Agora que sabemos sobre que norma deve se basear todo ordenamento jurídico humano, cumpre-nos fornecer os primeiros elementos dessa teoria legal a priori.
Antes disso, porém, é preciso esclarecer algo. Como o grande jurista Hans Kelsen mui acertadamente explicou, todo ordenamento jurídico, ou mesmo todo sistema unitário e coeso de regras, possui uma norma logicamente pressuposta que dá coerência e unidade ao sistema. Por exemplo, quando um juiz profere uma sentença, ele está pressupondo a validade da lei infraconstitucional que está aplicando. A validade da lei infraconstitucional pressupõe a validade da lei constitucional que a institui. E a validade da lei constitucional pressupõe uma norma fundante que não está e nem precisaria estar escrita na Constituição, que é: “A Constituição deve ser aplicada”. Todo ato jurídico dentro de uma ordem constitucional pressupõe essa regra como válida em si mesma. Se, para dar outro exemplo, pegarmos um sistema ético teológico, a regra base pressuposta será “A vontade de Deus deve ser obedecida”. E assim por diante. Trata-se de uma norma logicamente pressuposta por todo ato derivado de um sistema normativo. Hans Kelsen chamou essa norma de norma fundamental (Grundnorm).[1]
Entretanto, no que diz respeito a normas, não existe verdadeiro e falso, mas somente válido e inválido.[2] Uma norma prescrita em sentença não é verdadeira, ela é válida com referência ao ordenamento que a institui. Uma norma válida significa uma norma coerente com o sistema. Por isso que todo ordenamento jurídico pressupõe uma norma fundamental que dá coesão e unidade a todo o sistema. Mas, como vimos, os ordenamentos jurídicos apenas pressupõem essa norma fundamental como um dogma. Ninguém nunca mostrou por que a norma “A Constituição deve ser aplicada” é válida. Ela é válida por quê? Isso é apenas aceito como um dogma. Muito se fala dos dogmas religiosos, mas por que os dogmas seculares saem ilesos dessa crítica?
Desse modo, qual seria a norma fundamental da teoria austríaca da justiça? Para saber que norma é essa, basta observar o que é pressuposto em cada passo dessa teoria. Toda a teoria se fundamenta no princípio lógico da não contradição – desde o estabelecimento da autopropriedade até as suas implicações ulteriores. Portanto, o princípio da não contradição é a Grundnorm da teoria austríaca do direito. Vê-se que não se trata de um dogma, pois é uma regra a priori do pensamento, pressuposta por todo ato de comunicação com sentido do ser humano, e dessa maneira funcionará como a base de uma teoria a priori da justiça.
O Bem Jurídico
Dado que o único direito que existe é o de propriedade privada, este será o único bem jurídico, isto é, o único bem tutelado pelo Direito. Alguns acreditam que o “direito à vida” deva ser o mais importante e fundamental de todos, mas não pode haver, logicamente, algo como um direito à vida, haja vista que todo direito é o reflexo de um dever, e ninguém pode ser obrigado a dar vida a alguém, ou a manter alguém vivo, ou a salvar a vida de alguém, pois isso violaria o direito de autopropriedade. Quanto a tirar a vida de alguém, isso só é um crime na medida em que constitui uma violação do direito de propriedade do indivíduo sobre o próprio corpo.[3]
Não tem como haver um direito a educação, um direito a saúde, um direito a moradia ou a um salário mínimo, nem todos os outros falsos direitos previstos na Constituição Federal de 1988. Todos esses direitos são impossíveis de serem aplicados sem se violar o direito de propriedade. De fato, o direito a educação, para servir de exemplo, implicaria o dever de alguém de fornecer essa educação, mas esse dever não existe. Ele é uma ficção jurídica. O direito a saúde obrigaria alguém a fornecer serviços médicos a outrem, mas esse dever também não existe. Para se cumprirem esses deveres, escolas e hospitais teriam de ser construídos, mas isso envolveria duas possibilidades: a) escravizar pessoas para fazê-lo ou b) roubar pessoas para financiá-lo. O Estado comumente utiliza a segunda opção. Uma vez que roubar e escravizar vão contra o direito natural à autopropriedade, aqueles direitos falsos não podem existir. Só o direito de propriedade pode ser aplicado indefinidamente sem conflito e sem contradição.
Porém, o que pode ser propriedade de alguém? Que tipo de bem pode ser apropriado? O raciocínio é o seguinte: uma vez que só pode haver conflito sobre o modo de uso de bens escassos, então somente bens escassos podem ser objeto de apropriação. Um bem ser escasso significa, a rigor, que duas ou mais pessoas poderiam entrar em conflito sobre o seu modo de uso. Exemplos de bens escassos são a terra, a água, um computador, livros, roupas. Exemplos de bens não escassos ou abundantes são o ar, receitas, ideias, métodos, arquivos digitais. Quando o bem não é escasso, então não é possível haver qualquer conflito sobre o seu uso, pois todos podem usá-lo infinitamente sem que isso prejudique o seu uso por outros no presente ou no futuro. Alguém pode usar uma receita de bolo quantas vezes quiser sem que isso impeça outras pessoas de fazerem o mesmo. Arquivos digitais podem ser usados infinitamente sem que isso impeça outras pessoas de também usarem-no da mesma maneira. Disso se conclui que não pode haver “propriedade intelectual”. Caso você queira copiar uma receita, um livro ou uma tecnologia, ninguém poderá impedi-lo, pois impedi-lo significaria que estaríamos reivindicando para nós o seu direito de decidir sobre como usar os seus próprios recursos. Os recursos são escassos, mas o modo de organizá-los, não. Logo, não existe direito de propriedade sobre modos de organização de bens escassos. Para deixar claro: ninguém pode impedi-lo de usar o seu laboratório e as suas matérias-primas para reproduzir a receita de um medicamento e vendê-lo.[4]
Além disso, um bem jurídico precisa ser controlável. Como algo será propriedade de alguém se a pessoa não puder exercer justamente aquilo que constitui a propriedade: o controle exclusivo? O Sol, por exemplo, não pode ser objeto de propriedade, pois não pode ser controlado. O valor de algo também não pode ser propriedade, pois não se tem controle sobre isso. Assim, se o sucesso do produto A diminuir o valor que as pessoas viam no produto B, é claro que isso não constituirá violação alguma. Ninguém pode ter o direito, portanto, de ser protegido contra a concorrência, nem tampouco a “danos morais” e coisas semelhantes.
Então sabemos que somente bens escassos e controláveis podem ser apropriados e juridicamente protegidos. Mas como alguém se torna dono de algo? Há somente duas maneiras: a) por apropriação original ou b) por troca voluntária. Na troca voluntária, ou contrato, há uma transferência de títulos de propriedade de uma pessoa para a outra. Já a apropriação original ocorre quando alguém toma para si algo previamente sem dono (res nullius). Mas não basta somente isso para que o sujeito aproprie a coisa. É preciso haver o incurso de um elemento subjetivo chamado animus domini, i.e., a vontade de ser dono. Se você atravessa uma rua, você a está usando, mas ninguém dirá, apenas por isso, que você está se apropriando dela. Da mesma forma, se você sobe em uma árvore no meio de uma floresta virgem ou desbrava mares desconhecidos, nenhum desses atos constitui apropriação original se você não quer assumir o controle exclusivo sobre essas coisas. Até mesmo porque propriedade envolve responsabilidade: você será o responsável por aquele bem, e por isso somente aqueles que estão dispostos a assumir essa responsabilidade é que se podem dizer donos. (Se uma árvore que você apropriou tombar sobre a cabana de alguém, por exemplo, a responsabilidade será sua). Apropriação original envolve, portanto, o uso externo mais a intenção interna de ser dono.
Porém, ninguém é obrigado a saber que o indivíduo A apropriou um pedaço de terra B que, não obstante, parece ainda sem dono. Por isso, como Hoppe destaca, a única maneira de saber se algo é de alguém é por meio da imposição de limites físicos, isto é, intersubjetivamente verificáveis, que delimitem fisicamente aquele bem.[5]
Além disso, uma vez que a ação é o uso de meios (externos) para atingir fins (mentais), então o indivíduo somente se apropria daquilo que está dentro da sua esfera de ação. O que determina a extensão da coisa apropriada é a intenção com que ela foi usada. Por exemplo, se um homem constrói uma fazenda e planta milho, isso não significa que ele se apropriou de todo o espaço aéreo sobre a casa e a plantação. Porém, se o mesmo homem constrói ali um aeroporto, então ele se apropriou também de parte do espaço aéreo daquele lugar, pois esse espaço é necessário para ele realizar a ação que deseja – para o uso normal do bem. Naturalmente, a extensão exata não pode ser definida a priori, mas dependerá do caso concreto, isto é, da prática legal.[6]
O Sujeito de Direito e a Comunidade Jurídica
Se o único direito é o de propriedade privada, quem pode ser titular desse direito? Só pode ser titular de um direito de propriedade aquele ser que é capaz de agir. Ou seja, apenas seres racionais são sujeitos de direito. O conjunto dos sujeitos de direito forma a comunidade jurídica, i.e., o conjunto de todos os seres para os quais o direito de propriedade é obrigatório.
Por que a racionalidade é o critério definidor do sujeito de direito? Porque somente quem é racional pode decidir sobre o modo de uso de bens escassos e evitar conflitos. Seres irracionais não podem tomar decisões e seguir regras, logo eles tanto não possuem direito de propriedade quanto também não possuem nenhum dever.
Desse modo, pode ser sujeito de direito qualquer ser racional possível, o que deve incluir – pois de outro modo a teoria estaria incompleta – pessoas, alienígenas, robôs autoconscientes e criaturas interdimensionais. Parece ridículo considerar esses outros seres além dos seres humanos, mas é por meio de exemplos radicais e extremos assim que pomos à prova a consistência de uma teoria que visa se aplicar a toda a realidade e não a apenas um recorte arbitrário.
De outro lado, seres desprovidos de racionalidade não podem, por definição, nem ser obrigados a nada nem exercer controle sobre nada. Eles não possuem direitos, deveres ou responsabilidades. É o caso, por exemplo, dos animais. O critério definidor de um ser racional é a capacidade comunicativa, como sugere Hoppe.[7] Pois somente quem possui as categorias da razão é capaz de dizer algo com sentido. Assim, todo ser capaz de dizer “Sim” e “Não”, como diz Hoppe, é capaz de racionalidade. Obviamente, muitos animais são passíveis de serem treinados, e alguns podem aprender a dizer coisas até mais complexas que Sim e Não, mas isso ainda não é uma manifestação de escolha racional. Da mesma forma, algumas máquinas com inteligências artificiais podem sustentar diálogos até certo ponto com sentido, mas não atingem o nível necessário para serem considerados seres racionais agentes. Caso um animal ou um robô atinja esse nível, ele passará a ter direito de autopropriedade, mas também todos os deveres e responsabilidades que disso advêm. Deve haver, de fato, uma área cinzenta que compreenda seres que não podem ser considerados nem totalmente racionais, nem totalmente irracionais, mas isso deve ser julgado caso a caso e configura uma questão técnica em vez de filosófica.
Certa vez levantaram o questionamento de se um indivíduo dormindo ainda seria sujeito de direito, já que ele, enquanto dorme, é incapaz de agir e de se comunicar. Creio que objeções dessa natureza não surgem de uma reflexão sincera para entender a verdade. Elas provêm de indivíduos que querem impor seu próprio sistema de crenças em vez de aceitar aquilo que a razão – a Rainha Comum – diz. É óbvio que ao dormir o indivíduo não perde a sua capacidade comunicativa, ele apenas a suspende por um momento, pois seu corpo precisa de repouso. Apenas se ele sofresse um acidente e perdesse a racionalidade é que ele não poderia mais exercer o controle sobre os seus bens, e alguém teria de fazer isso para ele, então ele teria um tutor ou seu patrimônio seria transferido para seus herdeiros – a depender do caso.
O objetivo de fornecer esses elementos da teoria austríaca da justiça não é dar uma solução a todos os casos concretos possíveis, mas apresentar as bases últimas sobre as quais esses casos devem ser resolvidos. Como Konrad Graf bem falou, uma coisa é a Teoria Legal, outra a Prática Legal. A primeira lança as bases a priori da justiça, e a segunda aplica essas bases nos casos concretos, onde existem infinitos elementos contingentes e acidentais. Por exemplo, é a Teoria Legal que determina que matar alguém é crime, mas somente a Prática Legal, observando os elementos materiais de um caso concreto, é que determina se Antônio efetivamente matou Oswaldo.
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Notas
[1] Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito. 8. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. p. 217.
[2] Bobbio, Teoria da Norma Jurídica.
[3] Alguns objetam: “Eu não tenho propriedade sobre o meu corpo; eu sou o meu corpo”. Com efeito, não faz diferença. Se eu sou o corpo ou se eu sou uma alma dentro do corpo, em ambos os casos eu sou o seu controlador exclusivo (i.e., o seu proprietário).
[4] Para melhor entendimento dessa matéria, leia Contra a Propriedade Intelectual, de Stephan Kinsella.
[5] Hoppe, “A justiça da eficiência econômica”.
[6] Konrad Grad, “Action-Based Jurisprudence”.
[7] Hoppe, idem.