A estratégia da liberdade

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[Este artigo foi extraído do trigésimo capítulo do livro A Ética da Liberdade]

A elaboração de uma teoria sistemática de liberdade já é algo muito raro, mas a exposição de uma teoria de estratégia para a liberdade praticamente nunca existiu.  Na verdade, não só para a liberdade, as estratégias voltadas para alcançar qualquer tipo de objetivo social desejado têm sido consideradas geralmente uma questão de experimentos casuais, de tentativa e erro, algo como “agarre o quanto puder”.  Todavia, se a filosofia pode estabelecer diretrizes teóricas para uma estratégia para a liberdade, certamente ela tem a responsabilidade de descobrir quais são elas.  Mas o leitor deveria ser avisado que estamos desbravando caminhos inexplorados.

A responsabilidade da filosofia de lidar com estratégias — com o problema de como ir do estado confuso de coisas atual (qualquer atual) para o objetivo da liberdade consistente — é de especial importância para um libertarianismo baseado na lei natural.  Pois, como percebeu o historiador libertário Lord Acton, a teoria da lei natural e dos direitos naturais fornece um sólido referencial para se julgar – e para se encontrar falhas em — qualquer espécie existente de estatismo.  Em contraste com o positivismo legal ou com as várias espécies de historicismo, a lei natural fornece uma lei moral e política “superior” para julgar os decretos do estado.  Como vimos anteriormente[1], a lei natural, interpretada de maneira apropriada, é “radical” ao invés de conservadora, pois implica a busca do reino dos princípios ideais.  Conforme declarou Acton, “O Liberalismo [Clássico] anseia por aquilo que deveria ser, independente daquilo que é”.  Consequentemente, como Himmelfarb escreve sobre Acton, “não se concedia nenhuma autoridade ao passado, exceto quando ele estava de acordo com a moralidade”.  Além disso, Acton distinguiu posteriormente o Whignismo do Liberalismo, e, de fato, a adesão conservadora ao status quo do libertarianismo radical:

O Whig é governado pelo acomodamento.  O Liberal institui o reino das ideias.

Como distinguir os Whigs dos Liberais?  Um é pragmático, gradual, sempre pronto para ceder.  O outro pratica princípios filosóficos.  Um é um político visando a uma filosofia.  O outro é um filósofo buscando uma política.[2]

O libertarianismo, então, é uma filosofia em busca de uma política.  Mas o que mais uma filosofia libertária pode dizer a respeito de estratégia, a respeito de “política”?  Em primeiro lugar, com certeza – novamente nas palavras de Acton — ela deve dizer que a liberdade é o “mais elevado fim político”, o objetivo prioritário da filosofia libertária.  O mais elevado fim político não significa, logicamente, o “mais elevado fim” para o homem em geral.  Na verdade, todo indivíduo possui uma variedade de fins pessoais e de diferentes hierarquias de importância para estes objetivos em suas escalas de valores pessoais.  A filosofia política é a subdivisão da filosofia ética que lida especificamente com políticas, isto é, com o papel apropriado da violência na vida humana (e a consequente explicação de conceitos como crime e propriedade).  Na verdade, um mundo libertário seria um em que ao menos cada indivíduo seria livre para encontrar e buscar seus próprios fins — para “buscar a felicidade”, na oportuna frase jeffersoniana.

Pode-se pensar que o libertário, a pessoa comprometida com o “sistema natural de liberdade” (na frase de Adam Smith), quase que por definição assegura o objetivo da liberdade como seu mais elevado fim político.  Porém, frequentemente, não é isto que se verifica; para muitos libertários, o desejo de autoafirmação, ou de testemunhar a verdade sobre a excelência da liberdade, frequentemente se sobrepõe ao objetivo do triunfo da liberdade no mundo real.  Entretanto, com certeza, como será visto mais adiante, a vitória da liberdade nunca acontecerá a não ser que o objetivo da vitória no mundo real se sobreponha a fatores mais estéticos e passivos.

Se a liberdade deveria ser o mais elevado fim político, então qual é a fundamentação para este objetivo?  Deveria estar claro depois deste livro que, acima de tudo, a liberdade é um princípio moral, fundamentado na natureza do homem.  Particularmente, ela é um princípio de justiça, da abolição da violência agressiva nos afazeres dos homens.  Por esta razão, para ser fundamentado e buscado adequadamente, o objetivo libertário deve ser perseguido com o espírito de uma devoção total à justiça.  Porém, para possuir tal devoção naquilo que pode muito bem ser um caminho longo e penoso, o libertário deve possuir uma paixão pela justiça, uma emoção originada e canalizada por sua percepção racional dentro daquilo que a justiça natural exige.[3] A justiça, e não os discursos débeis ditados pela mera utilidade, tem que ser a força motriz caso se queira alcançar a liberdade.[4]

Se a liberdade deve ser o fim político mais elevado, isto implica então que deve se buscar a liberdade através dos meios mais eficientes, i.e., aqueles meios que irão possibilitar que se chegue mais rápida e plenamente ao objetivo.  Isto quer dizer que o libertário deve ser um “abolicionista”, i.e., ele deve desejar atingir o objetivo da liberdade o mais rápido possível.  Se ele hesita em seu abolicionismo, então ele não está mais defendendo a liberdade como o mais elevado fim político.  Portanto o libertário deveria ser um abolicionista que, se pudesse, aboliria instantaneamente todas as invasões de liberdade.  Acompanhando o liberal clássico Leonard Read, que defendia a abolição completa e imediata do controle de preços e salários após a Segunda Guerra Mundial, podemos chamar isto de “teste do botão”.  Deste modo, Read afirmou que “se houvesse um botão nesta tribuna que liquidasse todos os controles de preços e salários, para isso bastando ser pressionado, eu colocaria meu dedo nele e o apertaria!” O libertário, então, deveria ser uma pessoa que apertaria um botão, se ele existisse, para a abolição imediata de todas as invasões de liberdade – não só daquelas, diga-se de passagem, que algum utilitarista diz que deveriam ser suprimidas.[5]

Anti-libertários, e geralmente anti-radicais, caracteristicamente argumentam que este abolicionismo é “impraticável”; ao argumentarem desta maneira, eles irremediavelmente confundem o objetivo desejado com uma estimativa estratégica do possível caminho em direção ao objetivo.  É essencial que se faça uma distinção bem definida entre o objetivo supremo e a estimativa estratégica de como alcançar este objetivo; resumindo, o objetivo deve ser formulado antes de as questões estratégicas ou de o “pragmatismo” entrarem na jogada.  O fato de que este botão mágico não existe, e provavelmente nunca existirá, é irrelevante para a conveniência do abolicionismo propriamente dito.  Temos que concordar, por exemplo, com o objetivo da liberdade e a conveniência do abolicionismo em beneficio da liberdade.  Mas isto não significa que acreditamos que a abolição será de fato alcançável em um futuro próximo ou distante.

Os objetivos libertários — incluindo a abolição imediata de invasões à liberdade — são “praticáveis” no sentido de que eles poderiam ser alcançados se um número suficiente de pessoas concordasse com eles, e que, se alcançados, o sistema libertário resultante seria viável.  O objetivo da liberdade imediata não é impraticável, irrealista ou “Utópico” porque — ao contrário de objetivos como a “eliminação da pobreza” — a sua realização é inteiramente dependente da vontade do homem.  Se, por exemplo, todo mundo repentina e imediatamente concordasse com as vantagens predominantes da liberdade, então a liberdade total seria alcançada imediatamente.[6]  A estimativa estratégica de como deve ser trilhado o caminho que leva à liberdade é, logicamente, uma questão completamente distinta.[7]

Assim, o libertário abolicionista da escravidão William Lloyd Garrison não estava sendo “irrealista” quando, na década de 1830, levantou a bandeira do objetivo da imediata emancipação dos escravos.  Seu objetivo era o objetivo libertário e moral propriamente dito e não estava vinculado ao “pragmatismo” ou à probabilidade de sua realização.  Na verdade, o pragmatismo estratégico de Garrison foi expressado pelo fato de que ele não esperava que o fim da escravidão acontecesse imediatamente ou em um golpe só.  Como Garrison cuidadosamente distinguiu: “Defendendo com o maior rigor possível a abolição imediata, porém, diabos!, no fim das contas teremos uma abolição gradual.  Nós nunca dissemos que a escravidão seria derrubada de uma só vez; mas que ela deveria ser, nós sempre afirmaremos”.[8] De outra forma, conforme alertado diretamente por Garrison, “Gradualismo na teoria é perpetuidade na prática”.

De fato, o gradualismo na teoria enfraquece totalmente o próprio objetivo prioritário da liberdade; ele não implica, portanto, apenas uma estratégia, mas sim uma oposição ao próprio fim e, consequentemente, é inadmissível que ele seja uma parte de uma estratégia voltada para a liberdade.  A razão é que, uma vez que o abolicionismo imediato é abandonado, o objetivo cai então para o segundo ou terceiro lugar, sendo substituído por outras considerações anti-libertárias, pois estas considerações são colocadas acima da liberdade.  Deste modo, suponha que o abolicionista da escravidão tivesse dito: “Eu defendo o fim da escravidão — mas somente daqui a cinco anos”.  Isto implicaria que a abolição dentro de quatro ou três anos, ou a fortiori imediata, seria errada, e que, portanto, é melhor que a escravidão continue por mais tempo.  Porém isto significaria que as considerações de justiça foram abandonadas e que o próprio objetivo deixou de ser o mais elevado na escala de valor política do abolicionista (ou do libertário).  Na realidade, isto significaria que o libertário defendeu a continuação do crime e da injustiça.

Portanto, uma estratégia para a liberdade não pode conter nenhum meio que enfraqueça ou que contradiga o seu próprio fim — algo que o gradualismo na teoria claramente faz.  Será que estamos dizendo então que “os fins justificam os meios”?  Esta é uma acusação comum, porém totalmente falaciosa, direcionada frequentemente a qualquer grupo que defenda mudanças sociais fundamentais ou radicais.  Pois o que mais, se não um fim, poderia possivelmente justificar quaisquer meios?  O próprio conceito de “meios” implica que esta ação é meramente um instrumento para se alcançar um fim.  Se alguém está com fome e come um sanduíche para aliviar sua fome, o ato de comer um sanduíche é meramente um meio para um fim; sua única justificativa provém de seu uso em relação a um fim pelo consumidor.  Por qual outra razão se comeria o sanduíche ou, prolongando a argumentação, se compraria o sanduíche ou os seus ingredientes?  Longe de ser uma doutrina sinistra, que os fins justificam os meios é uma simples verdade filosófica, implícita na própria relação entre “meios” e “fins”.

Então o que é que os críticos de o “fim justifica os meios” querem realmente dizer quando dizem que “meios ruins” só podem levar a “fins ruins”?  O que eles estão realmente dizendo é que os meios em questão irão violar outros fins que os críticos julgam ser mais importantes ou mais valiosos do que o objetivo do grupo que está sendo criticado.  Assim, suponha que os comunistas defendam que o assassinato é justificável se ele levar a uma ditadura do partido de vanguarda do proletariado.  Os críticos deste assassinato (ou desta defesa de assassinato)não estão afirmando realmente que os “fins não justificam os meios”, mas que o assassinato viola um fim mais valioso (para dizer o mínimo), ou seja, o fim de “não cometer assassinato”, ou da ausência de agressão contra pessoas.  E, logicamente, do ponto de vista libertário, os críticos estariam corretos.

Por esta razão, o objetivo libertário, a vitória da liberdade, justifica os meios mais rápidos possíveis para se alcançar o objetivo, mas estes meios não podem contradizer, e com isso enfraquecer, o próprio objetivo.  Já vimos que o gradualismo na teoria é um meio altamente contraditório.  Outro meio contraditório seria cometer agressão (e.g., assassinato ou roubo) contra pessoas ou propriedades justas a fim de alcançar o objetivo libertário da não agressão.  Empregar este meio seria igualmente um meio autodestrutivo e inadmissível, pois o uso de tal agressão iria violar diretamente o próprio objetivo de não agressão.

Se o libertário então deve pedir a abolição imediata do estado enquanto instrumento organizado de agressão, e se o gradualismo na teoria é contraditório ao fim prioritário (e, portanto, inadmissível), que outra postura estratégica um libertário deveria adotar em um mundo em que os estados continuam mantendo uma forte presença?  Será que o libertário deve necessariamente se confinar à defesa da abolição imediata?  As reivindicações transitórias, os passos em direção à liberdade na prática, são, portanto, ilegítimos?  Certamente não, já que, de modo realista, não haveria então nenhuma esperança de se alcançar o objetivo final.  Portanto, cabe ao libertário, ansioso para atingir o seu objetivo o mais rápido possível, pressionar o regime cada vez mais em direção a este objetivo.  Claramente, este caminho é difícil, pois o perigo de se desviar do rumo do objetivo supremo da liberdade, ou mesmo de enfraquecê-lo, sempre existe.  Mas trilhar este caminho, dado o estado do mundo no passado, presente e futuro próximo, é vital se algum dia quisermos que a vitória da liberdade seja alcançada.  As reivindicações transitórias, então, devem ser estruturadas de modo que elas (a) sempre exponham o objetivo supremo da liberdade como o fim desejado do processo transitório; e (b) nunca deem passos, ou usem meios, que explicita ou implicitamente contradigam o objetivo.

Consideremos, por exemplo, uma reivindicação transitória apresentada por vários libertários: a de que a receita do governo seja reduzida em 10% a cada ano durante dez anos, depois dos quais o governo terá desaparecido.  Esta proposta pode ter valor heurístico ou estratégico, contanto que os proponentes sempre deixem totalmente claro que estas são reivindicações mínimas, e que de fato não haveria nada de errado — na verdade, seria muito melhor — intensificar os cortes da receita para 25% por ano, ou, melhor ainda, cortar em 100% imediatamente.  O perigo surge ao implicar, direta ou indiretamente, que qualquer intensificação maior que os 10% seria errada ou indesejável.

Um perigo ainda maior de natureza similar aparece com a ideia que muitos libertários têm de estabelecer um programa de transição planejado e abrangente para a liberdade total, e.g., que, no ano 1, a lei A deve ser revogada, a lei B modificada, o imposto C cortado em 20% etc.; no ano 2, a lei D deve ser revogada, o imposto C deve receber um corte adicional de 10% etc.  O plano abrangente é muito mais desorientador do que o simples corte da receita, porque ele implica fortemente que, por exemplo, a lei D não deveria ser revogada até o segundo ano deste programa planejado.  Consequentemente, a armadilha do gradualismo filosófico, do gradualismo na teoria, iria incorrer em uma escala gigantesca.  Os aspirantes a planejadores libertários estariam praticamente consentindo, ou parecendo consentir, uma posição de oposição a um ritmo mais rápido em direção à liberdade.

Na realidade, existe outro erro grave na ideia de um  programa abrangente e planejado voltado para a liberdade.  Pois o próprio ritmo cauteloso e estudado, a própria natureza de total abrangência do programa, implica que o estado não é realmente o inimigo da humanidade, que é possível e desejável que se use o estado para executar um movimento planejado e calculado em direção à liberdade.  Por outro lado, a percepção de que o estado é o inimigo eterno da humanidade conduz a um panorama estratégico muito diferente: a saber, que os libertários pressionam por, e aceitam com entusiasmo, qualquer redução do poder do estado ou da atividade estatal em qualquer ramo; qualquer uma destas reduções a qualquer hora é uma redução no crime e na agressão e é uma redução da perversidade parasítica com a qual o poder do estado dirige e confisca o poder social.

Por exemplo, libertários podem muito bem pressionar por uma redução drástica, ou revogação, do imposto de renda; mas eles não poderiam jamais fazer isso enquanto defendem ao mesmo tempo a sua substituição por um imposto sobre vendas ou outra forma de imposto.  A redução ou, melhor, a abolição de um imposto é sempre uma redução não contraditória do poder do estado e um passo em direção à liberdade; mas a sua substituição por um imposto novo, ou por um aumento em outro lugar, faz exatamente o contrário, pois isto representa uma imposição nova e adicional do estado em alguma outra frente.  A imposição de um novo imposto é um meio que contradiz o próprio objetivo libertário.

Semelhantemente, nesta época de déficits federais constantes, nos deparamos com o seguinte problema: deveríamos concordar com um corte de impostos, mesmo que isto possa significar um aumento no déficit?  Os conservadores, a partir de suas perspectivas particulares de defenderem o orçamento equilibrado como um fim mais elevado, opõem-se invariavelmente, ou votam contra, um corte de impostos que não seja estritamente acompanhado de um corte equivalente ou maior nas despesas do governo.  Mas, uma vez que a cobrança de impostos é um ato maligno de agressão, deixar de dar as boas vindas com entusiasmo a um corte de impostos enfraquece e contradiz o objetivo libertário.  A hora de se opor aos gastos do governo é quando o orçamento está sendo considerado ou votado, momento este em que o libertário deveria igualmente exigir cortes drásticos nas despesas.  A atividade governamental deve ser reduzida onde e quando se conseguir; qualquer oposição a uma específica redução de impostos — ou gastos — é inadmissível, pois ela contradiz os princípios libertários e o objetivo libertário.

Será que isto significa que o libertário não pode jamais estabelecer prioridades, que não pode concentrar suas energias nos temas políticos que considera de maior importância?  Claro que não, pois, uma vez que a energia e o tempo de todos são necessariamente limitados, ninguém pode dedicar o mesmo tempo a cada aspecto específico do abrangente credo libertário.  Um orador ou escritor de assuntos políticos deve necessariamente estabelecer prioridades, as quais dependam, ao menos parcialmente, das circunstâncias e dos temas concretos da época.  Assim, embora um libertário do mundo de hoje certamente defenda a privatização dos faróis, muito dificilmente ele daria mais prioridade à questão dos faróis em relação à da obrigatoriedade do serviço militar ou à da revogação do imposto de renda.  O libertário deve usar a sua inteligência estratégica e os seus conhecimentos dos temas da época para estabelecer as suas prioridades políticas.  Por outro lado, logicamente, se alguém vivesse em uma ilha pequena, com ocorrência frequente de neblina e com dependência de transporte marítimo, a questão do farol poderia muito bem ter uma prioridade maior em uma agenda política libertária.  E, além disso, se por alguma razão surgir a oportunidade de se privatizar os faróis mesmo na América atual, ela certamente não deveria ser desprezada pelo libertário.

Concluímos então esta parte da questão da estratégia afirmando que a vitória da liberdade total é o mais elevado fim político; que a fundamentação apropriada para este objetivo é uma paixão moral pela justiça; que o fim deveria ser buscado através dos meios mais rápidos e eficazes possíveis; que se deve sempre manter o fim em vista e alcançá-lo o mais rapidamente possível; e que os meios escolhidos nunca devem contradizer o objetivo — seja ao defender o gradualismo, ao empregar ou defender alguma agressão contra a liberdade, ao defender o planejamento de programas elaborados, ao deixar de agarrar qualquer oportunidade de reduzir o poder do estado ou ao permitir que o aumentem em qualquer área.

O mundo, pelo menos no longo prazo, é governado por ideias; e parece óbvio que o libertarianismo somente terá chances de triunfar se as ideias se espalharem e forem adotadas por um número significativamente grande de pessoas.  E assim a “educação” se torna uma condição necessária para a vitória da liberdade — todos os tipos de educação, das teorias sistemáticas mais abstratas até os dispositivos capazes de capturar a atenção e de despertar o interesse de convertidos em potencial.  A educação é, de fato, a teoria estratégica característica do liberalismo clássico.

Porém é importante mencionar que as ideias não vagueiam livremente por si só no meio do nada; elas só têm capacidade de influência à medida que são adotadas e passadas adiante pelas pessoas.   Então, para a ideia da liberdade triunfar, deve existir um grupo ativo de libertários dedicados, pessoas com grande conhecimento da causa da liberdade e dispostas a difundir a mensagem para outras.  Em suma, deve existir um movimento libertário ativo e autoconsciente.  Isto pode parecer óbvio, mas tem sido observada uma relutância curiosa de muitos libertários em se considerarem parte de um movimento deliberado e progressivo, ou de se envolver nas atividades do movimento.  Todavia, consideremos o seguinte: houve alguma disciplina, ou algum conjunto de ideias do passado, seja o budismo ou a física moderna, que foi capaz de avançar por si só e de obter aceitação sem a existência de um “núcleo” dedicado de budistas ou de físicos?

A menção dos físicos chama a atenção para outro requisito necessário ao sucesso do movimento: a existência de profissionais, de pessoas que dediquem todo o seu tempo e o máximo de atenção ao movimento ou à disciplina em questão.  Nos séculos XVII e XVIII, quando a física moderna surgiu como uma nova ciência, surgiram sociedades científicas que eram basicamente compostas de amadores interessados, que podem ser chamados de “Amigos da Física”, que criaram uma atmosfera de estímulo e de apoio para a nova disciplina.  Mas, com certeza, a física não teria avançado muito se não fosse pelos físicos profissionais, pessoas que fizeram da física uma carreira de tempo integral, e que, por isso, puderam dedicar toda a sua energia ao fomento e ao avanço da disciplina.  A física certamente continuaria a ser um mero passatempo para amadores se a profissão de físico não tivesse surgido.  Ainda assim, existem poucos libertários, apesar do espetacular crescimento das ideias e do movimento nos últimos anos, que reconhecem a enorme necessidade do desenvolvimento da liberdade como uma profissão, como um núcleo central para o progresso tanto da teoria como das condições da liberdade no mundo real.

Toda nova ideia e toda nova disciplina começam necessariamente com uma ou poucas pessoas, e, a partir daí, difundem-se para um núcleo mais amplo de convertidos e de partidários.  Mesmo em sua plenitude, devido à grande variedade de interesses e de capacidades dos homens, o movimento libertário estará inevitavelmente vinculado a uma minoria de profissionais.  Então não há nada de sinistro ou de “antidemocrático” em postular um grupo de “vanguarda” de libertários, pois isto seria a mesma coisa que falar em uma vanguarda de budistas ou de médicos.  Esperamos que esta vanguarda ajude a fazer com que uma maioria ou uma minoria altamente influente da população adira (se não se dedicarem totalmente) à ideologia libertária.  A presença de uma maioria libertária entre os revolucionários norte-americanos, e na Inglaterra do século XIX, comprova que esta proeza não é impossível.

Nesse meio tempo, enquanto se percorre o caminho em direção ao objetivo, podemos imaginar que a adoção do libertarianismo é como uma escada ou uma pirâmide, com vários indivíduos ou grupos em diferentes degraus da escada, subindo do total coletivismo ou estatismo até o topo da pura liberdade.   Se os libertários não podem “despertar a consciência das pessoas” para que elas subam ao degrau mais alto da pura liberdade, então eles ainda podem alcançar um objetivo menor, mas ainda importante, de ajudá-las a subir alguns degraus da escada.

Com esse propósito, o libertário pode muito bem considerar proveitoso se aliar com não-libertários para a realização de alguma atividade ad hoc.  Deste modo, o libertário, de acordo com as suas prioridades e com a atual situação social, pode se dedicar a estas atividades de “forças unidas” com os conservadores para revogar o imposto de renda ou com movimentos civis para acabar com o serviço militar obrigatório ou com a criminalização da pornografia ou de discursos “subversivos”.  Ao unir forças por meio destas alianças em temas ad hoc, o libertário pode alcançar dois objetivos de uma só vez: (a) multiplicar consideravelmente a sua própria capacidade de influência ao trabalhar em prol de um objetivo libertário específico – já que muitos não-libertários se mobilizariam para cooperar nestas ações; e (b) “despertar a consciência” dos colegas da aliança, mostrando a eles que o libertarianismo é um sistema interconectado completo e que o alcance pleno de seu objetivo particular requer a adoção do modelo libertário total.  Assim, o libertário pode mostrar aos conservadores que os direitos de propriedade ou o livre mercado só podem ser maximizados e realmente protegidos se as liberdades individuais forem defendias ou restauradas; e podem mostrar aos ativistas civis a relação inversa.  É de se esperar que estas demonstrações façam com que alguns desses aliados ad hoc subam alguns degraus na escada libertária.

Conforme os marxistas descobriram, no decorrer de qualquer movimento dedicado a mudanças sociais radicais, i.e., para ir de uma situação social real para um sistema ideal, podem surgir tipos contrastantes de “desvios” da linha estratégica adequada: aquilo que os marxistas chamaram de “oportunismo de direita” e de “sectarismo de esquerda”.  Estes desvios, frequentemente atrativos à primeira vista, são tão fundamentais que podemos considerar como sendo uma regra teórica a afirmação de que uma ou ambas irão inevitavelmente surgir, distorcendo assim o movimento nas diferentes fases de sua evolução.  Entretanto, qual tendência prevalecerá em um movimento não pode ser determinado por nossa teoria; o resultado dependerá do entendimento estratégico subjetivo das pessoas comprometidas com o movimento.  O resultado, então, é uma questão de livre arbítrio e de persuasão.

O oportunismo de direita, na sua busca por vantagens imediatas, tende a abandonar o objetivo social final e a mergulhar em ganhos menores e de curto prazo, algumas vezes em total contradição com o próprio objetivo final.  No movimento libertário, os oportunistas estão mais dispostos a se juntar ao establishment estatal do que a lutar contra ele, e estão dispostos a renunciar o objetivo final em prol de ganhos a curto prazo: e.g., declarando que “enquanto todos sabem que devemos ter impostos, a situação econômica exige uma redução de 2% da carga tributária”.  Por sua vez, o sectarismo de esquerda fareja “imoralidade” e “traição de princípios” em qualquer uso de inteligência estratégica para a obtenção de demandas que fazem parte de um caminho para liberdade, mesmo aquelas que ajudam a alcançar o objetivo final e que não o contradizem.  Os sectários encontram “princípios morais” e “princípios libertários” em toda parte, mesmo em questões meramente estratégicas, táticas ou de organização.  Estes sectários provavelmente levantariam a acusação de “abandono de princípios” diante de qualquer tentativa de se ir além da mera reiteração do objetivo social ideal e de se selecionar e analisar temas políticos mais específicos e prioritários.  No movimento marxista, o partido Social Trabalhista, que encara todos os temas políticos sempre com a reiteração de que “o socialismo e somente o socialismo resolverá o problema”, é um exemplo clássico do ultra-sectarismo em ação.  Assim, o libertário sectário despreza um apresentador de televisão ou um candidato político que, diante da necessidade de escolher temas prioritários, enfatiza a revogação do imposto de renda e a abolição do serviço militar obrigatório, enquanto “negligencia” o objetivo da privatização dos faróis.

Deve ficar claro que tanto o oportunismo de direita como o sectarismo de esquerda são igualmente prejudiciais à tarefa de se alcançar o objetivo social final: pois os oportunistas de direita abandonam o objetivo enquanto alcançam ganhos de curto prazo, e, com isso, fazem com que estes ganhos sejam inúteis; ao passo que os sectários de esquerda, ao se cobrirem com um manto de “pureza”, frustram o seu próprio objetivo final ao denunciar todos os passos estratégicos necessários para alcançá-lo.

É muito curioso que o mesmo indivíduo alterne algumas vezes entre uma e outra variação , afastando com desdém em cada caso o caminho correto e aprumado.  Assim, desesperado após anos de reiteração fútil de sua pureza que não resultaram em nenhum avanço no mundo real, o sectário de esquerda pode mergulhar de cabeça no oportunismo de direita para tentar conquistar algum avanço de curto prazo, mesmo às custas do objetivo final.  Ou o oportunista de direita, cada vez mais decepcionado com as concessões — pessoais ou de seus colegas — de integridade moral e do objetivo final, pula para o lado do sectarismo de esquerda e despreza todo tipo de prioridade estratégica direcionada aos objetivos mencionados.  Deste modo, as duas variações opostas se alimentam e se fortalecem mutuamente, e ambas são destrutivas para a tarefa principal de alcançar eficazmente o objetivo libertário.

Os marxistas perceberam corretamente que dois conjuntos de condições são necessários para a vitória de qualquer programa de mudança social radical; elas foram denominadas por eles de condições “objetivas” e “subjetivas”.  As condições subjetivas resumem-se à existência de um movimento consciente e deliberado dedicado ao triunfo de um ideal social específico — condições estas que mencionamos anteriormente.  As condições objetivas se referem à existência real de uma “situação de crise” no sistema vigente, uma crise grave suficiente para ser notada por todos, e para ser entendida como uma falha do próprio sistema.  Pois as pessoas são de tal maneira que elas não se interessam em explorar os defeitos do sistema enquanto ele parecer estar funcionando toleravelmente bem.  E, mesmo se algumas se interessarem, elas tendem a considerar todo o problema como um problema abstrato, irrelevante para suas vidas cotidianas e, portanto, não como um imperativo para a ação – até a crise perceptível estourar.  É este estouro que estimula uma busca imediata por novas alternativas sociais — e é aí que o núcleo do movimento alternativo (as “condições subjetivas”) deve estar pronto para fornecer a alternativa, para relacionar a crise com os defeitos inerentes ao próprio sistema, e para mostrar que o sistema alternativo resolveria a atual crise e evitaria que crises similares ocorressem no futuro.  É de se esperar que o núcleo alternativo tenha providenciado um registro histórico que demonstre que eles já haviam previsto a crise atual e alertado quanto a ela.

Na realidade, se examinamos as revoluções do mundo moderno, descobrimos que, sem exceção, cada uma delas (a) foi aproveitada por um núcleo pré-existente de ideólogos aparentemente proféticos do sistema alternativo, e (b) foi precipitada por um colapso do sistema vigente.  Durante a Revolução Americana, um núcleo abrangente e uma massa de libertários dedicados estavam preparados para resistir aos abusos da Grã Bretanha em sua tentativa de acabar com o sistema de “negligência salutar” das colônias e de voltar a impor os grilhões do Império Britânico; na Revolução Francesa, os filósofos libertários haviam preparado a ideologia com a qual enfrentar um aumento repentino do fardo absolutista sobre o país causado pela crise fiscal do governo; na Rússia, em 1917, a derrota bélica provocou o colapso do sistema czarista a partir de seu interior, colapso para o qual os ideólogos radicais estavam preparados; no período após a primeira guerra mundial, na Itália e na Alemanha, as derrotas militares e a crise econômica do pós-guerra criaram as condições para o triunfo das alternativas do fascismo e do nacional-socialismo; na China, em 1949, a combinação de uma guerra longa e devastadora com a crise econômica causada pela inflação galopante e o controle de preços possibilitou a vitória dos rebeldes comunistas.

Tanto os marxistas quanto os libertários, de maneiras muito diferentes e contrastantes, acreditam que as contradições internas do sistema atual (para os primeiros o “capitalismo”, para os segundos o estatismo e as intervenções estatais) conduzirão inevitavelmente a um colapso no longo prazo.  Ao contrário do conservadorismo, que, sem esperanças, não enxerga nada além do desaparecimento a longo prazo dos “valores ocidentais” de séculos passados em um processo ininterrupto de declínio, tantos o marxismo quanto o libertarianismo são credos profundamente otimistas, pelo menos no longo prazo.  O problema, obviamente para qualquer ser vivo, é quanto tempo será necessário esperar para que este longo prazo chegue.  Os marxistas, ao menos no mundo ocidental, têm tido de enfrentar um adiamento indefinido de suas expectativas de longo prazo.  Os libertários tiveram que encarar um século XX que foi de um sistema quase libertário do século XIX para um sistema muito mais estatista e coletivista — retornando sob vários aspectos ao mundo despótico de antes da revolução liberal clássica dos séculos XVII e XVIII.

No entanto, existe um número suficiente de boas razões para que os libertários fiquem otimistas em relação ao curto e ao longo prazo, e para que acreditem que a vitória da liberdade pode estar próxima.

Porém, antes de qualquer coisa, por que os libertários deveriam ficar otimistas mesmo em relação ao longo prazo?  Afinal, os anais históricos são uma crônica de séculos de formas variadas de despotismo, de estagnação e de totalitarismo, civilização após civilização.  Não seria possível que a grande confiança na liberdade do período após o século XVII tenha sido apenas o forte brilho de um relâmpago no horizonte, seguido de um retorno à penumbra cinzenta e permanente do despotismo?  Todavia, este desânimo, compreensível superficialmente, negligencia um ponto fundamental: as condições novas e irreversíveis introduzidas pela Revolução Industrial no final do século XVIII e no começo do XIX, que foi uma consequência das revoluções políticas liberais clássicas.  Pois os países agrícolas da era pré-industrial haviam se fixado indefinidamente em um nível de subsistência; os reis déspotas, os nobres e os membros mais altos da hierarquia social podiam cobrar impostos dos camponeses e lhes deixar apenas com o suficiente para sobreviver.  Enquanto estas classes privilegiadas levavam uma vida opulenta graças aos excedentes, estes camponeses continuavam trabalhando até a exaustão e levando uma vida nos níveis de subsistência durante séculos.  Este sistema era profundamente imoral e exploratório, porém “funcionava” no sentido de que foi capaz de se manter indefinidamente (na condição de o estado não ser ganancioso demais a ponto de matar a galinha dos ovos de ouro).

Mas, para a sorte da causa da liberdade, a ciência econômica mostrou que uma economia industrial moderna não pode sobreviver indefinidamente sob tais condições draconianas.  Uma economia industrial moderna requer uma ampla rede de trocas de livre-mercado e a divisão do trabalho, uma rede que só pode florescer com a liberdade. Dado o comprometimento das massas humanas com esta economia industrial e  com os padrões de vida modernos que necessitam desta indústria, então o triunfo de uma economia de livre-mercado e o fim do estatismo tornam-se inevitáveis num longo prazo.

O final do século XIX e especialmente o século XX presenciaram muitas formas de retorno ao estatismo da era pré-industrial.  Estas formas (particularmente o socialismo e os vários tipos de “capitalismo de estado”), em contraste com o conservadorismo europeu abertamente anti-industrial e reacionário do começo do século XIX, tentaram preservar e até ampliar a economia industrial enquanto fugiam das próprias exigências políticas dela (a liberdade e o livre-mercado) que, em um longo prazo, são necessárias para a sua sobrevivência.[9]  O planejamento estatal, a burocracia, os controles, os impostos altos e paralisantes, a inflação de papel-moeda, tudo isto deve conduzir inevitavelmente ao colapso do sistema econômico estatista.

Se o mundo então está inexoravelmente comprometido com a industrialização e com o seu concomitante padrão de vida, e se a industrialização requer liberdade, então o libertário deve ficar otimista em relação ao longo prazo, pois o triunfo libertário vai ocorrer em algum momento.  Mas por que ficar otimista em relação ao curto prazo, no momento atual?  Porque, felizmente, a verdade é que várias formas de estatismo impostas ao mundo ocidental durante a primeira metade do século XX estão agora em processo de colapso eminente.  O longo prazo agora é curto.  Por meio século, a intervenção estatal pôde levar a cabo as suas depredações sem provocar crises e desarticulações evidentes, porque a industrialização quase-laissez-faire do século XIX havia criado um resistente anteparo contra estas depredações.   O governo pôde impor travas ou inflação ao sistema e parecer que não estava causando consequências ruins.  Mas agora o estatismo avançou tanto e tem estado no poder há tanto tempo que o anteparo, ou a gordura, exauriu-se.  Como o economista Ludwig von Mises salientou, o “fundo de reservas” criado pelo laissez faire foi “esgotado”, e o que quer que o governo fizer agora vai provocar reações negativas imediatas que são evidentes para os que anteriormente eram indiferentes e até mesmo para muitos dos mais ardentes defensores do estatismo.

Nos países comunistas do leste europeu, os próprios comunistas têm percebido cada vez mais que o planejamento central socialista simplesmente não funciona, especialmente para uma economia industrial.  Por esta razão, tem-se observado nos últimos anos o rápido abandono do planejamento central e todo o leste europeu tem se voltado para o livre mercado, principalmente a Iugoslávia.  No mundo ocidental, igualmente, o capitalismo de estado está passando em toda parte por um período de crise, enquanto fica evidente que, literalmente falando, os governos consumiram todo seu dinheiro: que o aumento de impostos paralisará irremediavelmente as indústrias e os incentivos, enquanto a crescente impressão de papel moeda (seja diretamente ou por meio do sistema bancário controlado pelo governo) causará uma inflação galopante desastrosa.  E assim é cada vez mais frequente se ouvir falar na “necessidade de reduzir as expectativas depositadas no governo” até mesmo vindo daqueles que já foram os mais ardentes defensores do estado.  Na Alemanha Ocidental, o partido social democrata abandonou há muito tempo o clamor pelo socialismo.  Na Grã Bretanha, afetada por uma economia paralisada pelos impostos e por uma grave inflação, o partido Tory, por anos nas mãos de estatistas inveterados, é agora controlado por sua facção orientada ao mercado livre, ao passo que até mesmo o partido trabalhista começou a se retirar da defesa do caos planificado do estatismo desenfreado.

Nos Estados Unidos, as condições são particularmente promissoras; pois lá, nos últimos anos, tem acontecido coincidentemente (a) um colapso sistemático do estatismo nas políticas econômica, exterior, social e moral; e (b) um surgimento grande e crescente de um movimento libertário e da difusão das ideias libertárias por toda a população, entre os formadores de opinião e os cidadãos comuns.  Examinemos cada um destes conjuntos de fatores necessários para um triunfo libertário.

É de se surpreender que possamos indicar uma data praticamente exata do colapso sistemático do estatismo nos Estados Unidos: os anos de 1973-1974.  O colapso foi especialmente notório na esfera econômica.  Do outono de 1973 até 1975, a América do Norte experimentou uma depressão inflacionária, na qual a pior recessão do mundo no pós-guerra coincidiu com uma grave inflação de preços.  Após quarenta anos de políticas keynesianas que supostamente “ajustavam” a economia de modo a eliminar os ciclos econômicos de inflação e de depressão, os Estados Unidos tiveram que enfrentar ambos os fenômenos simultaneamente — um acontecimento que não pode ser explicado pela teoria econômica ortodoxa.  A economia ortodoxa entrou em parafusos, e tanto economistas como leigos estão cada vez mais propensos a se voltar à alternativa “austríaca” de livre mercado, tanto no âmbito dos paradigmas teóricos como no dos programas políticos.  A concessão do Prêmio Nobel de Economia a F.A Hayek em 1974 por sua teoria austríaca dos ciclos econômicos, há muito esquecida, foi uma espécie de sinal das novas correntes que começavam a reaparecer após décadas sendo menosprezadas.  E, mesmo com a economia recuperada da depressão, a crise econômica não acabou, já que a inflação só fez acelerar, enquanto o desemprego manteve-se alto.  Somente um programa de livre mercado que renuncie à inflação monetária e que corte os gastos governamentais irá acabar com a crise.

A inadimplência parcial da dívida do governo da cidade de Nova Iorque em 1975 e a vitória da Proposição 13 na Califórnia em 1978 realçaram para todo o país o fato de que os fundos de reserva metropolitanos e estaduais haviam se exaurido, e que o governo finalmente deveria iniciar cortes drásticos em suas atividades e gastos.  Pois os impostos mais elevados expulsariam de qualquer região os negócios e os cidadãos de classe média, e, portanto, a única maneira de evitar a inadimplência seria um corte radical dos gastos.  (Se ocorrer um calote, o resultado será o mesmo, e mais drástico, já que no futuro o acesso ao mercado de títulos de renda fixa pelos governos estaduais e municipais seria impossível).

Também fica cada vez mais claro que a combinação de décadas de impostos altos e paralisantes sobre a renda, a poupança e os investimentos, com distorções inflacionárias nos cálculos empresariais, causou uma escassez cada vez maior de capital, e gerou um risco iminente de se consumir o estoque vital de equipamentos de capital dos Estados Unidos.  Por esta razão, percebe-se que a redução de impostos é uma necessidade econômica.  Também é evidentemente necessário diminuir as despesas do governo para se evitar “o efeito de expulsão” de investimentos e de empréstimos privados nos mercados de capital provocados por déficits devastadores do governo federal.

Há uma razão em particular que reforça a esperança de o público e os formadores de opinião aderirem à solução libertária adequada para esta grave e contínua crise econômica: o fato de que é conhecimento geral que o estado tem controlado e manipulado a economia pelos últimos quarenta anos.  Quando as políticas intervencionistas e o crédito do governo ocasionaram a Grande Depressão de 1930, o mito de que a década de 1920 tinha sido uma era de laissez faire prevaleceu, e então parecia razoável dizer que “o capitalismo falhou”, e que a prosperidade e o progresso econômico precisavam de um grande salto em direção ao estatismo e ao controle estatal.  Porém a crise atual ocorre após muitas décadas de estatismo, e a sua natureza é tal que o público pode hoje corretamente perceber que o culpado é o Governo.

Ademais, todas as variedades de estatismo já foram testadas e fracassaram.  Na virada do século XX, os empresários, os políticos e os intelectuais de todo o mundo ocidental começaram a se voltar para um “novo” sistema de economia mista regulada pelo estado, em substituição ao relativo laissez faire do século anterior.  Estas panaceias novas e aparentemente excitantes como o socialismo, o estado corporativo, o estado de bem estar social etc., foram todas testadas e notoriamente reprovadas.  O clamor pelo socialismo ou pelo planejamento central é agora o apelo por um sistema antiquado, desgastado e fracassado.  O que nos resta tentar além da liberdade?

No âmbito social, uma crise similar ocorreu nos últimos anos.  O sistema de educação pública, que outrora era considerado uma parte sagrada da tradição americana, é hoje crescente e severamente criticado por pessoas de todas as orientações ideológicas.  Está ficando claro (a) que as escolas públicas não educam adequadamente seus alunos; (b) que elas são caras, ineficientes e exigem altos impostos; e (c) que a homogeneidade do sistema de educação pública gera conflitos sociais profundos e insolúveis em importantes assuntos educacionais – temas como integração contra segregação, métodos modernos contra métodos tradicionais, religião contra laicismo, educação sexual, e o conteúdo ideológico do aprendizado.  Qualquer que seja a decisão que a escola pública tome em qualquer uma dessas áreas, uma maioria ou uma minoria substancial de pais e alunos será irremediavelmente prejudicada.  Além disso, está ficando cada vez mais evidente que as leis de frequência obrigatória colocam crianças infelizes ou desmotivadas à força em uma prisão que não reforma nem a elas nem a seus pais.

No campo das políticas morais, as pessoas estão cada vez mais convencidas que o Proibicionismo desmedido da política governamental – não apenas no âmbito do álcool, mas também em assuntos como pornografia, prostituição, praticas sexuais entre “adultos de comum acordo”, drogas, e aborto — é uma invasão imoral e injustificada do direito de cada indivíduo fazer as suas próprias escolhas morais, e não pode, por conseguinte, ser imposto na prática.  As tentativas de implantá-lo só produzem adversidades e um estado policial autêntico.  Está próximo o tempo em que as pessoas irão reconhecer que o proibicionismo nestas áreas de moralidade pessoal é totalmente injusto e ineficaz, como ocorreu no caso da proibição das bebidas alcoólicas.

Como consequência do caso Watergate, ocorre também uma crescente conscientização quanto aos perigos para a privacidade e para a liberdade individual, para a liberdade de discordar do governo, envolvidos em ações e em atividades habituais dos governos.  Neste ponto também podemos esperar uma pressão pública para evitar que o governo realize seu antigo desejo de invadir a privacidade e de reprimir os dissidentes.

Talvez o melhor sinal de todos, a indicação mais favorável do colapso da mística do estado, tenha sido as revelações do caso Watergate de 1973-74.  Pois este caso promoveu uma mudança radical na atitude de todo mundo – independentemente de sua ideologia explícita — em relação ao próprio governo.  O caso Watergate de fato alertou o público sobre as invasões das liberdades pessoais promovidas pelo governo.  E, mais importante, ao provocar o impeachment do presidente, retirou permanentemente a áurea sacrossanta que envolvia um cargo que era até então considerado pelo povo americano quase que como o de um soberano.  Mas, mais relevante ainda, o próprio governo perdeu em grande medida a sua áurea sacrossanta.  Ninguém confia mais em nenhum político ou funcionário público; todo o governo é encarado com permanente receio e hostilidade, retornando deste modo àquela saudável desconfiança do governo que marcou o povo americano e os revolucionários americanos do século XVIII.  Depois de Watergate, hoje em dia ninguém ousaria entoar que “o governo somos nós”, e que, portanto todos os funcionários eleitos podem agir correta e legitimamente.  Para o sucesso da liberdade, a condição mais importante que deve ser obtida é o fim da santificação, a revelação da falta de legitimidade do governo aos olhos do povo; e o caso Watergate nos deu isto.

Assim, as condições objetivas para o triunfo da liberdade começaram a aparecer nos últimos anos, pelo menos nos Estados Unidos.  Além disso, esta crise sistêmica é de tal natureza que agora é o governo que é percebido como culpado; não podemos nos livrar da crise a não ser que nos voltemos decididamente em direção à liberdade.  Portanto, o que é basicamente necessário agora é o desenvolvimento das “condições subjetivas”, das ideias libertárias e, particularmente, de um dedicado movimento libertário para promover a difusão destas ideias no fórum público.  Certamente não é coincidência que foi precisamente durante estes anos — a partir de 1971, e com maior firmeza desde 1973 – que estas condições subjetivas registraram seus avanços mais notórios do século.  Pois o colapso do estatismo incitou muito mais pessoas a se tornarem parcialmente ou completamente libertárias, e consequentemente as condições objetivas ajudaram a criar as subjetivas.  Ademais, ao menos nos Estados Unidos, a esplêndida tradição de liberdade e de ideias libertárias, remetendo aos tempos revolucionários, jamais foi perdida completamente.  Os libertários dos dias de hoje, portanto, possuem uma base histórica sólida para se fundamentar.

Nos últimos anos, o rápido crescimento das ideias e dos movimentos libertários penetrou muitos campos do mundo acadêmico, especialmente entre os jovens universitários, e em algumas áreas do jornalismo, da mídia, dos negócios e da política.  Por causa da persistência das condições objetivas, parece evidente que esta eclosão do libertarianismo em locais novos e inesperados não se trata de uma moda passageira incitada pelos meios de comunicação, mas sim de uma resposta inevitável e crescente às condições visíveis da realidade objetiva.  Dada a existência do livre arbítrio, ninguém pode prever com precisão que o clima libertário, que se alastra cada vez mais pela América do Norte, irá se consolidar em um curto espaço de tempo e fará uma pressão constante até que a vitória do programa libertário se concretize.  Mas com certeza, tanto a teoria quanto as análises das condições históricas atuais levam a concluir que as perspectivas atuais para a liberdade, mesmo no curto prazo, são extremamente animadoras.

 


[1] Veja o capítulo 3 “Lei natural versus lei positiva”.

[2] Gertrude Himmelfarb, Lord Acton (Chicago: University of Chicago Press, 1962), págs. 204, 205, 209.

[3] Em um elucidativo ensaio, o filósofo da lei natural John Wild destaca que nosso sentimento subjetivo de obrigação, de um dever que eleva os desejos emotivos a um plano superior e obrigatório, origina-se de nossa compreensão racional daquilo que nossa natureza humana exige.  John Wild, “Natural Law and Modern Ethical Theory,” Ethics (outubro 1952): 5-10.

[4] Sobre o libertarianismo ser baseado na paixão pela justiça, veja Murray N. Rothbard, “Why Be Libertarian?” em,Egalitarianism as a Revolt Against Nature, and Other Essays (Washington, D.C.: Libertarian Review Press, 1974), págs. 147-48.

[5] Leonard E.  Read, I’d Push the Button (New York: Joseph D. McGuire, 1946), pág. 3.

[6] Já havia escrito em outro lugar:

Outros tradicionais objetivos radicais  —  como a “eliminação da pobreza”  —  são, ao contrario deste [a liberdade], completamente utópicos; pois o homem, apenas com a manifestação de sua vontade, não pode eliminar a pobreza.  A pobreza só pode ser eliminada através da ação de determinados fatores econômicos . . . que, por sua vez, só podem agir através da transformação  da natureza por um longo período de tempo. . . . Porém as injustiças são ações infligidas por um grupo de homens sobre outro, elas são precisamente ações humanas, e, consequentemente, elas e a eliminação delas estão sujeitas à vontade imediata dos homens. . . . O fato de que estas decisões, logicamente, não ocorrem imediatamente não é relevante; o ponto relevante é que a própria não execução é uma injustiça que foi decidida e imposta pelos perpetradores da injustiça. . . . No campo da justiça, a vontade do homem é tudo; os homens podem mover montanhas, se assim decidirem.  Portanto, uma paixão pela justiça imediata  —  em suma, uma paixão radical– não é utópica, como seria um desejo pela eliminação imediata da pobreza ou pela transformação instantânea de todas as pessoas do mundo em pianistas profissionais.  Pois a justiça imediata poderia ser implantada se um número suficiente de pessoas assim desejasse.

Rothbard, Egalitarianism as a Revolt Against Nature, págs. 148-49.

[7] Na conclusão de uma crítica filosófica brilhante contra a acusação de “irrealismo” e sua confusão entre o bome o provável atualmente, Clarence Philbrook afirma, “Somente um tipo de defesa séria de uma política é permitida a um economista ou a qualquer pessoa; ele deve sustentar que a política é boa.  O verdadeiro ‘realismo’ é a mesma coisa que os homens imaginavam ser a sabedoria: decidir o imediato sob a luz do definitivo”.  Clarence Philbrook, “Realism in Policy Espousal,” American Economic Review (dezembro 1953): 859.

[8] Citado em William H.  and Jane H.  Pease, eds., The Antislavey Argument (Indianapolis, Ind.: Bobbs-Merrill, 1965), pág. xxxv.

[9] Para uma análise histórica mais aprofundada deste problema, veja Murray N. Rothbard, Left and Right: The Prospects for Liberty (San Francisco: Cato Institute, 1979).

 

Tradução de Fernando Fiori Chiocca

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