstra com grande minúcia que as propostas de distribuição em espécie de bens e serviços de consumo que foram apresentadas pelos diferentes teóricos socialistas (e das quais chega a considerar oito versões diferentes divididas em dois grandes grupos) não são possíveis. Ver as pp. 54 a 70 da obra citada. Por sua vez, o economista russo Boris Brutzkus também qualificou de absurdas as propostas de Bukharin e Tschayanoff sobre a possibilidade de realização de cálculos econômicos em espécie (Economic Planning in Soviet Russia, obra citada, p. XVII).
[54] Ludwig von Mises, Socialism, obra citada, nota de rodapé da página 119.
[55] O procedimento do cálculo econômico em horas de trabalho descrito no texto já tinha sido enunciado na suas linhas primordiais por Karl Marx em Crítica do Programa de Gotha (publicado na extinta União Soviética, Edit. Progresso, Moscovo 1977, especialmente as pp. 16-17), quando escreveu: «A sociedade entrega-lhe um bônus consignando que prestou tal ou qual quantidade de trabalho (depois de descontar para o fundo comum o que trabalhou), e com este bônus ele retira dos depósitos sociais de meios de consumo a parte equivalente à quantidade de trabalho que prestou. A mesma quantidade de trabalho que deu à sociedade sob uma forma, recebe-a desta sob uma outra forma diferente.» O autor que defendeu de forma mais convicta a possibilidade do cálculo econômico em horas de trabalho foi Otto Leichter no seu Die Wirtschaftsrechnung in der Sozialistischen Gesellschaft, Edit. Verlag der Wiener Vollsbuchhandlung, Viena, 1923. Paradoxalmente, o livro de Leichter inclui uma crítica muito severa às propostas do cálculo em espécie. As ideias de Leichter foram posteriormente desenvolvidas e aperfeiçoadas por Walter Schiff em Die Planwirtschaft und ihre ökonomische Hauptprobleme, Berlim, 1932. A solução de Leichter foi especificamente contestada por Mises no seu artigo «Neue Beiträge zum Problem der Sozialistischen Wirtschaftsrechnung», publicado em Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, n.º 51, ano 1924, pp. 488 a 500. Existe um artigo em inglês que comenta o conteúdo deste trabalho de Mises escrito por William Keizer com o título de «Two Forgotten Articles by Ludwig von Mises on the Rationality of Socialist Economic Calculation», publicado em The Review of Austrian Economics, volume I, Lexington Books, Massachusetts, 1987, pp. 109 a 122. Neste trabalho, o segundo artigo de Mises abordado é o de «Neue Schriften zum Problem der Sozialistischen Wirtschaftsrechnung», publicado na mesma revista (volume 60, 1928, pp. 187-190), no qual Mises comenta as contribuições de J. Marschak, Otto Neurath e Boris Brutzkus.
[56] Nos artigos que publicou na Ekonomitscheskaja Shishni, n.os 237, 284 e 290 (23 de outubro, 17 de dezembro e 24 de dezembro de 1920, respectivamente), Stanislav Strumilin (1877-1974) afirmou que não considerava possível o cálculo econômico utilizando horas de trabalho, a não ser que este conceito se completasse com a utilização de unidades de utilidade. Uma explicação detalhada do seu sistema de cálculo econômico, abandonado por Lenin quando reintroduziu o mercado e a moeda na fase N.E.P., pode ser encontrada no artigo de M.C. Kaser sobre Strumilin publicado em The New Palgrave: A Dictionary of Economics, obra citada, volume IV, p. 534. Boris Brutzkus, na sua obra citada, criticou em detalhes a possibilidade de realização do cálculo econômico em unidades de utilidade. Por sua vez, Karl Kautsky também defendeu veementemente a impossibilidade do cálculo econômico em horas de trabalho, considerando que para que isso fosse possível seria necessário partir dos preços históricos de mercado existentes antes do estabelecimento efetivo da economia socialista (talvez como via indireta para recolher as relações de utilidade). Ver a sua obra Die Proletarische Revolution und ihr Programm, Editorial Dietz Nachfolger, Berlim 1922. A proposta de Kautsky foi completamente rebatida pelo artigo de Mises publicado em Archiv em 1924 e que mencionamos na nota anterior.
[57] «Todo necio, /confunde valor y precio.» [Todo o tolo / confunde valor e preço] , Antonio Machado. «Proverbios y Cantares» LXVIII, Poesías Completas, Edição Crítica de Oreste Macrí, Espasa Calpe, Madri, volume I, p. 640 e também a p. 820.
[58] Um bom estudo sobre os diferentes autores que tentaram, em alemão, responder ao desafio de Mises e que, na sua maioria, mencionamos nas notas anteriores, foi publicado por Günther K. Chaloupek, «The Austrian Debate on Economic Calculation in a Socialist Economy», History of Political Economy, volume 22, n.º 4, inverno de 1990, pp. 659-675, e, em especial, toda a bibliografia aí mencionada. O debate em alemão sobre o cálculo econômico, menos conhecido do que o que se desenvolveu mais tarde no mundo anglo-saxônico, se completa com as obras que decididamente apoiaram a posição de Mises e que Chaloupek não menciona. Ver especialmente Max Weber, «Wirtschaft und Gesellschaft», em Grundriss der Sozialökonomie, volume III, Tubinga 1922, pp. 45-59; Adolf Weber, Allgemeine Volkswirtschaftslehre, 4.ª edição, Munique e Leipzig 1932, volume II, p. 369; C.A. Verrijn Stuart, «Winstbejag versus behoeftenberrediging», Overdruk Economist, volume 76, n.º 1, pp. 18 ss.; e Pohle e Halm, Kapitalismus und Sozialismus, 4.ª edição, Berlim, 1931, pp. 237 ss.