A Revolução Americana e o Liberalismo Clássico

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[Este texto é o primeiro capítulo do livro Por uma nova liberdade – O Manifesto Libertário]

No dia da eleição, em 1976, a candidatura presidencial libertária que contava com Roger L. MacBride para o cargo de presidente e David P. Bergland para vice-presidente conquistou 174.000 votos em 32 estados por todo o país. O sóbrio Congressional Quarterly foi obrigado a classificar o incipiente Partido Libertário como o terceiro maior partido político dos Estados Unidos. A extraordinária taxa de crescimento deste novo partido pode ser vista no fato de que ele havia sido iniciado em 1971 por um punhado de membros reunidos numa sala de estar no Colorado. No ano seguinte ele reuniu uma chapa que conseguiu constar das cédulas em dois estados. E atualmente é o terceiro maior partido dos Estados Unidos.De maneira ainda mais extraordinária, o Partido Libertário conseguiu esse crescimento ao mesmo tempo em que aderiu de maneira consistente a um novo credo ideológico—o “libertarianismo”—trazendo assim à cena política americana pela primeira vez em um século um partido interessado num princípio, e não em apenas conquistar empregos e dinheiro na gamela pública. Por inúmeras vezes ouvimos de analistas e cientistas políticos que a engenhosidade dos Estados Unidos e de seu sistema partidário era a sua falta de ideologia e o seu “pragmatismo” (uma bela palavra para se referir apenas à apropriação de dinheiro e emprego dos desafortunados pagadores de impostos). Como, então, explicar o fantástico crescimento de um novo partido que está franca e avidamente dedicado a uma ideologia?Uma explicação é a de que os americanos nem sempre foram pragmáticos e não-ideológicos. Pelo contrário, os historiadores agora têm percebido que a própria Revolução Americana não apenas foi ideológica, como foi o resultado da devoção ao credo e às instituições do libertarianismo. Os revolucionários americanos estavam embebidos no credo do libertarianismo, uma ideologia que os levou a resistir com suas vidas, suas fortunas e com sua honra sagrada às invasões de seus direitos e liberdades cometidas pelo governo imperial britânico. Por muito tempo os historiadores discutiram as causas exatas da Revolução Americana: teriam sido elas constitucionais, econômicas, políticas ou ideológicas? Agora percebemos que, sendo libertários, os revolucionários não viam conflito entre os direitos morais e políticos, de um lado, e a liberdade econômica do outro. Pelo contrário, eles enxergavam a liberdade civil e moral, a independência política e a liberdade de comercializar e produzir como parte de um sistema imaculado, o que Adam Smith viria a chamar, no mesmo ano em que a Declaração de Independência foi escrita, de “o óbvio e simples sistema da liberdade natural”.

O credo libertário surgiu a partir dos movimentos “liberais clássicos” dos séculos XVII e XVIII no mundo ocidental, mais especificamente, da Revolução Inglesa do século XVII. Este movimento libertário radical, embora tenha obtido um sucesso apenas parcial em sua terra natal, a Grã-Bretanha, ainda assim foi capaz de prenunciar a Revolução Industrial, libertando deste modo a indústria e a produção das restrições sufocantes do controle do estado e das corporações urbanas que contavam com o apoio do governo. Pois o movimento liberal clássico foi, ao longo de todo o mundo ocidental, uma poderosa “revolução” libertária contra o que podemos chamar de a Velha Ordem—o ancien régime que havia dominado por séculos seus súditos. Este regime, no início do período moderno, que data do início no século XVI, havia imposto um estado central absolutista e um rei que governava através do direito divino no topo de uma teia antiga e restritiva de monopólios feudais no campo e controles e restrições corporativas nas cidades. O resultado foi uma Europa que ficou estagnada sob uma teia incapacitante de controles, impostos e privilégios monopolísticos de produção e venda concedida pelos governos centrais (e locais) aos seus produtores favoritos. Esta aliança do novo estado centralizador, burocrático e belicoso com comerciantes privilegiados—uma aliança que veio a ser chamada de “mercantilismo” pelos historiadores posteriores—e com uma classe de senhores de terra feudais dominantes formava a Velha Ordem, contra a qual se insurgiu e revoltou o novo movimento de liberais e radicais nos séculos XVII e XVIII.

O objetivo dos liberais clássicos era o de promover a liberdade individual em todos os seus aspectos interrelacionados. Na economia, os impostos deveriam ser reduzidos drasticamente, os controles e regulamentações eliminados, e os mercados, a empresa e a energia humana deveriam ser livres para criar e produzir em trocas que beneficiariam a todos e à massa de consumidores. Empreendedores deveriam finalmente ser livres para competir, desenvolver, criar. Os grilhões do controle deveriam ser abolidos tanto da terra, quanto do trabalho e do capital. A liberdade pessoal e a liberdade civil deveriam ser garantias contra as pilhagens e a tirania do rei e de seus asseclas. A religião, fonte de guerras sangrentas por séculos a fio enquanto seitas batalharam pelo controle do estado, deveria ser libertada de qualquer imposição ou interferência estatal, de modo que todas as religiões—ou não-religiões—pudessem coexistir em paz. A paz, também, era o credo da política externa dos novos liberais clássicos; o antiquíssimo regime de engrandecimento estatal e imperial visando poder e pilhagem deveria ser substituído por uma política externa de paz e comércio livre com todas as nações. E como a guerra era vista como algo engendrado por exércitos e marinhas permanentes, por potências militares que estavam permanentemente procurando a expansão, estas instituições militares deveriam ser substituídas por milícias voluntárias locais, por cidadãos-civis que apenas desejariam lutar em defesa de seus próprios lares e vizinhanças.

Desta forma, o tema tão conhecido da “separação entre Igreja e Estado” era apenas um dos muitos temas interrelacionados que podiam ser resumidos como “separação da economia do estado”, “separação do discurso e da imprensa do estado”, “separação da terra do estado”, “separação da guerra e dos assuntos militares do estado”, enfim, a separação do estado de praticamente tudo.

O estado, em suma, deveria ser mantido extremamente reduzido, com um orçamento muito baixo, praticamente desprezível. Os liberais clássicos nunca desenvolveram uma teoria de taxação, porém lutavam ferozmente contra cada aumento de impostos e cada novo tipo de impostos—nos Estados Unidos por duas vezes esta foi a faísca que levou, ou quase levou, à Revolução (o imposto sobre os selos, o imposto sobre o chá).

Os primeiros teóricos do liberalismo libertário clássico foram os Levelers (Niveladores) durante a Revolução Inglesa, e o filósofo John Locke, no fim do século XVII, seguidos pelos “True Whig” (“Whigs Verdadeiros”), ou a oposição libertária radical ao “Whig Settlement” (“Acordo Whig”)—o regime da Grã-Bretanha no século XVII. John Locke apresentou os direitos naturais de cada indivíduo em relação à sua pessoa e propriedade; o propósito do governo estaria limitado estritamente a defender tais direitos. Nas palavras da Declaração de Independência, inspirada por Locke, “para defender estes direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados. Uma vez que qualquer forma de governo se torna destrutiva a estes fins, é direito do povo alterá-lo ou aboli-lo.”

Embora Locke fosse lido extensivamente nas colônias americanas, mal se calculava que sua filosofia abstrata pudesse instigar os homens à revolução. Essa tarefa coube aos lockeanos do século XVIII, que escreviam de uma maneira mais popular, impactante e apaixonada, e aplicaram a filosofia básica aos problemas concretos do governo—e, especialmente, do governo britânico—da época. O escrito mais importante deste estilo foram as “Cato’s Letters” (“Cartas de Catão”), uma série de artigos de jornal publicados no início da década de 1720 em Londres pelos True Whigs John Trenchard e Thomas Gordon. Enquanto Locke havia escrito sobre a pressão revolucionária que poderia ser exercida com propriedade quando o governo se tornasse nocivo à liberdade, Trenchard e Gordon apontaram que o governo sempre tendia a esta destruição dos direitos individuais. De acordo com as “Cartas de Catão”, a história humana é um registro do conflito irreprimível entre o Poder e a Liberdade, com o Poder (governo) estando sempre pronto a aumentar seu escopo invadindo o direito das pessoas e se intrometendo em suas liberdades. Portanto, declarou Catão, o Poder deve ser mantido pequeno e encarado com hostilidade e vigilância constantes por parte do público, para que se assegure que ele permaneça constantemente dentro de seus limites rígidos:

Sabemos, através de infinitos exemplos e experiências, que os homens que possuem o poder, no lugar de abandoná-lo, farão qualquer coisa, até mesmo as piores e mais sinistras, para manter-se nele; e dificilmente algum homem na Terra o abandonou enquanto pudesse realizar tudo de sua própria maneira nele. (…) Esta parece uma certeza: o bem do mundo, ou do povo, nunca foi uma de suas motivações, seja para permanecer no poder ou para abandoná-lo.

É da natureza do poder ser cada vez mais intrusivo, e transformar cada poder extraordinário, concedido em períodos específicos, e em ocasiões específicas, num poder ordinário, para ser usado em todos os momentos, até mesmo quando não há ocasião para tal, nem tampouco se separa dele voluntariamente por alguma vantagem. (…)

Ai! O poder invadia diariamente a liberdade, com um sucesso por demais evidente; e o equilíbrio entre ambos está quase perdido. A tirania se apoderou de quase toda a Terra, e ao atacar as raízes e os ramos da humanidade, fez do mundo um abatedouro; e certamente continuará a destruir, até que destrua a si mesma ou, o que é mais provável, não reste mais nada a ser destruído.[1]

Alertas como este foram assimilados avidamente pelos colonos americanos, que republicaram as “Cartas de Catão” diversas vezes por todas as colônias até a época da Revolução. Esta atitude tão arraigada levou ao que o historiador Bernard Bailyn chamou apropriadamente de “libertarianismo radical transformador” da Revolução Americana.

Pois a revolução não foi somente a primeira tentativa moderna de se libertar do jugo do imperialismo ocidental—à época, a potência mais poderosa do mundo. Mais importante ainda, pela primeira vez na história, os americanos impuseram controle sobre seus novos governos através dos inúmeros limites e restrições reunidos nas constituições e, mais especificamente, em declarações de direitos. A Igreja e o estado foram separados com rigor em todos os novos estados, e a liberdade religiosa foi sacramentada. Os resquícios do feudalismo foram eliminados em todos os estados através da abolição dos privilégios feudais do morgadio e da primogenitura. (No primeiro, um ancestral morto podia vincular os bens territoriais de sua família a ela para sempre, evitando assim que seus herdeiros pudessem vender qualquer parte da propriedade; no segundo, o governo obrigava que o único herdeiro da propriedade fosse o filho mais velho de seu antigo proprietário.)

O novo governo federal formado pelos Artigos da Confederação não recebeu permissão para cobrar impostos do povo; e qualquer ampliação fundamental de seus poderes precisava ser consentida de maneira unânime por todos os governos estaduais. Acima de tudo, o poder militar e bélico do governo nacional foi limitado pela moderação e pela desconfiança, pois os libertários do século XVIII compreendiam que a guerra, os exércitos permanentes e o militarismo haviam por muito tempo sido o principal método de engrandecimento do poder do estado. [2]

Bernard Bailyn resumiu a conquista dos revolucionários americanos:

A modernização da política e do governo americano durante e após a Revolução assumiu a forma de uma realização repentina e radical do programa que havia sido proposto inicialmente pela intelligentsia da oposição (…) no reinado de Jorge I. Enquanto a oposição inglesa, abrindo caminho por dentro de uma ordem social e política complacente, havia apenas lutado e sonhado, os americanos, movidos pelas mesmas aspirações, porém vivendo numa sociedade moderna, de diversas maneiras, e agora livre, politicamente, puderam, subitamente, agir. Enquanto a oposição inglesa tinha lutado em vão por reformas parciais (…) os líderes americanos se moveram, de maneira rápida e com pouca disrupção social, para implementar sistematicamente as possibilidades mais extremas de todo o espectro de ideias de liberação radicais.

Durante o processo eles (…) infundiram à cultura política americana (…) os principais temas do libertarianismo radical do século XVIII já implementados aqui. O primeiro é a crença de que o poder é mau, uma necessidade, talvez, mas uma necessidade má; que é infinitamente corrompedor, e que por isso ele deve ser controlado, limitado e restrito de todas as maneiras compatíveis com um mínimo de ordem civil. Constituições escritas; a separação dos poderes; declarações de direitos; limitações sobre os poderes executivos, sobre as legislaturas e os tribunais; restrições dos direitos de coagir e travar guerras – todas expressando a profunda desconfiança do poder que se encontra no cerne ideológico da Revolução Americana e que permaneceu conosco como um legado permanente desde então.[3]

Assim, embora o pensamento liberal clássico tenha tido seu início na Inglaterra, ele atingiu seu desenvolvimento mais consistente e radical— bem como sua maior encarnação viva—nos Estados Unidos. Pois as colônias americanas estavam livres da casta governante aristocrática e que detinha o monopólio feudal territorial que estava profundamente entrincheirado na Europa; nos Estados Unidos, os governantes eram oficiais coloniais britânicos e um punhado de comerciantes privilegiados, que foram afastados com relativa facilidade com o advento da Revolução e a deposição do governo britânico. O liberalismo clássico, portanto, tinha um maior apoio popular, e encontrou uma resistência institucional muito menos entrincheirada nas colônias americanas do que em sua própria terra natal. Além do mais, estando isolados, geograficamente, os rebeldes americanos não tinham de se preocupar com a invasão de exércitos de governos vizinhos contrarrevolucionários, como, por exemplo, foi o caso da França.

 

APÓS A REVOLUÇÃO

Deste modo, os Estados Unidos, mais que todos os países, nasceram a partir de uma revolução explicitamente libertária, uma revolução contra um império; contra os impostos, o monopólio comercial e a regulamentação; e contra o militarismo e o poder executivo. A revolução teve como resultado governos cujo poder era restrito de uma maneira até então nunca vista. Mas embora houvesse muito pouca resistência institucional nos Estados Unidos à investida do liberalismo, surgiram, desde o início, forças poderosas da elite, especialmente entre os grandes comerciantes e fazendeiros, que desejavam conservar o sistema restritivo “mercantilista” britânico de altos impostos, controles e privilégios monopolísticos concedidos pelo governo. Estes grupos desejavam um governo central, e até mesmo imperial; em suma, queriam o sistema britânico sem a Grã-Bretanha. Estas forças conservadoras e reacionárias apareceram pela primeira vez durante a Revolução, e formaram mais tarde o Partido Federalista, e a administração federalista na década de 1790.

Durante o século XIX, no entanto, o ímpeto libertário prosseguiu. Os movimentos jeffersoniano e jacksoniano, os partidos Democrata-Republicano e, posteriormente, Democrata, lutavam abertamente pela virtual eliminação do governo da vida americana. Um governo que não tivesse um exército e uma marinha permanentes; um governo sem dívidas, sem impostos federais sobre consumo e vendas e virtualmente sem tarifas de importação—ou seja, com níveis irrisórios de gastos e taxação; um governo que não se envolva em obras públicas ou melhorias internas; um governo que não controle ou regulamente; um governo que deixe a moeda e o sistema bancário livres, sólidos e sem inflação; em suma, nas palavras do ideal de H. L. Mencken, “um governo que praticamente não seja um governo”.

O ímpeto jeffersoniano rumo à ausência virtual de governo foi a pique após Jefferson assumir o poder, inicialmente com as concessões aos federalistas (provavelmente resultado de um acordo para obter votos federalistas e acabar com um impasse no colégio eleitoral), e, posteriormente, com a compra inconstitucional do Território da Louisiana. Mas, mais especificamente, ele soçobrou com o ímpeto imperialista pela guerra contra a Grã-Bretanha no segundo mandato de Jefferson, um ímpeto que levou à guerra e a um sistema unipartidário que estabeleceu praticamente todo o programa estatista federalista: altos gastos militares, um banco central, uma tarifa protecionista, impostos federais diretos e obras públicas. Horrorizado com os resultados, Jefferson se recolheu em Monticello, onde meditou melancolicamente, e inspirou os jovens políticos que o visitaram, Martin Van Buren e Thomas Hart Benton, a fundar um novo partido— o Partido Democrata—a recuperar os Estados Unidos das mãos do novo federalismo, e a recapturar o espírito do antigo programa jeffersoniano. Quando os dois jovens líderes juntaram-se a Andrew Jackson como seu salvador, nasceu o novo Partido Democrata.

Os libertários jacksonianos tinham um plano: seriam oito anos com Andrew Jackson como presidente, seguidos por oito anos com Van Buren, e oito anos com Benton. Após 24 anos de uma triunfante Democracia Jacksoniana, o ideal menckeniano de uma virtual ausência de governo teria sido atingido. Não era, de maneira alguma, um sonho impossível, já que estava claro que o Partido Democrata havia se tornado rapidamente o partido majoritário no país. A maior parte das pessoas apoiava a causa libertária. Jackson governou por seus oito anos, que destruíram o banco central e eliminaram a dívida pública, e Van Buren por quatro, durante os quais ele separou o governo central do sistema bancário. Porém a eleição de 1840 foi uma anomalia, na medida em que Van Buren foi derrotado por uma campanha demagógica sem precedentes projetada pelo primeiro grande líder de campanha moderno, Thurlow Weed, pioneiro em todas as táticas de campanha com as quais estamos habituados hoje em dia—slogans pegajosos, buttons, paradas etc. As táticas de Weed colocaram na presidência um whig atroz e desconhecido, o general William Henry Harrison, porém isto foi claramente um acaso; em 1844 os democratas estavam preparados para contra-atacar com as mesmas táticas de campanha, e estavam claramente destinados a reconquistar a presidência naquele ano. Van Buren, claro, retomaria a marcha triunfal jacksoniana. Ocorreu então, no entanto, um evento fatídico: o Partido Democrata se dividiu a respeito da questão decisiva da escravidão, ou, mais especificamente, a respeito da expansão da escravidão nos novos territórios. A nova indicação de Van Buren, que parecia fácil, cedeu diante da racha entre os membros do Partido Democrata a respeito da admissão à União da república do Texas, um estado escravocrata; Van Buren se opunha a ela, enquanto Jackson a apoiava, e esta fragmentação simbolizou uma divisão sectária mais ampla dentro do próprio partido. A escravidão, aquela grave falha antilibertária no libertarianismo do programa democrata, veio à tona para arruinar completamente o partido e seu libertarianismo.

A Guerra Civil, além de ter sido responsável por uma devastação e um derramamento de sangue sem precedentes, foi utilizada pelo regime triunfal republicano, quase unipartidário, para impor seu programa estatizante, anteriormente whig: poder governamental nacional, tarifas protecionistas, subsídios a grandes empresas, papel-moeda inflacionário, retomada do controle do sistema bancário pelo governo federal, um programa de melhorias internas em grande escala, altos impostos sobre o comércio e vendas, e, durante a guerra, o alistamento militar compulsório e um imposto de renda. Além disso, os estados acabaram por perder seu direito anterior à secessão, e outros poderes estatais, que foram substituídos por poderes governamentais federais. O Partido Democrata retomou seu programa libertário após a guerra, porém ele agora se via diante de um caminho muito mais longo e mais difícil para chegar à liberdade do que antes.

Vimos agora como os Estados Unidos vieram a ter a tradição libertária mais profunda, uma tradição que ainda permanece em muito de nossa retórica política, e ainda está refletida numa atitude hostil e individualista para com o governo por parte da maioria do povo americano. Há mais solo fértil neste país do que em qualquer outro para um ressurgimento do libertarianismo.

 

RESISTÊNCIA À LIBERDADE

Agora podemos ver que o crescimento rápido do movimento libertário e do Partido Libertário na década de 1970 está firmemente enraizado no que Bernard Bailyn chamou de este poderoso “legado permanente da Revolução Americana”. Mas se este legado é tão vital à tradição americana, o que deu errado? Por que há agora a necessidade do surgimento de um novo movimento libertário para reivindicar o sonho americano?

Para começar a responder a esta pergunta, precisamos primeiro nos lembrar de que o liberalismo clássico constituía uma ameaça profunda aos interesses políticos—as classes dominantes—que se beneficiavam da Velha Ordem: os reis, os nobres e aristocratas proprietários de terras, os comerciantes privilegiados, as máquinas militares e as burocracias estatais. Apesar de três grandes revoluções violentas provocadas pelos liberais—a Inglesa, no século XVII, e a Americana e a Francesa no XVIII—as vitórias na Europa foram apenas parciais. A resistência foi dura, e conseguiu manter com sucesso monopólios territoriais, instituições religiosas e políticas militares belicosas no exterior, e, por um tempo, mantiveram o sufrágio restrito à elite abastada. Os liberais tiveram de se concentrar em ampliar o sufrágio, pois ficou claro para ambos os lados que os interesses econômicos e políticos objetivos das massas populares se encontravam na liberdade individual. É interessante observar que, no início do século XIX, as forças do laissez-faire ficaram conhecidas como “liberais” e “radicais” (por aqueles mais puros e consistentes entre eles), e a oposição que visava manter ou retornar à Velha Ordem ficou amplamente conhecida como “conservadores”.

De fato, o conservadorismo começou, no início do século XIX, como uma tentativa consciente de desfazer e destruir a odiosa obra do novo espírito liberal clássico—das revoluções Americana, Francesa e Industrial. Liderados por dois pensadores franceses reacionários, de Bonald e de Maistre, o conservadorismo ansiava por substituir os direitos iguais e a igualdade perante a lei pelo domínio estruturado e hierárquico das elites privilegiadas; a liberdade individual e o governo mínimo pelo domínio absoluto e pelo Grande Governo; a liberdade religiosa pelo domínio teocrático de uma igreja estatal; a paz e o livre comércio pelo militarismo, restrições mercantilistas, e a guerra para o proveito da nação-estado; e a indústria e a manufatura pela antiga ordem feudal e agrária. E queriam substituir o novo mundo do consumo massificado e do aumento nos padrões de vida para todos pela Velha Ordem da subsistência básica para as massas e o consumo de artigos de luxo para a elite dominante.

Na metade e, certamente, ao fim do século XIX, os conservadores começaram a se dar conta de que sua causa estaria inevitavelmente fadada ao fracasso se insistissem em se apegar ao chamado pela supressão total da Revolução Industrial e do enorme aumento na qualidade de vida das massas que havia sido provocado por ela, e se também continuassem insistindo em se opor à ampliação do direito ao voto, colocando-se assim de maneira acintosa em franca oposição aos interesses daquele público. Assim, a “direita” (um rótulo criado a partir de um acidente geográfico: os porta-vozes da Velha Ordem sentavam-se à direita na sala em que se reunia a Assembleia Nacional durante a Revolução Francesa) decidiram mudar o tom de seu discurso e atualizar seu credo estatista abrindo mão da oposição total ao industrialismo e ao sufrágio democrático. Os novos conservadores substituíram o desprezo e o ódio aberto pelas massas populares pela duplicidade e pela demagogia; cortejaram as massas com a seguinte frase: “Nós, também, somos a favor do industrialismo e de um padrão de vida mais alto. Mas, para conseguir estas metas, precisamos regulamentar a indústria para o bem público; precisamos implementar uma cooperação organizada no lugar do vale-tudo do mercado livre e competitivo; e, acima de tudo, precisamos trocar os princípios liberais da paz e do livre comércio destruidores de nações por medidas que tragam glória à nação, como a guerra, o protecionismo, o império e as proezas militares.” Para todas essas mudanças, é claro, era necessário um Grande Governo, no lugar de um governo mínimo.

E assim, no fim do século XIX, o estatismo e o Grande Governo voltaram, porém desta vez mostrando uma face pró-industrial e pró-bem-estar geral. A Velha Ordem retornou, mas, desta vez, aqueles que dela se beneficiavam haviam sido levemente alterados; não eram mais a nobreza, os senhores de terra feudais, o exército, a burocracia e os comerciantes privilegiados, mas sim o exército, a burocracia e os senhores feudais enfraquecidos, e, especialmente, os industriais privilegiados. Liderados por Bismarck, na Prússia, a Nova Direita forjou um coletivismo de direita baseado na guerra, no militarismo, no protecionismo, e na cartelização compulsória dos negócios e da indústria—uma rede gigantesca de controles, regulamentações, subsídios e privilégios que forjou uma grande parceria entre o Grande Governo com alguns elementos privilegiados dos grandes empresários e da indústria.

Algo tinha de ser feito, também, a respeito do novo fenômeno que era o número colossal de trabalhadores assalariados industriais—o “proletariado”. Durante os séculos XVIII e XIX, e até o fim do século XIX, a massa de trabalhadores apoiava o laissez-faire e o mercado livre competitivo, por julgá-lo melhor para seus salários e suas condições de trabalho, como trabalhadores, e por oferecer uma gama mais ampla e barata de bens de consumo, como consumidores. Até mesmo os primeiros sindicados, como por exemplo na Grã-Bretanha, eram defensores ferrenhos do laissez-faire. Os novos conservadores, liderados por Bismarck na Alemanha e Disraeli na Grã-Bretanha, enfraqueceram a disposição libertária dos trabalhadores derramando lágrimas de crocodilo sobre as condições da força de trabalho industrial, e cartelizando e regulamentando a indústria, impedindo assim, de maneira não-acidental, uma competição eficiente. Finalmente, no início do século XX, o novo “estado corporativo” conservador—desde então o sistema político dominante no mundo ocidental—incorporou sindicatos “responsáveis” e corporativistas como seus parceiros juniores no Grande Governo, e favorecendo as grandes empresas no novo sistema estatista e corporativista de tomada de decisões.

Para estabelecer este sistema novo, para criar uma Nova Ordem que fosse uma versão modernizada e maquiada do ancien régime anterior às revoluções Americana e Francesa, as novas elites dominantes tiveram que executar uma gigantesca trapaça que persiste até os dias de hoje. Enquanto a existência de todos os governos, da monarquia absolutista até a ditadura militar, se apoia sobre o consentimento da maioria da população, um governo democrático deve construir esse consentimento numa base mais imediata, diária. E, para fazê-lo, estas novas elites governantes conservadoras tiveram de enganar o público de muitas maneiras cruciais e fundamentais. Pois as massas agora teriam que ser convencidas de que a tirania era melhor que a liberdade, de que um feudalismo industrial exclusivo e cartelizado era melhor para os consumidores que um mercado livremente competitivo, de que um monopólio cartelizado deveria ser imposto em nome do antimonopólio, e de que a guerra e o engrandecimento militar que beneficiassem as elites dominantes realmente estavam no interesse das massas que eram recrutadas, taxadas e, muitas vezes, sacrificadas. Como fazer isto?

Em todas as sociedades, a opinião pública é determinada pelas classes intelectuais, os formadores de opinião da sociedade. Pois a maior parte das pessoas não origina e nem dissemina ideias e conceitos; pelo contrário, elas tendem a adotar aquelas ideias promulgadas pelas classes intelectuais profissionais, aqueles que comercializam profissionalmente suas ideias. Ao longo da história, como veremos mais adiante, os déspotas e as elites dominantes dos estados tiveram muito mais necessidade dos serviços dos intelectuais do que os cidadãos pacíficos de uma sociedade livre. Pois os estados sempre precisam de intelectuais formadores de opinião para enganar o público, e fazê-lo acreditar que seu governo é sábio, bom e inevitável; em acreditar que “o imperador está vestido”. Até o mundo moderno, estes intelectuais inevitavelmente eram clérigos (ou curandeiros), os guardiões da religião. Era uma aliança confortável, esta parceria antiquíssima entre a Igreja e o estado; a Igreja informava seus protegidos iludidos de que o rei governava por desígnio divino, e por isso deveria ser obedecido; em troca, o rei canalizava inúmeras fontes de renda obtidas através de impostos para os cofres da Igreja. Daí a grande importância para os liberais clássicos libertários de seu sucesso na separação entre Igreja e estado. O novo mundo liberal era um mundo no qual os intelectuais podiam ser seculares—podiam viver por conta própria, no mercado, independentes da subvenção do estado.

Para estabelecer esta nova ordem estatista, este seu novo estado corporativo neomercantilista, os novos conservadores tiveram então que forjar uma nova aliança entre os intelectuais e o estado. Numa era cada vez mais secular, isto implicava uma aliança com intelectuais seculares e não religiosos: mais especificamente, com esta nova geração de professores, Ph.D.s, historiadores, economistas tecnocratas, assistentes sociais, sociólogos, médicos e engenheiros. Esta aliança reforjada se deu em duas partes. No início do século XIX, os conservadores, dando razão a seus inimigos liberais, apoiavam-se fortemente nas supostas virtudes da irracionalidade, do romantismo, da tradição, da teocracia. Ao enfatizar a virtude da tradição e de símbolos irracionais, os conservadores conseguiram lograr o público, dando continuidade ao domínio hierárquico exclusivo, e fazendo com que continuassem a cultuar a nação-estado e sua máquina de fazer guerras. No fim do século XIX, o novo conservadorismo adotou os aparatos da razão e da “ciência”. Agora era a ciência que supostamente requeria que a economia e a sociedade fossem dominadas por “experts” tecnocráticos. Em troca da difusão desta mensagem ao público, a nova geração de intelectuais era recompensada com empregos e prestígio, como apologistas da Nova Ordem e como planejadores e regulamentadores desta sociedade e economia recém-cartelizada.

Para assegurar a dominância do novo estatismo sobre a opinião pública, e que o consentimento do público poderia ser manipulado, os governos do mundo ocidental no fim do século XIX e início do século XX passaram a assumir o controle da educação, da mente dos homens: sobre as universidades e a educação em geral, através das leis de obrigatoriedade de frequência escolar e de uma rede de escolas públicas. As escolas públicas foram utilizadas de maneira consciente para incutir a obediência ao estado, bem como outras virtudes cívicas entre seus jovens protegidos. Além disso, a estatização da educação garantia que um dos principais grupos interessados na expansão do estatismo fossem os professores e profissionais de educação da nação.

Uma das maneiras com que os novos intelectuais estatistas fizeram seu trabalho foi alterar o significado de antigos rótulos, e, desta maneira, manipularam nas mentes do público as conotações emocionais associadas a estes rótulos. Por exemplo, os libertários laissez-faire haviam sido por muito tempo conhecidos como “liberais”, e os mais puros e militantes deles como “radicais”; também eram conhecidos como “progressistas” porque estavam em sintonia com o progresso industrial, a difusão da liberdade, e o aumento nos padrões de vida os consumidores. A nova geração de intelectuais e acadêmicos estatistas se apropriou das palavras “liberais” e “progressistas” para definir a si mesmos, e conseguiu, com sucesso, colocar a pecha de “antiquados”, “Neandertais” e “reacionários” aos seus oponentes do laissez-faire. Até mesmo o termo “conservador” foi aplicado aos liberais clássicos. E, como vimos, os novos estatistas conseguiram até mesmo se apropriar do conceito de “razão”.

Se os liberais do laissez-fairestavam confusos com este novo recrudescimento do estatismo e do mercantilismo como um estatismo corporativo “progressivo”, outro motivo para a decadência do liberalismo clássico no final do século XIX foi o crescimento de um movimento novo e peculiar: o socialismo. O socialismo teve seu início na década de 1830 e se expandiu enormemente após a década de 1880. O fator peculiar do socialismo era o fato de ele ser um movimento híbrido, confuso, influenciado por ambas as ideologias polares pré-existentes, o liberalismo e o conservadorismo. Os socialistas obtiveram dos liberais clássicos uma aceitação franca do industrialismo e da Revolução Industrial, uma glorificação inicial da “ciência” e da “razão”, e uma devoção, ao menos retórica, de ideais liberais como paz, liberdade individual e um padrão de vida mais elevado. Na realidade os socialistas, muito antes dos corporativistas que vieram posteriormente, foram pioneiros na cooptação da ciência, da razão e do industrialismo. E os socialistas não apenas adotaram a adesão clássica liberal à democracia, mas a superaram exigindo uma “democracia expandida”, na qual “o povo” seria responsável pela gestão da economia liberal—e de uns aos outros.

Por outro lado, os socialistas pegaram dos conservadores uma devoção à coerção e aos meios estatistas de como se tentar atingir estas metas liberais. A harmonia industrial e o crescimento deveriam ser obtidos através da expansão do estado, transformando-o numa instituição onipotente, que governa a economia e a sociedade em nome da “ciência”. Uma vanguarda de tecnocratas assumiria o domínio onipotente da pessoa e da propriedade de todos em nome do “povo” e da “democracia”. Não satisfeitos com as conquistas liberais da razão e da liberdade no campo da pesquisa científica, o estado socialista instalaria o governo dos cientistas sobre todos os outros; não satisfeitos com o fato dos liberais terem libertado os trabalhadores para conquistar uma prosperidade que jamais haviam sonhado até então, o estado socialista instalaria o governo dos trabalhadores sobre todos os outros—ou melhor, o governo de políticos, burocratas e tecnocratas em seu nome. Não satisfeitos com o credo liberal da igualdade de direitos, da igualdade perante a lei, o estado socialista atropelaria esta igualdade em nome de uma meta monstruosa e impossível de igualdade ou uniformidade de resultados—ou, melhor dizendo, ergueria uma nova elite privilegiada, uma nova classe, em nome da obtenção desta igualdade tão impossível.

O socialismo era um movimento confuso e híbrido porque tentava atingir as metas liberais de liberdade, paz e harmonia e crescimento industrial—metas que só podem ser atingidas através da liberdade e da separação do governo de praticamente tudo—ao mesmo tempo em que impunham os antigos meios conservadores do estatismo, coletivismo e privilégios hierárquicos. Era um movimento que estava fadado ao fracasso, e que de fato fracassou miseravelmente nos inúmeros países em que conquistou o poder no século XX, trazendo às massas nada além de um despotismo sem precedentes, fome e um empobrecimento opressivo.

No entanto, a pior coisa a respeito da ascensão do movimento socialista foi ele ter sido capaz de tomar o lugar dos liberais clássicos “na esquerda”: isto é, como o partido da esperança, do radicalismo, da revolução no mundo ocidental. Pois, assim como os defensores do ancien régime sentavam-se à direita na assembleia durante a Revolução Francesa, os liberais e os radicais o faziam na esquerda; desde então, até a ascensão do socialismo, os liberais clássicos libertários eram “a esquerda”, e até mesmo a “extrema esquerda”, no espectro ideológico. Ainda em 1848, liberais franceses militantes do laissez-faire como Frédéric Bastiat se sentavam à esquerda na assembleia nacional. Os liberais clássicos tinham começado como o partido radical, revolucionário do ocidente, como o partido da esperança e da mudança, em nome da liberdade, paz e progresso. Terem permitido que os socialistas tomassem o seu lugar e passassem a posar como o “partido da esquerda” foi um grave erro estratégico, que permitiu que os liberais passassem a ser erroneamente classificados numa posição intermediária entre o socialismo e o conservadorismo em polos opostos. Uma vez que o libertarianismo nada mais é que um partido da mudança e do progresso rumo à liberdade, abandonar este papel significou o abandono de boa parte de seu motivo de existir—seja na realidade ou nas mentes das pessoas.

Nada disso, no entanto, teria acontecido se os liberais clássicos não tivessem permitido essa decadência interna. Eles poderiam ter apontado—como alguns deles de fato fizeram—que o socialismo era um movimento confuso, autocontraditório e semiconservador, uma mistura entre feudalismo e monarquia absolutista com uma face moderna, e que eles próprios ainda eram os únicos verdadeiros radicais, indivíduos destemidos que insistiam em nada menos que a vitória total do ideal libertário.

 

DECADÊNCIA INTERNA

Após conseguir impressionantes vitórias parciais contra o estatismo, no entanto, os liberais clássicos começaram a perder seu radicalismo, perder sua insistência obstinada em levar adiante o combate contra o estatismo conservador até a vitória final. Em vez de usarem estas vitórias parciais como um trampolim para uma pressão cada vez maior, os liberais clássicos começaram a perder seu fervor por mudanças e pela pureza dos princípios. Começaram a se contentar em tentar salvaguardar as vitórias já conquistadas, e assim transformaram-se de um movimento radical num movimento conservador—”conservador” no sentido de contentar-se em preservar o status quo. Em suma, os liberais deixaram o caminho aberto para que o socialismo se tornasse o partido da esperança e do radicalismo, e até mesmo que os corporativistas posteriores posassem como “liberais” e “progressistas” contra os liberais clássicos libertários “conservadores” e “da extrema direita”, já que estes se deixaram ser confinados a uma posição de esperar por nada mais que a estase, que a ausência de mudanças. Esta estratégia é tola e insustentável num mundo em mudanças.

Mas a degeneração do liberalismo não foi apenas uma degeneração de postura e estratégia, mas também de princípios; pois os liberais ficaram contentes em deixar o poder de travar guerras nas mãos do estado, em deixar o poder da educação nas mãos do estado, em deixar o poder sobre o dinheiro e os bancos, e sobre as estradas, nas mãos do estado—em suma, em conceder ao estado o domínio sobre todas as alavancas de poder cruciais à sociedade. Em contraste com a hostilidade total dos liberais do século XVIII ao poder executivo e à burocracia, os liberais do século XIX toleraram e até mesmo receberam de bom grado o fortalecimento do poder executivo e de uma burocracia oligárquica e entrincheirada de funcionários públicos.

Além do mais, princípios e estratégia se fundiram na decadência da devoção liberal do século XVIII e início do século XIX ao “abolicionismo”—sob o ponto de vista de que, seja a instituição a escravidão ou qualquer outro aspecto do estatismo, ela deve ser abolida o mais rapidamente possível, já que a abolição imediata do estatismo, embora improvável na prática, deve ser desejada como a única posição moral possível; pois preferir uma redução gradual à abolição imediata de uma instituição má e coercitiva equivale a ratificar e sancionar este mal, e, portanto, viola os princípios libertários. Como explicou o grande abolicionista e libertário William Lloyd Garrison: “Por mais energicamente que insistamos na abolição imediata, ela será, vejam só! por fim, uma abolição gradual. Nunca dissemos que a escravidão seria derrubada com um único golpe; que ela deveria ser, sempre o afirmaremos.” [4]

Ocorreram duas mudanças criticamente importantes na filosofia e ideologia do liberalismo clássico que exemplificaram e contribuíram para a sua decadência enquanto uma força radical, vital e progressiva no mundo ocidental. A primeira, e mais importante, ocorreu na primeira metade do século XIX, e foi o abandono da filosofia dos direitos naturais, e sua substituição pelo utilitarismo tecnocrático. Em vez de uma liberdade fundada na moralidade imperativa do direito de cada indivíduo à sua pessoa e propriedade, ou seja, em vez da liberdade ser procurada primordialmente com base nos princípios do direito e da justiça, o utilitarismo preferia a liberdade como sendo, geralmente, a melhor maneira de se conquistar um bem-estar geral ou bem comum, definidos de maneira vaga. Esta mudança dos direitos naturais para o utilitarismo gerou duas graves consequências. Primeiro, a pureza da meta, a consistência do princípio, foi inevitavelmente despedaçada; pois enquanto o libertário da corrente dos direitos morais que procura a moralidade e a justiça se apega de maneira militante ao princípio puro, o utilitarista apenas dá valor à liberdade como um expediente ad hoc. E como a conveniência pode e de fato muda ao sabor do vento, torna-se fácil para o utilitarista, em seu frio cálculo de custo e benefício, apoiar o estatismo de caso em caso ad hoc, e assim trair o princípio. De fato, foi exatamente isto o que ocorreu com os utilitaristas benthamitas na Inglaterra: começando com um laissez-faire e um libertarianismo ad hoc, eles se viram descendo gradualmente, com cada vez maior facilidade e intensidade, para o estatismo. Um exemplo foi a pressão por um poder executivo e um funcionalismo público “eficiente” e, portanto, fortalecido, uma eficiência que acabou ter precedência e, por fim, substituir qualquer conceito de justiça ou direito.

Segundo, e igualmente importante, é realmente raro encontrar um utilitarista que também seja radical, que anseie pela abolição imediata do mal e da coerção. Os utilitaristas, com sua devoção à conveniência, quase que inevitavelmente se opõem a qualquer tipo de mudança incômoda ou radical. Não existiram revolucionários utilitaristas; logo, os utilitaristas nunca são abolicionistas imediatistas. O abolicionista o é porque ele deseja eliminar o mal e a injustiça o mais rapidamente possível. Ao escolher esta meta, não há espaço para uma avaliação fria, ad hoc, de custo e benefício. Assim, os liberais clássicos utilitaristas abandonaram o radicalismo e se tornaram meros reformistas gradualistas. Ao se tornarem reformistas, no entanto, eles também se colocaram, inevitavelmente, na posição de conselheiros e experts em eficiência para o estado. Em outras palavras, eles acabaram inevitavelmente por abandonar o princípio libertário, além de uma estratégia libertária fundada em princípios. Os utilitaristas acabaram como apologistas da ordem existente, do status quo, e como tais estavam por demais abertos à acusação feita por socialistas e corporativistas progressivos de que eram meros opositores conservadores e tacanhos de toda e qualquer mudança. Deste modo, após começarem como radicais e revolucionários, os liberais clássicos acabaram à imagem daquilo que haviam combatido.

Esta mutilação utilitária do libertarianismo ainda está conosco. Assim, nos primeiros dias do pensamento econômico, o utilitarismo conquistou a economia de livre mercado, com a influência de Bentham e Ricardo, e esta influência continua, nos dias de hoje, com a mesma força. A economia de livre mercado atual está tomada por apelos ao gradualismo; pelo desprezo à ética, à justiça e a princípios consistentes; e por uma disposição a abandonar os princípios do livre mercado ao primeiro sinal de um apelo à relação de custo e benefício. Consequentemente, a economia de livre mercado atual geralmente é vista pelos intelectuais como uma mera apologética de um status quo levemente modificado, e quase sempre tais acusações estão corretas.

Uma segunda mudança, mais intensa, na ideologia dos liberais clássicos ocorreu durante o fim do século XIX quando, ao menos por algumas décadas, eles adotaram as doutrinas do evolucionismo social, frequentemente chamado de “darwinismo social”. Geralmente, os historiadores estatistas caracterizam estes darwinistas sociais, liberais do laissez-faire como Herbert Spencer e William Graham Sumner, como defensores cruéis do extermínio, ou pelo menos do desaparecimento, dos socialmente “ineptos”. Muito disto nada mais era do que a maquiagem da doutrina saudável econômica e sociológica do livre mercado nos termos do evolucionismo, então em voga. Mas o aspecto realmente importante e danoso de seu darwinismo social foi a transposição ilegítima à esfera social da visão de que as espécies (ou, posteriormente, genes) se alteram de maneira muito, muito gradual, ao longo de milênios. O liberal darwinista social abandonou, então, a própria ideia de revolução ou mudança radical e preferiu sentar e esperar pelas inevitáveis e minúsculas mudanças evolucionárias que ocorreriam ao longo de éons. Em suma, ignorando o fato de que o liberalismo teve de abrir caminho em meio ao poder das elites dominantes através de uma série de revoluções e mudanças radicais, os darwinistas sociais se tornaram conservadores que pregavam contra quaisquer medidas radicais e apoiavam apenas as mais diminutas mudanças graduais.[5]

Na realidade, o grande libertário Spencer é ele próprio uma fascinante ilustração de uma destas mudanças do liberalismo clássico (e seu caso encontra um paralelo nos Estados Unidos em William Graham Sumner). De certo modo, Herbert Spencer personifica muito do declínio do liberalismo no século XIX. Pois Spencer começou como um liberal magnificamente radical, virtualmente um libertário em seu sentido mais puro. Porém, à medida que o vírus da sociologia e do darwinismo social tomou conta de sua alma, Spencer abandonou o libertarianismo enquanto movimento histórico dinâmico e radical, sem, no entanto, abandoná-lo na teoria pura. Ao mesmo tempo em que aguardava ansiosamente por uma vitória eventual da liberdade pura, do “contrato” contra o “status”, da indústria contra o militarismo, Spencer começou a ver que esta vitória seria inevitável, porém apenas após milênios de uma evolução gradual. Spencer, então, abandonou o liberalismo como um credo combativo e radical, e restringiu seu liberalismo, na prática, a uma ação cansada, conservadora e retrógrada contra o coletivismo e o estatismo crescente de seu tempo.

Mas se o utilitarismo, impulsionado pelo darwinismo social, foi o principal agente da decadência filosófica e ideológica no movimento liberal, a razão mais importante, e talvez até mesmo cataclísmica, de sua derrocada foi o abandono dos antigos princípios rigorosos contra a guerra, o império e o militarismo. País após país, foi o canto da sereia da nação-estado e do império que destruiu o liberalismo clássico. Na Inglaterra os liberais, no fim do século XIX e início do século XX, abandonaram o “pequeno inglaterrismo”[6]antibélico e antiimperialista de Cobden, Bright e da Escola de Manchester. Em seu lugar, adotaram o movimento obscenamente intitulado de “imperialismo liberal”—juntando-se aos conservadores na expansão do império, e aos conservadores e aos socialistas de direita no coletivismo e no imperialismo destrutivo da Primeira Guerra Mundial. Na Alemanha, Bismarck conseguiu dividir os liberais, até então quase triunfantes, ao empreender a atraente causa da unificação da Alemanha através de sangue e ferro. Em ambos os países, o resultado foi a destruição da causa liberal.

Nos Estados Unidos, o partido liberal clássico havia por muito tempo sido o Partido Democrata, conhecido no fim do século XIX como “o partido da liberdade pessoal”. Basicamente, ele havia sido não só o partido da liberdade pessoal como da econômica; o opositor incondicional da Lei Seca, das blue laws[7] dos domingos, e da educação compulsória; o defensor devotado do livre comércio, do hard money (ausência de inflação governamental), da separação entre o sistema bancário e o estado, e do governo em seu mínimo absoluto. Em seu ponto de vista o poder dos governos estaduais era desprezível, e o do governo federal era praticamente inexistente. Na política externa, o Partido Democrata, embora de maneira menos rigorosa, tendia a ser o partido da paz, do antimilitarismo e do antiimperialismo. Mas tanto o libertarianismo pessoal quanto o econômico foram abandonados com a captura do Partido Democrata pelas forças de Bryan[8] em 1896, e a política externa de não-intervenção foi então abandonada de maneira abrupta por Woodrow Wilson, duas décadas mais tarde. Foi uma intervenção e uma guerra que serviram como o prenúncio de um século de morte e devastação, de guerras de novos despotismos, e também um século em todos os países belicosos do novo estatismo corporativista—de um estado de bem- estar social e belicoso comandado por uma aliança entre o Grande Governo, grandes empresários, sindicatos e intelectuais—que mencionamos acima.

O último suspiro, de fato, do antigo liberalismo laissez-faire nos Estados Unidos foi o dos libertários valentes e envelhecidos que se juntaram para formar a Liga Anti-Imperialista na virada do século, para se opor à guerra dos Estados Unidos contra a Espanha e a subsequente guerra imperialista americana para esmagar os filipinos que lutavam pela sua independência nacional tanto da Espanha quanto dos Estados Unidos. Aos olhos modernos, a ideia de um antiimperialista que não seja marxista pode parecer estranha, mas a oposição ao imperialismo teve seu início com liberais do laissez-faire como Cobden e Bright, na Inglaterra, e Eugen Richter, na Prússia. Na realidade, a Liga Anti-Imperialista (da qual participava Sumner), liderada por Edward Atkinson, industrial e economista de Boston, consistia de radicais do laissez-faire que haviam combatido o bom combate pela abolição da escravatura, e que haviam defendido o livre comércio, o hard money, e o governo mínimo. Para eles, sua batalha final contra o novo imperialismo americano era apenas uma parte integrante de sua batalha vitalícia contra a coerção, o estatismo e a injustiça—contra o Grande Governo em todos as áreas da vida, tanto dentro quanto fora do país.

Traçamos a história um tanto assustadora do declínio e queda do liberalismo clássico após sua ascensão e triunfo parcial nos séculos anteriores. Qual, então, é o motivo desse ressurgimento, do florescimento, do pensamento e da atividade libertária nos últimos anos, especificamente nos Estados Unidos? Como puderam estas formidáveis forças e coalizões a favor do estatismo ceder até mesmo tão pouco para um movimento libertário ressuscitado? Não deveria, esta retomada da marcha do estatismo ocorrida no fim do século XIX e no século XX ser motivo para pesar, em vez de anunciar o despertar de um libertarianismo aparentemente moribundo? Por que o libertarianismo não continuou morto e enterrado?

Vimos por que o libertarianismo surgiria naturalmente primeiro, e em sua forma mais completa, nos Estados Unidos, uma terra imersa na tradição libertária. Não examinamos ainda, no entanto, a questão: por que qualquer renascimento do libertarianismo nestes últimos anos? Que condições contemporâneas levaram a este acontecimento surpreendente? Devemos adiar as respostas a esta questão até o fim do livro, para que antes possamos examinar o que é o credo libertário, e como este credo pode ser aplicado para solucionar as principais áreas problemáticas de nossa sociedade.

 


[1] Ver Murray N. Rothbard, Conceived in Liberty, vol. 2, “Salutary Neglect”: The American Colonies in the First Half of the 18th Century (New Rochelle, N.Y.: Arlington House, 1975), p. 194. Ver também John Trenchard e Thomas Gordon, Cato’s Letters, in D.L. Jacobson, ed. The English Libertarian Heritage(Indianápolis: Bobbs-Merrill, 1965).

[2] Para o impacto libertário radical da Revolução dentro dos Estados Unidos, ver Robert A. Nisbet, The Social Impact of the Revolution (Washington, D.C.: American Enterprise Institute for Public Policy Research, 1974). Para o impacto na Europa, ver a importante obra de Robert R. Palmer, The Age of the Democratic Revolution(Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1959), vol. 1.
[3] Bernard Bailyn, “The Central Themes of the American Revolution: An Interpretation,” in S. Kurtz e J. Hutson, ed., Essays on the American Revolution (Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1973), p. 26–27.
[4] Citado em William H. Pease e Jane H. Pease, ed., The Antislavery Argument (Indianapolis: Bobbs-Merrill, 1965), p. xxxv.

[5] Ironicamente, a teoria evolucionária moderna está começando a abandonar totalmente a teoria da mudança evolucionária gradual. Em seu lugar, agora percebeu-se que um retrato muito mais fiel seria o de saltos agudos e repentinos do equilíbrio de uma espécie estática para outra; esta teoria vem sendo chamada de teoria da “mudança pontuada” (ou “equilíbrio pontuado”). Nas palavras de um dos expositores deste novo ponto de vista, o professor Stephen Jay Gould:

O gradualismo é uma filosofia de mudança, não uma indução da natureza. (…) O gradualismo, também, tem fortes componentes ideológicos mais responsáveis por seu sucesso anterior do que qualquer associação objetiva com a natureza externa. (…) A utilidade do gradualismo como uma ideologia deve explicar muito de sua influência, pois ele se tornou o dogma quintessencial do liberalismo contra as mudanças radicais—saltos repentinos são contrários às leis da natureza.

Stephen Jay Gould, “Evolution: Explosion, Not Ascent,” New York Times (22 de janeiro de 1978).

[6] Little Englandism“, movimento informal que reunia indivíduos contrários ao Império Britânico e/ou à expansão da Inglaterra além das fronteiras do Reino Unido. (N.T.)

[7] Literalmente “leis azuis”, leis promulgadas para defender ou aplicar algum tipo de valor religioso ou moral. (N.T.)
[8] William Jennings Bryan (1860-1925), político americano pertencente à ala populista do Partido Democrata, pelo qual concorreu por três vezes à presidência americana. (N.T.)

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