Não se deve subestimar a capacidade do governo de perverter medidas de cunho liberal e utilizá-las para proveito próprio, aumentando seu poder. Em hipótese alguma se deve duvidar de que o governo irá aproveitar uma demanda popular antiestado e subvertê-la para agigantar seu poder.
Um exemplo deste oportunismo estatal são as privatizações. Em tese, a privatização de empresas estatais seria uma medida que retira poder e arbitrariedade do estado, pois este deixa de ser administrador e investidor e passa a ser apenas um coletor de impostos. Na prática, no entanto, é diferente. O estado vende empresas e ao mesmo tempo aumenta seu controle. Ou seja, ele privatiza (troca a gestão estatal pela gestão privada), mas não desestatiza. No final, aumenta seu poder por meio da mágica das agências reguladoras.
O estado tira proveito da maior eficiência da gestão privada para aumentar sua receita de impostos, e reforça o poder das agências reguladoras para controlar rigidamente os mercados em que atuam essas empresas privatizadas. Em troca dessa submissão, o governo usualmente garante às empresas uma reserva de mercado, a qual é solidificada pelas agências reguladoras, que implantam barreiras burocráticas e regulatórias à livre entrada de competidores, impedindo assim uma genuína livre concorrência
No Brasil, como regra geral, os setores “privatizados” mantiveram em grande medida seus monopólios garantidos por lei, em um formato destinado a maximizar tanto a chamada ‘outorga’ quanto as participações nos resultados futuros. Em outras palavras, o repasse do monopólio por lei ao gestor privado permite ao governo maximizar tanto os valores recebidos pelo estado na data da “privatização” como nos anos vindouros . Além disso, os leilões foram viabilizados com dinheiro do BNDES, e os fundos de pensão de estatais (que, em última instância, são controlados por políticos e sindicalistas ligados a partidos políticos) adquiriram participações em várias dessas empresas “vendidas”. Não houve um único setor da economia do qual o estado tenha se retirado por completo. Assim como a jabuticaba e a pororoca, as “privatizações” brasileiras são um fenômeno único: aumentam a participação do estado na economia.
Fizemos estes prolegômenos para introduzir o leitor ao novo golpe que está sendo perpetrado pelo estado contra a iniciativa privada, golpe este travestido sob o manto de “mais transparência” e “preocupação com os direitos do cidadão”: a obrigatoriedade da discriminação de impostos na nota fiscal.
A exigência de que os impostos embutidos nos preços das mercadorias e serviços sejam discriminados na nota fiscal sempre foi uma demanda popular. A ideia é que, se os consumidores de fato souberem o quanto pagam de impostos — embutidos veladamente no preço final —, terão maior consciência do tanto o governo extrai dele e do que o governo pode estar desviando para a corrupção. Ato contínuo, ofereceriam maior resistência a qualquer anúncio de aumento de impostos.
Até aí, tudo bem. Trata-se, de fato, de uma medida antiestado. Afinal, governo nenhum tem interesse em súditos bem informados a respeito de sua esbórnia fiscal. Porém, como diz o aforismo apócrifo, o diabo está nos detalhes. Veja a notícia a seguir:
Dilma publica lei que obriga detalhamento de impostos na nota fiscal
Medida foi aprovada com vetos e entra em vigor em junho de 2013
Nova lei determina que os tributos incidentes sobre os produtos e serviços devem ser explicitados na nota fiscal.
A presidente Dilma Rousseff publicou nesta segunda-feira (10) no “Diário Oficial da União” a lei 12.741, que determina que os tributos incidentes sobre os produtos e serviços devem ser explicitados na nota fiscal. Diferentemente do texto aprovado pelo Congresso Nacional, a lei sancionada estabelece que deverão ser identificados sete e não nove tributos: Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), PIS/Pasep, Cofins, Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e Imposto sobre Serviços (ISS).
Informações referentes ao Imposto de Renda e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) foram vetadas pela presidente. Outro veto diz respeito à parte do texto que determinava a identificação do tributo mesmo que estivesse sendo questionado na Justiça ou em processo administrativo.
No caso dos serviços financeiros, as informações sobre os tributos deverão ser colocadas em tabelas fixadas nos pontos de atendimento, como agências bancárias. O IOF deverá ser discriminado somente para os produtos financeiros, assim como o PIS e a Cofins, somente para a venda direta ao consumidor. A lei também estabelece que a nota fiscal deverá trazer o valor da contribuição previdenciária dos empregados e dos empregadores sempre que o pagamento de pessoal constituir item de custo direto do serviço ou produto fornecido ao consumidor.
Sempre que os produtos forem fabricados com matéria-prima importada que represente mais de 20% do preço de venda, os valores referentes ao Imposto de Importação, ao PIS/Pasep e à Cofins incidentes sobre essa matéria-prima também deverão ser detalhados.
Para que os estabelecimentos comerciais tenham tempo para se adaptar às novas regras, a lei só entra em vigor em junho de 2013. A partir daí, quem descumprir a lei pode ser enquadrado no Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), que prevê sanções como multa, suspensão da atividade e cassação da licença de funcionamento.
A lei é fruto de uma iniciativa popular que reuniu aproximadamente 1,56 milhão de assinaturas coletadas pela campanha nacional De Olho no Imposto, da Associação Comercial de São Paulo.
Perceberam a encrenca? A notícia, que tinha tudo para ser boa, é péssima. Para começar, o cálculo dos impostos ficará a cargo das empresas. Só que graças ao nosso sistema tributário incompreensível, ele é extremamente complicado e nada exato. Aliás, ele é quase impossível de ser feito, principalmente ao se levar em conta os impostos embutidos nos insumos. Consequentemente, isso abre espaço para vários tipos de chantagem e de cobrança de propina da parte dos fiscais do governo. O risco de autuação será alto. Quem descumprir a lei — qualquer pequena empresa sem contadores capacitados — será enquadrado com multa, suspensão da atividade e cassação da licença de funcionamento.
Dos 88 tributos existentes no Brasil, a lei só determinou “transparência” para oito deles. A lista de impostos a serem especificados é estritamente controlada pela lei, e a presidente já começou vetando dois impostos (IR e CSLL) desse processo de transparência. Ademais, o Imposto de Importação só será incluído caso o importado represente mais de 20% do preço final de venda, uma métrica que deverá excluir quase todos os importados de varejo que utilizam cadeias de distribuição custosas. Que transparência é essa que se propõe a divulgar menos de 1/10 dos impostos, e com exceções? Na verdade, é um processo de desinformação, e não de transparência.
O processo de aprovação desta lei, que levou 10 anos e consumiu uma quantidade gigantesca de recursos humanos e financeiros — boa parte advinda de liberais bem-intencionados —, foi contaminado desde a origem pela mentalidade estatista de que precisamos da autorização de Brasília para divulgar um mero dado. O mais curioso é que, até hoje, era proibido divulgar a carga tributária contida no produto. Qualquer folheto ou papel grampeado podia ser interpretado pelo estado como um ato subversivo. (No caso do Dia da Liberdade de Impostos, ao perceber o potencial eleitoreiro dessa encampação estatal, foi aprovada uma lei “permitindo” que se faça a manifestação e instituindo por lei o “Dia Nacional da Conscientização de blá-blá-blá”). O que antes era proibido, a partir de agora será obrigatório. É igual à democracia: ou você é proibido de votar ou é obrigado a votar. Os burocratas do estado possuem uma mentalidade binária: eles só veem proibições e obrigações. Não há o meio termo, que é a liberdade.
Quem será o mais atingido por essa lei? O pequeno empresário, é claro. Ele agora terá mais um custo e mais uma obrigação, o que dificultará ainda mais sua concorrência com as grandes empresas. Alguns já se deram conta disso e já começaram a reclamar.
E as grandes empresas? Embora percam, o fato é que para estas esse trabalho adicional é proporcionalmente pequeno. Mas há um diferencial nada desprezível: esta lei acaba sendo benéfica para elas, pois irá diminuir a competição das pequenas e médias empresas.
Isso é fácil de entender. Impostos, regulamentações e burocracia funcionam também como barreiras ao surgimento de novos concorrentes. Uma empresa já estabelecida em um determinado ramo já se adaptou aos impostos e aos custos contábeis de operá-los, ao passo que esses mesmo impostos impedem que pequenas empresas cresçam e que novas empresas surjam. Uma alta carga tributária, acompanhada de um emaranhado indecifrável de códigos tributários, serve como barreira de entrada no mercado, o que apenas ajuda as empresas já estabelecidas. Para estas, uma alta carga tributária ou um emaranhado burocrático incompreensível e arbitrário são um preço válido a ser pago, pois garante que novas empresas fiquem afastadas e que a concorrência seja mínima.
Ao passo que o pequeno empresário estará mais manietado, os grandes não terão dificuldades — nem carência de recursos — para lidar com essa nova imposição estatal. Com nada menos que 88 tributos e uma burocracia que é um emaranhado de leis, medidas provisórias, decretos e outros atos tributários aterrorizantes, que pequena empresa conseguirá concorrer com os barões já estabelecidos (e quase sempre financiados pelo BNDES)?
O estado, mais uma vez, cria uma intervenção que não apenas aumenta seu poder e suas receitas, como também auxilia os grandes à custa dos pequenos. E ainda há aqueles que dizem que o estado existe para preservar a concorrência e manter a solvência dos mais fracos…
Portanto, eis aí duas lições: 1) nunca subestime a capacidade do estado de subverter para proveito próprio causas até então antiestatais; e 2) jamais comemore antecipadamente a aprovação de medidas aparentemente pró-mercado. O estado sabe o que faz e jamais iria voluntariamente criar leis que prejudicassem a si próprio — salvo se for uma questão relativa a sua própria sobrevivência.
Se você é um pequeno empreendedor, nossas condolências. E boa sorte.