O termo kafkatrapping [1] (“armadilha kafkiana”) descreve uma falácia lógica que é popular no feminismo, nas políticas raciais e outras ideologias de vitimização. Ela ocorre quando você é acusado de um “crime de pensamento [2]”, tais como o machismo, o racismo ou a homofobia. Você reage com uma discordância honesta que é logo utilizada para reforçar sua culpa. Agora você está preso em um círculo vicioso e irrefutável; nenhum acusado pode ser inocente pois a estrutura da armadilha kafkiana exclui essa possibilidade.
O termo deriva do romance “O Processo”, de Franz Kafka, onde um inexpressivo funcionário de banco chamado Josef K. é preso; nenhuma acusação é revelada ao personagem ou ao leitor. Josef é processado por um tribunal bizarro e tirânico de autoridade desconhecida e condenado por uma burocracia impenetrável. No final, Josef é sequestrado por dois homens estranhos e inexplicavelmente executado com uma facada no coração. “O Processo” é uma visão de Kafka sobre os governos totalitários, como a União Soviética, cuja justiça é transformada em uma paródia amarga e horripilante que serve apenas aos que estão no poder.
A armadilha kafkiana transforma a razão e a verdade em imitações que servem aos ideólogos da vitimização que desejam evitar as provas e argumentos baseados na verdade. O termo parece ter sua origem em um artigo de 2010 pelo autor Eric S. Raymond, que também é um defensor de “Softwares open-source”. Ele começa reconhecendo o valor da igualdade perante a lei e de tratar os outros com respeito. Porém, ele nota que “boas causas às vezes podem ter consequências negativas”. Uma dessas consequências é que as táticas utilizadas na conscientização podem se tornar “assustadoras e patológicas, tomando emprestadas as características menos sensatas da evangelização religiosa”.
Raymond oferece vários modelos de como a armadilha kafkiana opera. Ele chama os dois mais comuns de A e C.
Modelo A: O acusador diz: “Sua recusa em reconhecer que você é culpado de (pecado, racismo, machismo, homofobia, opressão…) confirma que você é culpado de (pecado, racismo, machismo, homofobia, opressão…)”. Voltando seu olhar ao livro “O Processo”, Raymond explica como o enredo do romance faz um paralelo entre os fundamentos e propósitos da falácia do acusador. Nenhum motivo específico é mencionado na acusação, o que torna o argumento irrefutável. A acusação imprecisa constitui um crime de pensamento, o que também a torna irrefutável. Assim como no romance, esse processo parece ter sido projetado para criar acusações e destruir a defesa de modo que você se torne maleável. De fato, “a única saída … é … aceitar a própria destruição”. Mesmo que você seja inocente, o único caminho para a redenção é que você se declare culpado e aceite ser punido. O ideal, para o acusador, é que você mesmo acredite na sua própria culpa.
O Modelo C: é uma variante comum do mesmo tema. Você pode não ter feito, sentido ou pensado nada de errado, mas você ainda é culpado por se beneficiar de uma posição privilegiada criada por outros. Em outras palavras, você é culpado por pertencer a certos grupos, tais como “homem”, “branco” ou “heterossexual”. A acusação faz de você um responsável pelas ações de estranhos cujos comportamentos você não pode controlar e que talvez tenham morrido há muito tempo. Raymond escreve: “O objetivo … é produzir uma espécie de culpa indefinida … uma convicção do pecado que possa ser manipulado pelo operador [acusador] para fazer com que o sujeito diga e faça certas coisas que são convenientes aos objetivos pessoais, políticos ou religiosos do acusador”. Para obter a salvação, você deve deixar de discordar do seu acusador e condenar todo o grupo a que você pertence.
O que acontece quando um acusador confronta alguém do mesmo grupo de identidade a que ele ou ela pertence? Por exemplo, uma mulher pode questionar aspectos do feminismo politicamente correto apresentados por outra mulher. Aí ocorre um fenômeno totalmente diferente. Obviamente, aquela que fez a pergunta não será incentivada a se penalizar por ser uma mulher ou a condenar todas as mulheres. Em vez disso, ela será definida como alguém de fora do grupo.
Essa é chamada de falácia do “Escocês de Verdade [3]”. Ela ocorre quando alguém é confrontado com um exemplo que refuta uma acusação universal. O filósofo britânico Antony Flew descreveu a falácia, a qual também nomeou. Um dia, Hamish McDonald lê um artigo no jornal Glasgow Morning Herald que informa sobre um ataque de um maníaco sexual na Inglaterra. Hamish exclama em voz alta: “Nenhum escocês faria uma coisa dessas!” No dia seguinte, o jornal relata um ataque ainda pior na Escócia. Em vez de rejeitar sua declaração inicial, Hamish declarou: “Nenhum escocês de verdade faria uma coisa dessas.” Deste modo, as mulheres conservadoras como Sarah Palin não são mulheres de verdade; negros que questionam a autenticidade das teorias do privilégio dos brancos deixam de ser vistos como negros de verdade.
Existem outras técnicas geralmente associadas à armadilha kafkiana. (Nota: para que uma tática possa ser uma armadilha kafkiana de verdade, ela tem de envolver uma acusação irrefutável.) Dentre as técnicas que podem ser usadas para torná-lo culpado, incluem-se:
1. Solicitar uma definição clara daquilo a que você está sendo acusado — por exemplo, homofobia;
2. Apontar uma injustiça cometida pelo grupo do acusador;
3. Aplicar um padrão único a todos, por exemplo, recusando-se a aceitar que os negros não podem ser racistas;
4. Demonstrar ceticismo sobre qualquer aspecto do vitimismo ideológico, incluindo a não aceitação de evidências pitorescas;
5. Ser ignorante ou desinteressado no assunto;
6. Argumentar contra a ideologia;
7. Dizer “alguns de meus melhores amigos são X.”
A armadilha kafkiana aparenta ser uma situação vantajosa para um acusador. À curto prazo, isso pode ser verdade, mas seu impacto à longo prazo pode ser devastador.
Um movimento se torna bastante comum quando sua premissa é verdadeira – ao menos em boa parte – e sua exigência por justiça é válida. Por exemplo, os homossexuais foram abusados brutalmente ao longo de grande parte da história. Quando um movimento deixa de lado a honestidade e a justiça que possibilitaram seu crescimento e, em vez disso, comete ataques abusivos, começa a entrar em decadência. O abuso também anula qualquer discussão produtiva sobre problemas reais. Raymond observa:
“as formas manipuladoras para controlar as pessoas são propensas a esvaziar suas causas empregadas, sufocando qualquer objetivo digno que possa ter sido utilizado de início e reduzindo-os a meros veículos na obtenção de poder e privilégios sobre os demais”
Um problema diferente surge se o acusador acredita honestamente na armadilha kafkiana. Uma mulher, cuja crença de que todos os homens são opressores, é provável que não possa cooperar de boa-fé com eles para resolver os problemas sociais. Ela é mais propensa a buscar uma posição de domínio sobre os homens, a que ela justifica em nome de uma legítima defesa ou como uma compensação que lhe é devida. Isso aumenta a tensão entre os sexos e impede as tentativas sinceras de resolver os problemas. Um verdadeiro e fanático kafkatrapper [4] (“aquele que elabora ou utiliza uma armadilha kafkiana” em tradução livre) torna-se cada vez mais isolado das pessoas que ele enxerga como “o inimigo” apenas por discordarem; o verdadeiro fanático fica cada vez mais incapaz de se comunicar ou até mesmo de ter empatia por um amplo espectro de pessoas. O seguidor da armadilha kafkiana “vence” a discussão, mas perde em sua natureza humana.
Notas:
[1] Segundo o site Dicio*, o termo “Kafkiano” é um adjetivo derivado do nome Franz Kafka (1883-1924), um famoso escritor austríaco nascido na cidade de Praga, na Áustria-Húngara. A obra de Kafka é imensamente conhecida por sua tendência em explorar um ambiente totalmente confuso, irreal, ilógico e surreal, ou seja, tão absurdo que revela-se um pesadelo aos leitores. *http://www.dicio.com.br/kafkiano/
[2] Termo inventado por George Orwell em seu livro, 1984, crimepensar (‘crimethink’) ou crime de pensamento(‘thoughtcrime’) é o termo que define o pensamento desaprovado pelo governo. Veja mais em:
https://en.wikipedia.org/wiki/Thoughtcrime
https://pt.wikipedia.org/wiki/Crime_de_pensamento
[3] Para mais explicações sobre a falácia e sua origem, ver em: www.suafalacia.com.br/escoces-de-verdade/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Expuls%C3%A3o_do_Grupo
[4] Como a palavra “Trapper” significa caçador em inglês, pode-se deduzir que “kafkatrapper” seja ‘alguém que elabore ou utilize’ “armadilhas kafkianas”, termo que foi mencionado anteriormente, já na primeira nota de tradução.
Tradução: Catarina Valadares
Revisão e Notas: Felipe Galves Duarte/Jonatas
Ficaríamos gratos se vocês colocassem referências dos Tradutores de Direita também. Abraço!
Enfim o acusado passa a sentir-se culpado do que está sendo acusado e aceita a pena aplicada sem contestar…
Muitas vezes os métodos A e C são usados conjuntamente.
Quais seriam as “saídas” possíveis para esse tipo de encruzilhada?