A Economia do Intervencionismo

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30. As Escolas e os Mercados

No debate sobre o estado da educação no país, com frequência ouvimos argumentos que utilizam analogias com os mercados. O desinteresse dos alunos, os currículos desatualizados e a insatisfação em geral com o ensino são atribuídos ao distanciamento de dirigentes de escolas e professores, que habitam torres de marfim e não se preocupam com as necessidades dos alunos. Embora haja ainda algum pudor em usar a palavra ‘cliente’ para se referir ao aluno, as reformas defendidas sugerem que um ambiente mais competitivo levaria as escolas a ouvir mais seus estudantes. Sugerem-se então injeções de marketing – a preocupação com as necessidades dos alunos (conforme entendidas pelos próprios) e, no caso das universidades públicas, pesquisas que gerem retornos imediatos para a sociedade que sustenta essas instituições, como progresso técnico e produção de patentes. Qualquer reação a esses argumentos é atribuída ao corporativismo dos professores.Esse tipo de opinião é comum mesmo entre autores liberais. Adam Smith, na Riqueza das Nações, atribui o desleixo dos professores aos seus salários fixos, que não dependem do empenho; sugerindo que pelo menos parte da remuneração do docente devesse consistir em pagamentos feitos pelos alunos que voluntariamente escolhessem seus cursos[1]. Comentaristas liberais modernos, por seu turno, acreditam que o desinteresse dos alunos é consequência direta do estatismo no ensino, que prejudica a competição e resulta em cursos que os alunos não valorizam. Como nos demais mercados, também na educação a oferta deveria ser guiada pela demanda, acreditam esses autores. Como nos mercados livres, a maneira de prosperar seria atender a soberania do consumidor.

Mas, se observarmos a educação moderna, a soberania do consumidor aplicada ao ensino já é uma característica marcante. Como nunca as escolas dão voz ao seu público, do ensino fundamental à pós-graduação: os alunos são objeto de várias pesquisas de mercado, o ‘planejamento estratégico’ das faculdades se preocupa com o que o mercado de trabalho requer dos cursos e os currículos são modificados de acordo, os professores impopulares são demitidos e mina-se sistematicamente a autoridade dos docentes, vistos pelos alunos como seus empregados, com o apoio de seus pais.

O objetivo da presente discussão não é opinar sobre a controvérsia “Piaget versus Pinochet” na educação, mas criticar a falsa analogia entre as escolas e os mercados. Em outros termos, embora nossa opinião sobre a pedagogia moderna seja claramente manifesta, o que pretendemos fazer é refutar a tese de que a liberdade na educação implica a priori a aceitação dessa pedagogia.

A base da falácia repousa na incompreensão da seguinte proposição: a essência das trocas em uma sociedade livre não é satisfazer os desejos do consumidor a todo custo. A tese da soberania do consumidor, tal como expressa por Ludwig von Mises[2], meramente mostra que a única forma de obter lucro (na ausência de privilégios legais) é de fato atendendo os desejos dos consumidores. No entanto, um indivíduo ou grupo é livre para escolher seus objetivos, mesmo que isso contrarie tais desejos e resulte em remuneração menor: embora pudesse enriquecer como cantor sertanejo, um músico pode preferir ser um violoncelista pobre. Murray Rothbard[3] fala então em soberania do indivíduo e não apenas do consumidor quando analisa os fundamentos de uma sociedade livre. Nesse tipo de sociedade, embora ninguém seja forçado a apreciar música de qualidade, tampouco um músico com formação deve ser forçado a tocar as obras de Lady Gaga[4].

Existem, além dos produtos que as pessoas simplesmente não querem consumir devido ao mau gosto, certos serviços que, apesar de demandados, contém aspectos desagradáveis aos consumidores. Considere por exemplo um personal trainer ou um nutricionista que orienta dietas. Ninguém negaria a esse tipo de profissional o direito de construir reputação no mercado através de fama de ser “duro” com seus clientes, reduzindo desse modo as chances que estes últimos abandonem os exercícios ou o regime. Nesses casos, ninguém condenaria um profissional que queira descontinuar a parceria com um cliente que não siga suas instruções. Este último, aliás, por si mesmo tenderia a deixar de demandar o serviço caso perceba que não possui autodisciplina. Ao mesmo tempo, dificilmente acreditaria em alternativas fáceis: ninguém levaria a sério uma “dieta da lasanha” ou o proverbial “alterocopismo” (levantamento de peso … dos canecos de cerveja) que pudessem ser propostos por profissionais rivais.

Quando tratamos de educação, porém, uma escola que adote uma estratégia análoga a do bom profissional descrito acima geralmente é criticada por não se adaptar às exigências do mercado, possivelmente por falta de pressão competitiva. Qual é a origem dessa diferença de tratamento? A resposta a essa indagação repousa na desconsideração, por parte da utópica pedagogia moderna, daquilo que os economistas chamam de “desutilidade marginal do trabalho”. Não basta, como querem os especialistas em educação, despertar o aluno para o fascínio do assunto estudado. Quando montava meu telescópio na calçada, os meninos da favela vizinha faziam fila para observar, maravilhados, as crateras da Lua, os anéis de Saturno ou as fases de Vênus. Mas, quando a curiosidade de alguns deles os levava a perguntar por que Vênus tem fases como a Lua, o interesse imediatamente desaparecia quando eu tentava muito didaticamente explicar o fenômeno utilizando pedrinhas no lugar dos corpos celestes, ainda que a abstração empregada fosse reduzida ao mínimo. Da mesma forma, a maioria dos iniciantes em aulas de violão, rapidamente desistem, quando percebem que o aprendizado requer incontáveis horas de exercícios monótonos e até mesmo dor física nos dedos. A maioria opta por decorar poucos acordes e parar o estudo: basta isso para impressionar as meninas no colégio…

As discussões sobre educação, contudo, tendem a ignorar o fato trivial de que o aprendizado da maioria dos assuntos, por mais fascinantes que possam ser, envolve um custo alto em termos de esforço desagradável. As escolas, que competem pelos alunos, por sua vez procuram vender a ilusão de que existem formas de aprender a custo zero. As escolas de ensino básico prometem milagres apenas despertando a curiosidade das crianças. Podemos ver anúncio de escolas de línguas que prometem ensinar sem gramática ou lições de casa, apenas usando conversação. Os cursos superiores, por sua vez, anunciam que em seus cursos aprende-se na prática e não na teoria. De fato, podemos constatar que quanto pior a universidade, mais provável que sua publicidade se concentre nesse tema.

Essa estratégia funciona, contudo, apenas se os alunos acreditarem nessa ilusão, motivados pelo desejo de não incorrer nos custos da educação. Infelizmente, é o que acontece. No curto prazo, a principal vítima disso é o professor. Este, em especial nas escolas ruins, se encontra em uma situação muito delicada. Se exige que os alunos se esforcem para aprender algo, estes prontamente organizam um abaixo assinado pedindo sua demissão. Mas, se resolve contar piadas no lugar de ensinar, os alunos também ficam bravos, pois não estão aprendendo. Afinal, não soa bem para a autoestima reconhecer que, como clientes, eles demandam apenas o diploma e não o conhecimento, que envolve custos. A ilusão do ensino sem custos exige então que os professores finjam que ensinam, mas os alunos têm que acreditar que estão aprendendo. A única alternativa para o professor é lecionar matérias práticas, que não envolvam muito esforço cognitivo, ou disputar os poucos empregos existentes nas instituições sérias, que não tratam o aluno como cliente. Um indício de quão verdadeiro é esse retrato da trágica situação do ensino atual consiste na progressiva popularidade da piada que define a escola como um estabelecimento comercial que vende diplomas a prazo, os alunos são os clientes e os professores estão ali para atrapalhar as negociações.

No longo prazo, evidentemente, os grandes prejudicados são os alunos. Apesar da retórica das firmas que contratam universitários, que gostariam que os custos do treinamento prático fossem deslocados para as universidades, elas na verdade preferem contratar os formandos das universidades que ensinam “na teoria” e não “na prática”. Isso é explicado pelo fato que aqueles que suaram para demonstrar teoremas abstratos e ler milhares de páginas desenvolveram capacidade analítica para resolver problemas variados e escrever bem, ao passo que aqueles que foram tratados como clientes descobrem que o tão valorizado conhecimento prático que adquiriram com pouco esforço rapidamente se torna obsoleto.

Quando a ilusão se desfaz, resta ao aluno enganado se fazer de vítima, apontando para a falta de oportunidades no passado. Eu conhecia um desempregado, formado em Comércio Exterior, que colocava a culpa de sua situação no “capitalismo” e não no fato de que não falava nenhuma língua estrangeira! Lembro até hoje da expressão de ódio nos olhos dele quando lembrei de que, em vez de fazer um curso de inglês, ele preferiu financiar um carro novo ou ainda dos professores que tentaram ensinar alguma coisa e que, no entanto, foram demitidos pela pressão dos alunos.

Voltamos com isso à nossa tese: o mercado fornece aquilo que os consumidores demandam. Em particular, na educação, área na qual por definição o cliente desconhece a natureza daquilo que compra (o conhecimento), é natural que os consumidores demandem uma ilusão, o conhecimento sem custos, que é de fato ofertado. Mas, como no caso do personal trainer e do nutricionista, isso não significa que uma boa escola deva pautar suas ações apenas pelos desejos de seus clientes, mas pela sua própria visão sobre qual é o melhor interesse dos clientes no longo prazo. Nessas duas profissões, convencer o cliente é relativamente fácil, mas em educação, soa como paternalismo. Mas isso não envolve em absoluto paternalismo, mas simplesmente tentativas de convencimento dos potenciais alunos sobre os custos e benefícios envolvidos em uma escolha intertemporal: embora uma maioria sucumba de fato ao benefício presente de cursos pouco exigentes, o diploma obtido, por ser uma fraude, que atesta a transmissão de um conhecimento que não ocorreu, será desvalorizado e resultará em poucas vantagens futuras.

A analogia superficial entre escolas e mercados, no entanto, levaria de fato a crer que o atendimento das necessidades do consumidor deva resultar na transformação das instituições em verdadeiras fábricas de diploma. Mas, no entanto, se entendermos a essência dos mercados livres, a analogia correta deveria enfatizar a desejabilidade da liberdade para que as escolas que queiram procurem prosperar através da oferta de educação de qualidade, convencendo os alunos que vale a pena investir nos seus interesses de longo prazo.

Na analogia corrigida, um mercado livre (competitivo) de ensino apresentaria em maior grau um processo hayekiano de descobertas de soluções por tentativas e erros, com escolas adotando métodos rivais, que se revelarão mais ou menos adequados para cada tipo específico de curso e aluno. Em contrapartida, a ausência de competição no mercado educacional corresponde à realidade presente do país, com educação altamente estatizada e regulada, com seus currículos e métodos impostos centralmente, com os enormes desvios de recursos da atividade fim para a burocracia estatal, que resultam no fraco desempenho observado. Mas isso nos levaria as reais causas dos problemas da educação no país.

 

 



[1] Smith (1996), livro 5, capítulo 1. Smith, naturalmente, não ensinava Cálculo…

[2]  Mises (2010).

[3] Ver Capítulo 10 de Rothbard (1993), cap. 10.

[4] Se este texto for lido alguns anos depois de 2013, insira no lugar o lixo musical em voga no momento.

 

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