Capítulo 4 – As Objeções não Econômicas ao Capitalismo
1. O argumento da felicidade
Os críticos fazem duas acusações ao capitalismo. A primeira consiste em dizer que a posse de um carro, de um aparelho de televisão e de uma geladeira não faz o homem feliz. A segunda é que ainda existem pessoas que não possuem nenhum desses objetos. Ambas as proposições são corretas mas não conseguem denegrir o sistema capitalista de cooperação social.
As pessoas não se esforçam e se afligem a fim de obter a felicidade perfeita, mas a fim de eliminar ao máximo as dificuldades que se apresentam e, assim, tornarem-se mais felizes do que eram antes. O homem que compra um televisor deixa evidente o fato de que a posse desse aparelho aumentará seu bem-estar e o tornará mais contente do que antes. Caso contrário, ele não o teria comprado. A tarefa do médico não é a de tornar o paciente feliz, mas sim de eliminar a dor e deixá-lo em melhor disposição para que possa atingir o objetivo principal de todo ser, isto é, a luta contra todos os fatores nocivos à sua vida e ao seu bem-estar.
É verdade que existem entre os monges budistas, que vivem de esmolas, na sujeira e na penúria, alguns que se sentem perfeitamente felizes e não têm inveja de nenhum ricaço. Todavia, é verdade que, para a grande maioria das pessoas, uma vida assim parece insuportável. Para elas o impulso no sentido de incessantemente almejar a melhoria das condições externas de vida é inato. Quem ousaria apontar um pedinte asiático como exemplo para um norte-americano de classe média? Um dos maiores sucessos do capitalismo é a queda da mortalidade infantil. Quem pode negar que este fenômeno, ao menos, removeu uma das causas da infelicidade de muitas pessoas?
Não menos absurda é a segunda acusação lançada contra o capitalismo — isto é, que as inovações tecnológicas e terapêuticas não beneficiam a todos. As mudanças nas condições humanas são conseguidas pelo pioneirismo dos homens mais inteligentes e mais dinâmicos. Eles assumem a liderança, e o resto da humanidade os segue pouco a pouco. A inovação é, no início, um luxo de apenas alguns até que, gradativamente, passa a ficar ao alcance da maioria. Não é a objeção consciente ao uso dos calçados ou dos garfos que faz com que eles se propaguem lentamente e com que ainda hoje milhões de pessoas vivam sem eles. As delicadas senhoras e os cavalheiros que primeiro se utilizaram do sabonete foram os precursores da produção de sabonetes em larga escala para o homem comum. Se quem hoje dispõe de meios para adquirir um televisor resolvesse se abster de comprá-lo porque algumas pessoas não têm recursos para isso, não estaria promovendo, mas retardando a popularização desse aparelho.[1]
2. Materialismo
Mais uma vez surgem os descontentes que atacam o capitalismo pelo que denominam seu sórdido materialismo. Não podem deixar de admitir que o capitalismo tem a tendência de melhorar as condições materiais da humanidade. Porém, dizem eles, o capitalismo tem afastado os homens de objetivos mais elevados e nobres. Alimenta os organismos mas enfraquece os espíritos e as mentes. Provocou a ruína das artes. Já vão longe os dias dos grandes poetas, pintores, escultores e arquitetos, nossa era produz apenas lixo.
O julgamento quanto aos méritos de uma obra de arte é totalmente subjetivo. Algumas pessoas estimam o que outras desprezam. Não existe uma medida para julgar o valor artístico de um poema ou de um edifício. Quem se encanta com a Catedral de Chartres e com As meninas de Velásquez talvez julgue que os que permanecem insensíveis a essas maravilhas são pessoas rudes. Muitos estudantes se aborrecem ao máximo quando a escola os obriga a ler Hamlet. Apenas as pessoas tocadas pela centelha da mentalidade artística têm condições de apreciar e de desfrutar da obra de um artista.
Entre os que se pretendem homens educados existe muita hipocrisia. Assumem ares de conhecedores e simulam entusiasmo pela arte do passado e pelos artistas falecidos há muito tempo. Não demonstram a mesma simpatia pelo artista contemporâneo que ainda luta por reconhecimento. A aparente adoração pelos velhos mestres é para eles um meio de depreciar e ridicularizar os novos artistas que se afastam dos cânones tradicionais para criar os seus próprios.
John Ruskin será sempre lembrado — junto com Carlyle, os Webbs, Bernard Shaw e outros — como um dos coveiros da liberdade, da civilização e da prosperidade britânica. Caráter desprezível, tanto na vida particular como na vida pública, ele glorificava a guerra e a carnificina e fanaticamente difamava os ensinamentos da economia política, que não chegava a compreender. Era um fanático detrator da economia de mercado e um romântico enaltecedor das guildas. Prestava homenagem às artes dos séculos primitivos. Porém, ao defrontar-se com a obra de um grande artista vivo, Whistler, censurou-a numa linguagem tão sórdida e injuriante que foi processado por difamação e declarado culpado pelo júri. Foram as composições literárias de Ruskin que popularizaram o preconceito de que o capitalismo, além de ser um péssimo sistema econômico, substituiu a beleza pela feiura, o esplendor pela trivialidade, a arte pelo lixo.
Como há muita discordância na apreciação das obras artísticas, não é possível desmentir os rumores sobre a inferioridade artística da era do capitalismo da mesma maneira irrefutável com que se pode contestar os erros num raciocínio lógico ou na apresentação dos fatos da experiência. Assim mesmo, nenhum homem normal seria capaz de depreciar o esplendor das realizações artísticas da era do capitalismo.
A preeminente arte desta época de “sórdido materialismo e enriquecimento” foi a música. Wagner e Ver-di, Berlioz e Bizet, Brahms e Bruckner, Hugo Wolf e Mahler, Puccini e Richard Strauss, que ilustre desfile! Que período notável em que mestres como Schumann e Donizetti foram ofuscados por gênios ainda maiores!
Foi aí que surgiram os grandes romances de Balzac, Flaubert, Maupassant, Jeans Jacobsen, Proust, e os poemas de Victor Hugo, Walt Whitman, Rilke e Yeats. Como seriam pobres nossas vidas se não tivéssemos conhecido as obras desses gigantes e as de muitos outros autores não menos importantes.
Não podemos esquecer os pintores e escultores franceses que nos ensinaram novas maneiras de olhar para o mundo e de apreciar a luz e a cor.
Ninguém jamais contestou que essa era incentivou todos os ramos da atividade científica. Mas, afirmam os descontentes, era principalmente um trabalho de especialistas ao qual faltava “síntese”. Não é possível distorcer de modo mais absurdo os ensinamentos da matemática moderna, da física e da biologia. E o que dizer dos livros de filósofos como Croce, Bergson, Husserl e Whitehead?
Cada época tem caráter próprio em suas realizações artísticas. A imitação das obras-primas do passado não é arte; é repetição. O que valoriza uma obra são as características que a tornam diferente de outras. Isto é o que se chama o estilo de uma época.
Em certo sentido, os enaltecedores do passado parecem estar certos. As últimas gerações não nos legaram monumentos tais como as pirâmides, os templos gregos, as catedrais góticas, as igrejas e palácios da renascença e do barroco. Nos últimos cem anos, muitas igrejas e até mesmo catedrais foram construídas bem como palácios do governo, escolas e bibliotecas. Mas não apresentam qualquer concepção original; refletem velhos estilos ou mistura de vários estilos antigos. Apenas nos prédios de apartamentos, nos edifícios comerciais e nas casas particulares notou-se uma evolução que poderá ser considerada como um estilo arquitetônico de nossa era. Embora pareça pedante deixar de admirar o esplendor peculiar de espetáculos como a silhueta da cidade de Nova York, pode-se admitir que a arquitetura moderna não atingiu o destaque da dos últimos séculos.
Os motivos são muitos. No que se refere às construções religiosas, o acentuado conservadorismo das igrejas afasta qualquer inovação. Com o passar das dinastias e das aristocracias, o estímulo para construir novos palácios desapareceu. A riqueza dos empresários e capitalistas é, por mais que os demagogos anticapitalistas possam inventar, tão inferior à dos reis e príncipes, que eles não podem se permitir tão luxuosas construções, ninguém hoje é suficientemente rico para planejar palácios como os de Versailles ou o Escorial. As autorizações para a construção dos edifícios do governo não mais emanam de déspotas que tinham a liberdade, a despeito da opinião pública, de escolher um arquiteto por quem tinham alta estima e para patrocinar um projeto que escandalizava a grande maioria. Comissões e juntas administrativas não estão dispostas a adotar as ideias dos atrevidos pioneiros. Elas preferem situar-se do lado seguro.
Jamais houve uma época em que a maioria estivesse preparada para fazer justiça à arte contemporânea. O fato de reconhecer os grandes autores e artistas sempre foi limitado a pequenos grupos. O que caracteriza o capitalismo não é o mau gosto das multidões, mas o fato de que essas mesmas multidões, tornadas prósperas pelo capitalismo, passaram a ser “consumidoras” de literatura — obviamente da literatura sem qualidade. O mercado do livro está invadido pela literatura banal destinada aos semibárbaros. Mas isso não impede que grandes autores criem obras imortais.
Os críticos derramam lágrimas pela suposta decadência das artes industriais. Comparam, por exemplo, as mobílias antigas preservadas nos castelos das famílias aristocratas europeias e nas coleções de museus, com as peças baratas geradas pela produção em larga escala. Não percebem que esses artigos dos colecionadores foram feitos exclusivamente para os abastados. As arcas entalhadas e as mesas marchetadas não poderiam ser encontradas nas miseráveis choupanas das camadas mais pobres. Quem critica a mobília barata do assalariado norte-americano deveria cruzar a fronteira e examinar as casas dos peões mexicanos, que são destituídas de qualquer mobiliário. Quando a indústria moderna começou a suprir as massas com a parafernália de uma vida melhor, seu principal objetivo era produzir o mais barato possível, sem qualquer preocupação com os valores estéticos. Mais tarde, quando o progresso do capitalismo elevou o padrão de vida das massas, eles voltaram-se pouco a pouco para a fabricação de coisas mais refinadas e bonitas. Somente uma predisposição romântica pode induzir um observador a ignorar o fato de que cada vez mais os cidadãos dos países capitalistas vivem num meio ambiente que não pode ser simplesmente tido como feio.
3. Injustiça
Os mais apaixonados caluniadores do capitalismo são aqueles que o rejeitam por causa de sua suposta injustiça.
É passatempo inconsequente apontar aquilo que deveria ser e não é porque contraria as leis inflexíveis do universo real. Tais devaneios podem ser considerados inócuos enquanto permanecem como sonhos. Porém, quando seus autores começam a ignorar a diferença entre fantasia e realidade, tornam-se os mais sérios obstáculos aos esforços humanos no sentido de melhorar as condições externas de vida e bem-estar.
A pior de todas essas ilusões é a ideia de que a “natureza” conferiu a cada indivíduo certos direitos. Segundo esta doutrina, a natureza é generosa para com toda criança que nasce. Existe muito de tudo para todos. Consequentemente, todos têm uma reivindicação justa e inalienável contra seus semelhantes e contra a sociedade: a de receber a parcela total que a natureza lhe outorgou. As leis eternas da justiça natural e divina determinam que ninguém se aproprie daquilo que, por direito, pertence a outrem. Os pobres são necessitados somente porque pessoas injustas despojaram-nos do seu direito de herança. O papel da Igreja e das autoridades seculares é o de impedir essa espoliação e fazer com que todos sejam prósperos.
Cada palavra desta doutrina é falsa. A natureza não é generosa, mas sim mesquinha. Ela restringiu o fornecimento de todas as coisas indispensáveis à preservação da vida humana. Povoou o mundo com animais e plantas nos quais o impulso para destruir a vida humana e o bem-estar é inato. Desenvolve forças e elementos cuja ação é prejudicial à vida humana e aos esforços humanos para preservá-la. A sobrevivência e o bem-estar do homem são uma realização da habilidade com a qual ele utilizou o principal instrumento que lhe foi concedido pela natureza — a razão. Os homens, ao cooperarem sob o sistema da divisão do trabalho, criaram toda a riqueza que os sonhadores consideram um presente espontâneo da natureza. Com relação à “distribuição” dessa riqueza, seria absurdo referir-se a um princípio supostamente divino ou natural de justiça. O que importa não é a distribuição das parcelas de uma reserva presenteada ao homem pela natureza. O problema é promover as instituições sociais que permitem às pessoas continuar e aumentar a produção de tudo o que necessitam.
O Conselho Mundial das Igrejas, organização ecumênica de Igrejas Protestantes, declarou em 1948: “A justiça exige que os habitantes da Ásia e da África, por exemplo, sejam beneficiados por uma maior produção industrial.”[2] Isto só tem sentido se alguém supõe que Deus presenteou a humanidade com uma determinada quantidade de máquinas e presumiu que esses instrumentos fossem distribuídos igualmente pelos vários países. Contudo, os países capitalistas foram tão perversos que se apoderaram de uma quantidade muito maior do que a “justiça” lhes determinou e, assim, privaram os habitantes da Ásia e da África das quantidades a que tinham direito. Que vergonha!
A verdade é que a acumulação de capital e seu investimento em máquinas, a fonte da riqueza comparativamente maior dos povos ocidentais, devem-se exclusivamente ao capitalismo laissez-faire, que o mesmo documento das Igrejas veementemente deturpa e rejeita no campo moral. Não é culpa dos capitalistas se os asiáticos e os africanos não adotaram as ideologias e políticas que teriam tornado possível a evolução do capitalismo nativo. Também não é culpa dos capitalistas se as políticas dessas nações impediram as tentativas dos investidores estrangeiros no sentido de dar-lhes “os benefícios de uma maior produção industrial”, ninguém nega que o que torna centenas de milhões de pessoas na Ásia e na África necessitadas é o fato de elas apegarem-se a métodos primitivos de produção e de perderem as vantagens que o emprego de melhores ferramentas e de tecnologia atualizada lhes poderia conferir. Existe apenas um caminho para aliviar sua miséria — ou seja, a adoção total do capitalismolaissez-faire. Eles necessitam é da empresa privada, da acumulação de novo capital, de capitalistas e empresários. É absurdo culpar o capitalismo e as nações ocidentais capitalistas pelas condições que os povos atrasados criaram para si próprios. A solução indicada não é a “justiça” mas a substituição de políticas doentias por políticas sadias, ou seja, pelo laissez-faire.
Não foram fúteis indagações sobre um vago conceito de justiça que elevaram o padrão de vida do homem comum nos países capitalistas aos níveis atuais, mas as atividades dos homens apelidados “individualistas grosseiros” e “exploradores”. A pobreza das nações atrasadas é devida ao fato de que sua política de expropriação, taxação discriminatória e controle da moeda estrangeira impede o investimento do capital estrangeiro, enquanto sua política interna evita a acumulação do capital nativo.
Todos os que rejeitam o capitalismo por considerá-lo moralmente um sistema injusto estão enganados ao não compreenderem o que é o capital, como passa a existir e como é mantido, e quais os benefícios obtidos do seu emprego nos processos de produção.
A única fonte de geração de bens de capital adicionais é a poupança. Se todos os bens produzidos são consumidos, nenhum novo capital é gerado. Mas, se o consumo se situa abaixo da produção e o excedente de bens recentemente produzidos sobre os consumidos é utilizado em novos processos de produção, esses processos são a partir daí conduzidos com o auxílio de mais bens de capital. Todos os bens de capital são bens intermediários, etapas do percurso que vai desde o primeiro emprego dos fatores originais de produção, isto é, dos recursos naturais e do trabalho humano, até o acabamento final das mercadorias prontas para o consumo. Todos eles são perecíveis. São, mais cedo ou mais tarde, gastos nos processos de produção. Se todos os produtos são consumidos sem a reposição dos bens de capital que foram utilizados em sua produção, o capital acaba. Se isto acontece, a nova produção será provida por uma quantidade menor de bens de capital e irá, portanto, apresentar um rendimento menor por unidade de recursos naturais e de trabalho empregado. Para evitar este tipo de prejuízo e de perda de investimento, deve-se aplicar uma parte do esforço produtivo na manutenção do capital, na reposição dos bens de capital absorvidos na produção de bens utilizáveis.
O capital não é uma dádiva gratuita de Deus ou da natureza. É o resultado de uma prudente restrição do consumo por parte do homem. É criado e aumentado pela poupança e mantido pela abstenção dos gastos.
Nem o capital nem os bens de capital têm o poder de elevar a produtividade dos recursos naturais e do trabalho humano. Somente se os frutos da poupança forem adequadamente empregados ou investidos é que poderão aumentar o rendimento do insumo dos recursos naturais e do trabalho. Se isso não acontece, eles são dissipados ou perdidos.
A acumulação de novo capital, a manutenção do capital previamente acumulado e a utilização do capital para aumentar a produtividade do esforço humano são os frutos da atividade humana intencional. Resultam da conduta de pessoas prósperas que poupam e se abstêm de gastar, isto é, os capitalistas que ganham juros; e das pessoas que são bem-sucedidas ao utilizar o capital disponível para a melhor satisfação possível das necessidades dos consumidores, isto é, os empresários que ganham lucros.
Nem o capital (ou os bens de capital) nem a conduta dos capitalistas e empresários que lidam com o capital poderiam melhorar o padrão de vida do resto das pessoas, se os não capitalistas e os não empresários não reagissem de certa forma. Se os assalariados se comportassem da maneira descrita pela falsa “lei de ferro dos salários” e não soubessem fazer outro uso de seus rendimentos a não ser para se alimentar e para procriar, o aumento do capital acumulado acompanharia o aumento populacional. Todos os benefícios derivados da acumulação de capital adicional seriam absorvidos pelo aumento demográfico. Todavia, os homens não reagem a uma melhoria das condições externas de suas vidas de forma idêntica à dos roedores de bactérias. Conhecem também outros prazeres além de comer e de procriar. Como consequência, nos países de civilização capitalista, o aumento do capital acumulado excede o aumento da cifra da população. À medida que isso acontece, a produtividade marginal do trabalho cresce em relação â produtividade marginal dos fatores materiais de produção. Surge uma tendência para taxas salariais mais elevadas. A proporção do rendimento total da produção que cabe aos assalariados é aumentada em relação à que cabe como juros aos capitalistas e à que cabe como aluguel aos proprietários.[3]
Falar da produtividade do trabalho só faz sentido se isso se refere à produtividade marginal do trabalho, isto é, a dedução no rendimento líquido a ser causada pela eliminação de um operário. Aí ela representa uma quantidade econômica definida, um determinado volume de mercadorias ou seu equivalente em dinheiro. O conceito de uma produtividade geral do trabalho como se depreende das referências populares um suposto direito natural dos operários de exigir o aumento total da produtividade é vago e indefinível. Baseia-se na ilusão de que é possível determinar com quanto cada um dos vários fatores complementares de produção contribuiu fisicamente para o surgimento do produto. Se alguém corta uma folha de papel com uma tesoura, é impossível atribuir as cotas do produto que cabem à tesoura (ou a cada uma das lâminas) ou à pessoa que a manipulou. Para fabricar um automóvel são necessárias várias máquinas e ferramentas, várias matérias-primas, o trabalho de muitos operários e, antes de tudo, o projeto de um desenhista. Mas ninguém pode determinar que parcela do carro depois de pronto pode ser fisicamente atribuída a cada um dos fatores cuja cooperação foi necessária para a produção do veículo.
Para efeitos de discussão, podemos deixar provisoriamente de lado todas as considerações, que mostram os erros da forma como o problema é popularmente tratado, e perguntar: Qual dos dois fatores, trabalho ou capital, provocou o aumento da produtividade? Mas, se colocarmos a questão exatamente dessa forma, a resposta será: o capital. O que faz com que o rendimento total nos Estados Unidos de hoje seja mais elevado (por indivíduo da força de trabalho empregada) do que o rendimento de épocas passadas ou do que o de países economicamente atrasados — como, por exemplo, a China — é o fato de o trabalhador norte-americano contemporâneo estar apoiado por uma quantidade maior e melhor de ferramentas. Se os bens de capital (por operário) não fossem mais abundantes do que eram há trezentos anos ou do que são hoje na China, o rendimento (por operário) não seria mais elevado. O que é preciso para elevar, na ausência de aumento do número de operários empregados, a quantidade total do rendimento industrial da América é o investimento de capital adicional que só pode ser acumulado através de nova poupança. A multiplicação da produtividade da força de trabalho total é devida ao crédito que se der à poupança e ao investimento.
O que eleva os níveis de salário e concede aos assalariados uma parte sempre crescente do rendimento que foi aumentado pela acumulação de capital adicional é o fato de a taxa da acumulação de capital exceder a taxa do aumento populacional. A doutrina oficial não se refere a esse fato ou o nega enfaticamente. Mas as políticas dos sindicatos mostram claramente que seus líderes estão bem conscientes da exatidão dessa teoria que, publicamente, atacam como uma tola defesa burguesa. Estão ansiosos por restringir o numero dos que procuram emprego em todo o país através de leis anti-imigratórias e, em cada segmento do mercado de trabalho, através da prevenção do afluxo de recém-chegados.
Fica claramente demonstrado que o aumento das taxas de salário não depende da “produtividade” individual do operário mas sim da produtividade marginal de trabalho, uma vez que as taxas de salário também se elevam nos casos em que a “produtividade” do indivíduo não sofre qualquer alteração. Existem muitos empregos em que isso acontece. Um barbeiro faz hoje a barba do freguês da mesma maneira como seus antecessores o faziam há duzentos anos. Um mordomo serve à mesa do primeiro-ministro britânico da mesma forma como os antigos mordomos serviam a Pitt e Palmerston. Na agricultura, alguns tipos de trabalho ainda são executados com as mesmas ferramentas e da mesma maneira como se fazia séculos atrás. Mesmo assim, os salários percebidos por todos esses trabalhadores são hoje muito mais elevados do que antigamente. São mais elevados porque são determinados pela produtividade marginal de trabalho. O empregador de um mordomo impede que ele se empregue numa fábrica e deve, por isso, pagar o equivalente ao aumento no rendimento que a utilização adicional de um operário numa fábrica iria proporcionar. Não são os méritos do mordomo que causam esse aumento no salário, mas o fato de que o aumentono capital investido ultrapassa o aumento no número de operários.
Todas as doutrinas pseudo-econômicas que depreciam o papel da poupança e da acumulação de capital são absurdas. O que constitui a maior riqueza de uma sociedade capitalista em comparação com a menor riqueza de uma sociedade não capitalista é o fato de a oferta disponível de bens de capital ser maior na primeira do que na segunda. O que melhorou o padrão de vida dos assalariados é o fato de que os bens de capital por operário desejoso por receber salário cresceram. Como consequência deste fato, uma quantidade cada vez maior do total dos bens utilizáveis produzidos vai para os assalariados. Nenhuma das inflamadas críticas de Marx, Keynes e muitos outros autores menos expressivos conseguiu descobrir um ponto fraco na declaração de que existe apenas uma forma de se elevar a taxa do salário permanentemente e em benefício de todos os operários ansiosos por receber salário — ou seja, acelerar o aumento do capital disponível em relação à população. Se isto for “injusto”, então a culpa será da natureza e não do homem.
4. O “preconceito burguês” de liberdade
A história da civilização ocidental é o registro de uma incessante luta pela liberdade.
A cooperação social sob a divisão do trabalho é a definitiva e única fonte do sucesso do homem em sua luta pela sobrevivência e em seus esforços para melhorar o quanto possível as condições materiais de seu bem-estar. Mas, sendo como é a natureza humana, a sociedade não pode existir se não houver meios de evitar que pessoas obstinadas ajam de maneira incompatível com a vida em comunidade. A fim de preservar a colaboração pacífica, as pessoas devem estar prontas para lançar mão da repressão violenta contra os que perturbam a paz. A sociedade não pode funcionar sem um dispositivo social de coerção e de pressão, isto é, sem o estado e o governo. Dai, surge um novo problema: coibir os homens investidos das funções governamentais a fim de que não abusem de seus poderes e transformem todas as outras pessoas em virtuais escravos. O objetivo de todas as lutas pela liberdade é o de moderar os defensores armados da paz, os governantes e seus policiais. O conceito político de liberdade individual é: liberdade contra a ação arbitrária do poder policial.
A ideia de liberdade é e sempre foi peculiar ao ocidente. O que separa o oriente do ocidente é antes de tudo o fato de que os povos do oriente nunca conceberam a ideia de liberdade. A glória imortal dos antigos gregos era de que eles foram os primeiros a compreender o sentido e o significado das instituições que garantiam a liberdade. Recente pesquisa histórica investigou a origem de alguns dos feitos científicos que, antes, tinham sido creditados aos gregos e que, agora, são dados como de origem oriental. Mas ninguém jamais contestou que a ideia de liberdade originou-se nas cidades da antiga Grécia. As obras dos filósofos e historiadores gregos a transmitiram aos romanos e mais tarde para a Europa moderna e para a América. Transformou-se na principal preocupação de todos os planos ocidentais para o estabelecimento da boa sociedade. Deu origem à filosofia do laissez-faire à qual a humanidade deve todos os empreendimentos inéditos da era do capitalismo.
O objetivo de todas as modernas instituições políticas e jurídicas é o de salvaguardar a liberdade do indivíduo contra intromissões da parte do governo. O governo representativo e a regra da lei, a independência das cortes e tribunais em relação à interferência por parte dos órgãos administrativos, o habeas corpus, o exame judicial e a reforma dos atos da administração, a liberdade de palavra e de imprensa, a separação entre estado e Igreja, e muitas outras instituições, visam apenas a um objetivo: conter o arbítrio dos funcionários públicos e garantir aos indivíduos a liberdade para enfrentar o seu despotismo. A era do capitalismo aboliu todos os vestígios da escravidão e da servidão. Pôs fim às punições cruéis e reduziu as penas pelos crimes cometidos a um mínimo indispensável para desencorajar os transgressores. Suprimiu a tortura e outros métodos censuráveis de tratar suspeitos e infratores. Anulou todos os privilégios e promulgou a igualdade de todos os homens perante a lei. Transformou as vítimas da tirania em cidadãos livres.
Os progressos materiais foram o fruto dessas reformas e inovações na conduta dos assuntos governamentais. Como todos os privilégios desapareceram e foi garantido a cada um o direito de desafiar os interesses encobertos de todas as outras pessoas, foi dada carta branca aqueles que tiveram a capacidade de desenvolver todas as novas indústrias que hoje tornam mais satisfatórias as condições materiais do povo. Houve um enorme aumento populacional mas ainda assim a população aumentada pode desfrutar de uma vida melhor do que a de seus ancestrais.
Também nos países de civilização ocidental sempre houve quem defendesse a tirania — por um lado, a absoluta lei arbitrária de um soberano ou de uma aristocracia e, por outro, a submissão de todas as demais pessoas. Mas na era do Iluminismo, essas vozes se tornaram cada vez mais fracas. A causa da liberdade prevaleceu No início do século XIX, o vitorioso avanço do princípio da liberdade parecia irresistível. Os mais eminentes filósofos e historiadores tinham a convicção de que a evolução histórica caminhava para o estabelecimento das instituições que garantiam a liberdade e de que nenhuma cilada ou trama por parte dos campeões do servilismo poderia deter a tendência ao liberalismo,
Ao tratar da filosofia social liberal, há uma tendência a se menosprezar a eficácia de um importante fator que favoreceu a ideia de liberdade, isto é, o notável papel atribuído à literatura da Grécia antiga na educação da elite. Havia também, entre os autores gregos, campeões da onipotência do governo, tais como Platão. Mas o conteúdo essencial da ideologia grega era a busca da liberdade. A julgar pelos padrões das instituições modernas, as cidades-estado gregas devem ser chamadas de oligarquias. A liberdade, exaltada pelos políticos, filósofos e historiadores gregos como sendo o mais precioso bem do homem, era privilégio reservado a uma minoria. Ao negá-la aos metecos e aos escravos, eles virtualmente defendiam a despótica regra de uma casta hereditária de oligarcas. Mesmo assim, seria erro grave acusar de falsos seus hinos à liberdade. Não eram menos sinceros em sua exaltação e busca da liberdade do que o seriam, dois mil anos mais tarde, os donos de escravos entre os signatários da Proclamação da Independência norte-americana. Foi a literatura política dos antigos gregos que deu origem às ideias dos monarcômacos, à filosofia dos Whigs, às doutrinas de Althusius, Grotius e John Locke, bem como à ideologia dos pais das modernas constituições e declarações de direitos. Foram os estudos clássicos, os aspectos essenciais da educação liberal, que mantiveram vivo o espírito da liberdade na Inglaterra dos Stuarts, na França dos Bourbons e na Itália sujeita ao despotismo de uma galáxia de príncipes. Alguém como Bismarck, que dentre os políticos do século XIX próximos a Metternich foi o principal inimigo da liberdade, testemunhou o fato de que até mesmo na Prússia de Frederico Guilherme III, o Gymnasium, a educação baseada na literatura grega e romana, era um baluarte do republicanismo. [4] Os inflamados esforços para eliminar os estudos clássicos do currículo da educação liberal e, assim, praticamente destruir o que era sua característica específica foram uma das maiores manifestações do renascimento da ideologia servil. É verdade que há cem anos apenas poucos previam o impacto dominante que as ideias antilibertárias estavam fadadas a adquirir em curto espaço de tempo. O ideal de liberdade parecia estar tão firmemente arraigado que todos acreditavam que nenhum movimento reacionário jamais conseguiria destruí-lo. De fato, teria sido loucura atacar a liberdade abertamente e defender francamente a volta à submissão e à escravidão. Mas o antiliberalismo tomou conta das mentes das pessoas camuflado como superliberalismo, como realização e consumação das verdadeiras ideias de autonomia e liberdade. Veio disfarçado como socialismo, comunismo, planejamento.
Nenhuma pessoa inteligente deixaria de perceber que o que socialistas, comunistas e planejadores almejavam era a mais radical abolição da liberdade dos indivíduos e a instalação da onipotência do governo. Não obstante, a grande maioria dos intelectuais socialistas estava convencida de que, ao lutar pelo socialismo, lutava pela liberdade. Eles se denominaram ala esquerda e democratas e, hoje em dia, reivindicam até o adjetivo “liberal”.
Já tratamos aqui dos fatores psicológicos que prejudicaram o raciocínio desses intelectuais e das massas que os seguiram. Tinham no subconsciente a noção exata de que o insucesso em atingir os desmesurados objetivos para os quais os impelia sua ambição era devido apenas às suas próprias deficiências. Sabiam muito bem que não eram suficientemente brilhantes ou diligentes. Mas lutaram para esconder sua inferioridade aos próprios olhos e aos de seus semelhantes e para achar um bode expiatório. Procuraram desculpas e tentaram convencer outras pessoas de que o motivo de sua falha não estava na própria inferioridade, mas sim na injustiça da organização econômica da sociedade. Declararam que, sob o capitalismo, a autorrealização somente é possível para uns poucos. “A liberdade numa sociedade laissez-faire só é atingida por quem possui riqueza ou a oportunidade de obtê-la.” [5] .Daí, concluíram, o estado deve interferir a fim de efetuar a “justiça social” — o que realmente queriam dizer era: a fim de presentear a mediocridade frustrada “de acordo com as suas necessidades”.
Enquanto os problemas do socialismo não passavam de debates, as pessoas com menos raciocínio e compreensão poderiam ser vítimas da ilusão de que a liberdade pudesse ser preservada sob um regime socialista. Engano que não pode mais ser mantido, desde que a experiência soviética mostrou a todos quais são as condições numa comunidade socialista.
Hoje em dia, os defensores do socialismo são forçados a distorcer os fatos e a deturpar o verdadeiro significado das palavras quando pretendem fazer com que as pessoas acreditem na compatibilidade do socialismo com a liberdade.
O falecido professor Laski — em vida, eminente membro e presidente do Partido Trabalhista Britânico, um não comunista sui generis ou até anticomunista — nos revelou: “não tenho a menor dúvida de que na Rússia soviética o comunista tem um senso total de liberdade; sem dúvida também ele possui uma viva compreensão de que a liberdade lhe é negada na Itália fascista”.[6] A verdade é que o russo tem a liberdade de obedecer a todas as ordens emitidas por seus superiores. Mas, tão logo ele se desvie um milímetro do jeito de pensar estabelecido pelas autoridades, será impiedosamente liquidado. Todos os políticos, funcionários, autores, músicos e cientistas que foram “purgados” não eram — por certo — anticomunistas. Eram, pelo contrário, comunistas fanáticos, membros bem situados do partido, que tinham sido promovidos a posições elevadas pelas autoridades supremas, por sua reconhecida lealdade à doutrina soviética. O único erro que cometeram foi o de não adaptarem rapidamente suas ideias, políticas, livros ou composições às últimas mudanças de ideias ou de gostos de Stalin. É difícil acreditar que essas pessoas tivessem um “senso total de liberdade”, sem atribuir à palavra liberdade um sentido exatamente oposto àquele que todos sempre lhe deram.
A Itália fascista era um país onde certamente não existia a liberdade. Ela havia adotado o conhecido modelo soviético do “princípio do partido único” e, consequentemente, suprimido todas as ideias dissidentes. Contudo, houve ainda uma enorme diferença entre a aplicação deste princípio por parte dos bolchevistas e dos fascistas. Na Itália fascista, por exemplo, viveu um antigo membro do grupo parlamentar de deputados comunistas, o professor Antônio Graziadei, que permaneceu leal até a morte aos seus princípios comunistas. Ele recebia uma pensão do governo, à qual tinha direito na qualidade de professor emérito, e tinha liberdade para escrever e publicar, pelos mais eminentes editores italianos, livros que eram da ortodoxia marxista. Sua falta de liberdade era com certeza menos rígida do que a dos comunistas russos que, como o professor Laski preferiu afirmar, “sem dúvida” tem “um senso total de liberdade”.
O professor Laski gostava de repetir a verdade trivial de que a liberdade, na prática, sempre significa liberdade dentro da lei. Dizia que a lei sempre visa “ao controle da segurança sobre um modo de vida que é considerado satisfatório por aqueles que dominam a máquina do governo”.[7] Esta é a correta descrição das leis de um país livre, caso signifique que a lei visa a proteger a sociedade contra os planos de conspiração para deflagrar a guerra civil e para derrubar o governo pela violência. Mas é um grave engano quando o professor Laski acrescenta que, na sociedade capitalista, “um esforço da parte dos pobres para alterar de forma radical os direitos de propriedade dos ricos coloca de imediato todo o esquema das liberdades em perigo”.[8]
Tomemos o exemplo do grande ídolo do professor Laski e de todos os seus amigos, Karl Marx. Quando em 1848 e 1849 ele tomou parte ativa na organização e conduta da revolução, primeiro na Prússia e mais tarde em outros estados alemães, ele foi — por ser legalmente um estrangeiro — banido e enviado, juntamente com a esposa, os filhos e a criada, primeiro para Paris e depois para Londres. [9] Mais tarde, quando a paz foi restabelecida e os instigadores da fracassada revolução foram anistiados, ele ficou livre para retornar a qualquer parte da Alemanha e várias vezes aproveitou-se dessa oportunidade. Não era mais um exilado e decidiu por vontade própria domiciliar-se em Londres.[10] ninguém o molestou quando fundou, em 1864, a Associação Internacional dos Trabalhadores, uma organização cujo único propósito explícito era promover a grande revolução mundial. Também não foi impedido quando, em nome dessa associação, visitou vários países europeus. Tinha a liberdade de escrever e publicar livros e artigos que, utilizando as palavras do professor Laski, eram certamente um esforço “para alterar de forma radical os direitos de propriedade dos ricos”. Morreu tranquilamente na sua residência em Londres, na Maitland Park Road, 41, a 14 de março de 1883.
Ou, ainda, o exemplo do Partido Trabalhista Britânico. Seu esforço “para alterar de forma radical os direitos de propriedade dos ricos” não foi, como muito bem sabia o professor Laski, obstruído por qualquer atividade incompatível com o princípio da liberdade.
Marx, o dissidente, pôde viver, escrever e defender a revolução, à vontade, na Inglaterra vitoriana, assim como o Partido Trabalhista pôde engajar-se em todas as atividades políticas, à vontade, na Inglaterra pós-vitoriana. Na Rússia soviética, não se tolera a menor oposição. Esta é a diferença entre liberdade e escravidão.
5. A liberdade e a civilização ocidental
Quem critica o conceito legal e constitucional de liberdade e as instituições planejadas para a sua realização prática está certo quando afirma que a liberdade da ação arbitrária por parte dos funcionários públicos não é por si só suficiente para tornar livre o indivíduo. Mas ao enfatizar esta incontestável verdade estão forçando portas abertas. Nenhum defensor da liberdade jamais afirmou que restringir a arbitrariedade dos dirigentes do funcionalismo é suficiente para tornar os cidadãos livres. O que garante aos indivíduos toda a liberdade compatível com a vida em sociedade é a atividade da economia de mercado. As constituições e as declarações de direitos não criam a liberdade. Elas simplesmente protegem a liberdade que o sistema econômico de competição garante aos indivíduos contra as intromissões da força policial.
Na economia de mercado, as pessoas têm oportunidade de lutar pela posição que desejam alcançar na estrutura da divisão social do trabalho. Têm a liberdade de escolher a profissão com a qual pretendem servir seus semelhantes. Na economia planejada, elas não têm esse direito. Neste caso, as autoridades determinam a função de cada um. A vontade de um superior promove a pessoa a uma posição melhor ou lhe nega essa promoção. O indivíduo depende inteiramente das boas graças dos que estão no poder. Sob o capitalismo, no entanto, todos tem a liberdade de desafiar os interesses velados dos demais. Se alguém acha que tem a habilidade de atender ao público melhor ou mais barato do que os outros, poderá tentar demonstrar sua eficiência. A falta de recursos não irá frustrar seus planos. Porque os capitalistas estão sempre à procura de pessoas que se disponham a utilizar as reservas monetárias deles da maneira mais lucrativa possível. O sucesso das atividades comerciais de uma pessoa depende exclusivamente da conduta dos consumidores que adquirem aquilo que mais lhes satisfaz.
Também o assalariado não depende da arbitrariedade do empregador. O empresário que deixa de contratar os operários mais qualificados para executar um trabalho e que não lhes paga o necessário para evitar que procurem outro emprego é punido pela diminuição de sua renda líquida. O empregador não está fazendo um favor aos seus empregados. Ele os contrata como um meio indispensável ao sucesso de seus negócios, da mesma forma pela qual adquire matéria-prima e equipamento industrial. O operário tem a liberdade de procurar o emprego que lhe for mais adequado.
O processo de seleção social que determina a posição e o rendimento de cada indivíduo está sempre evoluindo na economia de mercado. Grandes fortunas vão diminuindo e por último desaparecem totalmente enquanto outras pessoas, nascidas na pobreza, chegam a eminentes posições e a consideráveis rendimentos. Quando não existem privilégios e quando os governos não dão proteção a interesses velados ameaçados pela eficiência superior dos recém-chegados, os que adquiriram fortuna no passado são forçados a lutar para mantê-la dia a dia na competição com os demais.
Dentro da estrutura de cooperação social sob a divisão do trabalho, cada um depende do reconhecimento de seus serviços por parte do público comprador do qual ele mesmo faz parte. Todos, ao comprar ou ao deixar de comprar, são membros da suprema corte que atribui a todas as pessoas — e portanto também a si — um lugar definido na sociedade. Todos são úteis no processo que concede a alguns maior renda e a outros, menor. Todos têm liberdade para oferecer uma contribuição que seu semelhante está preparado para recompensar pela atribuição de um rendimento mais elevado. Sob o capitalismo, liberdade significa: não depender da vontade de alguém mais do que alguém possa depender da sua. Nenhuma outra liberdade é concebível quando a produção é executada sob a divisão do trabalho, e não existe perfeita autonomia econômica de todos.
Não é necessário enfatizar que o principal argumento em favor do capitalismo e contra o socialismo não é o fato de que o socialismo deva necessariamente eliminar qualquer vestígio de liberdade e converter todos em escravos dos que detêm o poder. O socialismo é impraticável enquanto sistema econômico porque uma sociedade socialista não teria qualquer possibilidade de recorrer ao cálculo econômico. Este é o motivo pelo qual não pode ser considerado como um sistema de organização econômica da sociedade. É uma forma de desintegrar a cooperação social e de gerar pobreza e caos.
Ao tratar da questão da liberdade, o indivíduo não se refere ao problema econômico essencial do antagonismo entre capitalismo e socialismo. Prefere destacar que o homem ocidental, ao contrário dos asiáticos, é um ser totalmente ajustado à vida em liberdade e foi criado para viver em liberdade. As civilizações da China, Japão, Índia e dos países muçulmanos do oriente próximo não podem ser consideradas incultas pelo simples fato de, tendo existido muito antes, não terem tido contato com as formas de vida ocidental. Esses povos, há muitas centenas ou até mesmo milhares de anos, realizaram feitos maravilhosos nas artes industriais, na arquitetura, na literatura, na filosofia e no progresso das instituições educacionais. Fundaram e organizaram poderosos impérios. Porém, mais tarde, seus esforços diminuíram, suas culturas tornaram-se entorpecidas e inertes, e eles perderam a capacidade de lidar adequadamente com problemas econômicos. Seus intelectuais e artistas desapareceram. Seus artistas e autores copiaram cegamente modelos tradicionais. Seus teólogos, filósofos e advogados entregaram-se a invariáveis exposições de trabalhos antigos. Os monumentos erigidos por seus ancestrais desmoronaram. Seus impérios ruíram. Seu povo perdeu o vigor e a energia e tornou-se apático diante da decadência e do empobrecimento progressivos.
As antigas obras da filosofia e da poesia oriental podem comparar-se às mais valiosas obras do ocidente. Mas durante muitos séculos o oriente não produziu nenhum livro importante. A história intelectual e literária da época moderna não registra o nome de um autor oriental. O oriente deixou de contribuir para o esforço intelectual da humanidade. Os problemas e as controvérsias que agitaram o ocidente permaneceram desconhecidos do oriente. Na Europa, havia excitação; no oriente, estagnação, indolência e indiferença.
O motivo é óbvio. Faltava ao oriente a coisa principal, a ideia de liberdade do estado. O oriente jamais desfraldou o estandarte da liberdade e nunca tentou enfatizar os direitos do indivíduo contra o poder dos legisladores. Nunca levantou a questão da arbitrariedade dos tiranos. Consequentemente, nunca constituiu a estrutura legal que protegeria a riqueza particular do cidadão em relação ao confisco por parte dos déspotas. Ao invés disso, iludidos pela ideia de que a fortuna dos ricos é o motivo da miséria dos pobres, todos aprovaram as atitudes dos governantes que desapropriaram os homens de negócios bem-sucedidos. Isso impediu a acumulação de capital em larga escala e as nações deixaram de desfrutar dos progressos que exigem considerável investimento de capital. Nenhuma “burguesia” pôde se desenvolver e, consequentemente, não houve público para encorajar e patrocinar autores, artistas e inventores. Aos jovens, todas as oportunidades de se destacarem pessoalmente estavam confinadas, exceto uma. Podiam fazer carreira servindo aos príncipes. A sociedade ocidental era uma comunidade de indivíduos que podiam lutar pelos maiores prêmios. A sociedade oriental era um aglomerado de vassalos totalmente dependentes das boas graças dos soberanos. A juventude alerta do ocidente encara o mundo como um campo de ação no qual pode ganhar fama, destaque, reputação e riqueza; nada parece difícil para a sua ambição. A humilde prole dos pais orientais só sabe seguir a rotina de seu meio ambiente. A nobre autoconfiança do homem ocidental encontrou uma expressão triunfante nos ditirambos tais como o hino de Antígona na tragédia de Sófocles a respeito do homem e de seu espírito de aventura e como a Nona Sinfonia de Beethoven. Nunca se ouviu nada semelhante no oriente.
Será possível que os descendentes dos construtores da civilização do homem branco devam renunciar à sua liberdade e voluntariamente entregar-se à suserania de um governo onipotente? Que devam procurar a alegria num sistema no qual sua única tarefa será a de servir como uma peça a mais numa grande máquina projetada e manipulada por um planejador todo-poderoso? Devem as mentalidades das civilizações reprimidas destruir os ideais pelos quais milhares e milhares de seus antepassados sacrificaram a vida?
Ruere in servitium, eles mergulharam na escravidão, observou tristemente Tácito ao falar dos romanos da época de Tibério.
NOTAS
[1] Ver pp. 42-43, sobre a tendência inerente do capitalismo para diminuir o intervalo entre o aparecimento de uma nova melhoria e o momento em que seu uso se generaliza.
[2] Cf. The Church and the Disorder of Society. New York, 1948, p. 198.
[3] Os lucros não são afetados. São o ganho derivado do ajuste do emprego dos fatores materiais de produção e do trabalho às mudanças que ocorrem na demanda e na oferta; dependem somente do volume dos desajustes anteriores e da dificuldade de sua remoção. São transitórios e desaparecem no momento em que o desajuste tenha sido inteiramente removido. Entretanto, como alterações na demanda e oferta ocorrem a cada vez, também, a cada vez, surgem novas fontes de lucro.
[4] Cf. Bismarck, Gedanken und Erinncrungen, New York, 1898, vol. I, p. I.
[5] Cf. M. Laski, no verbete “Liberty” da Encyclopaedia of the Social Sciences, IX, p. 443.
[6] Cf. Laski, I. c, pp. 445-446.
[7] Cf. Laski, I .c, pp. 446.
[8] Cf. Laski, l. c, p. 446.
[9] A respeito das atividades de Marx nos anos 1848 e 1849, ver: Karl Marx, Chronik seines Lebens in Einzeldaten, publicado pelo Instituto Marx-Engels-Lenin de Moscou, 1934, pp. 43-81.
[10] Em 1845, Marx renunciou voluntariamente e por sua iniciativa á cidadania prussiana. Quando mais tarde, a partir de 1860, pensou fazer carreira política na Prússia, o governo recusou seu pedido para recuperar a cidadania. Assim, a carreira política fechou-se para ele. Talvez esse fato o tenha levado a permanecerem Londres.