A Economia do Intervencionismo

0
Tempo estimado de leitura: 7 minutos

31. Mecanismos de Incentivos, Produtividade Acadêmica e o “Mercado das Ideias”

Já faz algum tempo que no Brasil, assim como no resto do mundo, prevalece a opinião segundo a qual os pesquisadores das universidades seriam improdutivos e isolados das demandas da sociedade que paga seus salários. Segundo esse diagnóstico, os professores publicam pouco e se isolam em suas torres de marfim, em vez de produzir conhecimento que possa gerar coisas úteis, como patentes.Sendo assim, as universidades e governos deveriam adotar mecanismos de incentivos desenhados com o propósito de estimular a produtividade acadêmica. Em essência, tais mecanismos atribuem “pontos” às diversas atividades do pesquisador, de acordo com o valor que se atribua a cada uma delas. Supondo que os professores pautem suas escolhas apenas pelos incentivos monetários atrelados aos pontos, eles competiriam entre si pelos mesmos, aumentando desse modo sua produção, na direção desejada.

Os economistas, conhecedores dos efeitos benéficos da competição, tendem a concordar com esse tipo de proposta, muitas vezes descrita como um uma forma de incentivos de mercado. Em consequência, apoiam opublish or perish. Por outro lado, soaria extremamente suspeita uma crítica a esse esquema formulada por um professor de economia: ao contrário dos advogados ou médicos e suas corporações de ofício, o economista não tem como defender privilégios monopolísticos sem contrariar os princípios mais fundamentais de sua disciplina. No entanto, como veremos em seguida, foi um economista que farejou há muito tempo os problemas inerentes aos mecanismos de incentivos acadêmicos. O objetivo deste capítulo é explicar por que, em vez de estimular a produtividade na academia, esse tipo de proposta figura como mais um exemplo de políticas cujas consequências não intencionais são opostas ao almejado pelos seus formuladores.

George Stigler[1], da Universidade de Chicago, satirizou a tentativa de desenhar mecanismos de incentivos já na década de 60. Em sua sátira, nos fala de um reitor de uma universidade latino-americana que pretendia estimular a produtividade de seus pesquisadores. Para tal, decretou que os professores poderiam desafiar em exames outros com um cargo superior, cuja banca seria composta de professores americanos. Caso ganhasse, o professor trocaria de posto e salário com o perdedor. Ocorreu então uma corrida à biblioteca e professores mais velhos anteciparam a aposentadoria. Porém, surgiu o entesouramento do conhecimento: os especialistas não discutiam com pessoas que soubessem menos que eles e ensinavam assuntos irrelevantes em seus cursos, com medo de perder o cargo. Diante dessa distorção, o reitor passou a conferir cinco pontos para o professor cujo aluno vencesse um desafio. Certo professor foi vencido por sete alunos, mas manteve o cargo pelos 35 pontos conquistados… Os cursos de pós-graduação ficaram vazios, pois os candidatos foram estudar nos EUA, terra dos examinadores. De fato, brilhantes professores foram substituídos por alunos que fizeram cursos com examinadores. Além disso, a atividade de pesquisa cessou e todos se concentravam nos estudos para os exames. Diante disso, o reitor conferiu dois pontos por artigo e sete por livro produzido. Os professores passaram a preferir preparar um aluno bom por ano (cinco pontos) a produzir um livro que demora três anos. Outro publicou como artigos os dezenove capítulos do seu livro, enquanto outro publicou uma transcrição de conferências.

No relato de Stigler, cada regra desencadeava uma reação inesperada e indesejável, o que convidava à reformulação do conjunto de regras. O processo nunca resultava no aumento de produtividade propriamente dita, mas em desvios dos esforços para a busca dos indicadores objetivos de produtividade. Esse fenômeno, poderíamos perguntar, seria parte de um processo de calibragem (ou ajuste fino) da política proposta? Ou existe algo inerentemente errado com a mesma?

Para responder a essa pergunta, será necessário investigar mais a fundo a analogia com os mercados. Ao fazê-lo, concluiremos que existem elementos cruciais dos mercados reais que estão ausentes tanto na teoria econômica tradicional quanto nos desenhos de mecanismos de incentivos. Isso explicará o fracasso desses mecanismos de emular a competição que ocorre nos mercados.

Para formularmos o argumento, é necessário nos ocuparmos por um instante com considerações metodológicas. As simplificações utilizadas em um modelo teórico que pretende explicar um fenômeno real complexo são úteis apenas como um guia para estudar o princípio de funcionamento do mesmo, e não uma descrição capaz de reproduzir os seus detalhes[2]. Ao tentar substituir a realidade complexa pela sua representação teórica necessariamente simplificada, perde-se a complexidade e a riqueza do sistema original.

Considere como exemplo a teoria de Darwin. Um biólogo pode construir um modelo de seleção artificial que a represente. Certa espécie de pássaro pode apresentar, digamos, variações no tamanho do bico que resultem em vantagens seletivas. No modelo, o programador fixa arbitrariamente a vantagem gerada por cada tamanho de bico e simula a evolução da ave. O modelo, por representar simplificadamente quais são os fatores que afetam o sucesso dos animais, é apenas um modelo de seleção artificial[3]. Na natureza, por outro lado, operam diversos fatores que também influenciam a capacidade de sobrevivência do animal, de forma que a seleção natural premia caminhos evolutivos que não foram imaginados pelo analista no modelo de seleção artificial. Talvez a rugosidade e peso do bico se revelem mais importantes do que o tamanho.

Em uma representação teórica do fenômeno da competição, tomando um exemplo mais próximo do que queremos discutir, também é útil a construção de um modelo de seleção artificial: o sistema de preços pune projetos inviáveis e promove projetos lucrativos em um ambiente no qual o analista utiliza representaçõesarbitrárias dos fundamentos da economia – a lista dos bens, das preferências dos consumidores, das tecnologias de produção e das fontes de recursos disponíveis. Os preços, no caso, refletem o valor dos recursos nesse ambiente artificial de equilíbrio geral. Seria um erro, no entanto, acreditar que o mecanismo seletivo dos mercados reais possa ser reproduzido de forma centralizada, como fez Oskar Lange em seu modelo, no debate do cálculo econômico socialista. Hayek[4], em sua crítica ao modelo de Lange, mostra que o sistema de equilibração por tentativas e erros (seleção artificial) proposto por Lange não é capaz de capturar a complexidade do mecanismo de seleção presente nos mercados reais, que informa a visão do autor sobre a competição como um processo de descoberta[5]. De fato, o planejador central do modelo de Lange necessariamente ignora variações de produto que empresários reais submeteriam ao teste de mercado, ignora as adaptações em tempo real que os mesmos tentariam em um ambiente em contínua mudança (em favor de um modelo de equilíbrio estático reajustado poucas vezes). Ao impor preços paramétricos (vistos como dados exógenos pelos agentes), ignora as diferentes opiniões que empresários reais teriam sobre o valor dos bens no futuro. Os preços, no modelo, não refletem as diferentes expectativas dos agentes que competiriam no mundo real. Neste, como as opiniões dos empresários variariam, as noções subjetivas de custos de oportunidade divergiriam, o que levaria a planos de ação rivais sendo testados. No esquema centralizado, pelo contrário, os custos são sempre valores corretos de equilíbrio, não havendo espaço para opiniões diferentes.

Nos dois exemplos, se o modelo for interpretado de forma adequada, o mecanismo artificial apenas ilustraalgum aspecto do princípio de funcionamento do processo de seleção real, mais complexo. Se ignorarmos a natureza do modelo e propusermos a substituição de um mecanismo pelo outro, reduziríamos drasticamente a complexidade comportada pelo fenômeno real. Em particular, o conhecimento limitado do ‘seletor artificial’ reduz aquilo que pode ser considerado nos testes. No caso dos mercados, não sabemos de antemão quais são as variáveis seletivas relevantes na competição real. Que aspectos dos bens e serviços ofertados seriam realmente apreciados pelos consumidores?

Levando em conta a importância da natureza centralizada ou não do processo de seleção nos dois exemplos estudados, temos condições agora de retornar ao nosso problema. Um esquema de pontuação acadêmica não simula incentivos de mercado, já que os critérios seletivos em um mercado genuíno – ponderações dos infinitos critérios seletivos levados em conta por todos os participantes do mercado de ideias – são muito mais complexos do que um critério seletivo planejado por um departamento central de educação ou mesmo por comitês mais descentralizados.

A reputação de um pesquisador depende assim de uma série de critérios desconsiderados pelo esquema de pontuações objetivas que comumente o avalia. Um produz em um campo mais teórico, com produção mais esparsa, ao passo que seu colega que trabalha com dados, naturalmente publica mais. Outro trabalha com uma teoria heretodoxa, o que dificulta a aceitação de suas publicações em revistas que pontuam mais. Outro trabalha com questões interdisciplinares, de modo que as revistas que aceitam esse tipo de pesquisa valem menos que revistas mais especializadas. Outros, pelo mesmo motivo, publicam livros extensos em vez de artigos pontuais, que valem mais. Outro, com uma única publicação significativa, é considerado menos produtivo que seu colega que publica muitos trabalhos pouco relevantes, todos variantes do mesmo modelo aplicado a conjuntos diferentes de dados.

Em todos esses casos, o pesquisador pode ter uma reputação considerável. Essa reputação, no entanto, não se reflete nos mecanismos de incentivos pela razão apontada acima: ao passo que a pontuação centralizada é um preço pobre, que reflete apenas a informação limitada considerada pelo órgão central, a reputação é um ‘preço’ muito mais rico, que reflete uma quantidade bem maior de informações, já que considera diversos critérios e também critérios diferentes escolhidos por ‘consumidores’ diferentes.

Os consumidores, no caso, são em essência os pares da comunidade científica e em menor grau a comunidade leiga em geral. Isso nos leva a outra diferença significativa: como em um mercado autêntico, um pesquisador pode explorar um nicho no mercado das ideias. O critério seletivo proposto por esquemas centrais de pontuação, por outro lado, se parece mais com uma escolha pública, com seu caráter binário de ‘tudo ou nada’. Numa comunidade de planejadores marxistas o microeconometrista não teria espaço, bem como o marxista não teria espaço caso os papéis fossem trocados, ao passo que ambos podem explorar seus nichos na ausência de critério central de avaliação.

O conflito sugerido acima de fato se mostra com frequência na política acadêmica: que publicações devem ‘valer’ mais? A resposta, naturalmente, passa por critérios em larga medida políticos. O curioso é que, da mesma forma que o empresário, que defende o livre mercado para os produtos que demanda e privilégios para os produtos que oferta, o intelectual também valoriza o sistema de pontuação apenas se esse valoriza seu tipo de trabalho. Recentemente, um professor de um conceituado programa de pós-graduação, defensor entusiasta da mensuração da ‘produtividade acadêmica’, passou a espernear quando seu programa foi rebaixado por formar poucos doutores (no programa, os alunos de mestrado eram encorajados a fazer Ph.D no exterior). Para o professor, a pontuação adotada seria equivalente a favorecer um absurdo ‘processo de substituição de importações’. No caso, por que os preços impostos pelo comitê central deixaram de refletir os fundamentos da economia?

A discussão realizada neste capítulo nos leva então à conclusão de que os mecanismos de incentivos à produtividade acadêmica, longe de imitar incentivos de mercado, se assemelha mais com o planejamento central, com as distorções alocativas e conflitos políticos daí resultantes. Mas qual é concretamente o principal problema derivado da adoção desse esquema de planejamento? No próximo capítulo, argumentaremos que, além de gerar distorções causadas pela tentativa de atender a critérios burocráticos de medição de produtividade, criando como subproduto uma pilha de publicações irrelevantes que ninguém lê, a imposição de mecanismos de incentivos mina um dos valores fundamentais para a verdadeira atividade do pesquisador: a liberdade acadêmica.

 



[1] Stigler (1987).

[2] Hayek (1967).

[3] Dawkins (1998).

[4] Hayek (1980).

[5]  Hayek (1978).

 

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui