A Ética da Redistribuição

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Introdução

O estudo de Bertrand de Jouvenel sobre a ética da redistribuição distingue-se, em primeiro lugar, porque enfoca precisamente a moralidade da redistribuição, não seus efeitos paralelos sobre os incentivos.  Isso é dizer que a crítica de Jouvenel incorpora um desafio fundamental aos valores expressos no pensamento redistributivista que de forma nenhuma depende de uma avaliação instrumental ou utilitária das consequências da política de redistribuição.  Jouvenel preocupa-se mais com o impacto da redistribuição sobre a liberdade individual e sobre a vida cultural do que com seus efeitos sobre a produtividade.Seu estudo também é significativo por uma outra razão: ele tem o cuidado de distinguir o redistributivismo de outras doutrinas a ele superficialmente similares.  Assim, ele mostra claramente como esse difere do igualitarismo agrário, que objetiva equiparar um recurso — terra — mas não procura controlar a distribuição do seu produto.  Novamente, redistributivismo não é socialismo.  O redistributivismo causou severos danos à civilização moderna, mas não a destruiu.  Por outro lado, o socialismo é a supressão da propriedade privada numa nova ordem de solidariedade moral comunal, e é incompatível com a sociedade moderna.  Pode-se imaginar que o seja nos monastérios, onde os bens materiais são rejeitados, ou em comunidades pequenas, simples, e mesmo primitivas — um insight que foi captado por Rousseau, mas não por Marx.

Jouvenel faz outra distinção fundamental dentro do próprio redistributivismo.  O moderno redistributivismo compreende dois elementos completamente díspares: a crença de que o governo deve estar centralmente envolvido no alívio da pobreza, e a crença de que a desigualdade econômica é, em si mesma, injusta ou prejudicial.  Essas duas crenças têm estado fundidas, até, na crescente aceitação da visão de que é responsabilidade do governo assegurar à população padrões de vida ascendentes.  Mais um passo é dado na direção do redistributivismo igualitário quando, à proposta de que o governo forneça um piso de subsistência abaixo do qual ninguém poderia cair, soma-se a proposta de que seja instituído um teto acima do qual ninguém possa ascender.

Como demonstra Jouvenel, tais propostas igualitárias recebem o aparente apoio da invocação de um felicific calculas que incorpora o argumento de que a renda tem utilidade marginal decrescente — argumento que ele critica incisivamente, ao mostrar os impedimentos insuperáveis a tentarmos fazer comparações confiáveis de satisfação interpessoal.  Jouvenel poderia também ter observado que, mesmo se as utilidades fossem comparáveis de pessoa para pessoa, a redistribuição segundo os princípios marginalistas teria resultados moralmente perversos.  Isso sancionaria a redistribuição dos recursos desde os mais desvalidos (os paraplégicos debilitados, digamos) àqueles situados principalmente na média da renda e com dotes naturais, que poderiam gerar mais satisfação dos recursos.  Esse não é um resultado congenial ao sentimento igualitário, mas flui inexoravelmente do argumento marginalista da redistribuição.

A crítica ética de Jouvenel acerca do redistributivismo é poderosa e muito fundamentada.  Ele desenvolve uma crítica empírica importante do redistributivismo igualitário, quando observa que os recursos necessários para prover a subsistência mínima não podem derivar exclusiva, ou principalmente, da tributação aos ricos.  Tais recursos têm que ser extraídos das classes médias, que também são beneficiárias dos esquemas de transferência de renda.  Este é um ponto de vital importância na crítica de Jouvenel.  Sua percepção de que o desfecho do redistributivismo dos esquemas de transferência é extremamente complexo e, às vezes, regressivo vem sendo amplamente confirmada por experiências históricas mais recentes.  Ele observa, também, que uma política de redistribuição está fadada a discriminar as minorias, já que, inevitavelmente, favorecerá as preferências e interesses da maioria — fato esse também observado por Hayek.

Além disso, o redistributivismo é condenado por Jouvenel por minar o sentido de responsabilidade pessoal.  Nisso incorre ao transferir dos indivíduos para o estado a autoridade por decisões que lhes são vitais.  Ao suprir todas as necessidades básicas do indivíduo, o estado deixa-o com autoridade apenas na esfera de determinar como gastar os seus trocados.  Novamente, o efeito do redistributivismo é desprivilegiar a família em favor de ficções legais como as empresas — principalmente por conferir aos negócios imunidades tributárias negadas às famílias.  O regime de tributação elevada, inseparável do estado redistribuidor, tem ainda as indesejáveis consequências de diminuir a esfera de serviços voluntários em que as pessoas se engajam nas relações de convivência sem expectativa de pagamento — e, com isso, corroer a cultura de civilidade que sustenta a civilização liberal.

Para Jouvenel, no entanto, o resultado mais profundo da política de redistribuição é o ímpeto que ela dá ao penoso processo de centralização.  Se o estado confisca rendas elevadas e impõe índices penalizantes de tributação sobre a poupança e o investimento, o estado tem que assumir as atividades de poupança e investimento que os indivíduos não são mais capazes de assumir.  Se, por causa do confisco das rendas elevadas, há atividades sociais e culturais que não mais podem ser sustentadas pelo setor privado, tais como o suporte para a alta cultura e as artes, então, uma vez mais, o estado tem, através de um programa de subsídios, que assumir a responsabilidade por tais atividades.  Inevitavelmente, o estado vem a exercer um nível crescente de controle sobre as mesmas.  A consequência da política de redistribuição, então, é a restrição à iniciativa privada em muitas esferas da vida social, a destruição do homem de meios independentes, e o enfraquecimento da sociedade civil.

Jouvenel vai além, especula que o processo causal subjacente pode seguir na direção oposta: a política de redistribuição pode ser um incidente num processo de centralização que adquiriu um momentum próprio.  Aqui, Jouvenel antecipa as constatações da Virgínia School of Public Choice, teorizadas mais profundamente na obra de James Buchanan [1], que demonstram as origens do estado expansionista nos interesses econômicos das burocracias governamentais.  Como Jouvenel, mais uma vez antecipando as percepções de futuros teóricos sobre a da Nova Classe, prescientemente conclui:

Nós bem podemos imaginar quais desses dois fenômenos intimamente ligados é predominante: redistribuição ou centralização.  Podemos nos perguntar se não estamos lidando com um fenômeno muito mais político do que social.  Esse fenômeno político consiste na demolição da classe que desfruta de “meios independentes” e na concentração de meios nas mãos de administradores.  Isso resulta numa transferência de poder dos indivíduos para funcionários do governo, que tendem a constituir uma nova classe dominante em oposição àquela que está sendo destruída.  E há uma leve, mas bastante perceptível, tendência rumo à imunidade dessa nova classe, de parte de algumas medidas fiscais direcionadas aos primeiros.

Teorias e fatos subsequentes corroboraram firmemente a percepção de Jouvenel.  Pesquisas empíricas revelam que os esquemas de transferência de pagamentos das principais democracias do Ocidente carecem de preceitos e são caóticos.  O estado moderno do bem-estar social não é, na mesma medida da criação da ideologia redistributivista, defensável por referência a qualquer conjunto coerente de princípios ou propósitos.  Ele não aliviou significativamente a pobreza, mas, ao contrário, institucionalizou-a substancialmente.  Essa é a conclusão de estudos pioneiros, tais como Losing Ground, de Charles Murray. [2]Uma geração da política de bem-estar social infligiu a seus concidadãos desincentivos e riscos morais tais, que acabou por deixá-los em situação pior do que a inicial.  O impacto resultante do conjunto inteiro de medidas de redistribuição conforma-se a padrões não claros (salvo, como observou Nozick, [3] que se algum grupo social se beneficiar, provavelmente será a majoritária classe média, e não os pobres).  E a conjectura de Hayek, em The Constitution of Liberty, de que o estado redistribuidor está fadado a ser um estado expansionista, conforme advertira Jouvenel, vem cada vez mais se concretizando com os acontecimentos.

Desenvolvimentos recentes no questionamento filosófico confirmam a profundidade essencial da analise de Jouvenel.  Anarchy, State and Utopia, de Robert Nozick, contém uma crítica da ideia da justiça social, ou distributiva, que forma um paralelo muito próximo à crítica de Jouvenel sobre a ética da redistribuição.  O ataque de Nozick, como o de Jouvenel, tem vários elementos, ou estratos.  Ele demonstra, antes de mais nada, que a tentativa de impor um padrão sobre a distribuição social dos bens requer contínua interferência na liberdade individual, uma vez que presentes e livres trocas subverterão constantemente esse padrão.  Como Nozick notadamente afirmou, o resultado final da tentativa de impor um padrão à distribuição é um estado socialista que proíbe atos capitalistas entre adultos que com esses concordaram.

A política redistributivista incorpora um individualismo abstrato ou falso, no qual as instituições intermediárias que são a matriz indispensável da individualidade são negligenciadas ou suprimidas.  É especialmente hostil à instituição que é a pedra fundamental da sociedade civil — a família.  Nozick segue Jouvenel, observando que sob qualquer regime de redistribuição a instituição da família é desprivilegiada: “Sob tais visões, a família traz transtornos; pois dentro de uma família ocorrem transferências que burlam a distribuição permitida”. [4]

É na obra mais recente de Hayek que a análise de Jouvenel tem um paralelo mais notável.  No segundo volume de sua trilogia Law, Legislation and Liberty, intitulado The Mirage of Social Justice, [5] Hayek desenvolve uma crítica devastadora às atuais concepções distributivas, reforçando e estendendo em direções completamente inovadoras o ataque central da análise de Jouvenel.  A primeira, e talvez a mais radicalmente original, tese de Hayek, é de que nenhum governo ou autoridade central pode saber o suficiente para ser capaz de conceber ou impor o padrão de distribuição preferido.  Isso é verdade, se os princípios de distribuição se referirem à satisfação das necessidades básicas, vinculando recompensas a méritos, realizando a igualdade de recursos ou de bem-estar, ou o que quer que seja.  Quaisquer que sejam os princípios da distribuição, o conhecimento necessário para implementá-los, exceto nuns poucos casos-limite, é tão disperso por toda a sociedade, e tão frequentemente em forma tácita ou prática, que geralmente é impossível ao governo reuni-lo de forma utilizável.  Essa irreparável dispersão ou divisão do conhecimento na sociedade ergue uma barreira epistemológica insuperável à realização de virtualmente todas as concepções distributivas contemporâneas.  Mostram-se inviáveis mesmo as mais sutis delas, como a de John Rawls, [6] porquanto o governo nunca poderia ter informação suficiente para saber se o Princípio da Diferença (que requer que a desigualdade seja restrita ao necessário para maximizar as posses dos desvalidos) foi satisfeito.

Há uma segunda linha de argumentação em The Mirage of Social Justice que reforça a causa de Jouvenel contra a redistribuição.  É o argumento de que, mesmo sendo o governo capaz de adquirir o conhecimento necessário para implementar seus princípios de distribuição preferidos, não há consenso na sociedade sobre como os diferentes princípios deverão ser ponderados quando entrarem em conflito uns com os outros.  Se, por exemplo, a satisfação das necessidades básicas competir com a premiação do mérito, qual delas deverá ter prioridade?  Como a nossa sociedade não contém qualquer código moral em termos de quais dessas considerações podem ser comparadas, elas são para nós incomensuráveis, não havendo, em relação a elas, qualquer procedimento razoável de arbitragem acordado.  Por esta razão, qualquer alocação de recursos em conformidade com uma ponderação desses valores não pode evitar de parecer — e mesmo ser — sem princípios, impredizível e arbitrária.  Por causa desses conflitos inevitáveis entre seus valores constitutivos, o redistributivismo inevitavelmente faz com que proliferem burocracias com poderes amplamente discricionários.  Mas a ampla margem de autoridade discricionária exercida pelo aparato da redistribuição é difícil de conciliar com o estado de Direito, que é uma das fundações de uma sociedade livre.

Há uma linha final no argumento de Hayek que o liga à análise de Jouvenel conforme James Buchanan.  É a proposição de que, na ausência de qualquer justificativa — com base em princípios — da política de redistribuição, ela é melhor explicada em termos dos seus beneficiários.  O redistributivismo, então, vem a ser inteligível como um sistema de ideias cuja função é legitimar os interesses das burocracias expansionistas e, no geral, isolar dos efeitos colaterais negativos da mudança econômica os grupos de interesses bem situados.  O redistributivismo, assim, emerge como a ideologia conservadora do estado intervencionista e seus grupos de beneficiários.

Embora A Ética da Redistribuição seja notavelmente contemporâneo em muitos dos seus insights, o próprio Jouvenel jamais ficou completamente satisfeito com a obra.  Escreveu, numa carta de 18 de setembro de 1981: “Quanto ao meu A Ética da Redistribuição, tenho repetidamente recusado sua reedição.  Pensei muito no assunto nos muitos anos que se passaram, e o que agora tenho a dizer não é só o que eu pensava na época, mas tudo o que aprendi desde então…” Ele nunca retomou esse trabalho, e morreu em 1° de março de 1987, aos 83 anos.  Essa pequena obra seminal continua extraordinariamente fértil e sugestiva de reflexão e questionamento, como podemos ver por seus muitos pontos de afinidade com as obras mais recentes de Buchanan, Hayek, Nozick, Rawls, e outros.  É uma importante contribuição à discussão sobre o estado fundado na redistribuição e suas implicações para a liberdade.  Sua republicação é bem-vinda.

JOHN GRAY

Membro do Jesus College

Oxford

 

 

O trabalho desta Introdução foi conduzido pelo autor durante um período de residência como Distinto Membro de Pesquisa de Stranahan, no Centro de Filosofia e Política Social da Bowling Green State University, de Ohio.

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[1] Vide James M.  Buchanan The Limits of Liberty: Between Anarchy and Leviathan.  Chicago, University of Chicago Press, 1975.

[2] Charles Murray, Losing Ground: American Social Policy 1950-1980.  New York, Basic Books, 1985.

[3] Robert Nozick, Anarchy, State and Utopia.  New York, Basic Books, 1974.

[4] Ibid, p.  167.

[5] F.A. Hayek. Law, Legislation and Liberty, 11 Volume: The Mirage of Social Justice.  Chicago, University of Chicago Press, 1976.

[6] John Rawls, A Theory of Justice.  Cambridge, Belknap Press of the Harvard University Press, 1971.

 

 

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