1.1 A conquista smithiana da França
Um dos grandes quebra-cabeças na história do pensamento econômico, como indicamos no Volume 1, é o porquê de Adam Smith ter sido capaz de roubar a cena e desfrutar da reputação de “fundador da ciência econômica” em vez de Cantillon e Turgot, que haviam sido muito superiores, tanto como analistas econômicos técnicos quanto como defensores do laissez-faire.
O mistério é particularmente peculiar para a França, já que na Grã-Bretanha as únicas escolas competindo com os smithianos eram os mercantilistas e os aritméticos políticos. O mistério se aprofunda quando percebemos que o maior líder da economia francesa depois de Smith, Jean-Baptiste Say (1767-1832), estava realmente na tradição Cantillon-Turgot, ao invés de na Smithiana, mesmo apesar do fato que ele a negligenciou bastante e que tenha proclamado que a economia começou com Adam Smith.
Ele, Say, estava supostamente apenas sistematizando as incríveis, mas incautas verdades encontradas no Riqueza das Nações. Nós veremos abaixo a exata natureza do pensamento de Say e suas contribuições, bem como sua clareza lógica, decididamente “francesa”, não-smithiana e “pré-austríaca”, e sua ênfase no método lógico axiomático-dedutivo, na utilidade como a única fonte do valor econômico, no empreendedor, na produtividade dos fatores de produção e no individualismo.
Especificamente, em seu breve tratamento da história do pensamento em seu grande Tratado de Economia Política, Say não faz qualquer menção a Cantillon. Apesar da considerável influência de Turgot sobre sua doutrina, ele bruscamente dispensa Turgot como sendo sensato na política, mas desprovido de razão na economia e disse que a economia política começou de fato com o Riqueza das Nações de Adam Smith.
Esta curiosa e volitiva negligência de seus próprios antecessores é obscurecida pelo fato escandaloso de que há nem sequer uma biografia de Say na língua inglesa, e pouquíssimas até mesmo em francês.
Talvez nós possamos entender esse desenvolvimento dado o seguinte. Na França, a economia foi por muito tempo associada com os fisiocratas, les économistes. A expulsão do cargo de controlador geral do grande Turgot em 1776 e a consequente dispensa de suas reformas liberais serviram para desacreditar o movimento fisiocrático inteiro. Turgot foi infelizmente considerado pela opinião pública como um mero companheiro de viagem da fisiocracia e como seu seguidor mais influente no governo.
Depois desta perda de influência política, os philosophes franceses e os principais membros da intelligentsia se sentiram livres para ridicularizar e zombar dos fisiocratas. Alguns dos aspectos do culto fanático da fisiocracia a deixou vulnerável ao escárnio, e os encyclopédistes, apesar de eles mesmos serem geralmente apoiadores do laissez-faire, lideraram o ataque.
O advento da revolução francesa acelerou a morte da fisiocracia. Em primeiro lugar, a Revolução foi ela mesma intensamente política demais para permitir muito interesse sustentado na teoria econômica. Segundo a devoção estratégica dos fisiocratas à monarquia absoluta tendeu a desacreditá-los em uma era em que o monarca havia sido deposto e destruído. Ademais, os fisiocratas, com sua ênfase na produtividade exclusiva das terras, foram associados com a devoção aos interesses dos aristocratas possuidores de terras.
A revolução francesa contra o governo aristocrático e contra a posição feudal de terras não tinha paciência para a fisiocracia. A impaciência foi agravada pela emergência do industrialismo e da revolução industrial, que crescentemente tornava obsoleta a devoção fisiocrática às terras.
Todos esses fatores serviram para desacreditar a fisiocracia totalmente, e já que Turgot foi infelizmente identificado como um fisiocrata, sua reputação desceu por água abaixo junto. Essa situação foi agravada pelo fato de que o antigo aliado, amigo próximo, editor e biógrafo de Turgot, foi o último dos fisiocratas, o estadista Pierre Samuel Dupont de Nemours (1739-1817), que acrescentou ao problema ao deliberadamente distorcer as visões de Turgot para que ele parecesse o mais próximo da fisiocracia o possível.
Originalmente, o Riqueza das Nações de Smith foi mal-recebido na França. Os fisiocratas, então dominantes, escarneceram-no como uma imitação vaga e pobre de Turgot. No entanto, o grande libertário Condorcet, que havia sido um amigo próximo e biógrafo de Turgot, escreveu notas admiradas encaixadas como apêndices a várias traduções francesas do Riqueza das Nações. E a viúva de Condorcet, Madame de Grouchy, continuou o interesse da família nos estudos smithianos ao preparar uma tradução francesa do Teoria dos Sentimentos Morais.
Depois, na década de 1790, os fisiocratas remanescentes colaram-se agradecidamente na barra da saia dos smithianos. Smith, afinal, favorecia o laissez-faire, ele era quase excepcionalmente pró-agricultura, defendendo que o trabalho agrícola era a fonte-mãe da riqueza.
Como resultado, a maioria dos fisiocratas tardios se tornaram smithianos de primeira hora na França, liderados pelo Marquês Germain Garnier (1754-1821), o primeiro tradutor francês do Riqueza das Nações, que apresentava a doutrina smithiana para a França em seu Abrège élémentaire des principes de l’économie politique (1796).
1.2 Say, de Tracy e Jefferson
A liderança dos smithianos franceses foi rapidamente ganha por Jean-Baptiste Say, quando a primeira edição de seu grande Traité d’Économie politique foi publicada em 1803. Say nasceu em Lion, de uma família huguenote de mercadores têxteis, e ele passou a maior parte dos primeiros anos de sua vida em Geneva, e então em Londres, onde se tornou um aprendiz comercial.
Finalmente, ele voltou para Paris como um empregado de uma companhia de seguros de vida, e o jovem Say rapidamente se tornou um líder do grupo de philosophes do laissez-faire na França. Em 1794, Say se tornou o primeiro editor da principal revista desse grupo, La Décade Philosophique. Um defensor não somente do laissez-faire como também do industrialismo florescente da revolução industrial, Say era hostil à absurdamente pró-agrícola fisiocracia.
Os integrantes do grupo Décade chamavam a si mesmos de “ideologistas”, mais tarde zombeteiramente traduzido por Napoleão como os “ideólogos”. O conceito deles de “ideologia” significava simplesmente a disciplina de estudar todas as formas de ação humana, um estudo que deve ser respeitador dos indivíduos e de suas interações, e não uma manipulação positivista ou científica das pessoas como meras engrenagens para a máquina social.
Os ideólogos foram inspirados pelas visões e análises do Condillac tardio. O líder deles na psicologia fisiológica foi o Dr. Pierre Jean George Cabanis (1757-1808), que trabalhava próximo a outros biólogos e fisiólogos na École de Médecine. Seu líder nas ciências sociais era o rico aristocrata Anthony Louis Claude Destutt, Comte de Tracy (1754-1836).[1] Destutt de Tracy originou o conceito de “ideologia”, que ele apresentou no primeiro volume (1801) de seu livro de cinco volumes, Éléments d’ideologie (1801-15).
De Tracy estabeleceu pela primeira vez suas perspectivas econômicas em seu Comentário de Montesquieu, em 1807, que permaneceu em sua forma de manuscrito por causa de suas perspectivas corajosamente liberais. No Comentário, Tracy ataca a monarquia hereditária e o governo de um só homem, e defende a razão e o conceito de direitos naturais universais. Ele começa refutando a definição de Montesquieu de liberdade como “vontade ao que se deve” {“willing what one ought”} passando à definição muito mais libertária de liberdade como a habilidade de querer e de fazer o que se lhe agrada.
No Comentário, Tracy dá primazia à economia na vida política, já que o principal propósito da sociedade é satisfazer, no curso da troca, as necessidades e os prazeres materiais do homem. O comércio, Tracy louva como “a fonte de todo o bem humano”, e ele também saúda o avanço da divisão do trabalho como uma fonte de produção crescente, sem nenhuma das reclamações sobre “alienação” levantadas por Adam Smith.
Ele também enfatizou o fato de que “em todo ato de comércio, toda troca de mercadorias, ambas as partes se beneficiam ou {passam a} possuir algo de maior valor do que aquilo que eles venderam”. A liberdade de troca doméstica é, portanto, tão importante quanto a troca entre as nações.
Mas, Tracy lamentou, nesse idílio de livre troca e comércio, e de produtividade crescente, surge um empecilho: o governo. Impostos, ele pontuava, “são sempre ataques à propriedade privada, e são usados para despesas improdutivas e positivamente desperdiçadoras”. No melhor dos casos, todos os gastos governamentais são um mal necessário, e a maioria, “tal como obras públicas, poderia ser mais bem desempenhada por indivíduos privados”.
De Tracy se opunha amargamente à criação e adulteração governamental do dinheiro-corrente. Depreciação[2] é, simplesmente, “roubo” e o dinheiro de papel é a criação de uma mercadoria que vale apenas o papel é impressa. Tracy também atacou o crédito público, e falou em favor de um padrão de espécie, de preferência baseado na prata.
Quarto volume do Éléments de Tracy, o Traité de la volonté (Tratado da Vontade), foi, apesar de seu título, o tratado de Tracy sobre a economia. Ele havia agora chegado na economia como parte de seu grande sistema. Completo ao fim de 1811, o Traité foi finalmente publicado quando Napoleão foi deposto, em 1815, e incorporava e desenvolvia as ideias do Comentário sobre Montesquieu.
Seguindo o seu amigo e colega J. B. Say, Tracy agora enfatizava bastante o empreendedor como a figura crucial na produção de riqueza. Tracy foi algumas vezes chamado de teórico do valor da teoria do trabalho, mas o “trabalho” foi entendido como altamente produtivo quando comparado com a terra. Ademais, “trabalho” para Tracy era em geral a atividade do empreendedor em poupar e investir os frutos de trabalho anterior.
O empreendedor, ele disse, guarda capital, emprega outros indivíduos, e produz uma utilidade além do valor original de seu capital. Somente o capitalista guarda parte do que ganha para reinvestir e produzir novas riquezas. Dramaticamente, Tracy concluiu: “empreendedores industriais são de fato o coração do corpo político, e o sangue deles é o seu capital.”
Ademais, todas as classes têm um interesse conjunto nas operações do livre mercado. Não há tal coisa, Tracy penetrantemente pontuou, como “classes sem propriedade”, já que, como Emmet Kennedy o parafraseia, “todos os homens têm ao menos a mais preciosa de todas as propriedades, suas faculdades, e os pobres têm tanto interesse em preservar suas propriedades como os ricos”. [3]
No coração da ênfase central de Tracy nos direitos de propriedade estava, portanto, o direito fundamental de todo homem sobre sua própria pessoa e suas próprias faculdades. A abolição da propriedade privada, ele avisou, só resultaria em uma “igualdade de miséria”, ao abolir o esforço pessoal. Ademais, já que não há classes fixas no livre mercado, todo homem é tanto um consumidor quanto um proprietário e pode ser um capitalista se poupar dinheiro, não há razão para esperar a igualdade de renda, dado que os homens diferem largamente em habilidades e talentos.
A análise de Tracy da intervenção governamental foi a mesma do que em seu Comentário. Todos os gastos governamentais são improdutivos, mesmo quando necessários, e todas seguem o princípio de viver da renda dos produtores e, portanto, são de natureza parasitária. O melhor encorajamento que o governo pode dar para a indústria é “deixá-la em paz”, e o melhor governo é o mais parcimonioso.
Acerca do dinheiro, Tracy toma uma firme posição a favor do dinheiro sólido. Ele lamentou que os nomes das moedas não fossem mais simples unidades de peso de ouro ou prata. Ele via a depreciação das moedas claramente como roubo, e o dinheiro de papel como roubo em larga escala. O dinheiro em cédula, de fato, é simplesmente uma série gradual e escondida de depreciações sucessivas do padrão monetário. Os efeitos destrutivos da inflação foram analisados, e bancos monopolistas privilegiados foram atacados como sendo instituições “altamente prejudiciais”.
Embora seguisse J.B. Say em sua ênfase no empreendedor, Tracy antecipou seu amigo em rejeitar o uso da matemática e da estatística nas ciências sociais. Tão cedo quanto em 1791, Tracy escrevia que muito da realidade e da ação humana simplesmente não é quantificável, e advertiu contra a aplicação “charlatã” da estatística às ciências sociais.
Ele anexou o uso da matemática em seu Mémoire sur la faculté de penser (Memórias sobre a Faculdade do Pensar) (1798), e em 1805 rompeu com a ênfase tardia de seu amigo Condorcet na importância da “matemática social”.
Talvez influenciado pelo Traité de Say dois anos antes, Tracy afirmou que o método adequado das ciências sociais não era o de equações matemáticas, mas o desenvolvimento, ou dedução, das propriedades implícitas contidas nas verdades “originais” básicas, ou axiomáticas — em suma, o método da praxeologia. Para Tracy, o axioma verdadeiro e fundamental é que “o homem é um ser sensitivo”, do qual verdades podem ser obtidas através da observação e da dedução, não através da matemática. Para Tracy, essa “ciência do entendimento humano” é a fundação básica de todas as ciências humanas.
Thomas Jefferson (1743-1826) foi um amigo e admirador dos philosophes e ideólogos desde a década de 1780, quando ele foi ministro da França. Quando os ideólogos adquiriram algum poder político nos anos consulares de Napoleão, Jefferson se tornou um membro dos “brain trust” do Institut National, em 1801. Os ideólogos — Cabanis, DuPont, Volney, Say, e de Tracy — todos mandaram seus manuscritos a Jefferson e receberam encorajamento em retorno. Depois que terminou seu Commentary sobre Montesquieu, Tracy mandou o manuscrito para Jefferson e pediu-o para que o fizesse ser traduzido para o inglês. Jeferson entusiasticamente traduziu, ele mesmo, uma parte do livro e então fez com que a tradução fosse finalizada e publicada pelo publicador do jornal da Filadélfia William Duane. Desta forma, o Commentary apareceu em inglês (1811), 8 anos antes de poder ser publicado na França. Quando Jefferson mandou a tradução publicada para Tracy, o encantado filósofo ficou inspirado para finalizar seu Traité de la volonté e mandou-o rapidamente para Jefferson, incentivando-o a traduzir o volume.
Jefferson ficou altamente entusiasmado sobre o Traité. Apesar de ele mesmo ter feito muito para preparar o caminho para a guerra contra a Grã-Bretanha em 1812, Jefferson estava desiludido com o crédito público, os altos impostos, o gasto governamental, a enchente de dinheiro de papel, e o florescimento de monopólios bancários privilegiados que acompanharam a guerra. Ele havia concluído que seu amado partido democrata-republicano havia na verdade adotado as políticas econômicas dos desprezados federalistas hamiltonianos, e o ataque furioso de Tracy contra essas políticas estimularam Jefferson a tentar fazer com que o Traité fosse traduzido para o inglês. Jefferson deu o novo manuscrito para Duane novamente, mas ele faliu, e Jefferson então revisou a tradução falha que Duane havia comandado. Finalmente, a tradução foi publicada como o Treatise on Political Economy (Tratado sobre a Economia Política), em 1818.[4]
O antigo presidente John Adams, cujas visões de dinheiro ultra sólido e do banco com espécie 100 por cento estavam próximas às de Jefferson, saudou o Treatise de Tracy como o melhor livro de economia já publicado. Ele enalteceu particularmente o capítulo de Tracy sobre o dinheiro como um que defendia “os sentimentos que nutri durante toda a minha vida”. Adams acrescentou que
bancos causaram mais dano à religião, moralidade, tranquilidade, prosperidade, e até mesmo à riqueza da nação, do que […] jamais farão de bom.
Sempre abominei e continuo a abominar todo o nosso sistema bancário, e morrerei abominando […] cada banco de desconto, cada banco em que juro deva ser pago ou lucro de qualquer tipo feito pelo deponente, é simplesmente corrupção.
Tão cedo quanto em 1790, Thomas Jefferson havia elogiado o Riqueza das Nações como o melhor livro sobre economia política, junto com o trabalho de Turgot. Seu amigo Bispo James Madison (1749-1812), que foi presidente da William & Mary College por 35 anos, foi o primeiro professor de economia política nos Estados Unidos. Um libertário que havia enfatizado cedo que “nós nascemos livres”, Bispo Madison havia usado o Riqueza das Nações como o seu livro-texto. Agora, em seu prefácio para o Tratado de Tracy, Thomas Jefferson expressou a “oração de coração” de que o livro se tornasse o texto americano básico na economia política. Por um tempo, William & Mary College adotou o Tratado de Tracy sob o incentivo de Jefferson, mas esse status não durou muito. Logo o Tratado de Say ultrapassou Tracy na corrida pela popularidade nos Estados Unidos.
O “pânico” calamitoso de 1819 confirmou Jefferson em suas inflexíveis visões sobre dinheiro sólido na bancagem. Em novembro daquele ano, ele elaborou uma proposta de solução para a depressão, que ele caracteristicamente pediu que seu amigo William C. Rives introduzisse na legislatura de Virgínia sem revelar sua autoria. O objetivo do plano foi revelado sem rodeios: “A eterna supressão do papel de banco”.
A proposta era reduzir gradualmente o meio-circulante até o nível de espécie pura; o governo do estado deveria compelir a completa retirada das notas bancárias em 5 anos e um quinto das notas deveria ser chamado e resgatado em espécie a cada ano.
Ademais, a Virgínia faria com que fosse um crime grave que qualquer banco passasse ou aceitasse notas bancárias de qualquer outro estado. Os bancos que recusassem o plano teriam seus alvarás perdidos ou então seriam forçados a resgatar todas as suas notas em espécie imediatamente. Em conclusão, Jefferson declarou que nenhum governo, estadual ou federal, deveria ter o poder de estabelecer um banco; em vez disso, a circulação do dinheiro deveria consistir somente de espécie.
1.3 A influência do Traité de Say
J.B. Say foi tornado um membro do tribunal governante durante o regime consular napoleônico em 1799. Quatro anos depois, seu Traité foi publicado, rapidamente estabelecendo-o como o excepcional interpretador do pensamento smithiano no continente europeu. O Traité passou por seis edições durante o tempo de vida de Say, a última em 1829, então com o dobro do tamanho da edição original. Em adição, o Cours complet d’économie politique (1828-30) foi reimpresso várias vezes, e o extrato do Traité impresso como o Catéchisme d’Économie politique (1817) foi reimpresso pela quarta vez pouco depois da morte de Say. Toda grande nação europeia traduziu o Traité de Say para sua própria linguagem.
Em 1812, Napoleão desceu o cacete nos ideólogos, um grupo que ele antes prestigiava, mas sempre detestou por suas visões políticas e econômicas liberais. Ele reconheceu os ideólogos como os maiores oponentes, na teoria e prática, de sua ditadura que ia se intensificando.[5] Napoleão forçou o Senado a purgar a si mesmo e ao tribunal de ideólogos, assim expulsando J.B. Say de seu cargo no tribunal. Os ideólogos eram filósofos, e os bonapartistas viam a própria filosofia como uma ameaça ao governo ditatorial. Como colocou Joseph Fievée, editor do Journal de l’Empire bonapartista, “filosofia é um meio de reclamar sobre o governo, ou ameaçá-lo quando ele se afasta dos princípios e dos homens da Revolução”.[6]
Dois anos depois, pouco depois de se tornar o imperador, Napoleão foi novamente atrás de Say, recusando-se a permitir que uma segunda edição do Traité fosse publicada a não ser que Say mudasse um capítulo ofensivo. Quando Say se recusou a fazê-lo, a nova edição foi suprimida. Expulso do governo francês, Say se tornou um manufatureiro de algodão bem-sucedido por 10 anos. De fato, Say tornou-se um dos manufatureiros dominantes da moda na França. Como escreve seu biógrafo, Say estava “intimamente envolvido na emergência da indústria de larga escala. Ele foi, com efeito, um dos mais memoráveis tipos desses manufatureiros do Consulado e do Império, desses primeiros grandes empreendedores que buscaram colocar o novo processo tecnológico em operação”.[7]
Depois da queda de Napoleão em 1814, a segunda edição do Traité foi finalmente publicada, e em 1819, Say embarcou em uma nova carreira professoral, primeiro no Conservatoire National e finalmente no College da França. O admirante Jefferson, ele próprio um iniciado no pensamento econômico laissez-faire, assegurou Say de que ele encontraria um clima acolhedor nos Estados Unidos. O Presidente Madison juntou-se a Jefferson nesses desejos. Em verdade, Jefferson queria oferecer a Say o professorado de economia política em sua recentemente fundada Universidade de Virgínia.
O Traité de Say exerceu grande influência na Itália. Inicialmente, o Riqueza das Nações de Smith teve pouco impacto na economia italiana. A Itália já havia tido uma tradição de livre troca florescente, notavelmente no sistemático Meditações sobre Economia Política (1771) (Meditazioni sull’economia politica) do Conde Milanês Pietro Verri (1728-97). Não houve menção a Smith no trabalho de 1780 do napolitano Gaetano Filangieri (1752-88), nos escritos do conde Giovanni Battista Gherardo D’Arco (1785), nem mesmo tardiamente, como a obra pelo livre comércio de Francesco Mengotti, Il Colbertismo (1792) – e isso com o Riqueza das Nações tendo sido traduzido para o italiano em 1779.
A expansão do regime revolucionário francês para a Itália trouxe a influência de Adam Smith junto com os soldados. Smith se tornou a principal autoridade econômica durante os primeiros anos napoleônicos. Depois de 1810, Say e Tracy tomaram a economia italiana. As visões de Say foram propostas no lúcido tratado Elementi di economie politica (1813), por Luca De Samuele Cagnazzi de Altamura (1764-1852), e no tratado por Carlo Bosellini de Modena, Nuovo esame delle sorgenti della privata e della pubblica ricchezza (1816). O corajoso abade Paolo Balsamo (1764-1816) espalhou as visões smithianas e as visões posteriores de Say pela Sicília, clamando pelo livre comércio na agricultura, e pela libertação da agricultura siciliana das restrições do feudalismo (particularmente em seu Memorie economiche ed agrarie, Palermo, 1803, e seu Memorie inedite di pubblica economia, Palermo, 1845).
O amigo e colega de Say, Destutt de Tracy, também exerceu influência enorme sobre a Itália. Seu Elements foi traduzido em uma edição de 10 volumes (Milão, 1817-19) pelo ex-padre Giuseppe Compagnoni (1754-1833). Ademais, no topo do governo revolucionário de Nápoles da década de 1820 estava o ancião estadista e filósofo Melchiorre Delfico, cabeça da junta revolucionária provisional e correspondente e admirador de Tracy e o seguidor de Tracy, Pasquale Borelli, cabeça do parlamento revolucionário napolitano.
Países espanhóis e países novos latino-americanos também foram influenciados por Tracy. Um dos líderes da revolução liberal espanhola de 1820 contra a monarquia absolutista foi Dom Manuel Maria Gutierrez, o tradutor do Traité para o espanhol (1817), e professor de economia política em Malaga. Ademais, um membro das Cortes Revolucionárias espanholas de 1820 foi Ramon de Salas, o tradutor do Commentary de Tracy, que voltou do exílio na França para ajudar na luta. E outro membro ainda das Cortes, J. Justo Garcia, havia traduzido o livro de Tracy sobre a Lógica. Na América Latina, o admirador e seguidor de Tracy, Berardino Rivadavia, tornou-se o presidente da recentemente independente República da Argentina.[8] Tracy também se tornou altamente popular no Brasil bem como na Argentina, e na Bolívia sua “ideologia” se tornou a doutrina oficial das escolas estatais nas décadas de 1820 e 1830.
Não é surpreendente que a segunda onda de escritores smithianos na Alemanha tenha sido altamente influenciada pelo Traité de J.B. Say. Ludwig Heinrich von Jakob (1759-1827) foi, como Kraus, um filósofo kantiano bem como economista. Estudante da Universidade de Halle, ele se tornou professor de filosofia lá. Von Jakob publicou um tratado smithiano sobre princípios econômicos gerais, o Grundsätze der Nationalökonomie (Princípios de Economia) (Halle, 1805). Edições posteriores, até a terceira, publicada em 1825, incorporaram as emendas Sayitas. Ademais, von Jakob ficou tão impressionado com o trabalho de Say que traduziu o Traité para o alemão (1807) e para o russo. Von Jakob, de fato, ajudou a espalhar visões esclarecidas na Rússia de outras formas do que apenas publicando uma tradução de Say. Ele ensinou por um tempo na Universidade de Carcóvia, e foi um consultor de várias comissões oficiais em São Petersburgo.
O Sayita mais interessante e meticuloso na Alemanha foi Gottlieb Hufeland (1760-1817). Hufeland nasceu em Danzig, onde se tornou prefeito, e estudou em Göttingen e Jena, onde se tornou professor de economia política. Em seu Neue Grundlegung der Staatswirtschaftskunst (Giessen, 1807-13), Hufeland adotou todas as inovações importantes de J.B. Say — ou, mais precisamente, seu retorno à tradição francesa-continental, pré-smithiana. Assim, Hufeland trouxe novamente à tona o empreendedor, e cuidadosamente separou seus lucros puros de enfrentar o risco, de seu retorno em juros e do aluguel ou salário por suas habilidades de gerenciamento. Ademais, Hufeland adotou uma teoria da utilidade-escassez do valor, enfatizando a causa do valor como as valorações de um estoque de bens por consumidores individuais.
A influência de Say e de Tracy na Rússia atinge um tom irônico. Em 1825, um dos principais dezembristas liberais, Pavel Ivanovich Pestel, que considerava o Comentário de Tracy como sua bíblia, tentou assassinar o governante absolutista czar Nicolau I. Nicolau, por sua vez, fez Pestel ser enforcado, mesmo ele próprio tendo sido educado no Cours d’Economie Politique smithiano e Sayita de Heinrich Freiherr von Storch.[9]
A tradução inglesa da quarta edição do Traité de Say apareceu em Londres em 1821 como The Treatise on Political Economy. A revista de livre comércio de Boston, a North American Review, reeditou o Treatise nos Estados Unidos no mesmo ano, com anotações americanas pelo defensor do livre comércio Clement C. Biddle. O Treatise de Say rapidamente se tornou e se manteve como o livro-texto mais popular sobre economia nos Estados Unidos por toda a guerra civil.[10] De fato, ainda estava sendo reimpresso como um texto de college em 1880. Durante esse período, o Treatise passou por 26 impressões americanas, em contraste com somente 8 na França.
Os escritos não traduzidos dos ideólogos tiveram uma influência inesperada na Grã-Bretanha. Thomas Brown, amigo e sucessor de Dugald Stewart na cadeira de filosofia moral em Edimburgo, era fluente em francês, e foi pesadamente influenciado pela filosofia de Tracy. Ademais, James Mill foi um discípulo do Dr. Brown em filosofia, e foi ele mesmo um admirador de Helvetius, Condillac e Cabanis. Não é surpreendente, portanto, que Mill tenha sido o primeiro na Grã-Bretanha a apreciar a importância da lei dos mercados de Say.
Não é de se admirar que a versão de Say do smithianismo tenha se tornado a obra econômica mais popular no continente europeu e nos Estados Unidos. Não sendo capaz de denominar-se fisiocrata, Say denominou-se um seguidor de Smith, mas ele o era amplamente somente em nome. Como veremos, suas visões eram realmente pós-Cantillon e pré-austríacas, em vez de smithiana clássica.
Uma diferença crucial entre Say e Smith era a clareza e a lucidez límpidas do Tratado de Say. Say bem justamente chamou o Riqueza das Nações de um “vasto caos” e “uma coleção caótica de ideias justas jogadas indiscriminadamente no meio de um número de verdades positivas”. Em outro ponto, ele chama a obra de Smith de “uma montagem promíscua dos princípios mais sãos […], uma massa mal digerida de visões esclarecidas e de informação precisa”. E novamente, com grande perceptividade, Say acusa que “quase toda porção dele [o Riqueza das Nações] é destituído de método”.
Em verdade, foi precisamente a grande clareza de Say que, tendo o feito ganhar popularidade mundial, diminuiu sua apreciação entre os escritores britânicos que infelizmente governavam o tabuleiro do pensamento econômico. (O fato de que ele mesmo não era britânico sem sombra de dúvidas adicionou motivos a essa depreciação.) Em contraste ao incauto Smith, ou ao tortuoso e virtualmente ilegível Ricardo, a clareza e eloquência de Say, a facilidade de lê-lo, fê-lo suspeito. Schumpeter coloca isso muito bem:
Seu argumento flui com uma limpidez tão lisa que o leitor dificilmente tem de parar para considerar e dificilmente irá experienciar a suspeita de que pode haver coisas mais profundas debaixo dessa superfície lisa. Isso trouxe-lhe [Say] sucesso arrebatador com os muitos; custou-lhe a boa vontade dos poucos. Ele algumas vezes viu, sim, verdades importantes e profundas; mas quando ele as observou, pontuou-as em sentenças que são lidas como trivialidades.
Porque ele foi um escritor esplêndido, porque evitava a áspera e tortuosa prosa de Ricardo, porque, na frase de Jefferson, seu livro era “mais curto, mais claro e mais são” do que o Riqueza das Nações, os economistas então e depois tendem a confundir a fluidez da superfície com superficialidade, assim como tão frequentemente confundem vagueza e obscuridade com profundidade. Schumpeter adiciona:
Assim, ele nunca teve o que merecia. O grande sucesso como livro-texto do Traité — em nenhum outro lugar maior do que nos Estados Unidos — apenas confirmou os críticos contemporâneos e posteriores em seu diagnóstico de que ele era apenas um popularizador de Smith. De fato, o livro se tornou tão popular justamente porque ele pareceu poupar leitores sedentos ou mal preparados do problema de tatear pelo Riqueza das Nações. Essa era substancialmente a opinião dos ricardianos, que […] o desprezaram como escritor — veja comentários de McCulloch sobre ele no Literatura da Economia Política — que somente havia sido capaz de se elevar à sabedoria smithiana, mas falhou em se elevar à ricardiana. Para Marx, ele é apenas o ‘insípido’ Say.[11]
1.4 O método da praxeologia
Uma característica particularmente excepcional do tratado de J.B. Say é que ele foi o primeiro economista a pensar profundamente sobre a adequada metodologia de sua disciplina, e a basear seu trabalho, até onde ele podia, nessa metodologia. Dos economistas prévios e de seu próprio estudo, chegou ao método único da teoria econômica, que Ludwig von Mises chamaria, mais de um século depois, de “praxeologia”.
Economia, Say percebeu, não tem por base uma massa de fatos estatísticos particulares e rudimentares. Ela tem por base, na verdade, fatos bastante gerais (fait généraux), fatos tão gerais e universais; e tão profundamente enraizados na natureza do homem e seu mundo que todos, ao aprenderem ou lerem sobre eles, dariam seu assentimento. Esses fatos foram baseados, por sua vez, na natureza das coisas (la nature des choses), e nas implicações dedutivas desses fatos tão compreensivamente enraizados na natureza humana e na lei natural. Uma vez que esses fatos amplos são verdadeiros, suas implicações lógicas precisam ser verdadeiras também.
Em sua introdução ao Tratado, que estabelece a natureza e implicações metodológicas de seu trabalho, Say começa sendo crítico aos fisiocratas e a Dugald Stewart por terem confundido as ciências da política com a da economia política. Say viu que se era para a economia, ou economia política, progredir, ela deveria se levantar sobre seus próprios pés como uma disciplina sem estar intimamente misturada do início com a ciência política — ou a ciência que avança os princípios corretos da ordem política. A economia política, escreveu Say, é a ciência da riqueza, sua produção, distribuição e consumo.
Say procede à menção da popularidade do método baconiano de indução a partir de uma massa de fatos na formação de uma ciência, mas então adiciona que há dois tipos de fatos, “objetos que existem” e “eventos que ocorrem”. Claramente, objetos que existem são primários, já que os eventos que ocorrem são somente movimentos ou interações de objetos existentes. As duas classes de fatos, notou Say, constituem a “natureza das coisas”, e “uma observação cuidadosa da natureza das coisas é a única fundamentação de toda e qualquer verdade”.
Os fatos também podem ser agrupados em dois tipos: gerais ou constantes, e particulares ou variáveis. Mais ou menos ao mesmo tempo que Stewart, mas muito mais compreensivelmente, Say então lançou-se a uma crítica brilhante do método estatístico, e da diferença dele para com a economia política. A economia política lida com fatos ou leis gerais:
Economia política, a partir de fatos cuidadosamente observados, torna conhecida a nós a natureza da riqueza; do conhecimento de sua natureza deduz os meios para sua criação, descobre a ordem de sua produção, e os fenômenos que causam sua destruição. É, em outras palavras, uma exposição dos fatos gerais observados em relação à sua matéria de estudo. No que diz respeito à riqueza, é um conhecimento de efeitos e de suas causas. Mostra com o que os fatos estão constantemente conjuntos; de modo que um é sempre a sequência do outro.
Say acrescentou então um ponto importante, de que a economia “não recorre a nenhuma explicação adicional para a hipótese”. Em suma, ao contrário das ciências físicas, as assunções da economia não são hipóteses hesitantes que, ou as deduções das quais, precisam ser testadas por fatos; ao contrário, cada passo da cadeia lógica repousa em fatos gerais definitivamente verdadeiros e não “hipotéticos”. (Precisa ser acrescentado que é precisamente essa diferença crucial entre o método da economia e das ciências físicas que trouxe tanta contenção à cabeça da praxeologia durante o século XX.)
Em vez de enquadrar hipóteses, a ciência econômica precisa perceber conexões e regularidades “a partir da natureza de eventos particulares”, e “precisa conduzir-nos de uma linha para outra, de modo que todo entendimento inteligente possa compreender claramente de que maneira a cadeia está unificada. “É isso”, Say conclui, “que constitui a excelência do método moderno de filosofar”.
Em contraste, estatísticas exibem fatos particulares, “de um país particular, em um período designado”. Elas são uma “descrição em detalhes”. Estatística, Say acrescentou, “pode gratificar a curiosidade”, mas ela “nunca [pode] ser produtiva de vantagem” se não indica a “origem e consequências” dos fatos colecionados e isso só pode ser alcançado pela disciplina separada da economia política. É justamente a confusão dessas duas disciplinas que fez o Riqueza das Nações de Smith, nas palavras perceptivas de Say, uma “massa imetódica” e “irregular de especulações curiosas e originais, e de verdades conhecidas já demonstradas”.
Uma diferença crucial entre a estatística e a economia política, Say continua, é que os princípios gerais ou “fatos gerais” desta podem ser descobertos e, portanto, podem ser conhecidos com certeza. Os princípios da economia política, sempre que residam “[n]as deduções rigorosas de fatos gerais inegáveis”, “residem sobre uma fundação imóvel”. Eles são o que Mises mais tarde chamaria de “apodíticos”. A economia política, em verdade, “é composta de alguns princípios fundamentais, e de um grande número de corolários ou conclusões, desenhados desses princípios”. Os fatos particulares da estatística, por outro lado, são necessariamente incertos, incompletos, imprecisos e imperfeitos. E mesmo quando verdadeiros, Say corretamente nota, são “apenas verdadeiros por um instante”. Novamente, na estatística, “quão pequeno é o número de fatos particulares que são completamente examinados, e quão poucos entre eles são observados sob todos seus aspectos? E ao supor que sejam bem examinados, bem observados e bem descritos, quantos deles ou provam nada ou diretamente o reverso do que era intencionado a ser estabelecido por eles [?]” E ainda assim o público ingênuo é frequentemente encantado por “uma mostragem de figuras e cálculos […] como se cálculos numéricos sozinhos pudessem provar qualquer coisa, e como se alguma regra pudesse ser estabelecida, da qual uma inferência poderia ser extraída sem o auxílio do raciocínio sólido”.
Say continua para uma crítica escaldante do uso das estatísticas sem teoria:
Consequentemente, não há uma teoria absurda ou uma opinião extravagante que não tenha sido apoiada por um apelo aos fatos; e é por esses fatos, também, que autoridades públicas têm sido frequentemente enganadas. Mas um conhecimento de fatos, sem um conhecimento de suas relações mutuas, sem ser apto a mostrar o porquê de um ser uma causa e outro uma consequência, não é realmente melhor do que uma informação crua de um balconista de escritório […]
Say, então, denuncia a ideia de que uma boa teoria não é “prática”, e que o “prático” é de alguma forma superior ao teórico:
Nada pode ser mais ocioso do que a oposição da teoria à prática! O que é teoria, se não um conhecimento das leis que conectam os efeitos com suas causas, fatos com fatos? E quem pode ser mais familiarizado com fatos do que o teórico que os inspeciona sob todos seus aspectos, e compreende suas relações entre eles? E o que é a prática sem a teoria, senão o emprego de meios sem saber como ou por que atuam?
Say então brilhantemente mostra por que é impossível que povos e nações “aprendam pela experiência” e adotem ou descartem teorias corretamente a partir dessa base. Desde o começo da era moderna, ele observa, a riqueza e a prosperidade têm aumentado na Europa ocidental, enquanto ao mesmo tempo nações-estado têm imposto restrições à troca e multiplicado a interferência do imposto. A maioria das pessoas então superficialmente o concluem que este causou aquele, que o comércio e a produção aumentaram como um resultado da interferência do governo. Por outro lado, Say e os economistas políticos argumentam o inverso, de que “a prosperidade dos mesmos países teria sido muito maior se eles tivessem sido governados por políticas mais liberais e esclarecidas”. Como podem os fatos ou a experiência decidirem entre essas duas interpretações conflitantes? A resposta é que eles não podem; que somente a teoria correta, teoria deduzível a partir de alguns poucos fatos ou princípios universais gerais, pode. Esta é a razão pela qual, observa Say, “nações raramente derivam qualquer benefício das lições da experiência”. Para que isto aconteça, “a comunidade como um todo deve ter a capacidade de medir a conexão entre as causas e suas consequências; que só aí já pressupõe um alto grau de inteligência e uma rara capacidade para reflexão”. Portanto, para chegar na verdade, somente o conhecimento completo de alguns poucos fatos essenciais gerais é importante; “todo outro conhecimento dos fatos, como a erudição de um almanaque, é uma mera compilação, da qual nada resulta”.
Ademais, em argumentos acerca das políticas públicas, quando “fatos” são alegadamente postos contra o “sistema” da teoria econômica, é na verdade um “sistema” teórico posto contra o outro, e, novamente, somente a refutação teórica pode prevalecer. Portanto, disse Say, se você fala sobre como o livre comércio entre as nações é vantajosa para todos os participantes, isto é acusado de ser um “sistema”, ao qual é oposta a preocupação com o déficit na balança comercial – esta mesmo um sistema, mas um sistema falacioso. Aqueles que afirmam (como afirmaram os fisiocratas) que o luxo alimenta o comércio enquanto a poupança é ruinosa, estão estabelecendo um “sistema”, e então, em uma prefiguração exata do multiplicador keynesiano, “alguns afirmarão que a circulação enriquece um estado, e que a soma de dinheiro, ao passar por vinte mãos diferentes, é equivalente a vinte vezes seu próprio valor” – também um sistema.
Em uma surpreendente e perceptível prefiguração das controvérsias modernas, Say continua a explicar o porquê das deduções lógicas da teoria econômica deverem ser verbais, e não matemáticas. Os valores intangíveis dos indivíduos, com as quais a economia política se preocupa, são sujeitos à contínua e imprevisível mudança: “sujeitas à influência das faculdades, as vontades e os desejos da humanidade, não são suscetíveis a qualquer avaliação rigorosa, e não podem, portanto, fornecer quaisquer dados para cálculos absolutos”. Os fenômenos do mundo moral, observou Say, não estão “sujeitos à computação aritmética estrita”.
Por isso, podemos saber absolutamente que, em qualquer ano dado, o preço do vinho dependerá da interação de sua oferta, ou estoque a ser vendido, com a demanda. Mas para calcular estes dois elementos matematicamente, eles teriam que ser decompostos precisamente na influência separada de cada um de seus elementos, isto seria tão complexo que é impossível. Portanto:
não somente é necessário determinar qual será o produto da safra que sucede, enquanto ainda exposto às vicissitudes do clima, mas também a qualidade que possuirá, a quantidade pertencida restante da safra anterior, a quantidade de capital que estará à disposição dos negociantes, e requerê-los, mais ou menos prontamente, para receber seus adiantamentos. Nós devemos também saber com certeza a opinião que será sustentada quanto à possibilidade de exportar o artigo, que dependerá totalmente de nossas impressões quanto à estabilidade das leis e do governo, que varia dia após dia, e sobre o qual nenhum dos indivíduos concorda exatamente. Todos esses dados, e provavelmente muitos outros ainda, devem ser avaliados precisamente, somente para determinar a quantidade a ser coloca em circulação; ela mesma apenas um dos elementos do preço. Determinar a quantidade a ser demandada, o preço pelo qual a mercadoria pode ser vendida deve já ser conhecido, já que a demanda por ele aumentará em proporção a sua barateza; devemos também saber o estoque prévio do produto já em mãos, e os gostos e os meios dos consumidores, tão variados quanto suas personalidades. A capacidade de compra deles variará de acordo com a condição mais ou menos próspera da indústria em geral, e de sua própria em particular; seus desejos também variarão na razão de seus meios adicionais a seu comando de substituir uma bebida por outra, tal como cerveja, cidra, etc. Eu suprimi um número infinito de considerações menos importantes, que afetam mais ou menos a solução do problema […]
Resumidamente, o número enorme de determinantes imprecisas, oscilantes e quantitativamente desconhecidas fazem a aplicação do método matemático na economia impossível. E, portanto, aqueles que
pretenderam fazê-lo, não foram capazes de anunciar essas questões em qualquer linguagem analítica, sem despojá-las de suas complicações naturais, através de simplificações e supressões arbitrárias, das quais as consequências, não devidamente estimadas, sempre mudam essencialmente a condição do problema e pervertem todos os seus resultados; de modo que nenhuma outra inferência pode ser deduzida de tais cálculos além de fórmulas arbitrariamente assumidas.
A matemática, aparentemente tão precisa, inevitavelmente acaba por reduzir a economia do completo conhecimento de princípios gerais a fórmulas arbitrárias que alteram e distorcem os princípios e, portanto, corrompem suas conclusões.
Mas como então deve o economista político, conhecendo os princípios gerais com certeza, aplicar estes princípios a problemas específicos como a condição do mercado do vinho? Aqui, também, Say antecipou as brilhantes conclusões de Ludwig von Mises sobre a relação devida entre teoria e história, teoria e aplicação específica. Tal teoria aplicada na economia, Say indicou, é mais uma arte do que uma ciência estrita:
Qual o caminho então deve ser trilhado por um inquiridor prudente na elucidação de um assunto com tanto envolvido? O mesmo que deveria ser buscado por ele, sob circunstâncias igualmente difíceis, que decidem a maior parte das ações de sua vida. Ele examinará os elementos imediatos do problema proposto, e depois de ter os avaliado com certeza (o que na economia política pode ser efetuado), vai avaliar aproximadamente suas influências mútuas com a sagacidade intuitiva de um entendimento esclarecido, ele mesmo somente um instrumento por meio do qual o resultado intermediário de uma multidão de probabilidades pode ser estimado, mas nunca calculado com exatidão.[12]
J.B. Say então relata as falácias do método matemático na economia com os ensinamentos de seu grande mentor, o fisiologista Cabanis. Ele cita Cabanis sobre como escritores da mecânica distorcem gravemente as questões quando lidam com problemas da biologia e da medicina. Citando Cabanis:
Os termos que eles empregaram estavam corretos, o processo de raciocínio estritamente lógico, e, ainda assim, todos os resultados estavam errados […] é pela aplicação deste método de investigação a assuntos ao qual é de todo modo inaplicável, que os sistemas mais lunáticos, falaciosos e contraditórios têm sido mantidos.
Say então adiciona que o que quer que tenha sido pontuado acerca das falácias do método mecanicista na biologia é, a fortiori, aplicável às ciências morais, razão pela qual nós estamos “sempre sendo desvirtuados na economia política, sempre que tenhamos submetidos seus fenômenos ao cálculo matemático. Neste caso, torna-se a mais perigosa de todas as abstrações.”
Finalmente, Say perceptivamente aponta para outro problema que, tanto então como agora, leva pessoas instruídas a deixar de lado os princípios e as conclusões da economia. Pois eles
estão aptos demais a supor que a verdade absoluta está confinada ao método matemático e aos resultados da cuidadosa observação e experimento nas ciências físicas; imaginando que ciências morais e políticas não contém fatos invariáveis ou verdades indisputáveis, e, portanto, não podem ser consideradas ciências genuínas, mas meramente sistemas hipotéticos, mais ou menos engenhosos, mas puramente arbitrários.
Para reforçar este ponto de vista, as críticas da economia apontam para um grande número de diferenças de opinião nesta disciplina. Mas e daí? Say pergunta. Afinal, ciências físicas sempre foram tomadas pela controvérsia, algumas vezes se confrontando com “tanta violência e aspereza quanto na economia política”.
O método matemático não foi o único sistema de abstração a sofrer demolição incisiva por J.B. Say. Say também era um crítico afiado dos métodos verbais de lógica que partiam para o empírico sem fundamento contínuo e repetida checagem em referência aos fatos gerais e universais. Esta era a maior crítica metodológica de Say contra os fisiocratas. “Ao invés de primeiro observar a natureza das coisas, ou o modo pelo qual elas se dão, de classificar estas observações, e daí deduzir delas proposições gerais” – isto é, ao invés de serem praxeologistas, os fisiocratas
começaram estabelecendo certas proposições gerais abstratas, que eles chamaram de axiomas, ao supor que elas contivessem evidência inerente de sua própria verdade. Eles então prosseguiram a acomodar os fatos particulares naqueles e a inferir deles as suas leis; desse modo se envolvendo na defesa de máximas evidentemente em desacordo com o senso comum e a experiência universal […]
Resumidamente, um sistema de teoria econômica não deve ser somente axiomático-dedutivo; deve sempre se assegurar de fundamentar esses axiomas em “senso comum e experiência universal”.
Em sua Introdução à quarta edição, Say colocou restrições semelhantes contra David Ricardo e o sistema ricardiano. Ricardo, também, “às vezes argumenta baseado em princípios abstratos que ele generaliza demais”. Ricardo, ele acusou, começa com observações fundamentadas em fatos, mas então “força seus raciocínios às suas consequências mais remotas, sem comparar os resultados com os resultados da experiência real”. Depois de um certo ponto no raciocínio, “os fatos diferem bastante do nosso cálculo” e “a partir desse instante, nada na obra do autor é representado como realmente acontece na natureza”. “Não é suficiente”, Say conclui, “para partir de fatos; eles devem ser reunidos, firmemente perseguidos, e as consequências derivadas deles devem ser constantemente comparadas com os efeitos observados”, de modo que
a ciência da economia política […] deve mostrar de que maneira aquilo se dá na realidade é consequência de outros fatos igualmente certos. Deve descobrir a cadeia que os liga, e sempre, da observação, estabelecer a existência dos dois vínculos em seu ponto de conexão.
1.5 Utilidade, produtividade e distribuição
Em contraste com o mainstream Smith-Ricardo dos smithianos que deram sequência à teoria do valor-trabalho (ou, no melhor dos casos, do valor-custo-de-produção), J.B. Say firmemente restabeleceu a análise de utilidade escolástica-continental-francesa. É a utilidade e somente a utilidade que confere o aumento ao valor de troca, e Say resolveu o paradoxo do valor para sua própria satisfação, descartando o “valor de uso” como não sendo relevante para o mundo da troca. Não somente isto: Say adotou uma teoria do valor subjetivo, já que ele acreditava que o valor está nos atos de valoração pelos consumidores. Em adição a serem subjetivos, estes graus de valoração são relativos, já que o valor de um bem ou serviço está sempre sendo comparado com outro. Estes valores, ou utilidades, dependem de todo modo dos quereres, dos desejos e do conhecimento da parte dos indivíduos: “da natureza moral e física do homem, do clima em que ele vive, e das maneiras e da legislação de seu país, ele tem desejos do corpo, desejos da mente, e da alma; desejos para si mesmo, outras para sua família, outras ainda como um membro da sociedade”. A economia política, Say sabiamente pontuou, deve tomar estes valores e estas preferências das pessoas como já dados, “como um dos dados de seu raciocínio; deixando ao moralista e ao homem prático os vários deveres de iluminar e guiar seus companheiros, tanto nisto como em outras particularidades da conduta humana”.
Em alguns pontos, Say chegou na beira de descobrir o conceito de utilidade marginal, sem nunca de fato fazê-lo. Ele viu que as valorizações relativas de bens dependem dos “graus de estimação na mente do valorador”. Mas desde que ele não descobriu o conceito marginal, ele não resolveu inteiramente o paradoxo do valor. Na verdade, ele fez muito menos bem em resolvê-lo do que seus predecessores continentais fizeram. E então Say simplesmente descartou o valor de uso e o paradoxo do valor como um todo, e decidiu se concentrar no valor de troca. No entanto, como resultado, ele não pôde mais do que Smith e seus sucessores britânicos dedicar muita energia para analisar o consumo ou o comportamento do consumidor.
Mas enquanto Say simplesmente descartou o valor de uso, Ricardo fez do paradoxo do valor e da infeliz distinção entre valor de uso e valor de troca a base para sua teoria do valor. Para Ricardo, o ferro valia menos do que o ouro porque o custo de trabalho de cavar e produzir ouro era maior do que o custo de trabalho de produzir ferro. Ricardo admitiu que a utilidade é “certamente a fundação para o valor”, mas isto era aparentemente somente de interesse remoto, já que o “grau de utilidade” nunca pode ser à medida pela qual estimar seu valor. É verdade, mas Ricardo falhou em ver o absurdo em buscar tal medida em primeiro lugar. Seu segundo absurdo, como veremos abaixo, estava em pensar que o custo de trabalho provia tal medida “verdadeira” e invariável do valor. Como Say escreveu em suas anotações sobre a tradução francesa do Principles de Ricardo, “uma medida invariável do valor é uma quimera pura”.
Smith, e mais ainda Ricardo, foram levados às suas teorias do custo do trabalho ao se concentrarem no preço “natural” a longo prazo dos produtos. A análise de Say foi bastante auxiliada por sua concentração realista na explicação do preço de mercado real.
Os custos, é claro, estão intimamente relacionados com a precificação dos fatores de produção. Uma questão que os teoristas do valor-custo têm dificuldade em responder é, se de fato os custos são determinantes, de onde eles vêm? São enviados por revelação divina?
Uma das anomalias da discussão de Say é que, mesmo sendo um teorista do valor subjetivo e da utilidade, ele incompreensivelmente rejeitou o insight de Genovesi e de seu próprio predecessor ideólogo, Condillac, de que as pessoas trocam uma coisa por outra porque elas valoram a coisa que adquirem mais do que a que entregam – de modo que a troca sempre beneficia ambas as partes. E ao negar este ganho mútuo, Say é inconsistente com muito de sua própria posição sobre a utilidade.
Ao rejeitar Condillac, Say é não somente nada generoso, como quase propositalmente obtuso. Primeiro ele nota que Condillac “mantém que mercadorias, que valem menos para o vendedor do que para o comprador, ganham valor do mero ato de serem transferidas de uma mão para outra”. Mas Condillac insiste, por exemplo, que “valor igual é realmente dado por igual valor”, de modo que quando o vinho espanhol é comprado em Paris, “o dinheiro pago pelo comprador e o vinho que ele recebe valem o mesmo” – para o que podemos perguntar, para quem? Ele então admite que o mesmo vinho valeria mais em Paris do que valeria se tivesse sido feito na Espanha, mas ele insiste que o aumento no valor do vinho se deu não “no momento em que este vinho foi passado para o consumidor, mas surge do transporte”.
Mas St Clair incisivamente repreende Say: “na realidade, a transferência ao consumidor é a essência da transação; o longo transporte é subsidiário a este propósito; a mudança de localidade é primeiramente um meio a este fim, e não seria necessário se consumidores dispostos a comprar a mesma quantidade e pagar o mesmo preço pudessem ser achados imediatamente no local”.
Say obstinadamente continua a atacar o insight de Condillac: “O vendedor não é um trapaceiro profissional, nem o comprador é ingênuo, e Condillac não está justificado em dizer que se os valores trocados fossem sempre iguais nenhuma das partes ganharia nada pela troca”. Mas na realidade, é claro, Condillac estava totalmente correto; por que deveria alguém se importar com a troca de um X por um Y de igual valor?
St Clair reage brilhantemente em exasperação:
Senhor, como esses economistas entendem errado uns aos outros! Condillac não sugere que o mercador de vinho é um vigarista e seu cliente um tolo; ele não sugere que o mercador roube quer o cliente, quer o produtor; sua doutrina é de que os produtos aumentam em utilidade e valor ao serem transferidos do produtor para o consumidor, e de que ambas as partes se beneficiam pela intervenção do mercador que suscita a troca. Para o produtor, o mercador é um encontrador de consumidores; para o consumidor, ele é um encontrador de mercadorias; com o mercador como um meio de troca, o produtor consegue um preço melhor por seu produto e o comprador consegue um melhor valor para seu dinheiro.[13]
Uma das maiores contribuições de Say foi aplicar a teoria da utilidade à teoria da distribuição, resumidamente, ao descobrir a teoria de produtividade da precificação, e portanto da renda, que acumula para os fatores de produção. Em primeiro lugar, Say pontuou que, em contraste com Smith, todo trabalho, não somente trabalho corporificado em objetos materiais, é “produtivo”. De fato, Say brilhantemente pontuou que todos os serviços dos fatores de produção, sejam eles terra, trabalho ou capital, são imateriais, mesmo que possam resultar em um produto material.
Os fatores, resumidamente, proveem serviços imateriais no processo de produção. Este processo, como Say pontuou claramente pela primeira vez, não era a “criação” de produtos materiais. O homem não pode criar matéria; ele pode apenas transformá-la em diferentes formas e moldes, para satisfazer suas vontades mais completamente. A produção é este processo de transformação. No sentido de tal transformação, todo trabalho é produtivo “porque participa na criação de um produto”, ou, metaforicamente, na criação de “utilidades”.
Se, como pode acontecer, o trabalho foi gasto para nenhum benefício final, então o resultado é um erro: “insensatez ou desperdício da pessoa que exerce” o trabalho. Um exemplo de trabalho improdutivo é o crime, não somente uma atividade não-mercadológica como anti-mercado: nele, o “trabalho [esforço] é direcionado a despojar outra pessoa dos bens em sua possessão por meio de fraude ou violência […] [ele] degenera para absoluta criminalidade e daí nenhuma produção resulta, mas somente uma transferência forçada da riqueza de um indivíduo para o outro”.
J.B. Say também coloca claramente pela primeira vez a ideia de que os desejos são ilimitados. Escreveu Say: “não há objeto de prazer ou utilidade do qual o mero desejo não pode ser ilimitado, desde que todo o corpo esteja sempre pronto a receber o que quer que possa contribuir para seu benefício ou gratificação”. Say denunciou a posição proto-galbraithiana do mercantilista britânico Sir James Steuart, ao exaltar uma redução ascética dos quereres como uma solução para o caso dos desejos ultrapassarem a produção. Say empilha o devido desprezo nessa doutrina: “Sobre este princípio, seria o ápice da perfeição produzir nada e não ter desejo, isto é, aniquilar a existência humana.”
Infelizmente, Say então cai nessa mesma armadilha galbraithiana ao atacar o luxo e a ostentação, e ao manter que “desejos reais” são mais importantes para a comunidade do que “desejos artificiais”. Say se apressa para adicionar, no entanto, que a intervenção governamental não é a forma apropriada de alcançar a devida afluência.
Na valoração ou precificação dos serviços dos fatores (ou, como Say colocaria, “agentes”) da produção, Say adotou a tradição proto-austríaca, em contraste com a tradição de Smith-Ricardo. Porque desde que o desejo humano subjetivo por qualquer objeto cria seu valor, e reflete sua utilidade, fatores produtivos recebem valor por causa de sua “habilidade para criar a utilidade de onde se origina aquele desejo”. Ricardo, escreve Say, acredita que “o valor dos produtos é fundamentado no da agência produtiva”, i.e., que o valor dos produtos é determinado pelo valor de seus fatores produtivos, ou seu custo de produção.
Em contraste, Say declara, “o valor atual da execução produtiva é fundamentado no valor de uma infinidade de produtos comparados uns com os outros […] cujo valor é proporcional à importância de sua cooperação no empreendimento da produção […]”. Em contraste com os bens de consumo, Say pontua, a demanda por fatores produtivos não se origina no prazer imediato, mas no “valor do produto que são capazes de fazer nascer, que em si se origina na utilidade daquele produto, ou a satisfação que é capaz de proporcionar”. Resumidamente, o valor dos fatores é determinado pelo valor de seus produtos, que por sua vez é conferido pelas valorações e demandas do consumidor. A cadeia causal, tanto para Say quanto para os posteriores austríacos, é das valorações do consumidor para preços de bens de consumo para a precificação de fatores produtivos (i.e. para os custos de produção). Em contraste, a cadeia causal smithiana, e especialmente a ricardiana, é do custo de produção, especialmente o custo do trabalho, para os preços dos bens de consumo. Falando do valor “proporcional” de cada fator, Say mais uma vez chega no limiar de uma teoria da produtividade marginal da imputação do consumidor a valorações de fatores, e no limiar de uma análise de proporções variáveis. Mas ele não chega lá.
Say não se contentou com uma análise geral, mesmo que pioneira, da precificação de fatores produtivos. Ele procede para praticamente criar a famosa “tríade” da economia clássica: terra (ou “agentes naturais”), trabalho (ou “indústria”, para Say), e capital. O trabalho opera sobre, ou emprega, “agentes naturais” para criar capital, que é então usado para multiplicar a produtividade em colaboração com a terra e o trabalho. Apesar do capital ser a criação prévia do trabalho, uma vez existente ele é usado pelo trabalho para aumentar a produção. Se há categorias de fatores de produção, que armadilha mais fácil de cair do que a de defender que cada categoria recebe o tipo de renda atribuída a ela na linguagem comum: i.e. o trabalho recebe salários; a terra recebe aluguel; e capital recebe juros? Certamente uma abordagem de senso comum! E então Say a adotou.
Embora útil como uma primeira tentativa (com exceção do esquecido Turgot) de esclarecer a teoria da produção a partir da confusão de Adam Smith, esta clareza superficial vem ao preço de uma profunda falácia, que não seria desvendada até os austríacos. Em primeiro lugar, estas três categorias rigidamente separadas já começam a se desfazer na interessante ideia de Say de que os trabalhadores “emprestam” seus serviços a possuidores de capital e terra e assim ganham salários; que proprietários de terras “emprestam” sua terra ao capital e ao trabalho e ganham aluguem; e que capitalistas “emprestam” seu capital para ganhar juros.
Mas como exatamente esses pagamentos diferem? Como um aluguel como um preço de “empréstimo” se compara com os juros como empréstimo? E como os salários diferem dos juros ou do aluguel? Na verdade, a confusão é ainda pior, pois trabalhadores e proprietários de terras não “emprestam” seus serviços; eles não são credores. Pelo contrário, num sentido mais profundo, os capitalistas emprestam a eles dinheiro ao dá-los dinheiro em adianto da venda dos produtos aos consumidores; e então, trabalhadores e proprietários de terras são “devedores” dos capitalistas, e pagam a eles uma taxa natural de juros.
E, finalmente, esta tríade clássica se baseia em um equívoco básico, como Böhm-Bawerk eventualmente pontuaria, entre “capital” e “bens de capital”. Capital como um fundo de poupanças ou empréstimo pode ganhar juros; mas bens de capital – que são os fatores físicos e reais de produção, e não os fundos monetários – não ganham juros. Como todos os outros fatores, os bens de capital ganham um preço, preço por unidade de tempo por seus serviços. Se me permite, bens de capital, terras e trabalhadores todos ganham tais preços, no sentido de “aluguéis”, definindo um preço de aluguel como o preço de qualquer bem por unidade de tempo. Este preço é determinado pela produtividade de cada fator. Mas então de onde vêm os juros em fundos de capital?
Então, ao lidar com o problema dos juros, Say critica Smith e os smithianos por focarem no trabalho como o único fator de produção, e negligenciarem o papel colaborativo do capital. Atacando a resposta Smith-Ricardiana (e que depois seria a marxiana): que o capital é simplesmente trabalho acumulado, Say responde que sim, mas os serviços do capital, uma vez construídos, lá estão e continuam, e precisam ser pagos. Embora satisfatória o suficiente em um nível, a resposta não resolve o problema de onde o retorno líquido em fundos de capital vem, um retorno que Turgot e então os austríacos explicaram como o preço da preferência temporal, ou o fato, resumidamente, de que o capital não é somente trabalho acumulado mas também “tempo acumulado”.
Apesar da falta de resolução do problema dos juros, Say prosseguiu com uma excelente análise do capital, no sentido de bens de capital, e seu papel crucial na produção e no aumento da riqueza econômica. O homem, ele pontuou, transforma agentes naturais em capital, para depois trabalhar com a natureza para chegar nos bens de consumo. Quanto mais ele constrói bens de capital – quanto mais ferramentas e maquinário – mais ele consegue aproveitar a natureza para fazer o trabalho ser crescentemente produtivo. Mais maquinário significa um aumento na produtividade do trabalho e uma queda no custo de produção. Tal aumento no capital é particularmente benéfico para a massa dos consumidores, já que a competição diminui o preço do produto, bem como o custo de produção. Ademais, maquinário aumentado permite uma qualidade superior do produto, e permite a criação de novos produtos que não estariam disponíveis na produção manufatureira. O enorme aumento na produção e nos padrões de vida liberam a energia humana da luta por subsistência para permitir o cultivo das artes, até mesmo das frivolidades, e, mais importante, para “o cultivo das faculdades intelectuais”.
Say segue Smith em sua discussão da divisão do trabalho, e em pontuar que o grau da divisão é limitado pela extensão do mercado. Mas a discussão de Say é muito mais sólida. Ele mostra, primeiro, que expandir a divisão do trabalho exige uma grande quantia de capital, de modo que o investimento de capital se torna o ponto crucial, em vez de sua divisão per se. Ele também pontua, em contraste com Smith, que a especialização crucial do trabalho não é simplesmente dentro de uma fábrica (como na famosa fábrica de alfinetes de Smith) mas se estende para toda a economia, e forma a base para todas as trocas entre produtores.
Say também viu que a essência de investir capital é adiantar pagamentos monetários para fatores de produção, um adianto que é compensado depois pelo consumidor. Assim, “o capital empregado em uma operação produtiva é sempre um mero adiantamento feito para o pagamento de um serviço produtivo, e embolsado pelo valor de seu produto resultante”. Aqui ele capturou a essência da ideia austríaca do capital como um processo ao longo do tempo e que envolve o pagamento adiantado pela produção. Say também antecipou o conceito austríaco dos “estágios de produção”. Ele pontuou que, ao invés de esperar um longo tempo pelo reembolso do consumidor, o capitalista, a cada estágio da produção, compra o produto do estágio anterior e, assim, reembolsa o conjunto anterior de capitalistas. Como Say lucidamente coloca:
O minerador extrai o minério das profundezas da terra; o fundidor de ferro paga-o pelo minério. Aqui acaba a produção do mineiro, que é pago por um adiantamento a partir do capital do fundidor de ferro. Este então derrete o minério, refina-o e transforma-o em aço, que ele vende para o acerador; assim a produção do fundidor de ferro é paga, e seu adiantamento é reembolsado por um segundo adiantamento da parte do acerador, feito no preço do aço. Isso novamente, o acerador transforma em lâminas de barbear, o preço das quais compensam seu adiantamento do capital, e ao mesmo tempo paga por sua agência produtiva.
Generalizando:
Cada produtor sucessivo faz o adiantamento para seu precursor do então valor do produto, incluindo o trabalho já gasto nele. Seu sucessor na ordem de produção, por sua vez, reembolsa ele, com a adição do valor que o produto pode ter ganho ao passar pelas mãos dele. Finalmente, o último produtor, que é geralmente o negociante de varejo, é compensado pelo consumidor pelo agregado de todos esses adiantamentos, mais a conclusão da operação performada por ele mesmo sobre o produto.
No fim, o dinheiro pago pelos consumidores pelo produto final, digamos lâminas de barbear, repaga os capitalistas por seus adiantamentos prévios pelos vários serviços dos fatores de produção.
Passando para salários e o mercado de trabalho, Say pontuou que os salários seriam altamente relativos ao preço do capital e da terra, enquanto o trabalho dificilmente é relativo aos dois outros fatores. Isto será também sempre que a terra for praticamente ilimitada em oferta; e/ou quando uma abundância de capital criar uma grande demanda por trabalho. Ademais, as taxas de salários serão proporcionais ao perigo, dificuldade, ou detestabilidade do trabalho, à irregularidade do emprego, à duração do treino, e ao grau de habilidade ou talento. Como Say coloca: “Cada uma dessas causas tendem a diminuir a qualidade do trabalho em circulação em cada departamento, e consequentemente a variar sua” taxa de salário. Ao reconhecer as diferenças do talento natural, Say avança para muito além do igualitarismo de Adam Smith e dos economistas neoclássicos desde a época de Smith.
No longo prazo, o capital ganhará o mesmo retorno em todas as firmas e indústrias; mas isso é verdade no longo prazo, uma vez que há inevitáveis imobilidades da terra, do trabalho e do capital. Para Say, os “lucros” ou juros sobre o capital vêm de seus serviços produtivos – novamente, uma confusão fundamental entre capital como um fundo, que ganha juros, e bens de capital, que são fatores produtivos e ganham preços e rendas por sua produtividade. Mas apesar deste erro básico, Say tinha muitas coisas sagazes para falar sobre os juros.
Ele foi possivelmente o primeiro economista, por exemplo, a mostrar que os prêmios pelo risco são adicionados à taxa básica de juros, de modo que devedores mais arriscados pagarão juros mais altos. O risco, ele pontuou, depende da segurança esperada do investimento, do crédito e caráter pessoais do mutuário, do histórico do mutuário, e da habilidade ou disposição do governo do país do devedor de forçar o pagamento do débito. Ademais, Say introduziu uma teoria do lucro como inovação ao afirmar que como novos métodos de empregar o capital são mais incertos, eles são especialmente arriscados, e, então, eles tenderão a ser mais lucrativos. Portanto, os lucros da inovação são incluídos no risco.
Say também foi insistente em dizer que os juros sobre o mercado de empréstimo são determinados pela demanda por capital (a qual é diretamente proporcional) e pela oferta de capital (inversamente proporcional). Um defensor da liberdade do mercado de empréstimo, – “usura” para ele não era moralmente pior do que aluguel ou salários – ele também demonstrou que era uma falácia que a quantidade de dinheiro diminui ou aumenta a taxa de juros. Say perceptivamente pontuou que é um “abuso de palavras falar dos juros do dinheiro”; na verdade são juros sobre poupanças, não sobre o dinheiro, e empréstimos podem e de fato ocorrerem em espécie assim como em dinheiro. Escreve Say: a “abundância ou escassez do dinheiro ou de seus substitutos […] não afeta mais a taxa de juros do que a abundância ou escassez de canela, ou trigo, ou de seda”.
1.6 O empreendedor
Se Adam Smith livrou o pensamento econômico da própria existência do empreendedor, J.B. Say, para seu eterno crédito, o trouxe de volta. Não tanto de volta quanto nos dias de Cantillon e Turgot, mas o suficiente para continuar intermitentemente e “oculto” no pensamento econômico continental, mesmo que ausente do mainstream dominante do classicismo britânico.
A ênfase no mundo real, ao invés de no equilíbrio a longo-prazo, quase forçou uma volta ao estudo do empreendedor. Para Say, o empreendedor, o eixo da economia, toma para si mesmo a responsabilidade, a conduta, e o risco de administrar sua firma. Ele quase sempre possui algum do capital da firma, Say sendo familiar com o fato de que o empreendedor dominante e o tomador de risco na economia é aquele que também é um capitalista, um proprietário de capital. O proprietário de capital, de terra ou de serviço pessoal contrata esses serviços para o “locatário” ou empreendedor. Em retorno pelos pagamentos fixos desses fatores, o empreendedor toma para si mesmo o risco especulativo de ganhar lucro ou sofrer prejuízo. “É um tipo de barganha especulativa, onde o locatário toma o risco dos lucros e do prejuízo, de acordo com a receita que pode ganhar, ou com o produto obtido pela agência transferida, que deve exceder ou estar aquém do aluguel ou emprego que ele deve pagar”.
O empreendedor, Say adiciona, age como um intermediário entre os vendedores e compradores, aplicando os fatores produtivos proporcionalmente à demanda pelos produtos. A demanda pelos produtos, por sua vez, é proporcional a suas utilidades e à quantidade de outros produtos que trocam por eles. O empreendedor constantemente compara os preços de venda dos produtos com seus custos de produção; se ele decide produzir mais, sua demanda por fatores produtivos aumentará.
Parte dos lucros acumulando ao capitalista-empreendedor serão o retorno padrão sobre capital. Mas além disso, Say declarou que haverá um retorno pela “característica peculiar” do empreendedor. O empreendedor é um gerenciador do negócios, mas seu papel, na visão de Say, é mais amplo: o empreendedor deve ter juízo, perseverança, e “conhecimento do mundo, bem como do negócio”, já que ele aplica o conhecimento ao processo de criar bens de consumo. Ele deve empregar trabalhadores, comprar matéria-prima, tentar manter os custos baixos, e encontrar consumidores para seu produto. Acima de tudo, ele deve estimar a importância do produto, a provável demanda por ele, e a disponibilidade dos meios de produção. E, finalmente, ele “deve ter um talento pronto para o cálculo para comparar os custos da produção com o provável valor do produto quando completo e levado ao mercado”. Aqueles que não têm essas qualidades serão mal sucedidos como empreendedores e sofrerão perdas e falências; os que permanecerão serão os habilidosos e bem-sucedidos capazes de lucrar.
Say foi crítico de Smith e dos smithianos por falharem em distinguir a categoria de lucro empreendedorial do lucro de capital, ambos os quais são misturados juntos nos lucros das empresas do mundo real.
Say também apreciou o empreendedorismo como a força motriz das alocações e ajustes na economia de mercado. Ele sumariza estes funcionamentos do mercado ao afirmar que as desejos dos consumidores determinam o que será produzido: “O produto mais desejado está sempre em demanda; e aquilo que mais está em demanda dá o maior lucro para a indústria, capital, e terra, que são então preferencialmente empregados no aumento desse produto específico; e, vice-versa, quando um produto diminui em demanda, há menos lucro a ser ganho por sua produção; portanto, não é mais produzido”.
Analistas astutos como Schumpeter e Hébert são críticos de Say como tendo uma visão do empreendedor como um gerenciador e organizador estático, ao invés de um portador dinâmico de risco e de incerteza. Nós não podemos compartilhar desta visão. Parece para nós que Say se baseia, ao invés, na tradição de Cantillon-Turgot do empreendedor como previsor e portador de risco.
De sua análise do capital, do empreendedorismo e do mercado, J.B. Say concluiu a favor do laissez-faire: “Os produtores eles mesmos são os únicos juízes competentes da transformação, da exportação e da importação destes vários assuntos e mercadorias; e cada governo que interfere, cada sistema calculado para influenciar a produção, só pode causar confusão.”
1.7 A lei dos mercados de Say
Enquanto J.B. Say foi quase totalmente ignorado pelos economistas e historiadores mainstream do pensamento econômico, isto não é verdade para uma faceta relativamente menor de seu pensamento que se tornou conhecida como “a lei dos mercados de Say”. O único ponto de sua doutrina que os ricardianos britânicos ativos e agressivos aprenderam com Say foi esta lei. James Mill, o “Lênin” do movimento ricardiano (veja abaixo), se apropriou da lei em seu Commerce Defended (1808), e Ricardo adotou de seu descobridor e mentor.[14]
A lei de Say é simples e quase truística e evidente em si mesma, e é difícil escapar da convicção de que despertou uma série de tempestades só por causa de suas implicações e consequências políticas óbvias. Essencialmente, a lei de Say é uma resposta severa e apropriada aos vários ignorantes na economia, bem como aos egocêntricos que, em toda recessão ou crise econômica, começam a reclamar irritantemente sobre o terrível problema da “superprodução” geral ou, na linguagem comum da época de Say, um “excesso geral” de bens no mercado. “Superprodução” significa a produção em excesso de consumo: isto é, a produção é muito grande em geral se comparada ao consumo, e, portanto, os produtos não podem ser vendidos no mercado. Se a produção é muito grande em relação ao consumo, então isto é obviamente um problema do que é agora chamado de “falha de mercado”, uma falha que deve ser compensada pela intervenção do governo. A intervenção teria que tomar uma ou ambas das seguintes formas: reduzir a produção, ou estimular artificialmente o consumo. O New Deal americano na década de 1930 fez ambos, sem nenhum sucesso em aliviar o alegado problema. A produção pode ser reduzida, como no caso do New Deal, pelo governo organizando cartéis compulsórios de negócios para forçar um corte em sua produtividade.
Estimular a demanda do consumidor tem sido o programa favorito dos intervencionistas por muito tempo. Geralmente, isso é feito pelo governo e seu banco central inflacionando a oferta de dinheiro e/ou pelo governo entrando em déficits pesados, seus gastos passando por um consumo substituto. De fato, os déficits do governo pareceriam ser o ideal para os defensores da ideia de superprodução/subconsumo. Pois, se o problema é produção excessiva e/ou gasto do consumidor muito baixo, então a solução é estimular muito consumo improdutivo, e quem melhor para isso do que o governo, que por sua própria natureza é improdutivo e até mesmo contraprodutivo?
Say compreensivelmente reagiu com horror a esta análise e à prescrição.[15] Em primeiro lugar, ele pontuou, os desejos do homem são ilimitados, e continuarão a ser até que atinjamos uma superabundância geral genuína – um mercado mundial com os preços de todos os bens e serviços caindo a zero. Mas neste ponto, não haveria problema em encontrar demanda do consumidor, ou, de fato, qualquer problema econômico. Não haveria necessidade de produzir, de trabalhar, ou de se preocupar em acumular capital, e nós estaríamos todos no Jardim do Éden.
Então, Say postula uma situação em que todos os custos de produção são no mínimo reduzidos a zero: “em tal caso, é evidente que não pode mais haver aluguel para a terra, juros sobre o capital, ou salários pelo trabalho, e consequentemente, nenhuma receita para as classes produtivas”. O que então acontecerá?
O que então, digo eu, estas classes não mais existiriam. Cada objeto de desejo humano se manteria no mesmo predicamento do ar ou da água, que são consumidos sem a necessidade de serem produzidos ou comprados. De maneira semelhante à que todos são ricos o suficiente para se proporcionarem com ar, também todos seriam ricos o suficiente para proporcionarem-se com qualquer outro produto imaginável. Este seria o ápice da riqueza. A economia política não mais seria uma ciência; nós não teríamos nenhuma ocasião para aprender o modo de adquirir riqueza; pois já a encontraríamos pronta em nossas mãos.
Já que, à parte do Jardim do Éden, a produção sempre deixa insatisfeitas os desejos do homem, isto significa que não há necessidade para se preocupar com qualquer falta de consumo. O problema que limita a riqueza e os padrões de vida é a deficiência da produção. No mercado, Say pontua, produtores trocam seus produtos por dinheiro e usam o dinheiro para comprar os produtos de outros. Esta é a essência da economia de troca, ou de mercado. Portanto, a oferta de um bem constitui, em sua base, a demanda por outros produtos. A demanda de consumo é simplesmente a encarnação da oferta de outros produtos, cujos proprietários estão buscando comprar os produtos em questão. É muito melhor ter uma demanda emergindo da oferta de outros produtos, como no livre mercado, do que o governo estimular a demanda do consumidor sem qualquer produção correspondente.
Pois o governo estimular o consumo por si mesmo “não é de nenhum benefício para o comércio; pois a dificuldade reside em ofertar os meios, não em estimular o desejo por consumo; e nós vimos que a produção, por si mesma, fornece os meios”. Já que a demanda genuína vem somente da oferta dos produtos, e já que o governo não é produtivo, segue-se que o gasto do governo não pode verdadeiramente aumentar a demanda:
um valor uma vez criado não é aumentado […] ao ser tomado e gasto pelo governo, ao invés de por um indivíduo. O homem que vive da produção de outras pessoas não origina demanda para estas produções; ele meramente coloca a si mesmo no lugar do produtor, para o grande prejuízo da produção […]
Mas se não pode haver superprodução geral além do Jardim do Éden, então por que os homens de negócios e observadores tão frequentemente reclamam de um excesso geral? Em certo sentido, um excedente de uma ou mais mercadorias significa simplesmente que muito pouco foi produzido de outras mercadorias pelas quais podem ser trocadas. Vendo de outra forma, já que sabemos que um aumento na oferta de qualquer produto diminui seu preço, então se um excedente não vendido de um ou mais bens existe, este preço deve baixar, assim estimulando a demanda de forma que toda a quantia será comprada.
Nunca pode haver qualquer problema de “superprodução” ou “subconsumo” no livre mercado porque os preços podem sempre cair até que os mercados sejam esvaziados. Enquanto Say nem sempre colocou esta questão nestes exatos termos, ele viu claramente o suficiente, particularmente em seu Letters to Malthus, em sua controvérsia com o Rev. Thomas Robert Malthus sobre a lei de Say. Aqueles que reclamam da superprodução ou subconsumo raramente falam em termos de preço, e ainda assim estes conceitos são praticamente sem significado se o sistema de preços não for sempre tido em mente. A questão deve sempre ser: produção ou vendas a que preço? Demanda ou consumo a que preço? Nunca há nenhum genuíno excedente, ou “excesso”, não vendido, seja específico ou geral sobre toda a economia, se os preços são livres para cair ao ponto de esvaziar os mercados e eliminar o excedente.
Ademais, Say escreveu em seu Letters to Malthus, “se a quantidade posta excede minimamente o desejo, isto é o suficiente para alterar o preço consideravelmente”. É esta noção do que agora nós chamaríamos de “elasticidade”, e resultante mudanças significativas no preço, que, para Say, leva muitas pessoas a confundir um “pequeno excesso” de oferta “com uma abundância excessiva”.
As implicações de políticas de atendimento ao sistema de preços são cruciais. Significa que, para curar um excesso, seja este específico ou pervasivo, o remédio não é que o governo gaste ou crie dinheiro; é permitir que os preços caiam de modo que o mercado seja limpo.
Em seu Letters to Malthus, Say oferece o seguinte exemplo. Cem sacas de trigo são produzidas e trocadas por 100 peças de roupa (ou melhor, cada uma é trocada por dinheiro e então pela outra mercadoria). Suponha que a produtividade e a produção de cada uma são dobradas, e agora 200 sacas de trigo são trocadas por 200 peças de roupa. Como a superabundância ou superprodução afetará uma ou ambas as mercadorias? E se por produzir 100 unidades de cada produto, o produtor fizesse um lucro de 30 francos, por que não poderia o aumento na produção resultante e queda no preço de cada produto ainda garantir 30 francos de lucro para cada vendedor? E como pode o excesso geral surgir? Ainda assim, Malthus teria que manter que uma parte da nova produção de roupas não encontraria compradores.
Say então nota que Malthus, de certo modo, concedeu o ponto sobre os preços caírem por causa da produção aumentada, e então recuou para uma segunda linha de defesa: que “as produções cairão para um preço muito baixo para pagar pelo trabalho necessário para a sua produção”. Aqui nós chegamos ao cerne das reclamações dos defensores da superprodução/subconsumo – se pudermos passar por seus conceitos nevoentos agregativos e sua verdadeira ou aparente negligência do fato de que um menor preço de qualquer produto pode sempre limpar o mercado.
Em resposta, Say notou que Malthus, tendo infelizmente adotado a teoria do valor-trabalho, negligenciou a adição dos serviços produtivos da terra e do capital ao trabalho nos custos de produção. De modo que a alegação é que os preços de venda cairão abaixo dos custos de produção.
Mas de onde vêm os “custos”? E por que eles seriam de algum modo fixos e exógenos ao próprio sistema de mercado? Como eles são determinados? Apesar de que Ricardo se juntou a Say na questão da superprodução, foi fácil para um seguidor britânico de Smith e Ricardo (como Malthus) nas teorias do valor como custo cair nesta armadilha e assumir que os custos são de algum modo fixos e invariáveis. Say, acreditando, como vimos, que os preços são determinados pelo preço de venda ao invés do contrário, foi impelido a uma visão muito mais clara e correta da questão toda. Voltando a seu exemplo, Say pontua que se os produtores de trigo e roupas dobrassem a quantidade produzida com os mesmos serviços produtivos, isto significa não somente que os preços do trigo e das roupas cairiam, mas também que a produtividade dos fatores aumentou em ambas as indústrias. Um aumento na produtividade dos fatores significa uma diminuição do custo. Mas isto significa que um aumento na produção não somente diminuirá o preço de venda; também diminuirá os custos, então não há razão para assumir tristes perdas ou mesmo uma diminuição do lucro se os preços caírem.
Aparentemente, Say continuou, Malthus está preocupado com os preços dos serviços produtivos permanecerem altos e, portanto, manterem os custos altos demais conforme a produção aumenta. Mas aqui Say brilhantemente traz um ponto brilhantemente perceptivo: os preços dos fatores produtivos precisam ser altos por uma razão; eles não são preordenados a serem altos. Mas este alto salário ou aluguel em si mesmo “denota [precisamente] que o que buscamos existe, quer dizer, que há um modo de empregá-los de modo a fazer o produto ser o suficiente para pagar o que custou”. Resumidamente, os preços dos fatores serem altos significa que o preço que se pagou por eles foi aumentado até este ponto por usos alternativos para eles. Se os custos desses fatores seriamente prejudicam ou apagam os lucros de uma firma ou indústria, isto é, porque esses fatores são mais produtivos em outro lugar e foram licitados mais alto para refletir este fato vital. O raciocínio de Say é marcantemente similar à resposta moderna do livre comércio ao argumento do “trabalho barato” em favor de tarifas protetivas. A razão pela qual o trabalho é mais caro, digamos, nos Estados Unidos ou em outro país industrializado, é que outras indústrias americanas licitaram mais alto por esses custos de trabalho. Estas indústrias são, portanto, mais eficientes do que a indústria sofrendo com a competição, e, assim, esta deveria recuar ou fechar e permitir que os recursos sejam liberados para campos mais eficientes e produtivos.
Em áreas mais periféricas, mas ainda relevantes, J.B. Say engajou em alguns exemplos amáveis e poderosos de argumento reductio ad absurdum. Assim, sobre a importância da demanda vis-à-vis a oferta, e sobre a questão dos excessos, ele perguntou o que teria acontecido se um mercador tivesse enviado um contêiner carregado para lugar da Cidade de Nova York no começo do século XVII. Claramente, ele não teria sido capaz de vender esta carga. Por que não? Por que este excesso? Porque ninguém na área de Nova York estava produzindo o suficiente de outros bens para trocar por esta carga. E por que este mercador teria certeza em vender esta carga hoje em dia na Cidade de Nova York? Porque hoje há produtores o suficiente na área de Nova York para fazer e importar produtos, “por meio dos quais eles adquirem aquilo o que é oferecido a eles por outros”.
Teria sido um absurdo afirmar que o problema sobre a carga do século XVII era que havia produtores demais e consumidores de menos. Say adiciona que “os únicos reais consumidores são aqueles que produzem por sua parte, porque somente eles podem comprar os produtos de outros, [enquanto] […] consumidores estéreis não podem comprar nada, exceto por meio do valor criado por produtores”. Ele conclui eloquentemente que “é a capacidade de produção que faz a diferença entre um país e um deserto”.
O outra reductio potente, também em seu Letters to Malthus, é parte de sua defesa da inovação e do maquinário contra taxação sobre a superprodução. Malthus, nota Say, concede que o maquinário é benéfico quando a produção do produto é tão acentuada que o emprego neste campo também aumenta. Mas, Say adiciona, o novo maquinário é vantajoso até mesmo no aparente pior caso, quando a produção do bem particular não é aumentada e trabalhadores são dispensados. Porque, primeiro, tanto neste quanto naquele caso, a produtividade aumenta, os preços de venda caem, e os padrões de vida aumentam. Além disso, escreve Say, trazendo o reductio, ferramentas são vitais para a humanidade. Propor, como faz Malthus, a limitação e restrição da introdução de novo maquinário é argumentar implicitamente que “nós devemos (regredindo ao invés de avançando a carreira da civilização) sucessivamente renunciar a todas as descobertas que já fizemos, e fazer das nossas artes mais imperfeitas para multiplicar nosso trabalho e diminuir nossos prazeres”.
Quanto aos trabalhadores desempregados pela introdução de novo maquinário, Say escreve que eles podem e vão mover-se para outro lugar. Afinal, ele adiciona acidamente, o empregador que traz maquinário novo “não os [os trabalhadores] compele a permanecerem desempregados, mas somente a buscarem outra ocupação”. E muitas oportunidades de emprego se abrirão para estes trabalhadores, já que a rena na sociedade aumentou devido ao novo maquinário e produto.
Ressoando Turgot, Say também responde à preocupação de Malthus-Sismodi sobre o vazamento de poupanças de gastos vitais, pontuando que poupanças não permanecem sem serem gastas; elas são simplesmente gastas em outros fatores produtivos (ou reprodutivos) em vez de no consumo. Em vez de prejudicar o consumo, a poupança é investida e, portanto, aumenta o futuro gasto do consumidor. Historicamente, a poupança e o consumo crescem juntos. E assim como não há limite necessário para a produção, também não há limite para o investimento e o acúmulo de capital. “Um produto criado foi uma brecha aberta para outro produto, e isto é verdade seja o valor dela gasto” no consumo ou adicionado à poupança.
Concedendo que às vezes as poupanças podem ser acumuladas, Say foi pela primeira vez menos que satisfatório. Ele pontuou corretamente que eventualmente o acúmulo será gasto, ou no consumo ou no investimento, já que, afinal, é para isto que o dinheiro serve. Ainda assim, ele admitiu que ele também deplorava o acúmulo. E ainda assim, como Turgot havia indicado, saldos de caixa acumulados que reduzem o gasto terão o mesmo efeito que a “superprodução” a um preço alto demais: a menor demanda diminuirá os preços em toda parte, saldos de caixa reais surgirão, e todos os mercados serão novamente limpos. Infelizmente, Say não compreendeu este ponto.[16]
Say, entretanto, foi novamente poderoso e contundente em sua crítica à crença de Malthus na importância de manter o consumo improdutivo pelo governo: a renda e o consumo por funcionários do governo, soldados, e pensionistas do estado. Say argumentou que estas pessoas vivem às custas da produção, enquanto consumidores produtivos agregam à oferta de bens e serviços. Say continuou acidamente: “Eu não consigo pensar que aqueles que pagam impostos estariam perdidos quanto ao que fazer com seu dinheiro se o coletor não viesse à sua assistência; ou suas vontades seriam mais amplamente satisfeitas, ou eles empregariam o mesmo dinheiro de forma reprodutiva”.
Em contraste com seus oponentes, que desejavam que o governo estimulasse a demanda do consumidor, Say acreditava que os problemas de excesso, bem como a pobreza em geral, poderiam ser resolvidos ao aumentar a produção. E então ele em muitas passagens censurou a taxação excessiva, que aumentava os custos e preços dos bens, e aleijava a produção e o crescimento econômico. Em essência, J.B. Say contra-atacou as propostas estatistas dos subconsumistas Malthus e Sismondi por um programa ativista próprio: o programa libertário de cortar o imposto.
Say combinou seus insights anti-imposto com sua crítica ao carinho de Malthus pelo gasto governamental através de um ataque pesado a Malthus e à dívida pública. Say notou que Malthus, “ainda convencido que há classes que prestam serviço para sociedade simplesmente por consumir sem produzir, consideraria uma infelicidade se todo ou boa parte da dívida nacional inglesa fosse paga”. Pelo contrário, rebateu Say, isso seria um evento altamente benéfico para a Inglaterra. O resultado seria
que os acionistas [detentores de títulos governamentais], sendo pagos, obteriam alguma renda a partir de seu capital. Que aqueles que pagam impostos gastariam eles mesmos as 40 milhões de libras esterlinas que eles agora pagam aos credores do Estado. Que os 40 milhões de impostos sendo retirados, todas as produções seriam mais baratas, e o consumo aumentaria consideravelmente; que isto forneceria trabalho ao trabalhador, ao invés de cortes de sabre, que agora são distribuídos a eles; e eu confesso que estas consequências não me aparentam ser de uma natureza aterrorizante para os amigos do bem-estar público.
1.8 A recessão e a tempestade sobre a lei de Say
Chegamos agora a uma questão final e crítica sobre a lei de Say. Por que a tempestade sobre a lei apareceu somente em dois grupos massivos? Pois o tempo da oscilante controvérsia sobre a lei não é acidental. J.B. Say cunhou a lei em 1803 e James Mill a trouxe para a Grã-Bretanha em 1808, convertendo Ricardo e seus discípulos. Mas por que não havia controvérsia particular sobre a lei até muito mais tarde? Especificamente, a tempestade explodiu em 1819, quando o economista franco-suíço Jean Charles Léonard Simonde de Sismondi (1773-1842) publicou seu Nouveaux principes d’économie politique (Novos Princípios de Economia Política). O livro de Sismondi foi seguido, no próximo ano, pelo Principles of Political Economy (1820), do Rev. Thomas Robert Malthus. O ponto estranho é que esses dois homens foram ardentes smithianos por duas décadas: por que publicar estas heréticas visões subconsumistas praticamente ao mesmo tempo?
A família aristocrata florentina de Sismondi havia se estabelecido na França, apenas como huguenotes a serem levados pela perseguição a se estabelecer em Genebra, o centro calvinista. Sismondi nasceu em Genebra, filho de um clérigo calvinista. Quando a radical influência da Revolução Francesa chegou em Genebra, os Sismondis se mudaram para Londres, onde o jovem Sismondi teve uma chance de estudar e de participar dos assuntos de negócios ingleses.
Sismondi se estabeleceu como um fazendeiro na Toscana no final da década de 1790, publicando um tratado fisiocrático sobre a agricultura toscana em 1801. Pouco depois, ele se tornou um fervoroso seguidor de Adam Smith, e publicou sua obra smithiana de dois volumes, De La richesse commerciale (Da Riqueza Comercial) em Genebra, no mesmo ano — 1803 — em que Say publicara seu famoso Traité. Enquanto Say disparou à influência e à fama, a obra de Sismondi foi ignorada, e permaneceu totalmente desconhecida fora da França. Talvez o ressentimento em relação a esse destino desempenhou um papel na conversão radical de Sismondi, incorporada em seu Noveaux Principes. Mas o momento, a indução para essa conversão, foi crítico, a saber: o final, em 1815, de uma geração de massivas guerras e inflação na Europa levou rapidamente e inevitavelmente à uma deflação e depressão pós-guerra. Recessões, especialmente em tais grandes escalas, eram um novo fenômeno na Europa; não havia, portanto, nenhum corpo de explicação teórica, e, assim, os típicos gritos empresarias de “excesso” ou de “superprodução” atingiram um estridente acorde entre muitos observadores. No caso de Sismondi, isso o levou direta e permanentemente a mergulhar num estatismo vitalício, incluindo a defesa de um abrangente estado de bem-estar social, uma profunda hostilidade ao capitalismo e ao sistema fabril, e um clamor pelo retorno a uma economia agrária simples. Na segunda edição de seu Nouveaux Principes em 1827, Sismondi, em seu prefácio, proclama a “nova economia” ou “novo liberalismo”, o qual “invoca a intervenção do governo” em vez do laissez-faire.
A Sismondi foi oferecido um professorado de economia política na Universidade de Vilna sob a força de seu primeiro livro; o Nouveaux Principes o trouxe também uma oferta da Sorbonne. Mas Sismondi preferiu permanecer em Genebra, agitando uma notável série de obras históricas (incluindo uma história das repúblicas italianas na Idade Média de 16 volumes, e uma história dos franceses de 31 volumes), e tendendo à vida de um cavalheiro fazendeiro. Em sua fazenda ele lutou contra a superprodução à sua própria e tola maneira: assegurando que a produção seria a menor possível ao escolher os mais debilitados trabalhadores para o emprego na fazenda, e deliberadamente tendo sua casa reparada por um trabalhador incompetente. Pergunta-se por que ele não foi até o fim em seu viver a vida exemplar de subprodução, e parou de trabalhar ou de produzir de uma vez por todas. Cautelosamente amargurado com a falta de reconhecimento de suas visões socialistas, Sismondi escreveu pouco antes de sua morte em 1842: “Eu deixo este mundo sem ter causado a mínima impressão, e nada será feito”. Seria isso se ele estivesse certo.
Muito mais que um impacto na época foi feito pela simultânea conversão ao subconsumismo pelo Rev. Malthus. Malthus, filho de um cavalheiro aristocrático do campo, graduado de Cambridge com honras em matemática, e foi ordenado no clero anglicano. Depois de servir como um parceiro de uma faculdade em Cambridge, Malthus se tornou um curador do campo, escrevendo seu famoso Essay on Population em 1798; Malthus era mais que o sombrio teórico da população que fez seu nome; ele era também um fervoroso economista smithiano. Em 1804, Malthus se tornou o primeiro economista acadêmico na Inglaterra; pegando uma cátedra de história e economia política no novo e pequeno East India College de Haileybury estabelecido pela Companhia das Índias Orientais para treinar futuros empregados. Não somente foi ele o primeiro, Malthus permaneceria como o único economista político acadêmico na Inglaterra pelas próximas duas décadas.
Malthus era um firme amigo de Ricardo, e seu rompimento com a tradição de Smith-Ricardo sobre o subconsumo não arruinou a amizade próxima deles. A controvérsia deu início a uma famosa correspondência entre eles, e, quando Ricardo morreu em 1823, ele deixou a Malthus um pequeno legado como um símbolo de sua camaraderie. Mais importante é o fato de que Malthus perdeu interesse em sua heresia subconsumista depois de 1824 e rapidamente reverteu para ser um líder da economia clássica smithiana. Claramente, a razão da perda de interesse de Malthus foi o fato de que a Grã-Bretanha se recuperou da depressão pós-napoleônica depois de 1823, e a primeira tempestade sobre a lei de Say havia acabado.
Apesar do fato de que o interesse de Malthus em sua teoria de subconsumo fora gerado e mantido apenas pela recessão pós-guerra, sua doutrina era, estranhamente o suficiente, não uma teoria cíclica, mas sim uma alegada tendência dos livres mercados a uma permanente depressão. Deve também ser notado que Malthus não estava preocupado com as poupanças vazando em acumulação e permanecendo não gastas. Ele era um superproducionista, bem como um subconsumista, de modo que poupanças investidas só fazem as coisas piores ao aumentar a produção: “Se […] mercadorias já são tão abundantes que uma porção adequada delas não é lucrativamente consumida, poupar capital pode apenas aumentar ainda mais a abundância de mercadorias, e diminuir ainda mais lucros já baixos”.
Enquanto Say, em resposta a críticos, não entregou, é claro, uma teoria completa para explicar a recessão geral e a “superprodução” em relação a um preço de venda lucrativo, ele ofereceu alguns insights notavelmente prescientes os quais foram completamente negligenciados por historiadores, talvez porque eles foram apresentados em seu Letters to Malthus, em vez de no seu Treatise.
Primeiro, Say usa a depressão pós-guerra nos Estados Unidos, pois Malthus afirmara, em resposta a Say, que, visto que os EUA gozaram de impostos baixos e livres mercados, sua ausência não poderia ser a razão do excesso sofrido lá. Say muito sensatamente atribui os problemas básicos nos EUA à grande prosperidade que o país gozava enquanto neutro durante a maior parte das Guerras Napoleônicas, de modo que, não perturbado pelo bloqueio naval, suas exportações e seu comércio gozaram de atípica prosperidade. Assim, com o fim das guerras em 1815, e o rápido retorno das negociações marítimas europeias em ambos os hemisférios, foi descoberto que os EUA superexpandiram seus produtos mercantis e, em contraste, subproduziram bens agrícolas ou manufaturados. Assim, em um sentido profundo, o problema não é a superprodução geral, mas uma superprodução de alguns bens e subprodução de outros. Do que os Estados Unidos estão sofrendo, então, é de subprodução desses outros bens. Os americanos poderiam ter usado a produção aumentada para trocar por mais bens oferecidos pelo ressurgente comércio marítimo europeu. Profeticamente, Say previu que “mais alguns anos e a indústria deles [dos americanos] de uma só vez formarão uma massa de produções, entre as quais irão ser achados artigos adequados para conseguir retornos lucrativos ou, pelo menos, lucros, os quais os americanos empregarão na compra de mercadorias europeias”. E então os americanos e os europeus irão cada um produzir o que quer que eles sejam melhores e mais eficientes.
Essas mercadorias as quais os europeus sucedem em fazer com o menor gasto serão levadas para a América, e aquelas às quais o solo e indústria americanos sucedem em criar a uma taxa menor que outros, será trazida de volta. A natureza da demanda determinará a natureza das produções; cada nação empregará a si mesma em preferência sobre aquelas produções as quais elas têm o maior sucesso; isto é, a qual eles produzem com o menor gasto, e trocas mutua e permanentemente vantajosas serão o resultado.
E quanto aos negócios europeus? Qual é o problema lá? Por que estão em depressão? Aqui, Say põe o dedo no coração do problema: “custos de produção multiplicados em excesso”. Em suma, o problema com a depressão europeia não era que havia uma “superprodução geral”, mas que os empreendedores licitaram muito para cima os custos de produção (preços dos fatores), de modo que os consumidores não estavam dispostos a comprar os produtos a preços altos o suficiente para cobrir custos. O problema, de fato, não era nem a produção de bens demais nem não comprar o suficiente, mas uma licitação para cima dos custos a um nível muito alto. Say continua a dizer que esses custos excessivos criaram “desordens […] na produção, distribuição e consumo de valor produzido, desordens que frequentemente trazem ao mercado quantidades maiores do que os desejos, mantendo recuados aqueles que venderiam, e cujos donos empregariam seus preços na compra do primeiro”. Em suma, a licitação para cima de custos em excesso de alguma maneira distorceu a estrutura de produção de modo a causar uma superprodução de alguns bens e uma subprodução de outros.
Depois destas passagens, impregnadas com alusões da posterior teoria austríaca dos ciclos econômicos, Say infelizmente passa pela tangente ao atribuir os custos em excesso à taxação da indústria e do mercado. Mas então ele retorna com uma notavelmente perceptiva passagem, atribuir a aparente “superabundância” à ignorância e erro massivo por parte dos empreendedores:
Essa superabundância […] depende também da ignorância de produtores ou de mercadores, da natureza e extensão dos desejos nos lugares aos quais eles enviam suas mercadorias. Em anos posteriores houve um número de perigosas especulações por causa das muitas conexões recém estabelecidas com diferentes nações. Havia em todos os lugares uma falha geral daquele cálculo que era requisito para um bom resultado […]
Em suma, o problema é centrado em uma falha geral de previsão empreendedorial e de “cálculo” levando ao que seria uma excessiva licitação para cima de custos. Infelizmente, Say não persegue esse ponto crucial para questionar por que uma falha empreendedorial tão incomum deveria ter acontecido. Mas ele continua para antecipar o importante ponto de von Hayek sobre empreendedores e produtores, empregando o mercado como uma experiência de aprendizado, para se tornarem melhores em estimar custos e demandas no mercado. Say escreve:
mas, porque muitas coisas foram mal feitas, segue-se que é impossível, com melhor instrução, fazer melhor? Eu ouso prever que, conforme as novas conexões envelhecem, e conforme desejos recíprocos são melhor apreciados, o excesso de mercadorias cessará em todos os lugares, e que uma relação mútua e lucrativa irá ser estabelecida.
Com a recuperação da Europa da depressão pós-guerra, a lei de Say — pelo menos a forma mais vulgarizada adotada pela escola clássica britânica[17] — tornou-se mais absolvida no pensamento econômico mainstream e foi desafiada apenas por resmungões e malucos que propriamente constituíam o que Keynes mais tarde chamou de “o submundo” da economia. Estes habitantes foram ressuscitados por John Maynard Keynes em seu General Theory, que, escrito durante as profundezas de outra e ainda mais intensa depressão (1936), clamou por todos eles — de Malthus até outros sub consumistas e ao odioso mercador alemão-argentino Silvio Gesell (1862-1930), que clamava ao governo para que ele forçasse todos a gastar dinheiro em um breve período de tempo depois de recebê-lo. O objetivo de Gessel, como no caso de todos os mais flagrantes manivelistas monetários, era diminuir a taxa de juros até zero, uma meta que Keynes ecoaria depois em seu clamor pela “eutanásia do rentista [detentor de títulos]”. É talvez adequado que esse Gesell, a quem Keynes chamou de “o profeta estrangeiro e injustamente negligenciado”, tenha escalado em sua dúbia carreira ao se tornar o ministro das finanças da breve revolucionária República Soviética da Bavária em 1919.
A própria doutrina de Keynes seguiu na linha de Malthus e de outros, exceto que o subgasto em geral foi substituído por subconsumo como o alegado problema econômico crítico. Keynes fez uma denúncia da lei de Say a peça central de seu sistema. Ao afirmar isso, Keynes de forma má vulgarizou e distorceu a lei, deixando de lado o papel central do ajuste de preços[18], e fez a lei dizer simplesmente que o gasto total em produção equalizará as rendas totais recebidas na produção.[19]
Desde os dias de Keynes, os economistas conseguiram ofuscar a noção bem simples de Say através de túrgidas discussões sobre o alegado “princípio” ou “identidade” de Say, feito mais obscuro por um abundante uso da matemática, uma forma de alegada explicação particularmente fora de lugar quando se lida com um teórico tão anti-matemático como J.B. Say.
1.9 A Teoria Monetária
A excelente discussão sobre a moeda, assim como a maior parte do resto de sua doutrina, fora gravemente negligenciada pelos historiadores do pensamento. Ele começa desenvolvendo uma teoria de como o dinheiro se origina e que iria posteriormente ser desenvolvida em um famoso artigo de Carl Menger e formaria a base do primeiro capítulo de todo texto sobre dinheiro e serviços bancários por gerações. O dinheiro, ele apontou, se origina do escambo. Para facilitar trocas e superar as dificuldades do escambo, as pessoas no mercado começam a usar mercadorias particularmente comercializáveis como meio de troca. Especialmente, sob o escambo, todos, para comprarem um produto, precisam achar alguém que deseje seu produto específico, e isso logo torna-se muito difícil. Assim: “o faminto cuteleiro precisa oferecer ao confeiteiro suas facas para pão; talvez o confeiteiro tenha facas o suficiente, mas quer um casaco; ele quer comprar um do alfaiate com seus pães mas o alfaiate não quer pão, mas sim a carne do açougueiro; e assim ao infinito”.
Como superar esse problema do que posteriormente chegou a ser chamado de “dupla coincidência de desejos”? Ao encontrar uma mercadoria geralmente mais comercializável a qual o vendedor tomará em troca:
Ao se livrar dessa dificuldade, o cuteleiro, vendo que ele não pode persuadir o padeiro a tomar um artigo que ele não quer, ele irá usar seus maiores empenhos para ter uma mercadoria a oferecer, a qual o confeiteiro poderá prontamente trocar novamente por qualquer coisa que ele possa precisar. Se existe na sociedade qualquer mercadoria específica que é, em requisição geral, não simplesmente um registro de utilidade inerente, mas, na verdade, um registro da prontidão que é recebido na troca pelos artigos necessários de consumo […] essa mercadoria é precisamente aquilo pelo qual o cuteleiro irá tentar barganhar suas facas; pois ele aprendeu da experiência que sua possessão irá conseguir para ele sem qualquer dificuldade, por um segundo ato de troca, pão ou qualquer artigo que ele possa querer.
Essa mercadoria é precisamente o dinheiro naquela sociedade.
Say então prossegue a uma, por agora familiar, análise de quais as mercadorias que são mais tendentes a serem escolhidas no mercado enquanto dinheiro. Uma mercadoria-dinheiro precisa ter um alto valor inerente — isto é, valor em uso pré-monetário. Precisa também ser fisicamente facilmente divisível, preservando uma cota proporcional de seu valor quando dividida; ela deve ter alto valor por unidade de peso, de modo que ela irá tanto ser escassa quanto valiosa, e facilmente portável, e ela precisa ser durável, de modo que ela possa ser retida como valor por um longo tempo. É claro, uma vez que uma mercadoria é escolhida como um meio geral de troca, seu valor se torna muito maior do que ele tinha sido no estado pré-monetário.
Say segue a tradição continental de assimilar o dinheiro a todas as outras mercadorias, i.e., o valor do dinheiro, como o de todas as outras mercadorias, é determinado pela interação de sua oferta e de sua demanda. Seu valor, seu poder de compra no mercado — se move diretamente com sua demanda e inversamente com sua oferta. Enquanto a ele faltava uma abordagem marginal, Say apontou a via para a eventual integração de uma teoria de utilidade de bens com dinheiro. Visto que o dinheiro é, também, um objeto de desejo, sua utilidade é a base para sua demanda no mercado. Say também criticou Ricardo e a escola clássica britânica por tentarem explicar o valor do dinheiro, não pela utilidade ou pela oferta e demanda, mas, como no caso de todos os outros bens, por seu custo de produção. No caso do dinheiro, apenas a oferta monetária e não a demanda era considerada importante e a oferta era supostamente governada pelo custo de minerar ouro ou prata.
Say era um homem que advogava pelo dinheiro sólido, insistente que todo o papel precisa ser instantemente convertido em espécie. O papel irresgatável expande rapidamente em quantidade e deprecia o valor da moeda, e Say apontou para a recente emissão feita pelo governo revolucionário francês dos assignats, papel inconversível que depreciou eventualmente a zero. Say era, assim, capaz de analisar um dos primeiros exemplos de inflação descontrolada.
Se o dinheiro nacional é deteriorado, ele se torna um objeto a se livrar de qualquer maneira, e a ser trocado por mercadorias. Essa foi uma das causas da prodigiosa circulação que ocorreu durante a progressiva depreciação dos assignats franceses. Todos estavam ansiosos para achar um emprego para uma moeda em papel, cujo valor depreciava a cada hora, ela foi apenas tomada a ser re-investida imediatamente, e pode-se supor que ela queimou os dedos pelos quais passou.
Say também apontou que a inflação sistematicamente fere os emprestadores para o benefício dos tomadores de empréstimo.
Say era altamente crítico do anseio smith-ricardiano de encontrar uma absoluta e invariável medida do valor do dinheiro. Ele apontou que enquanto os valores relativos do dinheiro a outros preços podem ser estimados, eles não são suscetíveis de mensuração. O valor do ouro ou da prata ou da moeda metálica não é fixo mas variável tal como é aquele de qualquer mercadoria.
Uma das esplêndidas partes da teoria monetária de Say foi sua incipiente crítica ao bimetalismo. Ele foi insistente ao dizer que a fixação governamental das razões dos pesos dos dois metais preciosos já estava fadada ao fracasso, e apenas causará perpétuas flutuações e escassez de um dos dois metais. Say clamou por padrões paralelos, isto é, para taxas de câmbio livremente flutuantes entre o ouro e a prata. Como ele apontou: “o ouro e a prata devem ser deixados a achar seu próprio nível mútuo, nas transações nas quais a humanidade pode pensar adequadamente para empregá-los”. E novamente, o valor relativo do ouro e da prata “precisa ser deixado a regular a si mesmo, pois qualquer tentativa de fixá-lo seria em vão”.
Enquanto, em um ponto, Say inconsistentemente olha com favor ao plano de Ricardo por um banco central resgatando suas notas apenas em bulião de ouro e sequer em moeda metálica, o impulso geral dessa discussão é pelo dinheiro ultra-sólido. Ao todo, Say chega a defender 100 por cento de dinheiro em espécie, pois um dinheiro ou o papel é apenas um “certificado” lastreado totalmente por ouro ou prata, “Um meio composto totalmente de ou prata ou ouro, portando um certificado, fingindo ser nada mais que seu valor intrínseco real, e consequentemente isento dos caprichos de legislação, iria providenciar tanta vantagem a todo departamento de comércio, que isso seria adotado por todas as nações. Tão insistente era Say em separar o dinheiro do governo que ele clamou pela mudança dos nomes nacionais das moedas para as reais medidas de peso de ouro ou de prata, e.g., gramas, em vez de francos. Desse modo, haveria uma mercadoria-dinheiro genuinamente mundial, e o governo não poderia impor leis de curso forçado para o papel moeda ou depreciar os padrões monetários.
Todo o atual sistema monetário, escreve Say alegremente, “iria, desse modo, cair por terra; um sistema repleto de fraude, injustiça e roubalheira, e ademais tão complicado, de modo que é raramente totalmente entendido, mesmo por aqueles que fazem disso uma profissão. Seria para sempre impossível pôr em prática uma adulteração da moeda metálica […]”. Em suma, Say conclui avidamente”, a cunhagem de dinheiro tornar-se-ia matéria de perfeita simplicidade, um mero ramo da metalurgia”.
De fato, o único papel que Say iria, inconsistentemente, reservar ao governo é um monopólio da cunhagem, visto que a cunhagem era para ser um simples “ramo da metalurgia” que o governo não poderia presumivelmente prejudicar ou destruir.
Não há uma grande quantidade de análise de serviços bancários no Tratado de Say. Mas apesar de sua aberração ao ser favorável ao plano de Ricardo por um banco central de padrão em bulião, o principal impulso de sua discussão é, mais uma vez, separar o governo da expansão de crédito bancário, seja por um sistema bancário de 100 por cento de reserva ou por serviços bancários livremente competitivos, o que iria presumivelmente aproximar essa condição. Assim, Say escreve altamente favoravelmente aos bancos de reserva de 100 por cento de Hamburgo e de Amsterdam. Bancos livres de circulação (emitindo notas bancárias) ele sustenta a serem muito melhores do que um banco central monopolista, pois “a competição obriga a cada um deles a cortar o favor público por uma rivalidade de acomodação e solidez”. E se esses bancos não são para serem baseados em 100 por cento de reserva em espécie, que Say indica que seria o melhor sistema, a competição manteria eles investindo em crédito sólido e de muito curto prazo o qual seria facilmente usado para resgatar notas bancárias.
1.10 O estado e a tributação
Em meio ao pântano de insossos escritos econômicos sobre a tributação, Jean-Baptiste Say permanece como a luz de um farol. É verdade que ele era incomumente devoto — mesmo naquela época em geral liberal — ao laissez-faire, e os direitos da propriedade privada vacilavam apenas algumas poucas vezes nesse credo. Mas, por alguma razão, a maioria dos pensadores laissez-faire e libertários na história não consideraram realmente a tributação como uma invasão dos direitos de propriedade privada. Em J.B. Say, entretanto, uma implacável hostilidade à tributação permeia sua obra; ele tendeu a fazê-la responsável por todos os males econômicos da sociedade, até mesmo, como vimos, por recessões e depressões. A discussão de Say sobre a tributação era brilhante e única, e ainda, como com quase toda sua obra, ela não recebeu atenção alguma, nem mesmo dos historiadores do pensamento econômico.
Em contraste com quase todos os outros economistas, Say tinha uma visão excepcionalmente ampla da verdadeira natureza do estado e de sua tributação. Em Say, não havia missão mística alguma para algum estado verdadeiramente voluntário, nem visão alguma do estado como uma organização semi-empreendedora benigna, oferecendo serviços a um povo agradecido por seus numerosos “benefícios”. Não; Say vê claramente que os serviços que o governo indubitavelmente oferta são para ele mesmo, e para seus favoritos, e que todo gasto governamental é, portanto, gasto em consumo pelos políticos e pela burocracia. Ele também viu que os fundos de impostos para esse gasto são extraídos por coerção às custas do povo pagador de impostos.
Como Say aponta: “O governo exige de um pagador de impostos o pagamento por um dado impostos na forma de dinheiro. Para corresponder a essa demanda, o pagador de impostos troca parte de seus produtos à sua disposição por moeda metálica com a qual ele paga para os coletores de impostos.” O dinheiro é, então, gasto para as necessidades de “consumo” do governo, de modo que “a porção de riqueza, a qual passa das mãos do pagador de impostos para aquelas do coletor de impostos, é destruída e aniquilada.” Se não fosse pelos impostos, o pagador de impostos teria gasto seu próprio dinheiro sob seu próprio consumo. Tal como ele é, o estado “goza da satisfação resultante desse consumo”.
Say continua a atacar a “noção prevalecente” de que o dinheiro dos impostos não são fardos sobre a economia, visto que eles simplesmente “retornam” à comunidade via gastos do governo. Say fica indignado:
Isso é uma falácia grosseira; mas uma que tem sido produtiva de infinitos enganos, na medida em que fora o pretexto para uma grande quantidade de gasto inescrupuloso e degradação. O valor pago ao governo pelo pagador de impostos é dado sem equivalente ou retorno: é gasto pelo governo na compra de serviço pessoal, de objetos de consumo […]
Assim, em contraste à suposição ingênua de Smith de que a tributação sempre confere um benefício proporcional, vemos J.B. Say tratando a tributação como muito perto do puro roubo. De fato, nesse ponto Say de forma reveladora cita com louvor a assimilação feita por Robert Hamilton do governo como sendo um ladrão em larga escala. Hamilton refutou o seguinte ponto: a tributação é inofensiva porque o dinheiro é recirculado na economia pelo estado. Hamilton assimilou tal imprudência à “entrada forçada de um ladrão na casa de um mercador, que deve tomar todo o seu dinheiro, e contar a ele que lhe causou nenhum ferimento, pois o dinheiro, ou parte disso, seria empregado na compra de mercadorias com as quais ele lida, sobre as quais ele receberia um lucro”. (Hamilton poderia ter adicionado um toque keynesiano: que os gastos do ladrão beneficiariam a sua vítima de forma múltipla, pelas operações benignas do multiplicador mágico). Say então comenta sobre o ponto de Hamilton que “o encorajamento comprado pelo gasto público é precisamente análogo”.[20]
Say, então, veementemente prossegue para denunciar a “falsa e perigosa conclusão” de escritores que afirmam que o consumo público (gastos do governo) aumentam a riqueza geral. Mas o dano não é realmente a escrita: “Se tais princípios fossem para ser achados apenas em livros, e nunca tivessem rastejado à prática, poder-se-ia sofrê-los sem cautela ou arrependimento a entupir as monstruosas pilhas de absurdidade impressa […]”. Infelizmente, esses preceitos foram postos em “prática pelos agentes da autoridade pública, que podem impor o erro e a absurdidade na ponta da baioneta ou na boca do canhão”. Em suma, novamente, Say vê a singularidade do governo como o exercício da força e da coerção, particularmente na maneira que ele extrai sua receita.
A tributação é, então, a imposição coercitiva de um fardo sobre os membros do povo para o benefício do governo, ou, mais precisamente, da classe governante no comando do governo. Assim, Say escreve:
A tributação é a transferência de uma porção de produtos nacionais das mãos dos indivíduos para aqueles do governo, com o propósito de corresponder o consumo ou gasto público […] Isso é praticamente um fardo imposto sobre indivíduos, seja em um caráter separado ou corporativo, pelo poder governante […] com o propósito de ofertar o consumo pode-se pensar propriamente fazer às custas deles; em suma, um imposto, em sentido literal.
Ele não está impressionado com a noção apologética, propriamente ridicularizada em anos posteriores por Schumpeter, que toda sociedade de algum modo voluntariamente paga impostos para o benefício geral, impostos são um fardo coercitivamente impostos sobre a sociedade pelo “poder governante”. Nem é Say impressionado se as taxas são votadas pela legislatura; para ele, isso não faz das taxas nem um pouco mais voluntárias: pois “de que serve […] se a taxação é imposta pelo consenso das pessoas ou de seus representantes, se existir no estado um poder, que por seus atos possa deixar as pessoas sem alternativa nenhuma senão o consenso?”
Ademais, a taxação prejudica em vez de estimular a produção, visto que ela rouba das pessoas seus recursos que elas usariam de outro modo:
A tributação priva o produtor de um produto, que ele iria de outro modo ter a opção de derivar uma gratificação pessoal disso, se consumido […] ou se convertido em lucro, se ele preferiu devotá-lo a um emprego útil […] [Portanto], a subtração de um produto precisa ter de diminuir, em vez de aumentar, a força produtiva.
Say engaja em uma instrutiva crítica de Ricardo, a qual revela a crucial diferença sobre a abordagem de equilíbrio de longo prazo deste último e a grande diferença e suas respectivas atitudes em relação à tributação. Ricardo sustentou em seu Princípios que, visto que a taxa de retorno sobre o capital é a mesma em todo ramo da indústria, a tributação não pode realmente prejudicar o capital. Pois, como Say coloca, “a extinção de um ramo pela tributação precisa ter de ser compensado pelo produto de algum outro, ruma a qual a indústria e o capital, jogado para fora de um dado emprego, irá naturalmente ser desviado”. Aqui está Ricardo, cego aos reais processos que ocorrem na economia, obstinadamente identificando uma comparação estática de estados de equilíbrio de longo prazo com o mundo real. Say responde forçosamente e incisivamente:
Eu respondo que sempre que a tributação desvia capital de um modo de emprego para outro, aniquila os lucros de todos os que são lançados para fora do emprego pela mudança, e diminui aqueles do resto da comunidade; pois a indústria pode ser presumida a ser escolhida o canal mais lucrativo. Irei mais adiante, e dizer, que um forçoso desvio da moeda ou da produção aniquila muitas fontes adicionais de lucro para a indústria. Apesar disso, faz uma vasta diferença para a prosperidade pública, se é o indivíduo ou o estado o consumidor. Um próspero e lucrativo ramo da indústria promove a criação e acumulação de novo capital, de modo que, sob a pressão da tributação, ele cessa de ser lucrativo; o capital diminui gradualmente em vez de aumentar; a riqueza e a produção diminuem em consequência, e a prosperidade se esvai, deixando para trás a pressão da infatigável tributação.
Say então adiciona uma charmosa sentença, dando um tapa praxeológico na afeição de Ricardo pelo que poderia ser chamado de seu método de matemática verbal completamente irrealístico. “Ricardo se esforçou para introduzir as desvinculantes máximas da demonstração geométrica; na ciência da economia política, não há método ao qual menos vale a pena recorrer”.
Say então prossegue a acumular desdém sobre o argumento de que os impostos podem positivamente estimular as pessoas a trabalhar mais duro e a produzir mais. Trabalhar mais duro, ele responde, para fornecer fundos para permitir que o estado seja ainda mais tirano com você! Assim:
Usar o expediente da tributação como estímulo para o aumento da produção é redobrar os esforços da comunidade, para o único propósito de multiplicar suas privações em vez de multiplicar seus gozos. Pois, se a tributação aumentada for aplicada para o suporte de uma complexa, desnecessariamente grande e ostentosa administração interna, ou de um supérfluo e desproporcional establishment militar, que pode agir como uma drenagem de riqueza individual e da flor da juventude nacional, e como um agressor perante a paz e a felicidade da vida doméstica, isso não irá estar pagando tão afetuosamente por um grave aborrecimento público, como se fosse um benefício de primeira magnitude?
O que, então, é a fronteira última, a prescrição básica de Say para a tributação? Em verdade, qual é sua prescrição para o gasto público total? Basicamente, é o que pode-se esperar de um homem que acreditava que o estado era um “grave aborrecimento público” e “um agressor perante a paz e a felicidade da vida doméstica”. De forma bem simples, “o melhor esquema da [finança] pública é gastar o mínimo possível, e a melhor tributação é sempre a menor possível”. Na próxima sentença, ele emenda a última cláusula para dizer “os melhores impostos, ou melhor, aqueles que são os menos piores […]”.
Em suma, J.B. Say, singular entre os economistas, ofereceu-nos uma teoria de gasto total do governo bem como uma teoria de tributação geral. E essa teoria era uma teoria lúcida e notável, remetendo a: que o governo é melhor (ou “menos pior”) quando gasta e tributa menos. Mas as implicações de tal doutrina são estonteantes, tenha Say entendido ou não ou às seguido à risca. Pois se, na frase jeffersoniana, de que o melhor governo é aquele que menos governa, então segue-se que o “menor menos” é zero e, portanto, como Thoreau e Benjamin R. Tucker estavam posteriormente para apontar, o melhor governo é aquele que não governa — ou, não gasta nem tributa!
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Notas
[1] Deveríamos também mencionar como proeminente no grupo ideólogo o historiador Constantin François Chasseboeuf, Comte de Volney (1757-1820).
[2] N. do T.: Do inglês “debase” vem justamente a ser “de-preciar” no sentido de retirada, redução ou decréscimo da preciosidade, daquilo que é apreciado (assim, sendo sinônimo de “degradar” e suas variações no tocante ao dinheiro, moeda etc.); é nesse sentido que se fala da “depreciação da moeda”, “depreciação do dinheiro”, “depreciação da moeda-corrente” “depreciação do dinheiro-corrente” etc. Reduz-se a tal preciosidade tanto pelo aumento de outras ligas, reduzindo assim a quantia do aquilo que é precioso — e.g., supondo uma moeda com 10 gramas totais, e que essa tenha 9 gramas de ouro e 1 grama de outras ligas, aumenta-se outras ligas mantendo os mesmos 10 gramas totais, reduzindo, assim, a quantia de ouro por moeda — quanto pela mudança nominal.
[3] Emmet Kennedy, Destutt De Tracy and the Origins of “Ideology” (Philadelphia: American Philosophical Society, 1978), p. 199
[4] Pode ser notado que o intermediário de De Tracy nas negociações com Jefferson sobre a tradução era seu amigo mútuo, o último dos fisiocratas, DuPont de Nemours, que emigrou para Wilmington, Delaware em 1815 para achar sua famosa dinastia manufatureira de pólvora.
[5] Assim, em famoso discurso em Fevereiro de 1801, Napoleão denunciou os ideólogos como as classes mais danosas de homens. Eles eram “falsos e ideólogos. Eles sempre têm lutado contra a autoridade existente”, esbravejou ele. “Sempre desconfiando da autoridade, até mesmo quando ela estava em suas mãos, eles sempre se recusaram a dar a ela a força independente para resistir às revoluções”. Veja Kennedy, op. cit., nota 2, pp. 80ff.
[6] Ou, como Emmet comentou, “a teoria política não poderia ser tolerada em um estado onde a política não era”. Ibid.
[7] Ernest Teilhac, L’Oeuvre économique de Jean-Baptiste Say (Paris: Librairie Felix Alcan, 1927), pp. 24-6. Citado e traduzido em Leonard P. Liggio, “Charles Dunoyer and French Classical Liberalism”, Journal of Libertarian Studies, 1 (Verão 1977), pp. 156-7.
[8] Por um tempo, Rivadaria também esteve trabalhando em uma tradução de Bentham.
[9] O Cours de Storch publicado na Rússia em 1815, foi reimpresso em Paris em 1823, com notas anexadas por Say. Storch acusou Say de roubo ao publicar a edição francesa sem seu consentimento, de modo que Say ripostou que Storch havia tirado o trabalho do próprio Say, de Tracy, Bentham e Sismondi.
[10] A sexta e última edição americana de 1834, editado por Biddle, incorporou mudanças no final da edição francesa de 1826.
[11] J.A. Schumpeter, History of Economic Analysis (Nova York: Oxford University Press, 1954), p. 491.
[12] Essa distinção entre certas teorias e suas aplicações por um “entendimento esclarecido” aproxima a distinção tardia de Mises distinção conceitual de teoria (“Begreiffen”) e entendimento (“Verstehen”).
[13] Oswald St Clair, A Key to Ricardo (Nova York: A.M. Kelley, 1965), pp. 295-6.
[14] Na primeira biografia anotada de economia já escrita, John R. McCulloch, junto com James Mill, o principal britânico ricardiano, notou de Say que ele era um escrito lúcido mas obstinadamenet recusou a aceitar todos os grandes avanços de Ricardo. O único insight criativo que McCulloch creditou a Say foi sua lei. John Ramsay McCulloch, The Literature of Political Economy (1845, Londres: London School of Economics, 1938), pp. 21-2.
[15] A discussão da lei de Say torna-se mais complicada pelo fato de Say, é claro, não deixar de lado alguma passagem ou sentença em particular e chamá-la de “minha lei”. O locus classicus da lei de Say é geralmente considerado o Livro I, Capítulo XV do Tratado, e de fato foi antologizado como “a” declaração da lei. Treatise, pp. 132-40. Na verdade, existem passagens importantes e relevantes espalhadas por todo o Tratado, especialmente as pp. 109-19, 287-8 e pp. 303-4.
[16] Ao deixar três importantes setenças em sua citação da sumarização de John Stuart Mill da Lei de Say, Keynes omite qualquer alusão do sistema de preços enquanto uma força equilibradora , John Maynard Keynes The General Theory of Employment, Interest and Money (Nova York: Harcourt, Brace, 1936), p. 18. Sobre esse ponto, veja Hazlitt, op. cit., nota 14, p. 23.
[17] A vulgarização tomou duas formas. Muito da ênfase de Say sobre os ajustes de preços fora omitida, como o foi qualquer alusão à falha empreendedora em fazer lances altos de custos, ou na ideia de que classes específicas de superprodução e subprodução podem ser o que marca as recessões. Outro item foi a formulação de Mill de que “mercadorias pagam por mercadorias” em vez de todas as ofertas de bens e serviços pagam uma pela outra. Isso foi um legado da ênfase de Smith de que apenas o trabalho produtivo era incorporado em objetos materiais ou mercadorias.
[18] Ao deixar três importantes frases em sua citação da sumarização de John Stuart Mill da lei de Say, Keynes omite quaisquer alusões ao sistema de preços enquanto força de equilíbrio. John Maynard Keynes, The General Theory of Employment, Interest, and Money (Nova York: Harcout, Brace, 1936), p. 18. Sobre esse ponto, veja Hazlitt, op. cit., nota 14, p. 23.
[19] Keynes também sumariza a lei de Say dizendo que sustentava que a “oferta cria sua própria demanda” — uma formulação seguida por praticamente todos os economistas desde Keynes, incluindo Schumpeter, Mark Blaug, Thomas Sowell e Axel Leijonhufvud. Como o Professor Hutt escreve, ao corrigir essa distorção: “Mas a oferta de ameixas não cria uma demanda por ameixas. E a palavra ‘cria’ é injudiciosa. O que a lei realmente afirma é que a oferta de ameixas constitui demanda pelo produto que o ofertante busca adquirir em troca das ameixas através do escambo, ou usando dinheiro em uma economia monetária.” W.H. Hutt, A Rehabilitation of Say’s Law (Athens, Ohio: Ohio University Press, 1974), p. 3 e 3n.
[20] A citação vem de uma crítica da dívida nacional britânica pelo matemático escocês Robert Hamilton (1743-1829). Essa obra foi o An Inquiry Concerning the Rise and Progress, the Redemption and Present State, and Management of the National Debt of Great Britain and Ireland (Edimburgo, 1813, 3a ed., 1818). Hamilton nasceu em Edimburgo e, depois de deixar o colégio, trabalhou como banqueiro. Mudando para uma busca acadêmica, ele se tornou reitor da Academia de Perth em 1769. Dez anos depois ele se tornou professor de matemática na Universidade de Aberdeen.