Aula XXVII – Reformulação da Ética Argumentativa Hoppeana

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E no entanto, notável e extraordinariamente, Hans Hoppe demonstrou-me errado. Ele conseguiu: deduziu uma ética anarcolockeana a partir de axiomas autoevidentes.

Murray Rothbard[1]

 

Meu argumento não é dedutivo; é transcendental.

HHH

 

Nesta aula você entenderá por que a ética argumentativa de Hans-Hermann Hoppe é a solução para o problema filosófico acerca do que deve ser feito – o problema da Ética.

A Ética é a parte da filosofia que investiga o que o homem deve fazer, de que maneira ele deve se comportar. A tese de que essa ciência é impossível chama-se ceticismo ético; a tese de que todas as éticas são igualmente válidas se chama o relativismo ético; e a tese de que só há uma ética válida se chama absolutismo ético: é aqui que nos enquadramos.

Uma ética é uma doutrina daquilo que deve ser feito. Para que uma ética seja algo além de uma opinião pessoal, ela precisa se basear em alguma coisa objetiva. Daí encararmos aquele antigo problema: ou a doutrina se baseia em um dogma, uma opinião que não pode ser provada, ou ela se baseia em um fato do qual não se pode, logicamente, derivar uma norma. Como resolver isso?

Na verdade, para que se compreenda bem a solução, é preciso entender o chamado Trilema de Münchhausen. Esse trilema se refere ao problema da fundação na filosofia. Veja que, se você pegar uma tese A e perguntar “por que A?”, você terá uma resposta do tipo “A porque B”. “Mas por que B?”, você perguntará. “B porque C”, dirá alguém, e assim por diante. Essa linha de raciocínio, naturalmente, não pode ir ao infinito, porque isso significaria que a tese A não teria um fundamento último, uma base, um chão. E, se falta uma justificação final à tese, então esta é, em última análise, injustificada, e portanto falsa ou arbitrária. Dado esse problema, como obter conhecimentos certos? De certa maneira, a praxeologia já nos mostrou como se resolve isso: adotando-se um axioma autoevidente, isto é, uma proposição que não pode ser negada sem autocontradição. Não obstante, conhecer o trilema de Münchhausen – e a sua solução – tornará isso ainda mais claro.

Diz o trilema que todo processo de justificação sempre conduzirá: a) a uma regressão infinita, b) a um raciocínio circular ou c) à adoção de um dogma. Na regressão ao infinito, nunca se chega ao fundamento último da tese, dizendo-se que A é por causa de B, B é por causa de C, C é por causa de D… e assim por diante, sem nunca se chegar a uma justificação final. No raciocínio circular, usa-se a falácia da petição de princípio, onde aquilo que se quer provar é assumido como verdadeiro já no início da argumentação, como em: “Eu estou sempre certo, e eu disse isso, logo isso é verdadeiro” ou “A Bíblia é a palavra de Deus, e isso está escrito na Bíblia, logo isso é verdadeiro”. E na adoção de um dogma, também chamada de escolha arbitrária, há uma cessação arbitrária do regresso ao infinito, em que se diz “isso é verdadeiro porque é” e não se fala mais no assunto. Em nenhuma dessas três possibilidades há uma justificação final para uma tese.

No entanto, conforme aponta Karl-Otto Apel, existe uma quarta possibilidade: chegar-se àquelas proposições que não podem ser provadas sem petição de princípio e nem ser rejeitadas sem que se caia em uma autocontradição.[2] Existem verdades discursivas que não podem ser demonstradas sem ser admitidas ab initio como verdadeiras, nem tampouco ser negadas sem que o negador se contradiga a si mesmo, enredando-se na chamada “contradição prática”.[3] Uma contradição prática, também chamada de performática ou performativa, acontece quando o conteúdo semântico da proposição contradiz a própria condição prática necessária para se afirmá-la. Um exemplo disso é dizer “Eu estou morto”: a afirmação contradiz a própria condição de possibilidade de ser dita. Outra é dizer “Eu não existo”; outra “Eu não ajo”; outra “Nada existe”; outra “A comunicação é impossível” etc. Isso nos mostra que existem proposições ou verdades que compõem o próprio pano de fundo da comunicação, sem as quais a atividade mesma de comunicar seria impossível. São verdades que toda comunicação pressupõe. De fato, nada se diz sem se assumir a própria existência, e que uma realidade intersubjetivamente compartilhada existe, e que os receptores da mensagem são capazes de compreendê-la, e que algum conhecimento é possível, etc. Essas verdades compõem aquilo que Apel denominou de pragmática-transcendental.[4] Para deixar claro, Kant distingue transcendente de transcendental.[5] O primeiro refere-se, na filosofia kantiana, àquilo que ultrapassa a jurisdição da mente, aquilo que está para além da razão. E o segundo refere-se àquilo que é condição de possibilidade da experiência. É nesse sentido que Apel usa o termo: há verdades que são condição de possibilidade da comunicação. Chamam-se proposições pragmático-transcendentais.

Assim, todo conhecimento deve ter por base alguma proposição que não pode ser negada sem ser ao mesmo tempo admitida implicitamente. Como se sabe, existem proposições de natureza descritiva, como aquela que diz que o homem age. Mas haveria uma norma, uma proposição normativa, um dever que subjazesse a toda comunicação? Em havendo, teríamos descoberto uma norma pragmático-transcendental – um dever absoluto, que não pode ser negado sem ser tacitamente assumido.

Hoppe descobriu essa norma: o direito de propriedade privada. Porém, como ensina Hans Kelsen, o direito é sempre o reflexo de um dever. Por isso eu entendo que uma teoria da ética deve focar no dever em vez de no direito. Qual seria então o dever transcendental?

Antes de tudo, é preciso ficar claro isto: que toda decisão já é uma norma.[6] Quando eu decido algo, eu estou me impondo um dever, seja ele autônomo (oriundo da própria vontade), seja ele heterônomo (oriundo de uma regra social, religiosa, familiar etc.). Quando eu digo “Eu vou fazer isso”, sendo uma decisão, tem o mesmo sentido de dizer “Eu devo fazer isso”, do contrário não seria um ato intencional, mas mero comportamento involuntário. Assim, se todo homem age, todo homem se impõe o dever de agir de algum modo e não de outro.[7] Dizer “Eu não devo agir de nenhum modo” o colocaria em uma contradição prática evidente. Ficar parado e mudo, por ser uma escolha, é também uma ação. Porém, toda ação necessariamente envolve, como vimos, decidir sobre o uso de bens escassos. Logo, todo homem assume para si, no momento em que age, o dever de decidir sobre o modo de uso de bens escassos. Isso é uma proposição pragmático-transcendental. Mas essa proposição ainda não estabelece como esses recursos devem ser usados (estabelece apenas que decisões devem ser tomadas). Se só houvesse uma pessoa no mundo, isso não seria um problema – ela poderia usar o que quisesse do modo que quisesse sem incomodar ninguém. Mas, havendo duas ou mais pessoas em sociedade, as suas decisões podem vir a se contradizer e gerar conflitos, caso discordem em algum momento sobre o modo de uso de um mesmo objeto. E aqui devemos adicionar, como outra premissa do argumento, uma segunda norma pragmático-transcendental: que não deve haver conflitos. Isso é uma norma pragmático-transcendental porque a comunicação é sempre uma atividade essencialmente pacífica. Em toda conversa ou debate, os participantes sempre se obrigam a respeitar certas regras de conduta sem observância das quais a própria troca de ideias não seria possível. E isso envolve não iniciar agressão física.

Destarte, até aqui temos que, em todo ato de comunicação, nós sempre reivindicamos estas duas regras: que devemos decidir sobre o modo de uso de bens escassos e que devemos não agredir. Mas lembre-se: não é que essas regras sejam válidas somente durante o curso de uma argumentação. O que acontece é que a recusa delas é sempre injustificável, pois o negador precisaria dizer algo para justificar essa negação, e ao entrar em um ato de comunicação ele as admitiria válidas por princípio.

Assumindo então que nós já estamos, agora mesmo, nos obrigando a seguir essas regras, sabemos que devemos decidir sobre o uso de bens escassos e sabemos que, simultaneamente, devemos manter a paz.[8] É claro que a única coisa que poderia provocar um conflito seriam decisões contraditórias de dois ou mais sujeitos sobre um mesmo objeto. Se todos usassem os recursos de que dispõem de maneira que todos concordassem com as decisões de todos, então haveria perfeita harmonia de comportamentos (e a própria ideia de dever não surgiria). Assim, dado que devemos decidir sobre o uso de bens escassos sem iniciar agressão, e que a única forma de fazer isso é evitando tomar decisões contraditórias sobre o mesmo recurso, concluímos que devemos evitar essas decisões contraditórias. Porém, a única maneira de as decisões das pessoas não se contradizerem é cada uma decidindo sobre recursos específicos sobre os quais somente ela tem o poder de decidir. Ou seja, as decisões precisam ser exclusivas – só o indivíduo A deve decidir sobre como usar o recurso B. Ter o poder exclusivo de decidir sobre o uso de um bem significa justamente ter propriedade sobre esse bem (o termo propriedade é definido como controle exclusivo). Assim, nós concluímos que deve haver controle exclusivo sobre o uso de bens escassos. Deve haver propriedade privada.

Em resumo: se a) nós devemos decidir sobre o modo de uso de bens escassos, e b) nós devemos não agredir, logo c) deve haver uma atribuição de títulos de propriedade sobre bens escassos.

Dessa forma, respeitar o direito de propriedade é um dever a que todo ser racional se obriga, ainda que não queira e decida agir de outro modo. Afinal, todo dever é, por definição, violável. Apenas sucede que essa violação em particular não seria racionalmente justificável (i.e., justificável no curso de uma argumentação).

Perceba, por fim, que essa proposição normativa a priori não é uma lei essencialmente liberal, socialista, libertária ou conservadora. Trata-se de uma lei humana. Ela não tem ideologia. Pelo contrário: ela é a condição de possibilidade para a coexistência pacífica de todas as ideologias. Qualquer grupo de pessoas livres pode decidir se organizar da forma que quiser: numa comunidade onde tudo é compartilhado por todos e não existe dinheiro; numa comunidade estritamente conservadora onde drogas e promiscuidade são proibidas; numa comunidade onde reina o amor livre e há somente uma única grande família; numa comunidade baseada em certa cultura ancestral. Tudo isso é permitido, bastando que esses indivíduos se reúnam voluntariamente. Sendo comunidades privadas, as leis serão privadas, escolhidas conforme o arbítrio do dono ou dos donos. A única coisa que não é justificável é obrigar alguém a viver em uma comunidade, impedindo-o de forma a sua. Dito dessa forma, parece óbvio e a coisa mais natural do mundo: e realmente é. Só que esse absurdo é justamente o que constitui um Estado: uma comunidade da qual não se pode sair e que se é obrigado a financiar. Por isso, a instituição do Estado deve ser abolida ainda hoje, dando lugar a uma ordem natural baseada no direito absoluto de propriedade privada.

 

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Notas

[1] Rothbard, “Para além do Ser e Dever Ser”.

[2] Karl Otto-Apel, “The Problem of Philosophical Fundamental-Grounding in Light of a Transcendental Pragmatic of Language”. Disponível em: < https://r.jordan.im/download/religion/apel1975.pdf>.

[3] Marian Eabrasu, “Uma resposta às críticas correntes formuladas contra a Ética Argumentativa de Hoppe”. Disponível em: <https://rothbardbrasil.com/uma-resposta-as-criticas-correntes-formuladas-contra-a-etica-argumentativa-de-hoppe/>.

[4] Apel, idem.

[5] Kant, Crítica da Razão Pura.

[6] Bobbio, Teoria da Norma Jurídica.

[7] O homem não tem opção entre agir e não agir, mas ele tem opção sobre como agir.

[8] Leitores mais críticos perceberam que eu usei expressões diferentes para me referir à segunda norma: “manter a paz”, “não agredir”, “não haver conflitos”. Entenda que com isso eu quero dizer apenas não iniciar agressão física, não invadir.

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