3.1 James Mill, o Lenin dos Radicais
James Mill (1771-1836) foi certamente uma das mais fascinantes figuras na história do pensamento econômico. E ainda sim, ele está entre os mais negligenciados. Mill foi talvez uma das primeiras pessoas nos tempos modernos que poderia ser considerada um verdadeiro “homem da cadre”, alguém que, no movimento Leninista do próximo século, teria sido exaltado como um “verdadeiro bolchevique”. De fato, ele foi o Lenin dos radicais, criando e forjando teorias filosóficas radicais e todo o movimento radical. Brilhante e criativo, mas insistentemente o homem Número Dois do pódio, Mill começou como um Lênin buscando seu Marx. De fato, ele simultaneamente achou dois “Marxes”, Jeremy Bentham e David Ricardo.
Ele conheceu ambos mais ou menos ao mesmo tempo, quando tinha 35 anos, Bentham em 1808 e Ricardo por volta da mesma data. Bentham tornou-se o Marx filosófico de Mill, do qual Mill adquiriu sua filosofia utilitarista e a passou adiante para Ricardo e para a economia num geral. Mas tem-se amplamente negligenciado que Mill foi criativo em seu relacionamento com Bentham, persuadindo o velho homem, antes um Tory, que esse utilitarismo Benthamista implicava em um sistema político de democracia radical. David Ricardo (1772-1823) foi um insofisticado, jovem, mas aposentado e rico corretor (na verdade vendedor de títulos) com um ávido interesse em assuntos monetários; mas Mill percebeu e desenvolveu Ricardo como seu “Marx” na economia.
Até ele ter adquirido seu posto na Companhia das Índias Orientais em 1818, com 45 anos, Mill, um empobrecido emigrante escocês e escritor autônomo em Londres, viveu parcialmente às custas de Bentham, e conseguiu se manter em bons termos com seu patrono apesar de seus severos conflitos de personalidade. Um inveterado organizador dos outros, bem como dele mesmo, Mill tentou desesperadamente canalizar os prolíficos, mas aleatórios, rascunhos de Bentham em um padrão coerente. Bentham, enquanto isso, escreveu privadamente a amigos se queixando da impertinente interferência desse pretensioso jovem. A publicação por parte de Mill de seu bem sucedido History of India em 1818 o rendeu emprego imediato em um importante posto na Companhia das Índias Orientais, onde ele ascendeu à liderança do gabinete em 1830 e continuou lá até sua morte.
Por outro lado, David Ricardo, autodidata e desconfiado, agiu mal como um Grande Homem. Ao contrário, a sua admiração por Mill, o seu mentor intelectual e em parte seu mentor em teoria econômica, o permitia ser moldado e dominado por Mill. E assim Mill felizmente intimidou, convenceu, estimulou e induziu seu bom amigo a se tornar o “Marx”, o grande economista que Mill sentiu por quaisquer razões que ele mesmo não poderia ou não deveria ser. Ele importunou Ricardo a escrever e a terminar sua obra mestra, The Principles of Political Economy and Taxation (Princípios de Economia Política e Tributação) (1817), e então a entrar no Parlamento para exercer um papel político ativo como líder dos radicais. Mill ficou satisfeito em se tornar o principal e mais profundamente devoto Ricardiano na economia.
Como um “Lenin”, então, James Mill teve um papel intelectual muito mais ativo do qual o real Lenin jamais teve. Ele não só integra a obra de dois “Marxes”; ele contribuiu substancialmente ao próprio sistema. De fato, em conversas sem fim, Mill instruiu Ricardo em todos os tipos de tópicos, e Mill observou, editou, e indubitavelmente acrescentou a muitos rascunhos do Principles de Ricardo. Nós já vimos, por exemplo, que foi Mill quem primeiro absorveu e adaptou a lei de Say e a passou adiante para seu pupilo Ricardo. Pesquisas recentes indicam que James Mill exerceu um papel muito mais liderante no desenvolvimento da Magnum opus de Ricardo do que se tinha acreditado — por exemplo, em chegar a adotar a lei das vantagens comparativas.
A posição de Mill é certamente única na história do pensamento social. Muito frequentemente teóricos e escritores ficam ansiosos para proclamarem sua alegada originalidade aos céus (Adam Smith sendo um caso agravado, embora não atípico). Mas qual outro exemplo há de um homem muito mais original ou criativo do que ele jamais fez questão de reivindicar ser; quantos muitos outros insistiram em parecerem ser o mero Número Dois do pódio quando, de diversas maneiras, eles eram o Número Um? É possível, deve-se notar, que a explicação para esse curioso fato é simplesmente mais material-econômica do que profunda-psicológica. Mill, filho de um sapateiro escocês, era um escocês pobre sem emprego estável tentando construir seu caminho e constituir uma família em Londres. Bentham era um rico aristocrata que funcionou como o patrono de Mill; Ricardo era um rico e aposentado corretor. É certamente possível que a postura de Mill como devoto discípulo fosse para ele a função de um pobre homem mantendo seus ricos mentores-discípulos felizes, bem como maximizando a recepção do povo para suas doutrinas comuns.
Como um preeminente homem da cadre, Mill possuiu todas as forças e fraquezas desse tipo moderno. Sem graça, eternamente didata, mas carismático e cheio de prodigiosa energia e determinação, Mill teve tempo o suficiente para continuar em um importante emprego em tempo integral na Casa das Índias Orientais enquanto, ainda assim, funcionava como um comprometido ativista-acadêmico em diversos níveis. Como acadêmico e escritor, Mill era meticuloso e lúcido, comprometido fortemente com alguns vastos e primordiais axiomas: utilitarismo, democracia e laissez-faire. Em um nível acadêmico, ele escreveu importantes tomos sobre a história da Índia Britânica, sobre economia, sobre ciência política e sobre psicologia empirista. Ele também escreveu numerosas revisões e artigos acadêmicos. Mas fortemente comprometido, como Marx seria, a mudar o mundo como ele bem entender, Mill também escreveu incontáveis artigos para jornais, ensaios e artigos estratégicos e táticos, bem como incansavelmente organizou os filósofos radicais, e os manobrou no Parlamento e na vida política. Com tudo isso, ele tinha energia para pregar e instruir todos ao redor dele, incluindo sua famosa e falha tentativa de fazer lavagem cerebral em seu jovem filho John. Mas precisa-se notar que a ferrenha e fervorosa educação de John não era simplesmente excentricidade de um pai e de um intelectual vitoriano; a educação de John Stuart foi designada para prepará-lo para a presumivelmente vital e histórico-mundial função do sucessor de James como um líder da cadre radical, como o novo Lenin. Havia um método na loucura.
O espírito evangélico calvinista de James Mill foi tecido por sua função vitalícia na Cadre. Mill foi treinado na Escócia para ser um pregador presbiteriano. Ele perdeu a sua fé cristã durante os seus dias como um homem literário em Londres, tornou-se ateu, mas, como no caso de muitos posteriores intelectuais ateus e agnósticos evangelicamente treinados, ele reteve nefasto, puritano e cruzadístico hábito da mente do prototípico agitador calvinista. Como o Professor Thomas perceptivelmente escreve:
Esse é o porquê de Mill, um cético em sua vida tardia, sempre ter se dado bem com evangélicos dissidentes [da Igreja Anglicana] … Ele pode ter chegado a rejeitar a crença em Deus, mas alguma forma de zelo evangélico permaneceu essencial a ele. O ceticismo no sentido de não-comprometimento, indecisão entre uma crença e outra, horrorizava ele. Talvez isso explique sua aversão de longa data a Hume. Antes de ele perder a sua fé, ele condenou Hume por sua infidelidade; mas mesmo quando ele compartilhou dessa infidelidade, ele continuou a subestima-lo. Um plácido ceticismo o qual pareceu sustentar todo o status quo não era uma mentalidade que Mill entendesse.[1]
Ou talvez Mill entendesse Hume bem demais e, portanto, o insultou.
O calvinismo de Mill era evidente em sua convicção de que a razão deve manter duro controle sobre as paixões – uma convicção que dificilmente se encaixava bem com o hedonismo Benthamista. Os homens da cadre são notórios puritanos, e Mill puritanamente desgostava e desconfiava do drama e da arte. O ator, ele acusou, era o “escravo dos mais irregulares apetites e paixões de sua espécie”, e Mill era dificilmente o primeiro a se deleitar em beleza sensual para proveito próprio. Da pintura e da escultura Mill fazia escárnio como as mais baixas das artes, existindo apenas para gratificar o frívolo amor da ostentação. Quando Mill passou a crer, em uma maneira tipicamente utilitarista Benthamista, que a ação humana é apenas “racional” se feita de uma maneira prudente e calculada, ele demonstrou em seu History of British India (História da Índia Britânica) uma completa incapacidade de entender qualquer um motivado por ascetismo místico religioso ou por uma pulsão pela glória militar ou auto sacrifício.
Se Emil Kauder está certo, e o Calvinismo Escocês explica a introdução feita por Smith da teoria do valor-trabalho na economia, então o Calvinismo Escocês explica ainda mais a forçosa e determinada cruzada pela teoria do valor-trabalho feita por Ricardo e seu desempenho de um papel central no sistema Ricardiano. Isso também pode explicar a devota adoção à teoria do valor-trabalho pelo colega e aluno de Dugald Stewart, John R. McCulloch.
O ponto alto, e exemplo de sucesso particular de Mill, o homem da cadre, exercendo o seu trabalho foi o seu papel em dirigir pelo Parlamento a grande Reform Bill (uma série de propostas de reformas) de 1832. A peça central da teoria política de Mill foi sua devoção à democracia e ao sufrágio universal; mas ele estava sensatamente querendo estabelece-la, temporariamente, para a Reform Bill, a qual decisivamente expandiu o sufrágio britânico da aristocracia arbitrária para uma grande base da classe média. Mill era o “Lenin” por debaixo dos panos e mestre manipulador da agitação pela Reform Bill.
A sua estratégia era jogar com o medo do tímido e centrista governo Whig de que as massas iriam entrar em fúria com uma violenta revolução caso a emenda não passasse. Mill e seus radicais sabiam muito bem que nenhuma revolução estava no horizonte; mas Mill, através de amigos e aliados estabelecidos estrategicamente na imprensa, pôde orquestrar uma deliberada campanha de fraude na imprensa que enganou e pôs em pânico os Whigs para que eles passassem a emenda.
A campanha de mentiras foi engajada por importantes setores da imprensa: pelo Examiner, um periódico semanal editado e propriedade do Benthamista radical Albany Fonblanque: pelo amplamente lido Morning Chronicle, um periódico jornal diário Whig editado por um antigo amigo de Mill, John Black, que fez do jornal um veículo para os utilitaristas radicais; e pelo Spectator, editado pelo Benthamista S. Rintoul. O Times era também amigável com os radicais a essa altura, e o principal radical de Birmingham, Joseph Parkes, era dono e editor do Birmingham Journal. Não somente isso; Parkes foi capaz de ter suas mentirosas histórias sobre a alegadamente revolucionária opinião pública de Birmingham reimpressas como registros factuais na Morning Chronicle e no Times. Tão bem conseguiu Mill cumprir sua tarefa que mais tarde historiadores foram pegos nessa também.
Sempre unificador de teoria e práxis, James Mill pavimentou a via para essa campanha recheada de fraude ao escrever uma justificação da mentira por um fim que valha a pena. Enquanto a verdade era importante, Mill concedeu, havia circunstâncias importantes “nas quais outro homem não é intitulado à verdade”. Os homens, ele escreveu, não deveriam ter a verdade “quando eles fazem mau uso dela”. Sempre o utilitarista! É claro, como de costume, foi o utilitarista que estava para decidir se o uso de outro homem seria “bom” ou “mau”.
Mill então escalou sua defesa da mentira na política. Na política, ele reivindicou que disseminar “informações erradas” (ou, como ele diria agora, “desinformação”) não é “um ramo da moralidade, mas ao contrário, um ato de mérito […] quando é condutivo à prevenção do mau governo.” “Em nenhum caso é qualquer homem menos intitulado à informação correta do que quando, ao ouvi-la, a empregaria para a perpetuação do mal governo”.
Uma década e meia depois, John Arthur Roebuck, um dos principais ajudantes de Mill na campanha, e posteriormente um membro do Parlamento radical e historiador da pulsão pela reforma, admitiu que
para atingir o nosso fim, muito do que foi dito ninguém realmente acreditava; muito do que foi feito ninguém gostaria de ter feito[…] frequentemente, quando não havia perigo, o clamor de alarme soava para manter a Câmara dos Lordes e a aristocracia geralmente no que se era definido como um estado de total terror.
Em contraste com os “barulhentos oradores que pareceram importantes” na campanha, Roebuck clamou novamente, haviam os “de cabeça fria, aposentados, sagazes e determinados homens […] que esticaram as cordas nesse estranho jogo de marionetes.” “Uma ou mais mentes governantes, desconhecidas para o povo”, manipularam e armaram o cenário de todo o movimento. Eles “usaram os outros como seus instrumentos […].” E o mais cabeça-fria, sagaz e determinado era o mestre de marionetes, James Mill.
Embora ele trabalhasse como um oficial superior para a Companhia das Índias Orientais, e não pudesse dirigir o parlamento ele mesmo, James Mill era o inquestionável líder da cadre do grupo de 10-20 filósofos radicais que gozaram de um breve dia ao sol no Parlamento durante a década de 1830. Mill continuou a ser o líder deles até morrer em 1836, e então os outros tentaram continuar em seu espírito. Enquanto os filósofos radicais proclamaram a eles mesmos como Benthamistas, o envelhecido Bentham tinha pouco a fazer pessoalmente com esse grupo Milliano. A maioria dos filósofos radicais parlamentares foram convertidos pessoalmente por Mill, começando com Ricardo mais de uma década antes, e também incluindo seu filho John Stuart, que, por um tempo, sucedeu seu pai como líder radical. Mill, junto com Ricardo, também converteu o líder oficial dos radicais no Parlamento, o banqueiro e posterior historiador clássico George Grote (1794-1871). Grote, um autodidata e homem mal humorado, logo se tornou uma ferramenta abjeta de James Mill, a quem ele grandemente admirou como “um muito profundo homem pensador”. Como o discípulo mais fiel de Mill, Grote, nas palavras do professor Joseph Hamburger, era “tão inoculado, como se precisava que ele fosse” que para ele todos os ditos de Mill “assumiram a força e a sanção de deveres”.
O círculo Milliano também tinham uma fervorosa mulher da Cadre, Mrs Harriet Lewin Grote (1792-1873), uma imperiosa e assertiva militante cujo lar se tornou o salão e centro social para os radicais parlamentares. Ela era amplamente conhecida como a “Rainha dos Radicais”, da qual Cobden escreveu que “se ela tivesse sido um homem, ela teria sido a líder do partido”. Harriet testificou a eloquência de Mill e o efeito carismático sobre seus jovens discípulos, a maioria dos quais foram trazidos ao círculo Milliano por seu filho, John Stuart. Um testemunho típico foi aquele de William Ellis, um jovem amigo de John, que escreveu em anos posteriores de sua experiência de James Mill: “Ele fez uma completa mudança em mim. Ele me ensinou como pensar e pelo que viver”.
3.2 Mill e a análise de classe libertária
A teoria do conflito de classes como uma chave para a história política não começou com Karl Marx. Ela começou, como veremos mais abaixo, com dois dos principais libertários franceses inspirados por J.B. Say, Charles Comte (o genro de Say), e Charles Dunoyer, na década de 1810 depois da restauração da monarquia Bourbon. Em contraste com a posterior degeneração marxista da teoria de classes, a visão Comte-Dunoyer sustentou que a inerente luta de classes focava em quais classes conseguiram ganhar controle do aparato estatal. A classe governante é qualquer grupo que tenha conseguido apoderar-se do poder do estado; os governados são aqueles grupos que são tributados e regulados por aqueles no comando. O interesse de classes, então, é definido como a relação de um grupo ao estado.
O governo do estado, com sua tributação e exercício do poder, controles, e fornecimento de subsídios e privilégios, é o instrumento que cria conflitos entre os governantes e os governados. O que temos, então, é uma teoria de conflito de classes de “duas classes” baseadas em se um grupo governa ou é governado pelo estado. Sob o livre mercado, por outro lado, não há conflito de classes, mas uma harmonia de interesses entre todos os indivíduos na sociedade cooperando através da produção e da troca.
James Mill desenvolveu uma semelhante teoria nas décadas de 1820 e 1830. Não é sabido se ele chegou a isso independentemente ou se foi influenciado pelos libertários franceses; é claro, entretanto, que a análise de Mill era desprovida das ricas aplicações à história da Europa Ocidental que Comte, Dunoyer e o seu jovem associado, o historiador Augustin Thierry, elaboraram. Todo governo, apontou Mill, era dirigido pela classe governante, os Poucos que dominavam e exploravam os governados, os Muitos. Visto que todos os grupos tendem a agir por seus interesses egoístas, ele notou, é absurdo esperar que o seleto grupo governante aja altruisticamente pelo “bem público”. Tal como todos os outros, eles irão usar as suas oportunidades para seu próprio ganho, o que significa saquear os muitos e favorecer seus próprios interesses ou os de seus aliados enquanto contra aqueles do povo. Assim, o habitual uso de Mill do termo “sinistros” interesses enquanto contra o bem do público. Para Mill e os radicais devemos notar que o bem público significava especificamente governo-laissez-faire confinado às mínimas funções da polícia, defesa e da administração da justiça.
Assim, Mill, o proeminente teórico político dos radicais, remonta aos libertários Commonwealthmen do século XVIII ao enfatizar a necessidade de sempre tratar o governo com suspeita e de fornecer controle para suprimir o poder do estado. Mill concordou com Bentham que “se não detida, uma elite governante seria predatória” A busca de interesses sinistros leva à “corrupção” endêmica na política, às sinecuras, “locais” burocráticos e subsídios. Mill lamentou: “Pense no fim [do governo] como ele realmente é, em sua própria natureza. Pense adiante na facilidade dos meios — justiça, polícia, e defesa de invasores estrangeiros. E então pense na opressão praticada sob as pessoas da Inglaterra sob o pretexto de fornecê-las”.
Nunca uma teoria libertária de classe-governante foi posta mais claramente ou mais vigorosamente do que nas palavras de Mill: há duas classes, Mill declarou, “A primeira classe, aqueles que pilham, são o número menor. Eles são os poucos que governam. A segunda classe, aqueles que são pilhados, são o maior número. Eles são os muitos subalternos” ou, como o Professor Hamburger sumariza a posição de Mill: “A política era uma luta entre duas classes – os avarentos governantes e suas intencionadas vítimas.”[2]
O grande enigma do governo, concluiu Mill, era como eliminar essa pilhagem: tomar o poder “pelo qual a classe que pilha sucede em continuar sua vocação, tem sempre sido o grande problema do governo”.
Os “Muitos súditos” que Mill acuradamente usou o termo “o povo”, e foi provavelmente Mill que inaugurou o tipo de análise que colocou “o povo” como uma classe governada em oposição aos “interesses especiais”. Como, então, é para ser freado o poder da classe governante? Mill pensou que viu a resposta: “As pessoas precisam apontar os vigias. Quem vigia os vigias? As pessoas, elas mesmas. Não há outro recurso; e sem essa última salvaguarda, os Poucos governantes irão ser para sempre o flagelo e a opressão dos Muitos súditos.”
Mas como devem as mesmas pessoas serem os vigias? A esse antigo problema Mill providenciou o que é agora uma resposta padrão no mundo ocidental, mas ainda não muito satisfatória: por todas as pessoas elegendo representantes para vigiar.
Diferentemente dos analistas libertários franceses, James Mill não era interessado na história e no desenvolvimento do poder do estado; ele estava interessado apenas no aqui e agora. E no aqui e agora da Inglaterra de seus dias, os Poucos governantes eram a aristocracia, que governavam por meio de um sufrágio altamente limitado e controlavam “distritos deteriorados”, elegendo representantes para o Parlamento. A aristocracia era a classe dominante; o governo da Inglaterra, acusou Mill, era “uma máquina aristocrática, exercitada pela aristocracia por seu próprio benefício”. O filho de Mill e fervoroso discípulo (naquela época), John Stuart, argumentou de maneira Milliana em sociedades de debate em Londres que a Inglaterra não gozou de um “governo misto”, visto que uma grande maioria da Câmara dos Lordes foi escolhida por “200 famílias”. Estas poucas famílias aristocráticas, “portanto, possuem absoluto controle sobre o governo […] e se um governo controlado por 200 famílias não é uma aristocracia, então tal coisa como uma aristocracia não pode ser dita como existente”. E, desde que tal governo é controlado e dirigido por poucos, ele é, portanto, “conduzido totalmente para o benefício de poucos”.
É essa a análise que levou James Mill a pôr no centro de sua formidável atividade política a conquista do sufrágio universal das pessoas em frequentes eleições por voto secreto. Esse era o objetivo de longo prazo de Mill, embora ele quisesse estabelece-la temporariamente – no que os marxistas iriam posteriormente chamar de uma “demanda de transição” – para a Reform Bill de 1832, o qual ampliou grandemente o sufrágio para a classe média. Para Mill, a extensão da democracia era mais importante que o laissez-faire, pois, para Mill, o processo de destronar a classe aristocrática era mais fundamental, visto que o laissez-faire era uma das felizes consequências esperadas a naturalmente fluir da substituição da aristocracia pelo governo de todas as pessoas. (No contexto moderno americano, a posição de Mill iria aptamente ser chamada de “populismo de direita”).
Colocar a democracia em sua demanda central levou os Milianos radicais na década de 1840 a tropeçar e a perder significância política ao se recusarem a se aliarem eles mesmos com a Anti-Corn Law League, apesar de seu acordo mútuo com suas livres negociações e com o laissez-faire. Pois os Millianos sentiram que as livres negociações estavam muito longe de um movimento de classe-média e desviando de uma primordial concentração na reforma democrática.
Garantido que as pessoas iriam deslocar o governo aristocrático, teria Mill qualquer razão para pensar que as pessoas iriam então exercer sua vontade sob o nome do laissez-faire? Sim, e aqui seu raciocínio foi ingênuo: enquanto a classe governante tinha os frutos de seu governo explorador em comum, as pessoas eram um tipo de classe diferente: seu único interesse em comum era se livrar do governo de privilégios especiais. À parte disso, a massa do povo não teria um interesse comum de classe que eles poderiam sequer ativamente prosseguir por meio do estado. Ademais, esse interesse em eliminar o privilégio especial é o interesse comum de todos, e é, portanto, o “interesse público” enquanto oposto aos especiais ou sinistros interesses dos Poucos. O interesse desse povo coincide com o interesse universal, com o laissez faire e com a liberdade para todos.
Mas como então explicar que ninguém pode afirmar que as massas sempre defenderam o laissez-faire – e que as massas tem todas, muito frequentemente, apoiado muito lealmente o governo explorador dos Poucos? Claramente, porque as pessoas, nesse complexo campo do governo e da política pública, teriam sofrido do que os marxistas posteriormente iriam chamar de “falsa consciência”, uma ignorância de onde seus interesses verdadeiramente estão. Foi então designado à vanguarda intelectual, para Mill e seus filósofos radicais, para educar e organizar as massas de modo que sua consciência iria se tornar correta e eles iriam então exercer a irresistível força para trazer à tona seu próprio governo democrático e instalar o laissez-faire. Mesmo que possamos aceitar esse argumento geral, os radicais Millianos foram, infelizmente, altamente superotimistas sobre o período de tempo para tal instigação de consciência, e contratempos políticos no início da década de 1840 levaram à sua desilusão nas políticas radicais e à rápida desintegração do movimento radical. Curiosamente o bastante, seus líderes, tais como John Stuart Mill e Harriet Grote, enquanto proclamavam seu exausto abandono da ação política ou do entusiasmo político, em realidade gravitavam com estonteante rapidez rumo ao aconchegante centro Whig do qual anteriormente faziam escárnio. A sua proclamada perda de interesse na política era, na realidade, uma máscara para a perda de interesse na política radical.
3.3 Mill e o sistema ricardiano
Muito tem sido recentemente revelado sobre o papel formativo e moldador de James Mill sobre o sistema de seu amigo Ricardo. O quanto do Ricardianismo é realmente criação de Mill? Aparentemente, uma boa parte. Uma coisa é certa: foi Mill que pegou de J.B. Say a grande lei de Say e converteu Ricardo a essa posição. Mill desenvolveu a lei de Say em seu importante livro inicial, Commerce Defended (Comércio Defendido) (1808), escrito pouco antes de ele conhecer Ricardo. Ricardo fielmente seguiu a lei de Say, e, enquanto no Parlamento, constantemente opôs-se aos gastos em obras públicas durante o depressivo ano de 1819. E vimos que Mill e Ricardo juntos conseguiram matar a publicação do True Alarm “pré-keynesiano” de Bentham em 1811.
Ao expor a lei de Say, Mill estava continuando e desenvolvendo os importantes insights Turgot-Smith sobre poupança e investimento. Mas boa parte do resto do legado econômico de Mill foi um desastre. Muito disso foi o coração e a alma do sistema Ricardiano. Assim, em uma obra inicial esquecida, The Impolicy of a Bounty on the Exportation of Grain (A Impolidez de uma Recompensa sobre a Exportação de Grãos) (1804), Mill desenvolve a essência do ricardianismo, do conteúdo atual, à caracteristicamente desastrosa metodologia de brutal e irrealista simplificação excessiva e à uma holística concentração de frágeis macro-agregados não relacionados às ações do indivíduo, seja consumidor ou homem de negócios, no mundo real. Mill agita pedaços de alegadas interrelações entre esses macro-agregados, todos parecendo ser sobre o mundo real, mas, na verdade, relevantes apenas para suposições profundamente falaciosas sobre a fantasiosa terra do equilíbrio de longo prazo. A metodologia é essencialmente “matemática verbal”, visto que as afirmações são apenas a agitação implícita do que são realmente relações matemáticas, mas nunca são admitidas como tais. Esse uso da língua vernácula adiciona um caráter de pseudo-realismo que a matemática nunca pode conferir. Um uso aberto da matemática poderia ter ao menos revelado as suposições falaciosas do modelo.
A preocupação exclusiva de Ricardo com o equilíbrio de longo prazo pode ser vista na sua própria declaração do método: “Eu coloquei estes imediatos e temporários efeitos de lado, e fixei toda a minha atenção no estado permanente de coisas o qual irá resultar deles.”
Simplificação excessiva irrealista, composta em si mesma, é o “Vício Ricardiano”. Ambas as metodologias Ricardianas e a metodologia Say-Austríaca foram chamadas terminologicamente de “dedutivas”, mas elas são, em verdade, polos opostos. A metodologia Austríaca (“praxeologia”) se mantém perto, em seus axiomas, aos universalmente realistas insights comuns da essência da ação humana, e deduz verdades apenas de tais proposições ou axiomas evidentemente verdadeiros. A metodologia Ricardiana introduz numerosas suposições falsas, compostas e multiplicadas, nos axiomas iniciais, de modo que as deduções feitas dessas suposições – seja verbal no caso de Ricardo e matemática no caso dos Walrasianos modernos, ou uma mistura de ambos como no caso dos keynesianos – são todas necessariamente falsas, inúteis e enganadoras.
Assim, em seu ensaio sobre uma recompensa nos grãos, James Mill introduz o tipicamente “Ricardiano” erro de mesclar todas as mercadorias agrícolas em uma só, trigo, e afirmando que o trigo é a mercadoria básica. Com o trigo agora adotado como um substituto para toda comida, Mill faz a abrangente afirmação de que o princípio mais científico da economia política é “que o preço monetário do trigo regula o preço monetário de todo o resto.” Por quê? Aqui, Mill introduz uma típica e brutalmente drástica variante do Malthusianismo. Não apenas diz que há uma tendência a longo prazo da população pressionar os meios de subsistência de modo que taxas salariais sejam empurradas para baixo do custo de subsistência. Mas mais, em uma confusão tipicamente Ricardiana do não existente equilíbrio de longo prazo com a constante e cotidiana realidade, diz que taxas salariais são sempre estabelecidas pelo preço do trigo (um substituto para a comida, ou subsistência, em geral). Mill estabelece a proposição de que taxas salariais são sempre estabelecidas diretamente pelo preço do trigo enquanto “tão obviamente necessário que não precisamos gastar mais tempo provando isso”. Isso explica como ele conclui, portanto, que a taxa salarial é “inteiramente regulada pelo preço monetário do trigo”.
A versão extrema do Malthusianismo de Mill pode ser visto em sua afirmação de que “ninguém […] irá hesitar em conceder […] que a tendência da espécie de multiplicar é muito maior que a rapidez com a qual há qualquer chance que os frutos da terra serão multiplicados”. Mill vai ainda mais à frente na selvageria extrema a ponto de dizer que “devemos aumentar o trigo o mais rápido que pudermos, bocas estão produzindo ainda mais rápido para que possam come-lo. A população está invariavelmente pressionando de perto o calcanhar da subsistência; e em qualquer quantidade que a comida é produzida, uma demanda irá sempre ser produzida maior do que a oferta”.
Outra noção infeliz contribuída a Ricardo por Mill em seu ensaio de 1804 é um primordial foco no comportamento de algumas macro-cotas agregadas. O trabalho foi assumido como sendo de qualidade uniforme; portanto, todos os “salários” foram diminuídos ao nível de subsistência pelo preço do trigo. Há apenas três cotas macro-distributivas, “salários”, “lucros” e “aluguéis”, no esquema Ricardiano. Não há discussão alguma sequer de preços individuais ou taxas salariais — a preocupação adequada da análise econômica — e nenhuma alusão à existência de ou da necessidade pelo empreendedor. A brilhante análise de Say do papel central do empreendedor é completamente esquecida; não há papel para um empreendedor tomador de riscos se tudo está congelado em algumas poucas partes agregativas no equilíbrio de longo prazo, onde a mudança é pequena ou não-existente, e o conhecimento é perfeito em vez de duvidoso. “Lucros”, portanto, são os retornos líquidos agregados recebidos por capitalistas, os quais poderiam ser muito bem chamados de “juros”, ou “lucros a longo prazo”.
Se salários, lucros e aluguéis exaurem o produto, então, tautologicamente e praticamente por definição, se um dos três aumenta e o total está congelado, um ou ambas das outras cotas precisam cair. Então, está implícita a suposição Ricardiana do inerente conflito de classes entre recebedores e os três blocos distributivos. No sistema Mill-Ricardiano, os salários são fixados pelo preço do trigo, ou pelo preço da comida. O custo da comida, por sua vez, está sempre aumentando por causa da oferta fixa de terra e da alegada necessidade Malthusiana de se mover para terras cada vez menos produtivas enquanto a população aumenta e pressiona a oferta de comida. Assim: aluguéis estão sempre lentamente, mas inexoravelmente aumentando, e as taxas salariais monetárias estão sempre aumentando para manter o salário real a nível de subsistência. Assim — abracadabra! — “lucros” agregados precisam estar sempre caindo.
A escaldante crítica de Schumpeter do sistema Ricardiano é altamente perceptivo e perfeitamente apto:
[…] ele [Ricardo] cortou o sistema geral [de interdependência econômica no mercado] aos pedaços, picotou quantas amplas partes disso em quantas possíveis e as pôs em um armazém congelado – de modo que muitas coisas enquanto possíveis deveriam ser congeladas e “dadas”. Ele então pilhou uma suposição simplificante sobre a outra até que, tendo realmente estabelecido tudo a partir dessas suposições, ele foi deixado com apenas poucas variáveis agregativas entre as quais, dadas essas suposições, ele estabeleceu relações simples de via única de modo que, no fim, os resultados desejados emergiram quase como tautologias. Por exemplo, uma famosa teoria Ricardiana é a de que os lucros dependem do preço do trigo. E sob essas suposições implícitas, e no sentido particular no qual os termos da proposição estão ali para serem entendidos, isto não é apenas verdade, mas é, inegavelmente, de fato trivialmente, assim. Lucros não poderiam depender sobre qualquer outra coisa, visto que todo o resto é “dado”, isto é, congelado. É uma excelente teoria que nunca pode ser refutada e da qual nada falta, com exceção do sentido.[3]
3.4 Ricardo e o sistema Ricardiano, I: a distribuição de macro-renda
Enquanto muito do sistema Ricardiano se mostrou ser criação de James Mill, talvez a maior parte dele seja devida ao próprio Ricardo, que precisa, é claro, em qualquer caso, portar maior responsabilidade por sua própria obra. Para continuar a metáfora Marxiana, de muitos modos o relacionamento Mill-Ricardo pode ser mais de uma conexão Marx-Engels do que uma conexão Lenin-Marx.
Ricardo nasceu em Londres, em uma próspera família de judeus hispano-portugueses que se estabeleceram na Holanda depois de terem sido expulsos da Espanha no fim do século XVI. O pai de Ricardo se mudou para Londres, onde ele prosperou como um corretor e teve 17 filhos, do qual David era o terceiro. Quando tinha 11 anos, David foi enviado por seu pai para Amsterdam para estudar na escola judia ortodoxa por dois anos. Quando tinha 14 anos, com apenas uma educação primária, Ricardo começou sua carreira nos negócios, empregado pela casa de “corretagem” de seu pai. Deve-se enfatizar que, com exceção do quase-governamental Banco da Inglaterra, não haviam corporações ou ações corporativas nessa era. Títulos governamentais foram então chamados de “ações” e então “acionistas” seriam o que hoje é chamado de vendedores de títulos.
Sete anos depois, entretanto, David se casou com uma garota Quaker (quacre), e deixou a fé judaica, episódio no qual ele desonrou seus parentes. Eventualmente, ele se tornou um Quaker confirmado. O banco de Londres, já impressionado com o jovem Ricardo, emprestou a ele dinheiro o suficiente para se estabelecer em seu próprio negócio como acionista. Dentro de poucos anos, Ricardo fez uma enorme quantidade de dinheiro no negócio de títulos, até ele ficar pronto para se aposentar da área no início de seus 40 anos. Em 1799, com 27 anos, Ricardo, entediado enquanto vagava por aí em um saudável resort, foi sorteado, ganhando assim uma cópia de The Wealth of Nations (A Riqueza das Nações), e devorou o livro, tornando-se, assim como muitos outros daquela época, um dedicado Smithiano.
Como Schumpeter aponta, os Principles de Ricardo podem apenas ser entendidos como um diálogo com, e em reação ao The Wealth of Nations. A curva lógica de Ricardo foi indignada pela básica confusão da mente de Smith, o caos que J.B. Say também viu no cânone Smithiano, e ele, tal como Say antes dele, se estabeleceu para clarificar o sistema Smithiano. Infelizmente, e em profundo contraste a Say, Ricardo simplificou ao tomar todos os mais odiosos erros em Smith, jogando fora todas as qualificações e contradições, construindo, então, seu sistema sobre o que seria deixado. O pior de Smith foi exaltado e intensificado. Em seu método básico, todos ou quase todos os pontos históricos e empíricos de Smith foram jogados fora.
Isso não era mal em si mesmo, mas deixou um sistema dedutivo construído sobre profundas falácias e incorretos modelos macro. Em adição, enquanto o sistema teórico de Ricardo pode ter sido brutalmente super simplificado em relação a Smith, seu estilo de escrita foi extraordinariamente mal formada e obtusa. A metodologia da matemática verbal é quase sempre fadada a ser dificultosa e obscurantista, com blocos de palavras cuspindo palavras de relações matemáticas de uma maneira altamente densa. Mas sobre isso, Ricardo, em contraste a seu mentor, Mill, foi indubitavelmente um dos piores e mais túrgidos estilistas literários na história do pensamento econômico.
Em contraste a Adam Smith, para quem o produto, ou a riqueza, das nações era de suprema importância, Ricardo negligenciou o produto total para colocar uma ênfase primordial em duas alegadas distribuições de um dado produto em macro-classes. Especificamente, nas três macro-classes de donos de terra, trabalhadores e capitalistas. Assim, em uma carta a Malthus, que nessa questão pelo menos era um Smithiano ortodoxo, Ricardo fez a distinção mais clara: “A economia política, você pensa, é uma inquirição para a natureza e causas da riqueza; eu penso que isso deveria ser preferivelmente chamado de uma inquirição às leis às quais determinam a divisão da produção da indústria entre as classes que concorrem em sua formação.”
Desde quando o empreendedorismo não poderia existir no mundo de equilíbrio de longo prazo, ele foi deixado com a clássica tríade de fatores. Sua análise era estritamente holística, em termos de alegadamente homogênea, mas atualmente variada e com diversas classes. Ricardo evitou qualquer ênfase à la Say no indivíduo, seja ele o consumidor, trabalhador, produtor ou homem de negócios.
No mundo da matemática verbal de Ricardo havia, como Schumpeter havia astutamente apontado, quatro variáveis: a produtividade total ou renda, cotas de renda com o produto total ou renda, cotas de renda para donos de terras, capitalistas, e trabalhadores, i.e., aluguel, lucros (juros a longo prazo) e salários. Ricardo foi preso em um problema sem esperança: ele tinha quatro variáveis, mas apenas uma equação com a qual resolvê-las:
Produto total (ou renda) = aluguel + lucros + salários
Para resolver, ou melhor, fingir resolver, essa equação, Ricardo tinha de “determinar” uma ou mais dessas entidades de fora da sua equação, e de tal maneira de modo a deixar os outros como resíduos. Ele começou por negligenciar o produto total, i.e., ao assumir isso como sendo um dado determinando, “desse modo”, a produção (output) ao congelá-la em suas próprias suposições arbitrárias. Esse procedimento o permitiu deixar uma variável — para a sua própria satisfação.
Próximo, para os salários. Aqui, Ricardo tomou de Mill a visão hardcore, ou ultra-Malthusiana, de que “salários” — todos salários — estão sempre e em todos os lugares pressionando a oferta de comida a uma tal extensão que eles são sempre estabelecidos e determinados precisamente a nível dos custos de subsistência. O trabalho é assumido como homogêneo e de igual qualidade, de modo que todos os salários podem ser assumidos estarem no custo de subsistência. Enquanto brevemente e indistintamente reconhecendo que o trabalho pode ter diferentes qualidades ou graus, Ricardo, como Marx depois dele, drasticamente assumiu o problema ao alegremente postular que todos eles podem ser incorporados a uma quantidade medida de “horas de trabalho”. Como resultado, Ricardo poderia sustentar que as taxas salariais eram uniformes através da economia. Enquanto isso, como nós já vimos, a comida, ou subsistência geral, foi assumida ser incorporada em uma mercadoria, “trigo”, de modo que o preço do trigo pode servir como um substituto do custo de subsistência em geral.
Dado essas hipóteses heroicas e falaciosas, então, “a” taxa salarial é determinada instantaneamente e totalmente pelo preço do trigo, visto que a taxa salarial não pode nem aumentar o preço para acima do nível de subsistência (como determinado pelo preço do trigo) e nem mergulhar para abaixo disso.
O preço do milho, por sua vez, é determinado de acordo com a famosa teoria do aluguel de Ricardo. O aluguel servia como a peça chave do sistema Ricardiano. Pois, de acordo com a teoria ainda mais bizarra de Ricardo, apenas a terra diferia em qualidade. O trabalho, como já vimos, foi assumido como sendo uniforme, e, portanto, taxas salariais são uniformes, e, como devemos ver, os lucros são também assumidos como sendo uniformes por causa do postulado crucial da economia sempre estar em equilíbrio de longo prazo. A terra é o único fator que miraculosamente é permitido diferir em qualidade. Depois, Ricardo assume qualquer descoberta de novas terras ou melhoramentos em produtividade agrícola. Sua teoria da história, portanto, conclui que as pessoas sempre começam a cultivar as terras mais férteis, e, na medida em que a população aumenta, a pressão Malthusiana sobre a oferta de comida força os produtores a usar quaisquer terras mais inferiores. Em suma, na medida em que a população e a produção de comida aumentam, o custo de cultivar o trigo precisa, inexoravelmente, aumentar conforme o tempo.
O aluguel, na frase de Ricardo, é pago pelo “uso das originais e indestrutíveis forças do solo”. Isso alude à teoria da produtividade, e de fato Ricardo viu que as mais férteis e produtivas terras ganhavam maior aluguel. Mas, infelizmente, como Schumpeter afirmou, Ricardo então “embarca em seu desvio”. Em primeiro lugar, Ricardo fez a hipótese de que a qualquer momento a terra mais pobre em cultivo rende zero aluguel. Ele concluiu desse alegado fato que um pedaço de terra ganha aluguel não por causa de sua própria produtividade, mas meramente porque sua produtividade é maior que a terra mais pobre, e de zero aluguel, sob cultivo. Lembre-se que, para Ricardo, o trabalho é homogêneo e, portanto, os salários uniformes são iguais e, como devemos ver, os lucros são também uniformes e iguais. A terra é única em sua estrutura permanente, de longo prazo e de diferentes fertilidades e produtividades. Assim, para Ricardo, o aluguel é puramente um diferencial, e Terra A ganha o aluguel somente por causa de sua produtividade diferencial, produtividade comparada à Terra B, à terra de zero aluguel do cultivo.
Para Ricardo, muitos pontos importantes seguiram essas suposições. Primeiro, enquanto a população inexoravelmente aumenta, e terras cada vez mais pobres são usadas, todos os diferenciais continuam a aumentar. Assim, digamos que, em algum ponto no tempo, o alcance em produtividade das terras de trigo (que sumarizam toda a terra) comece a partir do alcance mais alto, a Terra A, através de um espectro abaixo até chegar na Terra J, a qual, sendo marginal, ganha zero aluguel. Mas agora a população aumenta e os fazendeiros têm de cultivar terras mais e mais pobres, digamos, K, L, e M. M agora se torna a terra de zero aluguel, e a Terra J agora ganha um aluguel positivo, igual ao diferencial entre sua produtividade e aquela de M. E todos nas prévias terras inframarginais possuem seus aluguéis diferenciais aumentados também. Torna-se inevitavelmente verdade, portanto, que, com o tempo, enquanto a população aumenta, aluguéis, a proporção da renda indo aos aluguéis também aumentam.
Ainda assim, embora os aluguéis permaneçam aumentando, a margem dela sempre permanece zero, e, como Ricardo afirmou em uma crucial parte de sua teoria, o aluguel estando zero não entra nos custos.
Colocado de outra maneira: a quantidade de custo de trabalho, sendo alegadamente homogênea, é uniforme para cada produto, e lucros, sendo uniformes e bem pequenos por toda a economia, formam uma parte de custo que pode ser basicamente negligenciada. Visto que o preço de todo produto é uniforme, isso significa que a quantidade de custo de trabalho sobre a terra de maior custo, ou de zero aluguel, unicamente determina o preço do trigo e de todos os outros produtos agrários. O aluguel, sendo inframarginal na suposição de Ricardo, não pode entrar no custo. A renda total de aluguel é um passivo residual determinado pelos preços de venda e renda total, e os preços de venda são determinados pela quantidade do custo de trabalho e (em uma pequena extensão) pela taxa uniforme de lucro. E visto que a quantidade de trabalho necessária para produzir trigo continua a subir quanto mais e mais terras inferiores são postas na produção, isso significa que o custo de produzir trigo e, portanto, o preço do trigo continua a crescer com o tempo. E, paradoxalmente, enquanto as os aluguéis permanecem aumentando com o tempo, eles permanecem zero na margem, e, portanto, sem nenhum impacto sobre os custos.
Há muitos furos nessa doutrina. Em primeiro lugar, mesmo a terra mais pobre no cultivo nunca ganha zero de aluguel, assim como o pedaço de maquinário menos produtivo ou o trabalhador menos produtivo nunca ganha um preço ou um salário zero. Não beneficia nenhum dono de recursos manter o seu recurso ou fator em produção a não ser que ele ganhe um aluguel positivo. A terra marginal, ou outro recurso, irá, certamente, ganhar menos aluguel do que fatores mais produtivos, mas mesmo a terra marginal irá sempre ganhar algum aluguel positivo, o quão pequeno que seja.
Segundo, à parte do problema de zero aluguel, ele está simplesmente errado em pensar que o aluguel, ou qualquer outro retorno de fator, é causado por diferenciais. Cada pedaço de terra, ou unidade de qualquer fator, ganha o que quer que ele produza; diferenciais são simples subtrações aritméticas entre duas terras, ou outros fatores, cada qual ganhando um aluguel positivo próprio. A suposição de zero aluguel à margem permite a Ricardo obscurecer o fato de que todo pedaço de terra ganha um aluguel produtivo, e o permite escorregar no diferencial enquanto causa.
Podemos tão bem quanto Ricardo em sua cabeça aplicar a teoria do diferencial aos salários, e dizer, com Schumpeter, que “ninguém paga mais por um bem do que por uma má terra exatamente como se paga mais por um bem do que para um mau trabalhador”.[4]
Terceiro, ao discutir o aumento em custos de produção de trigo, Ricardo inverte a causa e o efeito. Ricardo afirma que a população em aumento “obriga” os fazendeiros a trabalhar em terras de inferior qualidade, causando um aumento em seu preço. Mas como qualquer analista da teoria da utilidade iria perceber, a cadeia causal é precisamente o inverso: quando a demanda por milho aumenta, seu preço aumentaria, e o preço mais alto levaria os fazendeiros a cultivar trigo em terras de maior custo. Mas essa percepção, é claro, elimina a teoria Ricardiana do valor e com ela todo o sistema Ricardiano.
E quarto, como numerosas críticas apontaram, é certamente não verdadeiro, historicamente, que as pessoas sempre começam usando a terra de maior qualidade e então se mergulham inevitavelmente em terras mais e mais inferiores. Historicamente, sempre houve avanços, e avanços enormes, na produtividade da agricultura, na descoberta e criação de novas terras, e na descoberta e aplicação de novas e mais produtivas técnicas agrárias e tipos de produtos. Defensores de Ricardo contra argumentam que isso é puramente um argumento histórico, ignorando a beleza lógica da teoria Ricardiana. Mas o cerne do ponto é que Ricardo estava, antes de tudo, desenvolvendo uma teoria histórica, uma lei da história, e ele certamente reivindicou acurácia histórica para o passado e para previsões futuras para sua teoria. E ainda assim, é tudo uma suposição puramente arbitrária, e, portanto, amplamente falsa, de sua doutrina lógica disfarçada de uma teoria da história. O problema básico de Ricardo do começo ao fim foi fazer indiferentes e falsas generalizações históricas e empíricas serem as pedras fundamentais de seu sistema lógico, do qual ele traçou autoconfiante e aparentemente verdadeiras conclusões apodíticas empíricas e políticas. Ainda assim, de falsas suposições apenas falsas conclusões podem ser traçadas, independente de quão impositiva a estrutura lógica pode ou não pode ser.
A teoria de aluguel diferencial de Ricardo foi amplamente chamada de precursora da lei dos retornos decrescentes neoclássica, a qual os neoclássicos teriam supostamente generalizado da terra para todos os fatores de produção. Mas isso está errado, visto que a lei dos retornos decrescente se aplica a doses crescentes de um fator para unidades homogêneas de outros fatores de produção, logicamente fixados — nesse caso a terra. Mas o cerne da teoria de aluguel diferencial de Ricardo é que suas áreas de terras não são homogêneas no final das contas, mas variam em um espectro de superioridade à inferioridade. Portanto, a lei de retornos decrescentes — como foi captada por Turgot e redescoberta pelos neoclássicos — simplesmente não se aplica.[5]
O aluguel, embora sempre aumentando, é então efetivamente zero, e não é parte dos gastos e custos. O aluguel é descartado na equação Ricardiana, mas ainda não terminamos a determinação de salários, tudo que chegamos a dizer é que eles são precisamente fixados no nível de subsistência. O que acontecerá com os custos de subsistência conforme o tempo? Eles irão aumentar conforme o custo de produção do trigo aumentar e a população forçar o cultivo de terras cada vez mais inferiores. Conforme o tempo, no lento e de longo prazo equilíbrio Ricardiano, o custo da comida irá aumentar, e visto que os salários precisam sempre estar no nível de subsistência, os salários irão ter de aumentar para manter as taxas de salários reais iguais ao custo de subsistência. Agora começamos a fechar o círculo Ricardiano.
Aluguéis são, no que diz respeito a seus efeitos, zero, e as taxas salariais, sempre em subsistência, precisam aumentar com o tempo e, em conformidade, o custo da comida aumentará, para manter o ritmo preciso com o custo crescente de subsistência. Mas, então — voilà! — nós finalmente determinamos todas as variáveis com exceção de lucros (pelo menos para a satisfação de Ricardo), visto que a renda total é “dada” ou mantida congelada, isso significa que lucros são o resíduo da renda total. Com os aluguéis fora da figuração, as taxas salariais têm de continuar aumentando conforme o tempo, isso necessariamente significa que os lucros, ou as taxas de lucro, precisam continuar caindo. Assim, está estabelecida a doutrina Ricardiana da taxa de lucro que está sempre caindo (i.e., taxa de lucros de longo prazo). Note que isso não é o mesmo que a visão de Adam Smith de que a taxa de lucro cai conforme o tempo porque enquanto o capital continua a ser acumulado, o lucro é suposto a estar numa função inversa do estoque de capital. A doutrina de Ricardo do lucro segue por triunfante tautologia da sua tentativa de determinar as outras cotas de fatores de renda total. Quando lucros caem para zero, ou em qualquer taxa a nível baixo, o capital irá cessar de acumular e chegamos ao “estado estacionário” de Ricardo.
Ricardo, ainda mais que Smith, deixa o empreendedor totalmente de lado. Não pode haver papel para o empreendedor, no final das contas, se todos estão sempre no equilíbrio de longo prazo e não há nunca risco ou incerteza. Seus “lucros”, como em Smith, são a taxa de retorno de longo prazo, i.e., a taxa de juros. No equilíbrio de longo prazo, ademais, todos os lucros são uniformes, visto que as firmas rapidamente se movem fora das indústrias de baixo lucro para indústrias de maior lucro até que ocorra a equalização. Então temos “lucros” em uma taxa uniforme por toda a economia em qualquer momento.
Um insight plausível na habitual confusão de Ricardo do equilíbrio de longo prazo e ajustes instantâneos com o mundo real foram oferecidos pelo professor F.W. Fetter. Fetter aponta que a familiaridade prática de Ricardo não era com os negócios e com a indústria (como era, podemos notar, a de J.B. Say) mas com os mercados de títulos e de câmbio. Ricardo “geralmente assumiu que mesmo na indústria e na agricultura, o ajuste acontecia com base em pequenas diferenças de preços, e sempre tão rápido quanto fez a arbitragem nos títulos governamentais e no câmbio internacional”.[6]
Para retornar ao mundo Ricardiano: note que Ricardo não diz que o custo do trigo aumenta conforme o tempo porque o aluguel permanece aumentando em terras de trigo. Ele precisa se livrar da variável do aluguel, ele pode apenas fazer isso ao assumir que o aluguel é zero na margem e, portanto, nunca forma qualquer parte dos custos. O aluguel é, então, efetivamente zero. Por que, então, o custo do trigo aumenta? Como temos indicado, porque a quantidade de trabalho necessária para produzir trigo, e, portanto, o custo de produzir trigo, aumenta conforme o tempo. Isso nos leva à teoria de custo e de valor de Ricardo. Aluguéis estão, agora, fora disso. Salários também não são custos, porque uma chave para o sistema de Ricardo é que salários em aumento levam a menos lucros, e não a preços maiores. Se aumentar os salários significa que os custos aumentaram, então Ricardo, que, como veremos, teve uma teoria-de-custo do valor e do preço, teria de dizer que os preços aumentaram em vez de dizer que os lucros iriam necessariamente cair.
Ele tratou os salários como uniformes, visto que Ricardo, como Marx depois dele, sustentou que o trabalho era homogêneo em qualidade. Não apenas isso significou que salários eram uniformes; mas Ricardo teria então que tratar, como a parte crucial de seu custo de trabalho, a quantidade de trabalhadores incorporado em qualquer produto. Diferença em qualidade ou em produtividade de trabalho pode, então, ser dispensada como simplesmente trivial e como uma suavemente mais complexa versão da quantidade de horas de trabalho. A qualidade foi rapidamente e magicamente transformada em quantidade.
Chegamos na borda da teoria do valor-trabalho Ricardiana – e Marxiana. Enquanto temos apenas uma teoria de custo da quantidade-de-trabalho. Nesse ponto Ricardo hesitou entre uma estrita teoria do trabalho de custo e uma teoria de quantidade-de-trabalho mais a taxa uniforme de lucro. Mas, visto que a taxa uniforme de lucro, presumivelmente por volta de 3-6 por cento, é pequena comparada à quantidade de horas de trabalho, Ricardo pode ser perdoado por desconsiderar a parte de taxa-de-lucro do custo como de importância trivial. E, visto que todas as taxas de lucro são assumidas para ser uniformes, e, como veremos, Ricardo teve uma teoria de custo do valor ou do preço, ele poderia facilmente desconsiderar a proporção uniforme e pequena, lucro, como de nenhuma relevância para explicar preços relativos.
É, é claro, peculiar considerar os lucros, mesmos os lucros como juros a longo prazo, como parte dos “custos” de produção. Novamente, esse uso busca eliminar qualquer consideração de lucros empresariais e perdas, e focar nos juros como um “custo” de longo prazo de induzir poupanças e a acumulação de capital.
Se os lucros para Ricardo são sempre uniformes, como esse lucro uniforme é determinado? Curiosamente, os lucros são de modo algum relacionados a poupanças ou a acumulação de capital; para Ricardo, eles são apenas sobras residuais depois do pagamento de salários. Em suma, para remontar a nossa original equação da distribuição Ricardiana: produto total (ou renda) = aluguel + lucros + salários. Notavelmente, Ricardo foi tentado a determinar todas as variáveis com apenas uma variável explicitamente determinada. O produto, como vimos, foi assumido como misteriosamente dado de fora do sistema Ricardiano. Os salários (“o” salário uniforme por toda a economia) é a única variável explicitamente determinada, determinada completamente para igualar o custo de subsistência, incorporado no custo de produzir trigo. Mas isso deixa dois resíduos, aluguéis e lucros, a serem determinados. O modo pelo qual Ricardo tenta contornar esse problema é dispor de aluguéis.
Os aluguéis são o diferencial entre as terras em cultivo e as menos produtivas terras de zero aluguel em uso. O custo de produzir trigo é igual a quantidade de horas de trabalho incorporadas em sua produção. Visto que aluguéis são zero na margem, eles não entram nos custos, e são passivamente determinados; na margem zero, as cotas de trabalho e de capital são todo o produto. E, visto que os salários são supostamente determinados pelo custo de crescer trigo, isso significa que o lucro pode apenas ser um truístico resíduo de salários, pois de outro modo a variável seria superdeterminada, e o sistema iria evidentemente colapsar.
As alegadas leis históricas seguem o modelo. Visto que a população em crescimento força mais e mais terras inferiores ao cultivo, o custo de trabalho na produção de trigo (i.e., a quantidade de horas de trabalho para produzi-lo), precisa continuar a aumentar. E, visto que o preço é determinado pelo custo, supostamente servido na sopa de quantidade de horas de trabalho para produzir o bem, isso significa que o preço do trigo precisa continuar aumentando conforme o tempo. Mas, visto que as taxas salariais reais são fixas sempre no custo de subsistência, e isso é assumido a ser o preço do trigo, as taxas salariais monetárias precisam continuar a aumentar conforme o tempo (enquanto os trabalhadores permanecem no nível de subsistência), e, portanto, lucros precisam continuar a diminuir no percurso da história.
Adam Smith acreditou que a taxa de lucros, ou a taxa de retorno de juros de longo prazo, é determinada pela quantidade de capital acumulado, de modo que mais capital irá levar a uma taxa de juros decrescente. Enquanto essa teoria não está totalmente correta, ela ao menos entende que há alguma conexão entre poupança, acumulação de capital, e juros de longo prazo ou lucros. Mas, para Ricardo, não há conexão alguma. Os juros sobre o capital são apenas um resíduo. Por uma série de falácias e suposições holísticas, trancadas em hipóteses, conclusões triviais são finalmente trazidas, tudo com um pressagioso ar, alegadamente nos trazendo insights conclusivos sobre o mundo real. Como Schumpeter coloca com escárnio: proposições tais como “lucros dependem dos salários”, e a taxa de lucros decrescentes são excelentes exemplos “dessa Arte da Trivialidade que, ultimamente conectada com o Vício Ricardiano, leva a vítima, passo a passo, a uma situação onde ela conseguiu ou se render ou permitir a si mesmo a ser caçoada por negar que, no tempo em que é chegada a situação, seja realmente uma trivialidade”.[7]
3.5 Ricardo e o sistema ricardiano, II: A teoria do valor
Isso nos traz à teoria do valor, ou de preço, de Ricardo. Enquanto Ricardo formalmente admitiu que a oferta e a demanda determinam a precificação do mercado cotidiano, ele deixa isso de lado como sendo de nenhuma consequência, e concentrou somente no equilíbrio de longo prazo, i.e., o preço “natural” e a alegada macro-distribuição de renda nesse equilíbrio. A utilidade, Ricardo bruscamente dispôs dela como sendo, em última análise, necessária para a produção, mas de nenhuma influência sobre o valor ou sobre o preço; no “paradoxo do valor”, ele abraçou o valor de troca e abandonou a utilidade completamente. Não apenas isso: ele francamente e ousadamente descartou qualquer tentativa de explicar o preço de bens que não são reproduzíveis, que não poderiam ser aumentados em oferta pelo emprego do trabalho.
Assim, Ricardo simplesmente desistiu de qualquer tentativa de explicar os preços de tais bens como pinturas, as quais são fixadas em oferta e não podem ser aumentadas. Em suma, Ricardo abandonou qualquer tentativa de uma explicação geral dos preços de consumo. Chegamos na madura teoria Ricardiana – e Marxiana – do valor-trabalho.
O sistema Ricardiano agora está completo. Os preços de bens são determinados por seus custos, i.e., pela quantidade de horas de trabalho incorporadas nelas, trivialmente mais a taxa uniforme de lucros. Em especial, já que o preço de cada bem é uniforme, ele será igual ao custo de produção da terra marginal ou de maior custo (i.e., de aluguel zero) em cultivo. Em suma, o preço será determinado pelo custo, i.e., a quantidade de horas de trabalho na terra de zero aluguel usada para trabalhar no produto. Conforme o tempo avança, a população aumenta, solos cada vez mais pobres precisam ser trazidos ao uso, de modo que o custo de produzir trigo continue a aumentar.
Isso acontece porque a quantidade de horas de trabalho para produzir trigo continua a aumentar, visto que o trabalho precisa ser empregado sobre solo sempre mais pobre. Como resultado, o preço do trigo continua a aumentar. Visto que taxas salariais são sempre mantidas precisamente no nível de subsistência (o custo de cultivar trigo) pela pressão da população, isso significa que as taxas salariais monetárias precisam continuar a aumentar conforme o tempo para manter as taxas salariais reais na cadência do preço sempre em aumento do trigo. As taxas salariais precisam aumentar conforme o tempo, e, assim, os lucros precisam continuar a cair até estarem tão baixos que o estado estacionário é alcançado.
Para retornar à ideia de aluguel, não vamos, por enquanto, entrar nos custos: iremos focar, como deveríamos, no “micro” — no fazendeiro individual ou no capitalista — deve ser claro que o indivíduo precisa pagar o aluguel para então conseguir ganhar o uso de qualquer lote de terra no processo produtivo. Para fazer isso, ele precisa sobrepujar outras firmas em sua própria, bem como outras indústrias. A recusa de Ricardo de nem sequer considerar a firma individual, e o seu foco em agregados holísticos, o permite negligenciar que os aluguéis, mesmo se diferenciais, entram nos custos do modo que todo gasto sobre fatores de produção entra neles. Esse é o único modo que é real e que conta no mundo real: o ponto de vista da firma ou empreendedor individual. Não há, de fato, nenhum ponto de vista “social”, visto que a “sociedade” como uma entidade não existe.
O sistema de Ricardo é tanto melancólico quanto próspero com o alegadamente inerente conflito de classes sobre o livre mercado. Primeiro, há um conflito tautológico porque, dado o total fixo, as cotas de renda de um macro-grupo pode apenas aumentar à custa de outro. Mas o ponto do livre mercado no mundo real é que, geralmente, a produção aumenta, de modo que a torta total tende a continuar aumentando. E, segundo, se focarmos em fatores individuais e no quanto eles ganham, como faz a posterior teoria da produtividade marginal (e como fez J.B. Say), então cada fator tende a ganhar seu produto marginal, e não precisamos nem nos preocupar com as alegadas, mas não existentes leis e conflitos da distribuição de renda de macro-classe.
Ricardo mantém o seu olho irretocavelmente sobre o radicalmente errado problema — ou melhor, problemas.
Mas há ainda mais conflitos de classes aqui do que implicado pela abordagem macro-tautológica de Ricardo. Pois se o valor é somente o produto de horas de trabalho, então fica fácil para Marx, que era apesar de tudo um neo-ricardiano, para clamar por todos os retornos ao dedutivo exploratório do capital de todo o produto “do trabalho”. O clamor Ricardiano do socialismo por entregar todo o produto ao trabalho segue diretamente do sistema Ricardiano – embora Ricardo e os outros Ricardianos ortodoxos, obviamente, não façam tal salto. Ricardo teria contra-argumentado que o capital representa trabalho incorporado ou congelado; mas Marx aceitou esse ponto e simplesmente o retrucou afirmando que todo produtor de trabalho de capital, ou trabalho congelado, deveria obter seu retorno total.
De fato, nem isso estava certo; se formos considerar os bens de capital como qualquer coisa congelada, teríamos de dizer, com o grande austríaco Böhm-Bawerk, que o capital é trabalho, terra e tempo congelados. O trabalho iria, então, ganhar aluguel, e os juros (ou lucros de longo prazo) seriam o preço do tempo.
Análises recentes, numa tentativa de mitigar a grosseira falácia da teoria do valor-trabalho de Ricardo, tem sustentado, como no caso de Smith, mas de forma ainda mais acentuada, que ele não estava exatamente tentando explicar a causa do valor e do preço, mas sim medir os valores conforme o tempo, e o trabalho era considerado como medida invariável de valor. Mas isso dificilmente mitiga os furos de Ricardo; e em vez disso, ele adiciona às falácias gerais e vaguezas do sistema Ricardiano uma outra importante: a vã busca pela não-existente quimera da invariabilidade. Pois os valores sempre flutuam, e não há base invariável fixa de valor da qual outras mudanças de valores possam ser mensuradas.
Assim, ao rejeitar a definição de Say do valor de um bem como seu poder de compra de outros bens em troca, Ricardo viu a invariável entidade, a potência não movida:
Um franco não é uma medida de valor para qualquer coisa, mas para uma quantidade do mesmo metal dos quais os francos são feitos, a não ser que os francos, e a coisa a ser medida, possa ser referida a alguma outra medida que é comum a ambas. Isso, penso eu, pode ser, pois eles são ambos o resultado do trabalho; e, portanto, o trabalho é uma medida comum, pela qual seu valor real, bem como seu valor relativo, pode ser estimado.
Pode-se notar que ambos os produtos são o resultado de capital, terra, poupanças, e empreendedorismo, bem como do trabalho, e que, em qualquer caso, os seus valores são incomensuráveis exceto em termos de relativo poder de compra, como Say de fato sustentou.
Parte da ardorosa missão de Ricardo por uma medida invariável de valores foi, sem dúvida, derivada da sua devoção pelo cientificismo. Ricardo estava sempre tão interessado nas ciências naturais quanto na economia. No início da sua juventude, Ricardo era familiarmente interessado nas ciências naturais, em matemática, química, mineralogia e geologia. Ele se juntou à Geological Society em seus 30 anos pouco depois de ela ter sido fundada. É provável que a missão de Ricardo por uma invariável medida de valores fosse baseada no modelo da ciência física; se “científico” nas ciências físicas significa medida, então certamente isso seria exigido nas ciências humanas também. Como Emil Kauder escreveu, “Eu ouso dizer que Ricardo e seus contemporâneos acreditaram que a economia apenas poderia alcançar a dignidade de uma ciência se ela pudesse ser baseada sobre medidas objetivas assim como a Física Newtoniana”.[8]
Uma ainda mais forte e mais direta luta de classes do que aquela implicada pela teoria do valor-trabalho se estimou da abordagem de Ricardo voltada aos donos de terra e ao aluguel de terra. Os donos de terra estão simplesmente obtendo pagamento pelos poderes do solo, o que, ao menos nas mãos de muitos dos seguidores de Ricardo, significava retorno injusto. Ademais, a visão melancólica de Ricardo do futuro sustentava que o trabalho precisa ser mantido no nível de subsistência, os capitalistas precisam ver os seus lucros inevitavelmente cair — estas duas classes estando tão piores como nunca (trabalho) ou sempre piores (capital) enquanto os ociosos e inúteis donos de terras continuam inexoravelmente a acrescentar às suas cotas de bens mundanos. As classes produtivas sofrem enquanto os ociosos donos de terras, cobrando pelos poderes da natureza, beneficiam-se à custa dos produtores.[9] Se Ricardo implica Marx, ele implica Henry George muito mais diretamente. O espectro da nacionalização de terras ou o imposto único absorvendo todo aluguel de terra segue diretamente de Ricardo.
Uma das maiores falácias da teoria Ricardiana do aluguel é que ela ignora o fato de que os donos de terra de fato desempenham uma função econômica vital: eles alocam a terra para o seu melhor e mais produtivo uso. A terra não aloca a si mesma; ela precisa ser alocada, e apenas aqueles que ganham um retorno por tal serviço têm o incentivo, ou a habilidade, de alocar várias parcelas de terra para os seus usos mais lucrativos, e, portanto, mais produtivos.
O próprio Ricardo não tomou o caminho direto para a expropriação do aluguel de terra. Sua solução de curto prazo era clamar pela redução da tarifa sobre o trigo, ou até mesmo repelir totalmente as leis de trigo. A tarifa sobre o trigo mantinha o preço do trigo alto e assegurava que a terra de trigo de maior custo e doméstica seria cultivada. O repelir das leis de trigo iria permitir a Inglaterra importar trigo barato, e assim postergar por um tempo o uso de terra inferior e de maior custo. Preços de trigo iriam ser menores por um tempo, as taxas salariais monetárias iriam, portanto, imediatamente ser menores, e lucros iriam aumentar, adicionando à acumulação de capital. O angustiante estado estacionário seria logo desencorajado mais ao horizonte.
A outra ação anti-lordes de terra de Ricardo foi política: ao entrar no Parlamento e ao se juntar a Mill e aos outros Benthamitas radicais no clamor pela reforma democrática, Ricardo esperava balançar o poder político das garras da aristocracia, que significava na prática a oligarquia dos donos de terra, para a massa do povo.
Mas, se Ricardo era muito individualista ou muito temeroso para incorporar a total consequência lógica do sistema Ricardiano, James Mill caracteristicamente não era. James Mill foi o primeiro proeminente “Georgista”, clamando francamente e entusiasticamente por um imposto único sobre o aluguel de terra. No alto escalão na Companhia das Índias Orientais, Mill se viu capaz de influenciar as políticas do governo indiano.
Antes de obter esse posto, Mill tinha caracteristicamente sido aquele presumidamente a escrever e publicar o bem sucedido History of British India (História das Índias Britânicas) (1817) sem nem sequer ter estado naquele país ou saber qualquer uma das línguas indianas. Absorto na desdenhosa visão de que a Índia era por toda parte incivilizada, Mill defendeu um imposto único “científico” sobre o aluguel de terra. Mill estava convencido, como um Ricardiano, que um imposto sobre o aluguel de terra não era um imposto sobre o custo e, portanto, não iria reduzir o incentivo para ofertar qualquer bem, produto ou serviço. Assim, um imposto sobre o aluguel de terra não teria efeito ruim sobre a produção — ele iria somente ter o efeito de eliminar os ilícitos ganhos dos donos de terra. Com efeito, um imposto sobre o aluguel de terra não seria imposto no final das contas! O imposto sobre a terra poderia ser até mesmo de 100 por cento do produto social causado pela fertilidade diferencial do solo. O estado, de acordo com Mill, poderia então usar este imposto sem custo para aprimoramento público, e amplamente para a função de manter a lei e a ordem na Índia.
Vemos agora como as perniciosas implicações da visão falaciosa de que qualquer parte do gasto de produção é, de algum modo, de um ponto de vista holístico ou social, ausente do cálculo de custos. Pois, se um gasto não é parte do custo, ele é, em algum sentido, não necessário para a contribuição do fator para a produção. Portanto, essa renda pode ser confiscada pelo governo sem efeito colateral. Apesar do profundo pessimismo de Ricardo sobre a natureza e a consequência do livre mercado, ele, por mais estranho que pareça, apegou-se de forma mais forte e firme que Adam Smith, ao laissez-faire. A provável razão era sua forte convicção de que praticamente qualquer tipo de intervenção governamental iria apenas tornar as coisas piores. O imposto deveria estar sob um mínimo, pois tudo dele prejudica a acumulação de capital e a diverge de seus melhores usos, do mesmo modo que as tarifas sobre importações.
Leis pobres — sistemas de bem-estar social — apenas pioram as pressões populacionais Malthusianas sobre as taxas salariais. E como um adepto da lei de Say, ele opôs-se às medidas governamentais para estimular o consumo, bem como a dívida nacional. Em geral, Ricardo declarou que a melhor coisa que o governo pode fazer para estimular o maior desenvolvimento da indústria é remover os obstáculos para crescer o que o próprio governo criou.
Enquanto as visões de livre mercado de Adam Smith se encontravam na natureza sinistra da ação predatória do governo, Ricardo era particularmente atingido pela incapacitação e contraprodutividade penetrante do governo. Uma típica e charmosa nota foi pega em uma carta da Alemanha de Ricardo a James Mill em 1817: “Fomos muito atrasados pela morosidade do Correio Alemão, que, sendo um monopólio, é, obviamente, muito mal administrado […]”.
O paradoxo da melancolia de Ricardo sobre o alegado conflito de classes sobre o livre mercado e sua determinada oposição a praticamente toda intervenção do governo era a melhor e espirituosamente descrita por Alexander Gray:
Tal é o esquema Ricardiano de distribuição; no lugar da antiga harmonia de juros, ele colocou a dissensão e o antagonismo no coração das coisas. Os juros do dono de terra são sempre opostos àqueles do consumidor e do manufatureiro; assim também os juros do trabalhador e do empregado são eternamente e irreconciliavelmente opostos; quando um ganha, o outro perde. Ademais, a atitude para todos, exceto o dono de terra, é um processo de contínua depreciação. […] Ainda assim, Ricardo permanece imovelmente um não intervencionista. “Estas, então”, ele diz, “são as leis pelas quais os salários são regulados”; e ele adiciona inconsequentemente, “assim como todos outros contratos, os salários deveriam ser deixados à justa e livre competição do mercado, e nunca deveriam ser controlados pela interferência da legislatura”. Em um mundo onde há a melancolia Ricardiana, pode-se perguntar, e de fato foi perguntado, por que não deveria haver interferência. Um otimista cantarolar de Natal que diz que Deus está em seu Paraíso, e que é de todos o direito ao esclarecido interesse próprio, tem o direito de pregar a bandeira do laissez-faire no mastro, mas um pessimista que apenas olha adiante para dias ruins e maus tempos não deve, em princípio, ser oposto à intervenção, a não ser que seu pessimismo seja tão meticuloso de modo a levar à convicção de que, tão mal quanto todas as doenças são, todos os remédios para todas as doenças são ainda piores. [10]
Finalmente, um furo fundamental e fatal em toda a abordagem de Ricardo em seu sistema foi que ele começou no fim errado. Ele começou com seu primordial foco nas leis de distribuição de macro-renda; sua teoria do valor e do preço era apenas um apêndice subsidiário, permitindo a ele sustentar que os salários não são parte do custo e, portanto, que a única influência do aumento de preço era causar uma queda nos lucros. Ricardo, em suma, nunca captou o ponto crucial entendido pela sua contraparte continental, J.B. Say: de que não há leis de distribuição de macro-renda.
A economia apenas estabelece leis “micro” determinando o preço, incluindo os preços de vários fatores de produção. Em um sentido, é claro, a distribuição de renda em prática é uma cisão dos preços de fatores determinados pelo mercado; mas essa “distribuição” também depende de lucros e perdas empreendedoriais, em suma, de responsabilidades empreendedoriais para o risco e a incerteza, e das ofertas em qualquer tempo dos fatores respectivos. Nenhum dos últimos pode ser determinado pela teoria econômica. Mais uma vez, David Ricardo estava perseguindo uma quimera, e, ao fazê-lo, levou a teoria econômica britânica a um desvio, ou melhor, a um beco sem saída.
Colocado de outra maneira, a análise francesa (Cantillon-Turgot-Say) do livre mercado demonstrou que, no mercado, não há “distribuição” separada de processo de renda, como obviamente haveria em uma economia socialista controlada pelo estado. A “distribuição” é a consequência indireta de livre produção, livres trocas, e livres determinações de preço.[11]
Tudo isso escapou de David Ricardo, que tinha pouca ou nenhuma concepção da economia como uma teia de “micro”-relações vinculando utilidades individuais, trocas e preços. Como apontou Frank Knight, Ricardo, em uma carta a seu discípulo McCulloch, negou que “as maiores questões” de distribuição de macro-renda eram “essencialmente conectadas” com a teoria de valor. E ademais, Ricardo e seus seguidores deram “praticamente nenhuma alusão a um sistema de organização econômica elaborado e dirigido pelas forças do preço”.[12]
Há outro ponto que precisa ser feito sobre o objetivo econômico básico de Ricardo. Reprimindo Adam Smith por ele ter sido primariamente interessado na riqueza total da nação em vez de em sua macro-distribuição de renda, Ricardo persegue sua hostilidade Malthusiana ao crescimento populacional ao perguntar qual é o ponto de focar na renda bruta em vez de na renda líquida. Como Ricardo afirma, em uma famosa e estonteante passagem:
qual seria a vantagem resultante para um país do desenvolvimento de uma grande quantidade de trabalho produtivo, uma vez que fosse empregada essa quantidade ou uma menor, seu aluguel líquido e lucros juntos seriam os mesmos […] Para um indivíduo com um capital de £20.000, cujos lucros fossem £2000 por ano, seria uma questão bem indiferente se o seu capital iria empregar cem ou mil homens […] dado que, em todos os casos, seus lucros não foram diminuídos para menos de £2000. Não são os juros reais da nação similares? Dado que sua renda real, o seu aluguel e seus lucros são os mesmos, é de nenhuma importância se a nação consiste de dez ou de doze trilhões de habitantes.
A diferença entre dez e doze trilhões não pode fazer diferença alguma para David Ricardo, mas isso leva uma considerável diferença, eu deveria pensar, para os doze trilhões que não estariam por aí, e a seus pais, amigos e relações. Não há melhor exemplo do economista agregativo utilitarista observando a economia do ponto de vista holístico de um mestre de escravos social, em vez de um ponto de vista de indivíduos no mercado. Como Alexander Gray, em sua espirituosa e perspicaz maneira, afirma:
A lógica [de Ricardo] levaria à desejabilidade da população ser reduzida a um, e esse último remanescente produzindo uma vasta superação da teia com a ajuda de feitiçaria e invenções mecânicas. A repelente doutrina de que o homem existe para a produção de riqueza, em vez de a riqueza existir para o uso do homem acha, aqui, sua forma clássica.[13]
3.6 A lei das vantagens comparativas
Mesmo as mais hostis críticas do sistema Ricardiano garantem que ao menos David Ricardo fez uma vital contribuição ao pensamento econômico e à causa pela libertação de negociações: a lei das vantagens comparativas.
Ao enfatizar a grande importância da interação voluntária da divisão internacional do trabalho, livres negociadores do século XVIII, incluindo Adam Smith, basearam suas doutrinas na lei das “vantagens absolutas.” Isto é, países deveriam se especializar no que eles são melhores ou mais eficientes, e então trocar esses produtos, pois nesse caso as pessoas de ambos os países estarão melhores. Isso é precisamente uma causa fácil para argumentar. Exige pouca persuasão perceber que os Estados Unidos não deveriam se preocupar em cultivar bananas (ou, em vez disso, para colocar em micro-termos básicos, que indivíduos e firmas nos Estados Unidos deveriam não se preocupar em fazer isso), mas em vez disso produzir outra coisa (e.g., trigo, bens manufaturados) e trocá-los por bananas crescidas em Honduras. Há poucos cultivadores de bananas nos Estados Unidos exigindo, no final das contas, uma tarifa protetiva. Mas e se a causa não for tão definida assim, e firmas americanas de aço e de semicondutores estiverem demandando tal proteção?
A lei das vantagens comparativas derruba tais causas difíceis, e é, portanto, indispensável para a causa das livres negociações. Ela mostra que mesmo se, por exemplo, o País A é mais eficiente do que o País B em produzir ambas mercadorias X e Y, ela irá pagar aos cidadãos do País A para se especializarem em produzir X, a qual é a melhor para produzir, e comprar toda a mercadoria Y do País B, a qual é melhor em produzir mas não possui tanta vantagem comparativa quanto na produção da mercadoria X. Em outras palavras, cada país deveria produzir não apenas aquilo em que ele possui uma absoluta vantagem em fazer, mas aquilo em que ele é melhor ou, pelo menos, menos pior em, i.e., aquilo que ele tem uma vantagem comparativa na produção.
Se, então, o governo do País A impõe uma tarifa protetiva sobre importados da mercadoria Y, e ela forçosamente mantém uma indústria produzindo essa mercadoria, esse privilégio especial irá danificar os consumidores no País A bem como obviamente prejudicará as pessoas no País B. Pois o País A, bem como o resto do mundo, perde em vantagem de se especializar na produção do que eles são melhores, visto que muitos de seus recursos escassos são compulsoriamente e ineficientemente amarrados na produção da mercadoria Y. A lei das vantagens comparativas enfatiza o importante fato de que uma tarifa protetiva no País A inflige feridas sobre as indústrias eficientes nesse país, e sobre os consumidores nesse país, bem como no País B e no resto do mundo.
Outra implicação da lei das vantagens comparativas é que nenhum país ou região da terra será deixado de fora da divisão internacional do trabalho sob as livres negociações. Pois, a lei significa que mesmo se um país estiver em um estado tão pobre que ele não tem vantagem absoluta em produzir qualquer coisa, ele ainda pode pagar para seus parceiros de negociações, as pessoas de outros país, para permiti-los produzir aquilo que eles são menos piores em produzir.
Desse modo, os cidadãos de todo o país se beneficiam das negociações internacionais. Nenhum país é muito pobre ou ineficiente para ser deixado de fora das negociações internacionais, e todos se beneficiam de países se especializando no que eles são melhores ou, pelo menos, menos piores em produzir — em outras palavras, em o que quer que eles tenham de vantagens comparativas.
Até recentemente, foi-se universalmente creditado por historiadores do pensamento econômico que David Ricardo foi o primeiro a desenvolver a lei das vantagens comparativas em seu Principles of Political Economy (Princípios de Economia Política) em 1817. Pesquisas recentes pelo Professor Thweatt, entretanto, têm demonstrado não apenas que Ricardo não originou essa lei, mas que Ricardo não a entendeu e tinha pouco interesse na lei, e que ela desempenhava praticamente nenhuma parte em seu sistema. Ricardo devotou apenas poucos parágrafos para a lei em seu Principles, a discussão era escassa, e ela não estava relacionada ao resto de sua obra e ao resto da discussão das negociações internacionais.
A descoberta da lei das vantagens comparativas veio consideravelmente mais cedo. O problema das negociações internacionais veio à consciência pública na Grã-Bretanha quando Napoleão impôs seus decretos de Berlim em 1806, ordenando o bloqueio de sua inimiga, Inglaterra, de todas as negociações com o continente da Europa. Imediatamente, o jovem William Spence (1783-1860), um fisiocrata inglês e sub consumista que detestava a indústria, publicou o seu Britain Independent of Commerce (O Comércio Independente da Britânia) em 1807, aconselhando os ingleses a não se preocuparem com o bloqueio, visto que apenas a agricultura era economicamente importante, e que se os donos de terra ingleses gastassem toda sua renda em consumo tudo estaria bem.
O tratado de Spence causou uma tempestade de controvérsia, estimulando obras anteriores de dois notáveis economistas britânicos. Um foi James Mill, que revisou criticamente a obra de Spence na Eclectic Review em dezembro de 1807, e então expandiu o artigo a seu livro, Commerce Defended (O Comércio Defendido), no ano seguinte. Foi em refutação a Spence que Mill atacou as falácias subconsumistas ao trazer a lei de Say para a Inglaterra. Outra obra foi o primeiro livro do jovem Robert Torrens (1780-1864), um oficial anglo-irlandês na Royal Marines, em seu The Economists Refuted (Os Economistas Refutados) (1808).[14] Tem sido há muito sustentado que Torrens foi o primeiro a enunciar a lei das vantagens comparativas, e que então, como Schumpeter fraseou, enquanto Torrens “Batizou o teorema”, Ricardo “o elaborou e lutou por ele vitoriosamente”.[15]
Acontece, entretanto, que esse ponto de vista padrão está errado em ambas as partes cruciais, i.e., Torrens não batizou a lei, e Ricardo dificilmente elaborou ou lutou por ela. Pois, primeiro, James Mill teve uma apresentação muito melhor da lei — embora mal tenha sido uma apresentação completa — em seu Commerce Defended do que fez Torrens posteriormente no mesmo ano. Ademais, em seu tratado, Torrens, e não Mill, cometeu vários erros graves. Primeiro, ele afirmou que as negociações rendem mais benefícios a uma nação que importa bens duráveis e necessidades do que perecíveis ou luxos. Segundo, ele afirmou também que as vantagens das negociações domésticas são mais permanentes do que aquelas das negociações internacionais, e também que todas as vantagens das negociações domésticas permanecem na terra natal, de modo que parte das vantagens das negociações internacionais são desviadas para o benefício dos estrangeiros. E, finalmente, seguindo Smith, e antecipando Marx e Lenin, Torrens afirmou que a negociação internacional, ao estender a divisão do trabalho, cria um excedente sobre os requisitos domésticos que precisam ser “passados” em exportações internacionais.
Seis anos depois, James Mill levou Robert Torrens novamente a apresentar os rudimentos da lei das vantagens comparativas. Na emissão de julho de 1814 da Eclectic Review, Mill defendeu as livres negociações contra o suporte de Malthus pelas leis do trigo em suas observações. Mill apontou que o trabalho doméstico irá, ao engajar em negociação internacional, conseguir mais ao comprar importados do que ao produzir todos os bens ele mesmo. A discussão de Mill foi amplamente repetida por Torrens em seu Essay on the External Corn Trade (Ensaio da Negociação Externa de trigo), publicada em fevereiro do ano seguinte. Ademais, nessa obra, Torrens explicitamente saudou o ensaio de Mill.
Enquanto isso, ao mesmo tempo, quando essa agitação de custo comparativo estava ocorrendo entre seus amigos e colegas, David Ricardo não demonstrou interesse algum nessa importante linha de pensamento. Para ser exato, Ricardo a pesou para auxiliar o ataque de seu mentor Mill ao apoio de Malthus pelas leis do trigo, em seu Essay on… Profits (Ensaio sobre… Lucros), publicado em fevereiro de 1815. Mas a linha de argumentação de Ricardo foi exclusivamente “Ricardiana”, isto é, baseada somente no distinto sistema Ricardiano. De fato, Ricardo não mostrou interesse algum nas livres negociações em geral, ou nos argumentos por elas; seu raciocínio era somente devotado à importância de diminuir ou abolir a tarifa sobre o trigo. Essa conclusão, como notamos, foi deduzida do distinto sistema Ricardiano, o qual era para ser totalmente desenvolvido dois anos depois em seu Principles.
Para Ricardo, a chave para o sufocamento do crescimento econômico em qualquer país, e especialmente na desenvolvida Grã-Bretanha, era a “escassez de terra”, a alegação de que terras mais e mais pobres estavam necessariamente sendo pressionadas ao uso na Grã-Bretanha. Em consequência, o custo de subsistência continuou aumentando, e assim a taxa salarial monetária prevalecente (a qual precisa ser a subsistência) continuou a aumentar também. Mas esse inevitável aumento secular de salários precisa diminuir os lucros na agricultura, a qual, por sua vez, diminui todos os lucros. Desse modo, o acúmulo de capital é cada vez mais refreado, finalmente para desaparecer de uma vez.
Diminuir ou abolir a tarifa sobre o trigo (ou outra comida) era, para Ricardo, um modo ideal de postergar a inevitável condenação. Ao importar trigo do exterior, a diminuição da fertilidade da terra de trigo é adiada. O custo do trigo, e, portanto, de subsistência, irá cair agudamente, e, portanto, as taxas salariais monetárias vão cair pari passu, desse modo aumentando os lucros e estimulando o investimento de capital e crescimento doméstico. Não há alusão nenhuma nessa discussão a doutrina de custo comparativo ou qualquer coisa parecida.
Mas, e enquanto ao Ricardo tardio, o Ricardo do Principles! Mais uma vez, exceto pelos três parágrafos sobre as vantagens comparativas, Ricardo não mostra interesse nisso, e ele, em vez disso, repete o argumento do sistema Ricardiano para repelir as leis do trigo. De fato, sua discussão no resto do capítulo sobre negociações internacionais está forrada de termos da teoria Smithiana das vantagens absolutas em vez das vantagens comparativas achada em Torrens e especialmente em Mill.
Os três parágrafos sobre a vantagem comparativa, ademais, não eram apenas fraseados porcamente e confusos; eles eram o único registro, breve como eram, de que Ricardo iria escrever sobre vantagem comparativa. De fato, essa foi a única menção em qualquer tempo dessa doutrina. Mesmo a súbita referência de Ricardo a Portugal e sua absurda hipótese de que o português tinha uma vantagem absoluta sobre a Grã-Bretanha na produção de tecidos parece indicar sua falta de interesse sério na teoria de custos comparativos.
Ademais, as visões de Ricardo sobre as negociações internacionais no Principles recebeu quase nenhum comentário naquela época; escritores se concentraram em sua teoria do valor-trabalho, e sua visão de que taxas salariais e lucros sempre se movem inversamente, com o primeiro determinando o último.
Se Ricardo não tinha interesse na teoria das vantagens comparativas, e nunca escreveu sobre ela exceto nessa única passagem no Principles, o que ela estava fazendo no Principles no final das contas? A hipótese convincente do Professor Thweatt é que a lei foi injetada no Principles pelo mentor de Ricardo, James Mill, quem ele sabia que escreveu o rascunho original, bem como as revisões, para muitas partes da Magnum opus de Ricardo. Ele sabia também que Mill estimulou Ricardo em incluir uma discussão de razões de custo comparativas.
Como vimos, Mill originou a doutrina de custos comparativos, e chegou a desenvolvê-la oito anos depois. Não apenas isso, enquanto Ricardo deixou a teoria tão logo quanto ele a enunciou no Principles, Mill desenvolveu totalmente a análise das vantagens comparativas adiante, primeiro em seu artigo sobre as “Colônias” para a Encyclopedia Britannica (1818), e então em seu livreto, The Elements of Political Economy (Os Elementos de Economia Política) (1821). Mais uma vez, Robert Torrens seguiu Mill, repetindo sua discussão sem nenhuma visão adicional em 1827, na quarta edição de seu Essay on the External Corn Trade (Ensaio sobre a Negociação Externa de trigo) de 1815.[16] Enquanto isso, George Grote, um discípulo devoto Milliano, escreveu em 1819 um ensaio importante e não publicado apresentando a visão Milliana sobre a vantagem comparativa.
E assim, mais uma vez, James Mill, pela força de sua mente bem como de seu carisma pessoal, pôde impingir uma análise original própria ao “sistema ricardiano”.[17] É verdade que Mill era totalmente um fã do sistema ricardiano assim como do próprio Ricardo; mas Mill era um homem de escopo e erudição muito mais amplos que seu amigo, e estava interessado em muito mais aspectos das disciplinas da ação humana. Parece possível que Mill, o inveterado discípulo e homem Número Dois do pódio, fosse o homem Número Um muito mais frequentemente do que qualquer suspeito.
___________________________________
Notas
[1] William E.C. Thomas, The Philosophic Radicals: Nine Studies in Theory and Practice 1817-1841 (Oxford: The Clarendon Press, 1979), p. 100.
[2] Joseph Hamburger, Intellectuals in Politics: John Stuart Mill and the Philosophic Radicals (New Haven: Yale University Press, 1965), p. 44.
[3] J.A. Schumpeter, History of Economic Analysis (Nova York: Oxford University Press, 1954), pp. 472-3. Compare Walter Bagehot sobre Ricardo: “Ele lidava com abstrações sem saber que eram tais: ele acreditava piamente que estava lidando com coisas reais. Ele pensou que estava considerando a natureza humana real em suas circunstâncias reais, quando na verdade estava considerando uma natureza fictícia em circunstâncias fictícias. E James Mill, seu instrutor de assuntos gerais, tinha sobre esse ponto tão pouco conhecimento verdadeiro quanto ele.” Citado em T.W. Hutchison, “James Mill and Ricardian Economics: a Methodological Revolution?” em Hutchison, On Revolutions and Progress in Economic Knowledge (Cambridge: Cambridge University Press, 1978), p. 57; veja também ibid., pp. 26-57.
[4] Schumpeter, op. cit., nota 3, p. 676n.
[5] Como aponta Schumpeter, Ricardo foi falsamente creditado por antecipar a análise da produtividade marginal, particularmente desde alguns teóricos posteriores da produtividade marginal, como LB. Clark, “representaram sua teoria como uma conseqüência da teoria do aluguel de Ricardo”. No entanto, eles não perceberam que “não estavam generalizando o esquema de Ricardo, mas o perturbando”. Schumpter, op. cit., nota 3, pp. 674n, 675-6.
[6] Frank W. Fetter, “The Rise and Decline of Ricardian Economics”, History of Political Economy, 1 (primavera de 1969), p. 73.
[7] Schumpeter, op. cit., nota 3, p. 653n
[8] Emil Kauder, “The Retarded Acceptance of the Marginal Utility Theory”, Quarterly Journal of Economics, 67 (nov. de 1953), p. 574.
[9] Como St Clair resume a visão de Ricardo: os proprietários de terras, “embora não contribuam em nada em termos de trabalho ou sacrifício pessoal, receberão uma porção cada vez maior da riqueza criada anualmente pela comunidade”. Oswald St Clair, A Key to Ricardo (Nova York: A.M. Kelley, 1965), p. 3
[10] Alexander Gray, The Development of Economic Doctrine (Londres: Longmans, Green and Co., 1931), pp. 186-7.
[11] Schumpeter, op. cit., nota 3, pp. 567-8.
[12] Frank H. Knight, “The Ricardian Theory of Production and Distribution”, em On the History and Method of Economics (Chicago: University of Chicago Press, 1956), p. 41. Veja também ibid., pp. 61-3.
[13] Gray, op. cit., nota 10, pp. 188-9.
[14] Torrens serviu nos fuzileiros navais reais de 1797 a 1834.
[15] Schumpeter, op. cit., nota 3, p. 607.
[16] Torrens, além disso, dificilmente estava em condições de assumir a liderança das forças de livre comércio, pois havia abandonado sua defesa radical anterior do livre comércio unilateral em nome de acordos comerciais recíprocos entre países. Quanto ao colega ricardiano e escocês de Mill, John Ramsey McCulloch, ele manteve a linha smithiana e repudiou publicamente a doutrina do custo comparativo.
[17] Veja William O. Thweatt, “James Mill and the Early Development of Comparative Advantage”, History of Political Economy, 8 (verão de 1976), pp. 207-34.