Os defensores do estado, desde os tempos imemoriais, vêm-nos garantindo que ele é uma instituição naturalmente necessária, porque é o garante da coesão e prosperidade social. Para eles, sociedade e estado são sinónimos, pois, na ausência do estado, o caos tomaria o seu lugar. Com o decorrer do tempo, principalmente com a evolução do direito e da economia, a ideia de um estado total foi sendo superada. O homem foi descobrindo que determinados bens e serviços podiam ser fornecidos adequadamente através do mercado, dispensando a intervenção estatal na sua produção, bem como a existência de regras universais que servem para dirimir conflitos e estabelecer a paz. Os escolásticos da escola de Salamanca descobriram, por meio do estudo dos fenómenos económicos, a subjectividade dos preços, garantindo sua gestão mais adequada a nível individual, em contraposição com a ideia de controlo por parte do estado ou igreja. Estudos subsequentes vieram a confirmar e a aprofundar essas investigações, principalmente entre os clássicos da economia como Adam Smith, David Ricardo, Jean-Baptiste Say e tantos outros. Portanto, o tempo deixou mais claro que o funcionamento, coesão e a prosperidade da sociedade, dependem das acções livres e voluntárias dos indivíduos, e não de uma instituição como estado ou igreja.
No entanto, apesar desse avanço rumo à liberdade, um serviço muito especial ficou intacto na análise. Entre os defensores de um estado total e os minarquistas, isto é, defensores do estado mínimo, prevaleceu sempre a ideia da manutenção dos serviços de segurança como reserva do estado. Para eles, o mercado tinha como vocação a produção de bens de consumo individual, enquanto os serviços comuns ou públicos seriam da competência exclusiva de uma agência estatal criada para o efeito. Desse modo, os serviços de segurança estatais, enquadrados no âmbito do consumo comum ou público, deveriam ser assegurados à sociedade através de agências estatais específicas, como é a polícia ou o exército. Essa crença foi alimentada por alguns filósofos, quando afirmaram que a natureza humana é parcialmente ou totalmente perversa, pelo que uma forte regulação estatal seria necessária para manter a sociedade. Economistas, juristas e libertários no geral, prontamente refutaram esse argumento. Como nos adverte Murray Rothbard,
Se todos os homens fossem bons e nenhum possuísse tendências criminosas, então não haveria nenhuma necessidade de termos um estado, como os próprios conservadores admitem. Porém, se por outro lado, todos os homens fossem maus, então o argumento em defesa do estado seria igualmente fraco, já que não haveria motivo algum para imaginar que aqueles homens que formariam o governo, e que estariam em posse de todas as armas e de todo o poder para coagir a população, seriam magicamente imunes a toda a ruindade inerente às outras pessoas que ficaram de fora do governo. Portanto, em absolutamente nenhuma teoria sobre a natureza humana, seja ela uma teoria sobre a bondade, a ruindade, ou uma mistura de ambas, pode o estatismo ser justificado.”[1]
Nessa perspectiva, os defensores dos serviços estatais de segurança estavam errados, porque analisavam o fenómeno da segurança do ponto de vista holístico. Eles concebiam a segurança como um serviço que dizia respeito a uma cidade, nação ou País no todo. Habituados a uma análise dedutiva de que a sociedade pensa e sente, concebiam os serviços de segurança como dirigidos à satisfação das necessidades colectivas. Não percebiam eles que a necessidade de segurança provinha do instinto de autopreservação de cada indivíduo, portanto, uma categoria própria da acção humana. Sendo a acção humana propositada, que tende a evitar o desconforto, para abraçar o conforto, pode-se facilmente deduzir desse axioma que a segurança é uma categoria da acção propositada que busca o conforto. Diante do frio e da chuva, o homem constrói cabanas e fábrica, utensílios para se proteger. Perante o perigo de outros animais, usando a razão, o homem produz zagaias, ratoeiras e outros utensílios para a sua autodefesa, o que lhe permitiu a sobrevivência. Contando que o homem é fisicamente mais fraco em relação a muitos outros animais, não fosse a fabricação de armas que o uso da razão lhe permitiu, não teria sobrevivido até aos nossos dias. Até mesmo nos dias de hoje, é impensável para um homem que vive em zonas rurais andar sem uma arma ou outros utensílios de defesa pessoal, face ao perigo de outros animais predadores.
Perante o perigo de outros homens, cria igualmente armas para a sua autodefesa, num acto iminente de violência. Mas, mais do que isso: para proteger-se de outros homens e construir uma sociedade pacífica e próspera, o homem criou um sistema de normas, instituições e leis. Sempre haverá criminosos, sempre haverá aqueles que ignorarão as regras da propriedade, pelo que só com um sistema jurídico e a punição que lhe caracteriza, o homem seria capaz da autoprotecção, permitindo-se assim uma coabitação pacífica. “A cooperação humana (i.e., a sociedade) só pode prevalecer e evoluir na medida em que o homem for capaz de subjugar, domesticar, apropriar e cultivar o seu ambiente físico e animalesco e na medida em que ele for bem-sucedido na repressão do crime, reduzindo-o a ocorrências raras por meio da autodefesa, da protecção dos direitos de propriedade e da punição,”. Hans-Hermann Hoppe.[2]
Por isso, a protecção é uma acção ou serviço de âmbito individual, uma categoria da acção humana que visa o conforto e a preservação da espécie humana. O direito natural ou o sistema de leis privadas encontra o seu fundamento na autoprotecção. É um serviço como qualquer outro que visa satisfazer a necessidade de cada indivíduo específico, podendo ser fornecido pelo próprio mercado e sujeito à lei da livre competição. A esse respeito, Hans-Hermann Hoppe ensina-nos ainda que “na medida em que for necessária, a força defensiva pode ser facilmente fornecida a partir de um sistema voluntário, assim como um bom pão e água potável podem ser fornecidos. Não há utilidade em permitir o surgimento de “uma agência, e somente uma agência, o estado … [que tenha] o direito de tributar e de tomar as decisões finais. Nosso maior erro como espécie tem sido, uma vez após a outra, permitir o surgimento dessas agências de coerção armada.”[3] Daí que, apegando-nos nas palavras de Gerard Radnitzky, definimos a segurança como a probabilidade de um indivíduo ser capaz de lidar com o máximo de ameaça ou perigo possíveis.
Desse modo, abandonada a visão individual da segurança, substituindo-a pela visão holística, esses serviços são então retirados da esfera individual e passam para a esfera estatal. E se atendermos ao facto de que a polícia e o exército, instituições encarregues pela segurança pública, são instituições estatais, e ainda ao facto de que o Estado tem sua origem na conquista, e procura manter-se através da exploração e violência, facilmente damo-nos conta da falácia da segurança estatal.
Franz Oppenheimer definia o Estado, no tocante à sua origem, como “uma instituição imposta sobre um grupo vencido por um grupo conquistador, com o único fim de sistematizar a dominação dos conquistados e se salvaguardar contra a insurreição de dentro e ataques de fora.” Dessa definição fica claro que a polícia e o exército foram criados com o único propósito de defender as instituições estatais contra a invasão. A polícia, para proteger o estado da insurreição de dentro e o exército contra os ataques de fora. As instituições estatais de segurança foram criadas porque, diferente de outras instituições sociais que vivem vendendo bens e serviços no mercado ou de doações, o estado é única instituição que vive obtendo seus rendimentos através do uso da força. Ninguém, de forma livre e voluntariamente, pagaria impostos, ou cumpriria leis impostas pela justiça estatal, pelo que só a polícia forçaria indivíduos a cumprirem e respeitarem tais imposições. E o primeiro passo para obter a passividade dos cidadãos é desarmar completamente os cidadãos, de tal modo que ninguém mais tenha a capacidade de se autoproteger.
A segurança pública equivale à protecção da vida, liberdade e a propriedade legítima dos cidadãos. E a polícia não visa garantir a segurança dos cidadãos, isto é, proteger as suas vidas e propriedades de qualquer que seja a outra pessoa ou entidade, mas visa sim proteger e legitimar a agressão e a violência perpetradas pela casta política que detém o poder, contra cidadãos indefesos. Muitos exemplos podem ser apresentados para fundamentar o argumento acima. Há mais ou menos dois anos, na província do Huambo, um grupo de jovens vendo a criminalidade aumentar no seu bairro, decidiu organizar-se para a protecção das suas vidas e propriedades. Em um mês, detiveram alguns criminosos e recuperaram algumas armas que estavam em posse desses criminosos. Quando finalmente levaram o resultado do seu trabalho ao conhecimento do parceiro policial, simplesmente foram intimados a parar com tais serviços, com a fundamentação de que tais serviços eram da competência exclusiva da polícia. Mais recentemente, alguns activistas do movimento do protectorado do Reino da Lunda, um movimento que reivindica a autonomia das províncias que pertencem ao mesmo reino, saíram às ruas para se manifestarem contra o que consideram um alto nível de vida das populações locais. A reacção da polícia foi a brutalidade descomunal, tendo morrido vários manifestantes em decorrência da actuação policial. Na ocasião, o Comissário Nacional da Polícia Angolana prometeu lançar mísseis intercontinentais onde quer que os manifestantes contra o estado estivessem. Claramente, neste e noutro exemplo, a posição da polícia foi a defesa do estado e nunca a protecção das pessoas, suas vidas e propriedades. Ademais, como garantir que a polícia assegura os cidadãos, se quando falta com os seus deveres não é responsabilizada para o ressarcimento? Por que os membros do governo, que nos vendem a ideia da eficácia da segurança estatal ou a ideia de que a polícia garante a protecção da vida e propriedade, têm cada um deles um corpo de guarda policial fortemente armado, para além de eles próprios possuírem o direito de portarem armas? Com certeza, sabem que só uma protecção privada e pessoal pode salvar realmente a pessoa de um ataque circunstancial de um agressor.
Mais recentemente, com a actual ditadura da Covid19, governos, em todo o mundo, passaram a violar as liberdades e propriedades dos cidadãos a céu aberto. As vacinas foram impostas, certificados de vacinação para quem queira viajar, encerramento de comércio, isolamento domiciliar, foram imposições do estado contra cidadãos pacíficos, violando os seus direitos básicos e as suas legítimas propriedades. No Sul de Angola, até mesmo os agricultores foram impedidos de acederem às suas lavras, em obediência ao protocolo covidiano. Todas essas agressões e violações contra indivíduos indefesos foram e continuam a ser perpetradas pelo estado, ante o olhar impávido e sereno da polícia, justamente uma entidade que se diz protectora desses indivíduos. Ironicamente, todas essas agressões e toda a violência gerada contra cidadãos indefesos foram perpetradas pela própria polícia.
Recorde-se que, em certas ocasiões, nos conflitos entre cidadãos, ou entre uma gangue e cidadãos indefesos, ou ainda nos pequenos conflitos que envolvam o próprio estado com os cidadãos, a polícia age fingindo que protege a liberdade e propriedade. Quando o conflito envolve somente particulares, o estado procura estabelecer regras da propriedade privada, justamente porque entende que não pode concorrer com particulares ou outras gangues em actividades de violência. Portanto, procura somente alcançar o monopólio da força e da violência. Em outros actos conflituosos de pequeno porte, onde o próprio estado se envolve com particulares, o estado simula o respeito pela liberdade e propriedade, procurando legitimar-se como entidade pacífica. Mas, em todas essas situações, o objectivo principal do estado é o monopólio da violência. O estado não suporta a ideia de repartir o botim ou esbulho com gangues iguais, pois, implicaria concorrência e perigaria a sua própria existência e por isso impõe que seja única gangue com direito e legitimidade exclusivas para confiscar a propriedade e limitar a liberdade das pessoas.
Como se vê, toda essa violência policial fica facilitada com cidadãos desarmados, do contrário, seria muito mais difícil para um sistema de poder realizar actos de violência. A ideia da segurança pública proporcionada pelos serviços de segurança estatais, para além de inútil é auto contraditória, contando que os órgãos que a asseguram geram violência social contra cidadãos indefesos. Como nos reforça Walter Block, “…argumentar que um governo arrecadador de impostos pode legitimamente proteger seus cidadãos contra agressões é se contradizer, já que tal entidade inicia todo o processo fazendo o oposto de proteger aqueles que estão sob seu controle. O estado, aqui, é indistinguível do chefe da máfia que diz a sua vítima que a protegerá de si mesmo.” Aliás, se comparada a violência estatal e a privada, pode-se notar claramente que o número de vítimas ou mortes causadas pelas instituições estatais é de longe maior do que os crimes de particulares, mesmo em tempo do término dos conflitos armados.
Recapitulando: à polícia cabe defender a violência estatal contra a insurreição de dentro e ao exército cabe a defesa contra os ataques de fora. E assim, buscando forçar sua legitimidade, o estado passou a chamar a sua própria violência de lei e a reacção dos cidadãos contra a agressão estatal, de crime, estabelecendo desse modo uma organização social baseada na exploração dos governados pelos governantes, causando assim o declínio civilizacional. Só a autoprotecção ou os serviços de segurança fornecidos pela livre iniciativa empresarial, são capazes de assegurar verdadeiramente os indivíduos e a sociedade. Para tal, é preciso restaurar o direito à autoprotecção, que, por extensão, implica o direito de cada indivíduo possuir armas, assim como o estabelecimento de um sistema de leis baseada no direito privado. Em última instância, as roupas, os sapatos e as casas que usamos, são utensílios de segurança, pelo que, por coerência à monopolização estatal dos serviços de segurança, fariam ao estado proibir a aquisição pessoal e ser o próprio estado a fornecer todos esses serviços.
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Notas
[1] Murray N. Rothbard, “Mitos e verdades sobre o libertarianismo”, Instituto Rothbard Brasil.
[2] Hans-Hermann Hoppe, Democracia: o Deus que Falhou, São Paulo : Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2014. P. 209, 2010.
[3] HOPPE, Hans-Hermann, Economia, Sociedade & História, São Paulo: Instituto Rothbard, 2021. P. 8