Aula XXIV – Utilitarismo: Continuação

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Compreendido o teor da doutrina utilitária de Mises, vem a calhar que analisemos brevemente o utilitarismo em geral como proposta ética, por se tratar de uma tese amplamente aceita e difundida.

 

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O utilitarismo em si sempre parte de um dogma, o qual são modos diferentes da mesma fórmula vazia que diz: faça-se o que for melhor. Uns defendem a maior utilidade para o maior número de pessoas, outros a maior quantidade de prazer, outros a felicidade máxima, e assim por diante. Todos os tipos de utilitarismo são na verdade espécies de consequencialismo, uma doutrina ética segundo a qual uma ação é boa ou má de acordo com as consequências que produz.

O primeiro problema com essa tese é que a sua premissa fundamental é um dogma, ou seja, uma ideia sem nenhuma justificação racional, um juízo de valor que se pode aceitar ou não. Nada há que nos faça admitir tal premissa como logicamente necessária. O segundo e principal problema é que, como aponta Hoppe, uma ética, por ser uma teoria da ação, deve nos dizer como devemos agir agora.[1] Com efeito, nós só podemos agir no presente. Uma teoria ética baseada nas consequências ou efeitos da ação acabaria nos deixando sem critérios atuais. Nós teríamos de agir no presente, observar as consequências que se seguiriam e só então definir se agimos com justiça.

Porém, se aceitarmos por um momento a justeza daquele princípio, sem atinar para essa dificuldade intertemporal, e buscarmos agir de acordo com as melhores consequências possíveis, imediatamente alguém indagará: “Melhores consequências para quem?”. Certamente, não há uma maneira objetiva de determinar isso, e novamente juízos de valor seriam invocados. Além disso, se perguntarmos quais tipos de consequência devem servir de critério – se a maior utilidade para o maior número de pessoas, se o favorecimento da cooperação social, se o máximo prazer possível –, então mais uma vez a questão resta dependente de julgamentos valorativos.

Mas ainda que definamos para quem os efeitos devem ser bons e quais devem ser esses efeitos, é importante lembrar que toda ação possui efeitos imprevistos, já que vivemos em um mundo de incerteza e limitação informacional. Ademais, se a retidão de uma conduta se basear nos efeitos esperados dela (na utilidade ex ante), então nunca se terá um critério definitivo e certo do agir presente, devido ao problema da incerteza, e essa teoria ética será como a cenoura presa na cabeça do burro. Se, por outro lado, o critério for os efeitos dela obtidos (a utilidade ex post), então se precisará agir hoje para só amanhã se saber se o agir foi honesto, de modo que, novamente, não saberíamos nunca como agir no presente. A mesma dificuldade subsistiria. Também não há, nessa doutrina, critério indiscutível para determinar se as consequências definidoras da justeza da ação deveriam ser de curto, médio ou longo prazo. Com efeito, no curto prazo valeria a pena consumir toda a riqueza acumulada (renderia a máxima utilidade e o máximo prazer), enquanto que no longo prazo valeria a pena se abster do consumo para investir (mas se abster quanto?). O consequencialismo nos embaraça mais e mais à medida que lhe adentramos, afigurando-se uma doutrina ética absurda, relativista e inexequível.

Mas assumamos que se decida, por convenção, que o critério de Mises seja aceito e se adote uma ética baseada na maior utilidade social. Nesse caso, faltaria decidir se essa utilidade social seria considerada em termos de bens e serviços, como ele próprio a considerava, ou de outros valores caros à sociedade, como a igualdade social e a moral religiosa. Pode haver comunidades para as quais a liberdade individual seja execranda e que considerem de bom alvitre condenar homossexuais à pena de morte. Por certo há pessoas que preferem perder em termos de bens e serviços para ganhar em termos de “moralidade e ordem” (que para elas são um bem). Ao que parece, o critério de Mises nos conduz a um relativismo. Depois ele diz que o “critério definitivo” da justiça é a “preservação da cooperação social”. Mas existe cooperação social, em maior ou menor grau, em qualquer lugar em que se estabeleça uma comunidade. O problema de saber como deve ser essa cooperação social persiste.

Para finalizar, outra crítica que se faz contra o utilitarismo é lembrar que utilidade não é uma unidade de valor mensurável, como querem alguns economistas. Sendo assim, como seria possível empreender o cálculo da maior utilidade?

As preferências dos homens organizam-se de maneira ordinal, isto é, à maneira de um ranking: A é preferível a B, B é preferível a C, C é preferível a D, e assim por diante. Não é possível para um ser humano indicar o quanto ele prefere A a B, ou dar um valor cardinal, aritmético, que mostre objetivamente o quanto ele aprecia A. Ele só pode dizer que gosta de A e que gosta mais de A do que de B, montando destarte uma ordem de preferência, mas não poderia quantificar as utilidades de forma objetiva, como se mede um metro de pano ou se pesa um quilo de carne.

Uma definição coerente de “mensuração” implica a possibilidade de uma atribuição de números que possam ser significativamente submetidos a todas as operações da aritmética. Para que isso seja possível, é necessário definir uma unidade fixa. Para se definir tal unidade, a propriedade a ser mensurada deve possuir extensão espacial, de modo que todos possam concordar objetivamente com a unidade. Portanto, estados subjetivos, sendo intensivos ao invés de objetivamente extensivos, não podem ser mensurados e submetidos a operações aritméticas. A mensuração se torna ainda mais implausível quando percebemos que a utilidade é um conceito praxeológico, e não um conceito diretamente psicológico.[2] (grifo do autor)

Ademais, a escala de preferências que guia as ações de um homem varia dentro do próprio homem ao longo do tempo, e muitas vezes nem ele mesmo sabe o que preferiria em dada situação até que se veja inserido nela. Por isso a Escola Austríaca trabalha com o conceito de “preferência demonstrada”, que Murray Rothbard elucida do seguinte modo:

O conceito de preferência demonstrada é simplesmente isto: que a ação real revela, ou demonstra, a preferência de um homem; ou seja, que suas preferências podem ser deduzidas daquilo que ele escolheu na ação. Assim, se um homem escolhe gastar uma hora em um concerto ao invés de em um cinema, deduzimos que o primeiro era preferido, ou ocupava uma posição superior em sua escala de valores. Similarmente, se um homem gasta cinco dólares em uma camiseta deduzimos que ele preferiu comprar a camiseta do que gastar seu dinheiro com qualquer outra coisa que ele pudesse. Este conceito de preferência, originado em escolhas reais, forma a base da estrutura lógica da análise econômica, e particularmente da análise da utilidade e do bem-estar.[3] (grifo do autor)

 

Dessa forma, o julgamento acerca da preferência de um homem só pode ser feito com referência ao passado, onde ele efetivamente agiu e demonstrou sua real preferência naquela dada situação. Uma teoria ética da utilidade, portanto, teria de ser capaz de conhecer o futuro. Sem o conhecimento do futuro, seria impossível saber qual linha de ação engendraria a maior utilidade.

 

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Podemos dizer então que, até aqui, embora disponhamos de uma teoria econômica sólida, isenta de juízos de valor e baseada em verdades cogentes, e com isso saibamos como gerar a maior utilidade possível em termos de bens e serviços para a sociedade, e tenhamos ainda o bom conselho de um dos maiores economistas de todos os tempos – mesmo assim, até o presente momento, ainda não possuímos uma teoria ética igualmente sólida, isenta de juízos de valor e baseada em proposições irrefutáveis, com fundamento na qual decidir que modo de organização social se deve adotar. Mas uma tal teoria do dever é sequer possível?

 

 

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Notas

[1] Hoppe, “Ética Argumentativa: quatro objeções respondidas”. Disponível em: <https://rothbardbrasil.com/etica-argumentativa-quatro-objecoes-respondidas/>.

[2] Rothbard, “Reconstruindo a Economia de Bem-Estar e de Utilidade”. Disponível em: < https://rothbardbrasil.com/reconstruindo-a-economia-de-bem-estar-e-de-utilidade/>.

[3] Idem.

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