A Economia do Intervencionismo

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24. Eficiência Econômica e a Abordagem do Nirvana

 

“No entanto, a tendência no debate atual é ser intolerante com as imperfeições da competição e silenciar sobre a proibição de competir.” F. A. Hayek, O Significado da Competição.

 

No capítulo anterior argumentamos que a exposição (e defesa) de uma visão de mundo liberal é dificultada pelo uso de vários conceitos teóricos pertencentes à doutrina estatista. Em particular, chamamos a atenção para a armadilha existente no uso do conceito marxista de “capitalismo”: como a realidade é identificada automaticamente com esse sistema, quaisquer problemas econômicos presentes nas economias do mundo real, como crises, desemprego ou pobreza, são automaticamente atribuídos a tal sistema. Isso permite que os filmes de arte apenas “denunciem a pobreza” sem ter que discutir as diferentes explicações para esse fenômeno. Adicionalmente, instituições existentes que são incompatíveis com a doutrina liberal são vistas como inevitáveis, parte integrante do estado capitalista e, portanto, de algum modo defendidas pelo ideologia imaginária inventada pelo estatista –  o “neoliberalismo”.

Nesse ambiente, o liberal propriamente dito, que rejeita as categorias econômicas e sociológicas do marxismo, não consegue convencer o público de que certas instituições não são inevitáveis e que o liberalismo implica em reforma profunda de vários aspectos do sistema econômico presente. Os liberais, que acreditam que vivemos em economias mistas ou intervencionistas ou ainda mercantilistas, querem mostrar por argumentação, exemplos históricos e números que a maioria dos problemas econômicos é fruto da intervenção estatal na economia e que a prosperidade é causada pela interação de pessoas livres nos mercados. Em outros termos, o liberal deseja o engajamento na análise comparativa de arranjos institucionais diferentes, defendendo a tese de que a liberdade econômica funciona. Essa tese é sujeita a discussão. Contudo, esse tipo de discussão é impossibilitado pela prática de comparar o ideal do socialismo ou de uma terceira via abstrata com a realidade, esta última identificada sempre com o “capitalismo”, pois o mundo real sempre perde para um ideal teórico.

Não obstante todo o nonsense em torno de um pretenso consenso neoliberal, a hegemonia do pensamento estatizante não permite que a alternativa liberal seja considerada. Mesmo no grupo menos sujeito a influências marxistas – os economistas – impera a proibição de investigar comparativamente o desempenho dos mercados e do estado na resolução dos problemas econômicos. Curiosamente, a tática empregada para evitar a análise comparativa de arranjos institucionais é a mesma: o contraste entre “a realidade” e um modelo ideal irrealizável. Novamente, a realidade sempre perde para o ideal. Vejamos em detalhes como funciona essa tática, dividida em três passos:

i) identificar a realidade com um arranjo livre de intervenção;

ii) aceitar esse mundo apenas se atingir um critério inalcançável;

iii) sugerir a intervenção em abstrato, ou seja, sem modelar o funcionamento do estado.

A primeira tarefa é idêntica àquela discutida quando tratamos do “capitalismo”: identificar a realidade com aquilo que se quer combater. Raramente inicia-se a análise em um cenário de economia mista, mas sim de um suposto mundo livre de intervenções. Nesse mundo, os problemas alocativos nunca são consequências de intervenções anteriores. Mesmo em áreas nas quais o estado proíbe a ação voluntária, a ausência de soluções privadas é vista como prova da impossibilidade de que estas possam existir.

Feito isso, no segundo passo avaliam-se os mercados exclusivamente em termos do critério paretiano de eficiência alocativa. Uma alocação eficiente, segundo tal critério, exige que toda oportunidade de transação mutuamente vantajosa seja de fato explorada, de modo que não é possível melhorar a situação dos agentes através da realocação de um recurso de um fim para outro.

Da mesma forma que o zero absoluto da Física representa um limite inferior para as temperaturas, dificilmente alcançável na prática, a noção teórica de alocação “ótima de Pareto” representa na Economia um limite superior de eficiência, inalcançável na prática, embora analiticamente útil. Sob a noção abstrata de equilíbrio competitivo, esse máximo é alcançado supondo-se produto homogêneo, conhecimento perfeito, livre mobilidade de recursos e grande número de ofertantes e demandantes.

Nesse ponto alguém diria que evidentemente essas condições nunca ocorrem em conjunto no mundo real. Mas, no entanto, esse comentário é enganador, pois o conceito de equilíbrio não necessariamente pretende descrever alguma realidade. Ludwig von Mises, por exemplo, interpretou o equilíbrio como uma ferramenta mental fictícia, que supõe ausência de mudanças como condição necessária para estudar a mudança que caracteriza a competição real. Hayek[1] e outros autores austríacos, por sua vez, enfatizaram a rivalidade entre concepções (empresariais) alternativas como parte essencial da atividade competitiva fora do equilíbrio e ao mesmo tempo necessária para que este seja aproximado. Sem essa atividade, por exemplo, não surgiria o conhecimento visto como dado pela teoria de equilíbrio. Esses desenvolvimentos apontam para a insuficiência do critério paretiano na avaliação da competição: para Hayek, o mercado deve ser valorizado como um mecanismo de descoberta contínua de formas de atender aos fins dos agentes. Num ambiente no qual as preferências, tecnologias e recursos se alteram o tempo todo, o mercado deve ser valorizado pela sua capacidade de gerar adaptação e não como algo capaz de gerar uma alocação perfeita.

O fundamental, para esses autores, é a utilização desses critérios (eficiência, adaptabilidade, geração e comunicação de conhecimento) para a comparação dos mercados livres com alternativas concretas, como mercados regulados de maneiras específicas ou mesmo o planejamento central. A análise econômica moderna, por outro lado, a partir dos trabalhos de Kenneth Arrow e culminando com os textos de Joseph Stiglitz, tolera mercados livres apenas se houver a crença de que as alocações ótimas de Pareto foram obtidas, o que é impossível ocorrer na prática, pois a competição real nunca se molda ao leito de Procusto da teoria da competição perfeita.

Vejamos alguns exemplos. Diferenciação de produto, essencial no processo competitivo de descoberta por tentativas e erros, tende a ser condenada sob a ótica do modelo de competição monopolística como algo ineficiente. Stiglitz mostra que se um produto simples como uma camiseta tiver dez características (cor, tamanho, …), cada qual com dez variações (azul, branco, …, P, M, G, GG …), teríamos dez milhões de mercados (1010), tornando impossível um mercado competitivo em cada um deles. Na competição real os planos de ação de empresários, refletindo o conhecimento localizado de cada um, são testados nos mercados, influenciando os preços e gerando aprendizado e adaptação sob descentralização. Mas isso é eclipsado pela afirmação de que tais preços não transmitem conhecimento de forma ótima. Se David Ricardo não pôde no século XIX negociar opções de compra de ações de empresas de software e fixar a renda de seu tataraneto, os mercados são incompletos, portanto ineficientes e o estado deveria conduzir o investimento.

Chegamos assim ao terceiro passo: a sugestão de intervenções estatais para corrigir as “falhas de mercado” (a incapacidade de gerar equilíbrios eficientes no sentido de Pareto). Mas, como salientaram os autores da Escola de Virgínia, como Buchanan e Tullock, os economistas adotam dois pesos e duas medidas na hora de comparar mercados com estado: embora se suponha que os agentes privados sejam movidos pelo autointeresse, os agentes públicos são altruístas maximizadores do bem-estar coletivo. Na verdade, a ação estatal não é modelada em absoluto – o estado é tratado como uma entidade benevolente incorpórea. Nessa visão romântica sobre o estado, os políticos não buscam poder e os funcionários públicos não são tentados por renda extra. Assim, fica muito fácil concluir que o estado pode facilmente solucionar as falhas de mercado. Como na nossa análise sobre o “capitalismo”, o conceito de “ótimo de Pareto” também é bastante eficaz na tarefa de bloquear o estudo das consequências econômicas do intervencionismo.

Harold Demsetz[2], da Universidade da Califórnia, denominou “Nirvana approach” a prática de rotular de ineficiente a realidade[3], sem ao mesmo tempo analisar como arranjos institucionais alternativos lidariam com o problema. Para constatar a dominância dessa abordagem, basta folhear qualquer manual de microeconomia para verificar que, embora um terço do espaço seja dedicado às falhas de mercado, sequer uma linha é escrita sobre falhas de governo.

Na pesquisa teórica, a arte da abordagem do nirvana atinge seu coroamento na obra de Stiglitz[4]. Para este autor, além de benevolente, o estado é quase onisciente. Se por um lado as firmas operam sempre com informações imperfeitas, aos funcionários públicos e políticos basta conhecer alguns poucos dados sobre a economia, como algumas elasticidades, para que intervenções eficazes sejam obtidas. Seria o caso de perguntar por que, por exemplo, considerando-se a complexidade do espaço de bens, não seriam necessárias pelo menos dez milhões de elasticidades ou, se abandonarmos a superstição neoclássica de que estamos sempre em equilíbrio e estes são alcançados magicamente, perguntar de onde viriam as inovações se burocratas conduzissem o investimento ou como eles lidariam com as adaptações necessárias diante das mudanças que ocorrem diariamente. Em vez disso, somos informados que o único problema de assimetria informacional se refere ao monitoramento dos burocratas. O principal, o planejador, aparentemente está livre de erros. Embora ocorram “falhas de mercado” em toda parte, em momento algum existem “falhas de Stiglitz”. Um rei-filósofo não erra se bem assessorado…

Podemos agora avaliar quão fraudulenta é a tese dos economistas de que os papéis do estado e dos mercados são avaliados imparcialmente pela teoria econômica, já que os segundos são avaliados literalmente por um critério inalcançável e qualquer análise sobre o funcionamento do primeiro não ocorre em absoluto. Com efeito, no que concerne à análise econômica da ação estatal, impera uma espécie de historicismo: qualquer tentativa de discernir e discutir padrões que identifiquem defeitos inerentes à ação estatal é rejeitada por princípio, afirmando-se que não existem regularidades nesse campo e que as intervenções devem ser analisadas caso a caso. Ou seja, adota-se dogmaticamente a crença de que a análise caso a caso não poderia revelar regularidades. Assim, por ironia, uma postura dogmática posa como equilibrada e o convite dos liberais para que a análise caso a caso seja feita é denunciada como dogma.

Para que essa análise seja feita, contudo, é necessário reconhecer como liberal aquilo que é liberal e como intervencionista aquilo que é intervencionista e discutir as responsabilidades de cada tipo de arranjo institucional. Mas em nenhuma parte o ardor da ideologia estatista se manifesta com mais furor do que na tarefa de chamar de liberal aquilo que é a antítese do liberalismo, como, por exemplo, o sistema monetário-bancário atual, sustentáculo do estado grande e interventor.

No campo teórico, contudo, a proibição de analisar a lógica do intervencionismo não é plenamente respeitada. Além dos economistas da Escola da Escolha Pública, que desafiaram a visão romântica sobre o estado, os economistas da Escola Austríaca, acostumados a contrariar a maioria em sua valente busca por aquilo que acreditam ser a verdade, conduziram extensa investigação sobre a lógica do estatismo.

 

 


[1] Hayek (1980).

[2] Demsetz (1969).

[3] Essa realidade, vale a pena enfatizar, nunca é identificada com o intervencionismo, mas sempre como mercados livres.

[4] Ver, por exemplo, Stiglitz (1994).

 

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