Uma das passagens mais memoráveis nas memórias do escravo fugitivo Frederick Douglass é quando ele descreve como um grupo de escravos discutia com outro grupo de escravos sobre qual mestre era mais rico ou mais forte. Exibindo uma mistura de síndrome de Estocolmo com delírios de grandeza, esses escravos, de acordo com Douglass, “pareciam achar que a grandeza de seus senhores podia ser transferida para eles mesmos”. Além disso, Douglass observou que os escravos tendiam a não julgar o comportamento de seus senhores por quaisquer padrões objetivos estabelecidos, mas somente os julgavam em comparação com outros senhores. O próprio Douglass, quando escravo, caiu nesse modo de pensar, conforme relatado nesta passagem:
“Frequentemente me perguntaram, quando eu era escravo, se eu tinha um mestre gentil, e não me lembro de ter dado uma resposta negativa; nem eu, ao seguir esse curso, me considerei estar proferindo algo que era absolutamente falso; pois sempre medi a bondade de meu mestre pelo padrão de bondade estabelecido entre os proprietários de escravos ao nosso redor. Além disso, os escravos são como as outras pessoas e absorvem preconceitos bastante comuns aos outros. Eles pensam que os seus são melhores do que os dos outros. Muitos, sob a influência desse preconceito, pensam que seus próprios senhores são melhores do que os senhores de outros escravos; e isso também, em alguns casos, quando o inverso é verdadeiro. Na verdade, não é incomum que os escravos até briguem e lutem entre si sobre a bondade relativa de seus senhores, cada um lutando pela bondade superior de seu próprio senhor sobre o dos outros. Ao mesmo tempo, eles execram mutuamente seus mestres quando vistos separadamente. Foi assim em nossa fazenda. Quando os escravos do coronel Lloyd encontravam os escravos de Jacob Jepson, eles raramente se separavam sem uma briga sobre seus senhores; os escravos do coronel Lloyd alegando que ele era o mais rico, e os escravos do Sr. Jepson que ele era o mais inteligente e mais honrado. Os escravos do coronel Lloyd se gabavam de sua capacidade de comprar e vender. Os escravos do Sr. Jepson se gabavam de sua capacidade de chicotear. Essas brigas quase sempre terminavam em uma briga entre as partes, e aqueles que chicoteavam deveriam ter ganhado o ponto em questão. Eles pareciam pensar que a grandeza de seus mestres era transferível para eles mesmos. Já era considerado muito ruim ser um escravo; mas ser escravo de um homem pobre era considerado uma desgraça!”
Podemos ver aqui um análogo a inúmeras discussões entre as pessoas nas quais elas se consideram bastante privilegiadas por serem dominados e explorados pela atual oligarquia dominante. Por que? Muitas vezes é porque essas vítimas do regime julgam seus senhores menos terríveis do que alguns outros senhores. Mas, não contentes em concluir que um conjunto de senhores é apenas menos ruim do que outro, esses servos voluntários dão um passo adiante e atribuem a seus senhores grande virtude e bondade.
Muitas vezes vemos isso ao discutirmos a natureza do poder do estado, mesmo com aqueles que se consideram de forma pouco convincente como grandes defensores da liberdade. “Eles nos mantêm seguros!” é talvez o refrão mais perene, seguido de palavras autoconsoladoras sobre como os parasitas governantes devem receber “o benefício da dúvida” porque supostamente estão sob o fardo de “grandes responsabilidades”. Não devemos julgar nossos governantes com muita severidade porque, entenda, eles “têm um trabalho árduo”. Além disso, mesmo que não respeitemos aqueles que atualmente ocupam cargos que exercem grande poder coercitivo, devemos, no entanto, cantar louvores a seus cargos e aderir ao mandamento de “se não respeitamos o homem, devemos respeitar o cargo!” Por esse pensamento, mesmo que uma instituição política esteja cheia de criminosos e aproveitadores ano após ano, o problema nunca pode ser a própria instituição. Assim, devemos – ou assim se diz – “respeitar” as ferramentas institucionais de nossa própria exploração.
A linguagem da submissão voluntária ao estado
Aqueles que se deleitam em sua obediência aos seus capatazes financiados por impostos inventarão até nomes grandiosos para as instituições que perpetuam o cativeiro da classe produtiva. Os servos dispostos chamarão o estado de nomes como “nosso estado democrático” ou “nossa república” – termos destinados a enganar os pagadores de impostos, fazendo-os pensar que têm algum peso no que tange as decisões do regime. Alguns dos escravos cativos de seus senhores podem até ser levados às lágrimas ou grande angústia com a ideia de que o atual estado possa um dia deixar de existir. Deus proíba que o povo brasileiro seja submetido a um capataz diferente do atual, que tão virtuosamente brande os chicotes da tributação, inflação e regulamentação para manter nossa atual safra de generais, juízes, banqueiros e tecnocratas vivendo impunemente em uma condição de privilégio e opulência.
Mas, nossos senhores devem ser defendidos, dizem-nos, porque eles são diferentes dos outros senhores. Nossos senhores – aqui em “nossa” república, onde desfrutamos do grande privilégio de dar um voto em 155 milhões, e onde qualquer eleição que realmente ameace o regime seria judicialmente anulada e declarada nula e sem efeito pelo governo permanente – são mais ricos e mais durões do que os senhores da fazenda de impostos vizinha. Como disse Douglass, aqueles que insistem que devemos apreciar as muitas grandes bondades do governo “pensam que a grandeza de seus senhores pode ser transferida para eles mesmos”.
Sob o jugo do estado administrativo moderno, quase todos nós somos reduzidos à servidão física exigida por todos os estados. Isso é feito com todas as ferramentas usuais de dominação física, incluindo tribunais, prisões e legiões de policiais. Na maioria dos casos, ou obedecemos, ou somos presos, ou possivelmente mortos. No entanto, muitas das vítimas do regime não se contentam com a mera dominação física do regime. Muitas exigem ser dominadas em pensamento e espírito também. Elas repetem histórias hagiográficas aprovadas pelo regime sobre os “grandes” feitos do regime do passado; elas juram lealdade à bandeira do estado e cantam os “hinos” quase religiosos do estado enquanto se anunciam como servos leais de políticos populares.
Muitos apenas toleram o estado, enquanto outros insistem em glorificá-lo
Afinal, mesmo que se aceite a necessidade prudencial de algum tipo de governo civil – uma posição que não contestarei aqui – uma coisa é aceitar a existência de governo civil como algo que toleramos por razões pragmáticas. É algo inteiramente diferente atribuir ao governo civil qualidades morais ou virtuosas.
Há 1.600 anos, Santo Agostinho não se opunha à existência ou criação de governos civis. No entanto, ele também viu os governos pelo que eles são – os equivalentes morais dos piratas. Ele escreveu como os governos civis dos homens – que nunca podem realmente dispensar justiça real dado o estado caído do homem – são caracterizados “não pela remoção da cobiça, mas pela adição da impunidade”. Agostinho continua:
“Na verdade, essa foi uma resposta adequada e verdadeira que foi dada a Alexandre, o Grande, por um pirata que havia sido capturado. Pois quando aquele rei perguntou ao homem o que lhe parecia isso de infestar os mares, ele respondeu com orgulho ousado: ‘o mesmo que a ti parece isso de infestar todo o mundo; mas a mim, porque o faço com um pequeno navio, chamam-me ladrão; e a ti, porque o fazes com uma grande armada, chamam-te imperador’”
No entanto, mesmo com essa compreensão da verdadeira natureza dos governantes políticos, Agostinho, por razões práticas, aceitou a existência do governo civil “para manter a paz”.
Infelizmente, nem mesmo essa aceitação resignada de um mal supostamente “necessário” é suficientemente entusiasmada para aqueles que sentem a necessidade de glorificar ativamente seus capatazes como se fossem instrumentos de virtude.
Servidão aprendida
Muito disso é simplesmente por hábito, ou fruto de anos de uma “educação” que promove obediência e deferência àqueles que empunhem as ferramentas de coerção do estado. Como Étienne de la Boétie escreveu em seu O Discurso da Servidão Voluntária:
“Portanto, digamos então que ao homem todas as coisas lhe são como que naturais; nelas se cria e acostuma; mas só ele é ingênuo a isso — a que o chama sua natureza simples e inalterada; assim, a primeira razão da servidão voluntária é o costume — como os mais bravos courtaus [cavalos de corrida ] que no início mordem o freio e depois descuram; e onde outrora escoiceavam contra a sela, agora se ostentam nos arreios e soberbos pavoneiam-se sob a barda. Eles dizem que sempre foram súditos, que seus pais viveram assim; pensam que são obrigados a suportar o mal, convencem-se com exemplos e ao longo do tempo eles mesmos fundam a posse dos que os tiranizam; mas como em verdade os anos nunca dão o direito de malfazer, aumentam a injúria.” [Ênfase adicionada.]
Boétie escreveu isso no século XVI e isso nos lembra que os homens podem ser treinados para elogiar qualquer senhor se o treinamento for suficiente. Ainda mais quando os homens são treinados para considerar seus exploradores como os arquitetos virtuosos da segurança e da prosperidade, como tantos dos chamados “cidadãos” são incansavelmente treinados para fazer.
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