A doutrina do partido dominante no Paraguai

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Dezessete anos após a Guerra do Paraguai, que opôs o exército do Paraguai aos da Argentina, Brasil e Uruguai, o ex-combatente Bernardino Caballero e um grupo de homens fundaram a Associação Nacional Republicana (ANR) em 1887 – também conhecida como Partido Colorado. No manifesto de fundação do partido, havia uma clara intenção de tirar o Paraguai da situação em que ainda se encontrava após a guerra devastadora:

             “Ligados por honradas tradições, unidos em um único propósito de erguer o país de sua dolorosa e prolongada prostração, consagrados às árduas tarefas de um trabalho comum para garantir o bem-estar geral da comunidade, não há poder que possa romper a cadeia de união que nos une, porque é fortalecido pelos deveres de comunhão na luta persistente pelo bem, alimenta-se dos sentimentos da mesma fé e fortalece-se dos vínculos indissolúveis da concórdia e da fraternidade.”

O manifesto consubstanciou o objetivo de tornar efetivos “os grandes propósitos estabelecidos no belo preâmbulo da Constituição da República”. Outros destaques do manifesto incluem:

  • A constituição como “o decálogo sagrado dos povos livres”, ao venerar este “evangelho político” e cumprir suas prescrições é “amar e servir a verdadeira causa da liberdade, é prestar o serviço mais notável ao país, dando um alto exemplo de virtude cívica e patriotismo”.
  • A soberania popular como “o grande fundamento da república”, onde o povo tem o direito de eleger seus líderes e elevar a cargos públicos cidadãos honestos e idôneos, capazes de estabelecer no país “o reino da justiça e da moralidade política”.
  • A proposta de trazer à representação aqueles que “são a expressão genuína da vontade popular, fazendo predominar a opinião pública”.
  • O objetivo de alcançar o lema republicano: o governo do povo pelo povo.

Ideologia e comunismo

O credo republicano da ANR enfatiza uma concepção cristã da democracia e do nacionalismo como defesa contra inimigos internos e externos, dotando a democracia de uma mística “revolucionária e combativa”. De acordo com o credo, a riqueza extraída da terra “só tem validade econômica e social quando aplicada aos princípios de uma distribuição popular mais justa de seus benefícios”.

Separada por mais de um século, a Declaração de Princípios da ANR (DP), aprovada em 1967, compartilha muitas semelhanças com o Manifesto Comunista publicado em 1848.

O Manifesto Comunista aspira à erradicação das distinções de classe e ao estabelecimento de uma sociedade onde a riqueza e os recursos sejam compartilhados de forma equitativa, eliminando as classes exploradas. A DP defende que a democracia assegure uma participação crescente nos benefícios da riqueza e da cultura e garante a evolução ordenada para uma sociedade igualitária, sem privilégios ou classes exploradas.

O Manifesto Comunista defende a abolição da propriedade privada (particularmente a propriedade privada dos meios de produção), sustentando que ela perpetua a opressão e a exploração de classe. O Manifesto Comunista busca desmantelar o capitalismo e seus sistemas de desigualdade associados. A DP se alinha com as críticas marxistas ao capitalismo descontrolado. Opõe-se a qualquer ditadura, mas defende a legitimação da intervenção estatal na atividade econômica privada em prol do interesse geral, subordinando a propriedade privada e intervindo na vida social econômica para evitar o abuso do interesse privado.

O Manifesto Comunista quer uma economia planejada com medidas como centralizar o controle da produção, o crédito e a comunicação pelo estado para atender às necessidades coletivas. A DP propõe a adoção de planos globais, setoriais e regionais para garantir o desenvolvimento equilibrado da economia, integrando a política fiscal com os regimes de câmbio, crédito, comércio exterior e empresas públicas. A DP pretende implementar medidas fiscais para influenciar o consumo, a poupança e o investimento e, assim, direcionar a renda para o desenvolvimento econômico e social, juntamente com impostos progressivos mais altos sobre itens de luxo.

O Manifesto Comunista se concentra em capacitar o proletariado, estabelecer a propriedade coletiva e acabar com a exploração salarial. A DP espera consolidar as conquistas sociais e econômicas dos trabalhadores, fortalecer os sindicatos e criar um Banco dos Trabalhadores para incentivar a poupança e atender às suas necessidades de crédito, protegendo os trabalhadores contra a usura.

O Manifesto Comunista prevê uma sociedade onde a educação e os recursos sejam acessíveis a todos, como educação gratuita para crianças. A DP vê o trabalho, a previdência social e o bem-estar econômico como direitos fundamentais. Compromete-se a financiar a educação em todos os níveis, construindo hospitais para melhorar os cuidados médicos e a educação, ao mesmo tempo em que estabelece um sistema abrangente de seguridade social para todos. Da mesma forma, a DP pretende construir moradias para os menos favorecidos e integrar a saúde nacional ao desenvolvimento econômico e social.

O Manifesto Comunista pede a abolição da propriedade fundiária e a distribuição equitativa da terra para erradicar as estruturas feudais. A DP propõe o desaparecimento progressivo de grandes propriedades improdutivas, a introdução de seguros agrícolas obrigatórios e a remuneração justa dos agricultores.

Sem a DP indo tão longe quanto o Manifesto Comunista em tudo, e com algumas diferenças entre eles, ambos buscam:

  • priorizar o bem-estar dos trabalhadores para equilibrar a dinâmica entre trabalho e capital
  • compartilhar uma visão de reduzir as hierarquias sociais e garantir a justiça na distribuição da riqueza
  • endossar o planejamento econômico estruturado e a intervenção estatal generalizada
  • rejeitar sistemas que favorecem os interesses da elite sobre o bem coletivo
  • reestruturar a propriedade da terra e apoiar a reforma agrária
  • comprometer-se com o acesso universal a serviços essenciais para elevar a população

A DP opera dentro de uma estrutura reformista, sem desmantelar explicitamente o capitalismo. É decididamente menos revolucionária e menos materialista do que o Manifesto Comunista. Considerando, por exemplo, seu compromisso com a dignidade humana e o bem-estar espiritual das pessoas, bem como com todas as liberdades compatíveis com a liberdade dos outros e a felicidade coletiva.

Republicanismo Democrático e estatismo

A forma republicana de governo adotada pela ANR implica que o aparato estatal e os benefícios derivados da exploração sejam de propriedade de um grupo privilegiado, embora mutável, de pessoas que vivem e prosperam às custas daqueles que governam. Além disso, embora o republicanismo reivindique igualdade perante a lei, isso realmente significa igualdade dos indivíduos privados perante a lei pública. Em outras palavras, os agentes do estado gozam de imunidade das disposições do direito privado. No entanto, a verdadeira igualdade perante a lei só é possível com o fim do setor público, ou seja, de pessoas legalmente protegidas para receber benefícios que não são obtidos por meio de transferências voluntárias e acordos entre proprietários privados. Portanto, acabar com as classes exploradas é impossível com o republicanismo, uma vez que a república leva à existência de uma classe exploradora.

É claro que exaltar o patriotismo é fundamental para que o poder político induza a devoção popular ao Estado-nação. Assim, ao se apegar à identificação do povo com uma língua, cultura e história comuns, a combinação de nacionalismo e republicanismo democrático fortalece a aceitação do estatismo pelo público. E ao obscurecer ainda mais a diferença entre os governantes e os governados em favor da ideia de autogoverno, o republicanismo democrático diminui a resistência do público aos abusos do poder político.

No entanto, uma república democrática não equivale necessariamente a um governo menos poderoso e menos explorador. Em vez disso, é um governo de propriedade pública que está sistematicamente predisposto a ser o oposto e, portanto, a ser mais prejudicial à instituição da propriedade privada do que um governo de propriedade privada.

Teoria e História

A doutrina da ANR está repleta de planejamento central e medidas socialistas de quase todo tipo, basicamente oferecendo ao estado um cheque em branco para agredir a propriedade privada. Para cumprir o credo da ANR, a classe dominante deveria ditar os princípios de uma distribuição popular mais justa da riqueza, com a qual tal validade econômica e social faria sentido. Mas uma crescente distribuição popular dos benefícios da riqueza não é o mesmo que uma crescente participação na cooperação social e na divisão do trabalho para a criação de riqueza. E assim como o interesse geral, que na realidade é o interesse da classe dominante acima dos interesses dos cidadãos comuns, a dignidade e as condições de existência social também teriam que ser definidas arbitrariamente pela classe dominante.

Além disso, uma vez que a responsabilidade social seja imposta em relação ao que significa justiça social aos olhos dos governantes, e não de acordo com os princípios universais de justiça e aquisição de propriedade privada, a justiça social acaba sendo inequivocamente injusta.

Uma república, sendo de propriedade pública, estava fadada a mostrar uma tendência para adotar o sufrágio universal. Portanto, não é surpresa que, sob o domínio da ANR, as mulheres tenham conquistado o direito de votar e ser eleitas em 1961, incluindo a primeira candidatura à presidência do Paraguai em 2008.

Na Europa muito mais rica, séculos de riqueza e acumulação de capital e mercados livres precederam o surgimento e a expansão do republicanismo democrático e do estado de bem-estar social, mas o Paraguai não pode se orgulhar do mesmo passado. O Paraguai não possuía um fundo de reserva há muito construído que pudesse esgotar em nome da consecução de um estado de bem-estar europeu. Portanto, o fracasso da ANR em implementar plenamente seus princípios tem sido realmente positivo para o bem-estar do povo paraguaio.

Finalmente, o que o Partido Colorado entregou durante a maior parte de sua história – incluindo a ditadura de 35 anos de Alfredo Stroessner – é: o governo dos mafiosos e o desrespeito à constituição. A soberania da ignorância popular como o grande fundamento republicano. O direito dos governantes de ajustar as correntes dos cidadãos. E a elevação de indivíduos desonestos e corruptos a cargos públicos, sem vontade de estabelecer o reino da justiça e da moralidade. Tudo isso mostrou que a democracia era adequada desde o início para a expressão genuína da demagogia, persuadindo o público, enquanto essencialmente extorquia e garantia o domínio da turba pela turba.

 

Artigo original aqui.

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