“Quem viveu, vai se identificar; quem não viveu, se espantará com o que se passou”. Assim alerta Miriam Leitão em seu mais recente livro, “Saga Brasileira”, sobre a história monetária do país nos últimos 30 anos. Apesar da pouca idade, vivi parcialmente o período de descontrole inflacionário. Incluo-me, portanto, muito mais no segundo do que no primeiro grupo. E decididamente, o espanto é enorme. Mais assustador ainda é dar-se conta de que todo o sofrimento é causado por erros de políticas públicas. Muitas vezes amparadas por uma teoria econômica errônea, quando não criminosa.
Além do espanto, é impossível não sentir profunda tristeza, ao deparar-nos com histórias pessoais de tragédia, causadas pela ingerência monetária de nossos governantes.
De Plano em Plano, políticas nocivas, o empobrecimento crescente, a redistribuição de riqueza visível e o povo na penúria. Do Plano Cruzado veio o congelamento de preços e uma nova moeda. Do congelamento de preços, a inevitável escassez. Ou popularmente, o desabastecimento, naturalmente causado por impor preços aquém do que seriam em um livre mercado, desincentivando a oferta por gerar perdas aos produtores e inflando a demanda através de um preço artificialmente baixo. Além disso, a fixação arbitrária de preços produzia distorções não somente de cunho econômico, mas também moral e legal, tornando criminoso o empresário que se recusava a praticar preços que o levariam à bancarrota, quando, na verdade, a grande contravenção era perpetrada desde Brasília que jorrava dinheiro na economia. Na esfera econômica, Miriam relembra fatos bisonhos, frutos desta política insana, como o preço dos carros novos em relação aos usados:
Essa foi uma das várias distorções que surgiam. Como o carro zero tinha preço controlado, sumia das revendedoras, ou por demanda, ou por boicote dos produtores. O carro usado, que era mais difícil de ter preço congelado, já que seu valor dependia de inúmeros fatores, passou a ocupar mais espaço no comércio de veículos. Foi nessa época que o país conheceu o ágio. A mercadoria sumia, mas reaparecia quando o comprador aceitava pagar mais caro.[1]
O varejo acabava sendo o setor mais visado e suscetível a ataques políticos e populistas. Em dado momento, o então delegado Romeu Tuma, poucas horas após o anúncio do Plano Cruzado, declarou “que qualquer cidadão podia prender o responsável [por aumentar os preços fora do congelamento]”[2]. Obviamente, logo após o incidente, foi obrigado a negar tal declaração. Varejistas eram criminosos. Os políticos, os salvadores. Infelizmente a população em geral comprava essa idéia e assumia sua responsabilidade em “fiscalizar” os preços diariamente, enquanto em Brasília, a gastança continuava solta.
É difícil identificar qual política é a mais danosa a economia. Mas com grande segurança podemos afirmar que inundar a economia com dinheiro e congelar preços é uma combinação extremamente destrutíva. Criminosa. O desabastecimento generalizado é o inevitável resultado. No Plano Cruzado, a situação foi tão crônica que o IBGE já não conseguia calcular adequadamente alguns índices de preços, pois simplesmente não mais se encontravam diversos produtos nas prateleiras[3].
E o que dizer dos efeitos nefastos à vida familiar, que acabava por ocasionar embates nos lares das famílias (principalmente de classe média e mais pobres) que faziam malabarismo para comprar o estritamente necessário à sua sobrevivência cada vez que recebiam seus salários? Maridos reclamavam que suas esposas não sabiam calcular e esgotavam a renda familiar, enquanto estas nada podiam fazer com um dinheiro que perdia o seu valor a cada dia.
Quem viveu intensamente este Plano, certamente se recordará do episódio de grande simbolismo desta época: a Polícia Federal sobrevoando fazendas para encontrar bois gordos e desapropriá-los, na vã tentativa de forçar os produtores a reabastecer o mercado com carne, o bem que simplesmente sumiu dos supermercados[4]. Uma verdadeira comédia, não fosse realidade.
Nos planos que se seguiram pouco mudou, pois a verdadeira causa do aumento de preços na economia não era atacada. As distorções seguiam e a hiperinflação se aproximava. A bizarrice daqueles tempos era estampada nos jornais com matérias sob o título de “Deu a louca nos preços”:
Um fogão de brinquedo poderia custar mais do que um fogão de verdade. Você poderia comprar um blazer de linho ou uma geladeira pelo mesmo valor; podia escolher fazer um estoque de 42 conjuntos de calcinha e sutiã ou comprar um carro zero; adquirir um vidro de óleo Johnson ou cinco quilos de carne. Os jornais traziam comparações para que as pessoas não se perdessem naquele labirinto[5].
Antes da estabilidade, tivemos que enfrentar uma das maiores aberrações em termos de política econômica, oconfisco do Plano Collor. Com muita perspicácia, Miriam relata inúmeras histórias de dramas pessoais, frutos deste inesquecível episódio. Ironicamente, foi nesta época que medidas importantes para o avanço do país foram tomadas, como a abertura da economia e o início das privatizações. O estado começava a diminuir. Ademais, pequenas liberdades na área cambial foram concedidas aos cidadãos brasileiros. Não seria mais preciso carregar todo o dinheiro em espécie ou em traveller checks em viagens ao exterior. Com a permissão do cartão de crédito internacional os brasileiros passaram a ser turistas normais, e não mais estrangeiros suspeitos com pilhas de notas de 100 dólares escondidos ao redor do corpo[6].
Com a chegada do Real, parecia haver vida após o amanhã. O horizonte foi alargado. Finalmente seria possível planejar, poupar e investir com relativa segurança. As privatizações continuaram e o sistema financeiro se aperfeiçoou. São inegáveis os avanços institucionais no âmbito monetário. Nos quinze anos de 1979 a 1994 o Brasil teve treze Ministros da Fazenda e um aumento de preços medido pelo IPCA de 13.342.346.717.617,70%. Sim, treze trilhões e nem-vale-a-pena-escrever-o-resto por cento. Nos quinze anos seguintes, até dezembro de 2009, foram apenas três Ministros da Fazenda e um aumento de 196,87% no IPCA[7]. Sem dúvida alguma, uma diferença gritante.
Identificando o inimigo
Miriam Leitão escreveu este livro para que “os que já se esqueceram possam se lembrar, para que os não viveram possam saber. E todos contem aos filhos e netos o que se lembram daquela loucura. E, assim, sabedores do que é uma tragédia inflacionária, os brasileiros possam se proteger contra esse inimigo, que, mesmo derrotado, sobrevive à espreita, aguardando uma fraqueza, um erro, uma leniência qualquer”[8].
É preciso louvar o extraordinário trabalho realizado pela autora. Trazer à tona os fatos de um passado tragicômico, não muito distante, é realmente notável. Recuperar à nossa lembrança as situações estapafúrdias, as tragédias pessoais, o empobrecimento generalizado do nosso país, e o tempo perdido naqueles anos loucos é algo digno de elogio. Talvez nenhum outro período da história do país tenha contribuído tanto para a concentração de riqueza e a desigualdade. A leitura desta obra é obrigatória para economistas e leigos interessados em conhecer o passado recente e louco que o povo brasileiro enfrentou. No entanto, ao terminar o livro, algumas perguntas permanecem sem respostas conclusivas: quem é o inimigo? O que causa a inflação? O que é a inflação?
Em economia se ensina que a inflação é um aumento generalizado dos preços. Esta é, também, a noção popular deste fenômeno. Entretanto, esta definição é imprecisa e incorreta. Inflação, na verdade, significa um aumento de dinheiro em circulação. Quando isto ocorre, tudo o mais constante, os preços tendem a subir. Inflar a moeda, aumentar a quantidade de dinheiro em circulação, criação de meios fiduciários ou de pagamento, injetar liquidez, expandir a oferta monetária, impressão de dinheiro, entre outras expressões do gênero, são todos sinônimos de inflação, e a consequência inevitável é um aumento generalizado dos preços.
Se há uma maior oferta monetária (dinheiro em circulação) e uma mesma quantidade de bens e serviços a serem adquiridos, os preços destes tendem a subir — ou, dito de outra forma, o poder de compra da moeda tenderá a cair, pois serão necessárias mais unidades monetárias para adquirir o mesmo bem. O dinheiro perdeu valor. A moeda depreciou-se. Os produtos encareceram.
Mas quem emite a moeda?
O Banco Central.
Então quem gera inflação, causando um aumento generalizado de preços é o próprio Banco Central[9]?
Exatamente.
Por que somente ao BC é concedido o direito de emitir moeda?
Segundo o Art. 164 de nossa Constituição de 1988, é competência da União emitir moeda, a qual será exercida exclusivamente pelo BC.
Por que compete somente à União emitir moeda?
Pois exatamente assim foi definido na mesma Constituição, artigo 21.
Satisfeito com esta resposta? Imagino que não.
Julgamos necessário fazer uma breve digressão para que o leitor compreenda o que é e como surgiu o dinheiro. Pois bem, a moeda, ou o dinheiro em sentido amplo, surgiu no mercado através das inúmeras relações de troca entre os indivíduos em um dilatado período de tempo. O dinheiro, ou o meio de troca, resolvia o problema do escambo: se tenho pão em abundância e necessito adquirir uma camisa, preciso encontrar alguém que tenha camisa e queira receber pão em troca. As trocas diretas, ou escambo, reduziam as possibilidades de transações. A forma que os indivíduos encontraram foi trocar bens mais comercializáveis não com intuito de consumi-los, mas para posteriormente trocá-los pelo bem que era realmente desejado, a chamada troca indireta. Logo, o meio de troca, comumente chamado de dinheiro, possibilita uma infinidade de transações, permitindo a divisão ou especialização do trabalho e o desenvolvimento da economia.
Historicamente, os bens que se sobressaíram nesta função foram o ouro e, em menor medida, a prata. Nenhum governo, monarca, ditador, ou afim, precisou decretar que algo era dinheiro. As pessoas, pacificamente e livremente, escolheram estes metais como os bens que melhor desempenhavam a função de meio de troca. Desgraçadamente, através de um longo processo histórico, e com o intuito de financiar seus crescentes gastos, governos se apropriaram da produção deste bem, culminando no atual arranjo monetário de papel-moeda emitido monopolisticamente pelos governos.
O leitor atento poderá pertinentemente pensar: “Muito bem, ainda que o estado detenha o monopólio de emissão de moeda, nada impede os cidadãos de livremente escolher outra moeda para transacionar”. Infelizmente, este direito também nos foi tirado. A moeda emitida pelo Banco Central tem curso legal forçado, isto é, condição definida em lei, que torna obrigatória a aceitação da cédula ou moeda nacionais nas transações econômicas realizadas no país[10]. São vedadas também aos cidadãos brasileiros, sob pena de nulidade, quaisquer estipulações de pagamento expressas em, ou vinculadas a, ouro ou moeda estrangeira, conforme Lei nº 10.192, de 14 de fevereiro de 2001.
Em suma, é vedado exercer o direito de escolha no que tange às questões monetárias. O que os indivíduos elegeram livremente como dinheiro por milênios, o ouro, é hoje proibido por lei de ser utilizado em transações comerciais. No Brasil, este mesmo arranjo legal e monetário imperou pelo menos durante os últimos 30 anos. E assim seguimos hoje em dia[11].
Após esse curtíssimo resumo histórico e legal da moeda, podemos retornar ao ponto central e constatar que o verdadeiro inimigo é o próprio estado brasileiro, sob o comando do Banco Central.
Inflação é uma política, não um fenômeno sem causa conhecida[12]. O responsável por aumentos de preços de mais de 80% ao mês, 20%, ou 0,5% ao mês, continua sendo o mesmo, o Banco Central. Sendo parte intrínseca do problema, o BC jamais será a solução.
O que precisa ser debatido no país não é que nível de inflação seria o mais atraente ao crescimento econômico, mas sim se este é acima de tudo um sistema viável e benéfico. Apesar de infinitamente menos prejudicial, IPCA ao redor de 200% nos últimos 15 anos não é algo desejável. Almejar IPCA em 4%, 6%, ou 2% é uma mera tecnicalidade que ofusca o verdadeiro problema: o próprio sistema em si. Perseguir uma dada taxa de aumento de preços é reduzir o poder de compra da moeda ano após ano, sistematicamente. Moeda que perde seu poder de compra constantemente não é precondição para prosperidade econômica e tampouco pode ser uma política a ser adotada.
Não devemos negar os enormes avanços institucionais realizados nos últimos 20 anos e em especial desde a introdução do Real. No entanto, é preciso reconhecer que o sistema que gerou inflação de milhares por cento ao ano é o mesmo que gera 6,5% ao ano. A extinção da conta-movimento, a privatização de Bancos Estaduais que financiavam a gastança de estados perdulários, o fim da política cambial que gerava ainda mais inflação, a relativa ordem na área fiscal, entre outros, foram melhorias e avanços fundamentais dentro de um mesmo sistema[13], isto é, Banco Central com monopólio de emissão de moeda amparado por leis de curso forçado. Felizmente, o Plano Real trouxe avanços consideráveis, permitindo que o sistema estancasse a emissão maciça de moeda, destruindo o poder de compra da mesma.
É necessário enfatizar que um Banco Central não é uma evolução natural do livre mercado. Fazendo uma análise histórica, verificamos sucessivos privilégios concedidos ao sistema bancário praticante de reserva fracionária, em que os direitos de propriedade dos depositantes eram sumariamente revogados, permitindo que os bancos atuassem à margem dos princípios tradicionais do direito. As fortes pressões deste setor, para que o governo os socorresse durante as inerentes crises deste sistema, culminou na criação da figura do Banco Central, uma entidade capaz de orquestrar a expansão monetária e resgatar a banca em momentos de apuros. Bancos Centrais nasceram do privilégio legal, e assim permanecem operantes nos dias de hoje. Um Banco Central representa, portanto, o ápice da intervenção estatal no âmbito monetário.
Um governo pode financiar-se com impostos ou empréstimos. Com um Banco Central e seu monopólio de emissão da moeda, o estado pode arcar com seus gastos através de uma terceira via: impressão de dinheiro. Nos anos 80 e início dos 90, era exatamente essa forma que prevalecia. Após a introdução do Real, tal via foi substancialmente reduzida. Entretanto, ainda segue em funcionamento.
Quanto à independência do BC, podemos dizer que é um debate inútil. Em primeiro lugar, pois evita a questão central sobre se sequer é necessário existir tal instituição. Em segundo, o que há entre o Banco Central e o governo é uma total interdependência e confluência de interesses. Sem a chancela do estado, o BC não existe; e na ausência deste, o estado não é capaz de financiar-se e continuar expandindo-se além da economia ano após ano.
Conclusão
O país não venceu a hiperinflação. O governo parou de hiperinflacionar. Enquanto não desmistificarmos definitivamente o inimigo, jamais poderemos erradicá-lo. Enquanto a população acreditar que a inflação é algo do além, sem causa devidamente explicada, a ser combatido por todos e, ironicamente, capitaneado pelo governo, jamais poderemos por um fim nesta política insana.
Com o Plano Collor o estado iniciou o processo de redução da sua interferência na economia. Fernando Henrique Cardoso deu sequência a este processo reduzindo ainda mais o estado-empresário. Infelizmente, testemunhamos o caminho inverso no último mandato do ex-presidente Lula, parcialmente justificado sob o pretexto da crise financeira de 2008. Os infindáveis desembolsos praticados pelo BNDES, o inchaço da máquina estatal e o inevitável aumento generalizado dos preços nos últimos meses são consequências diretas do sistema monetário sob o qual somos obrigados a viver.
Será que voltaremos àqueles anos de índices de inflação de dois dígitos ao ano? Ao mês? Faz-nos refletir quando assistimos o que se passa no nosso vizinho argentino, onde o governo parece estar determinado a acabar com a economia, multando empresas que divulgam índices de inflação acima dos oficiais (leia-se maquiados)[14], enquanto o estado imprime dinheiro sem parar acabando com o valor de sua moeda.
Se existe um bem que não deve estar na mão do estado é justamente o dinheiro. No mercado ele surgiu, e este deve ser o seu guardião. Críticos de moeda privada alegam que esta não funciona. O que não funciona é o governo sujeito as restrições da moeda privada. É uma crucial diferença.
Miriam Leitão define a “Saga Brasileira” como sendo “a longa luta de um povo por sua moeda”. Humildemente, ofereço uma leve, mas essencial, alteração: a longa luta de um povo contra a moeda imposta pelo estado.
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Notas
[1] Leitão, Miriam, Saga Brasileira: a longa luta de um povo por sua moeda (São Paulo, Editora Record, 2011), Pg. 58
[9] Não é intenção deste artigo identificar todos os causadores de inflação (aumento de dinheiro em circulação), como o sistema bancário supervisionado pelo BC e o sistema de reservas fracionárias que cria depósitos do nada, o chamado multiplicador bancário. Portanto, nos focaremos no Banco Central, por ser este o elo principal do atual arranjo monetário sob o qual vivemos.
[10] Banco Central do Brasil – Meio Circulante, Terminologia http://www.bcb.gov.br/?MECIRGLOSS
[11] Curiosamente nosso BC está estudando a possibilidade de permitir o uso de moedas estrangeiras para pequenas transações em virtude da Copa de 2014 http://g1.globo.com/economia/noticia/2011/05/bc-defende-uso-de-moeda-estrangeira-por-turistas-no-brasil.html
[12] Ver Mises http://rothbardbrasil.com/inflacao/
[13] Para maiores detalhes nas causas de inflação e hiperinflação dos anos 80 e 90 ver o artigo de Leandro Roque http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=313
[14] No dia 30/05/2011, o jornal Valor Econômico publicou a bizarra notícia de que na Argentina o restaurante McDonald’s não mais publicava ou anunciava os preços do BigMac, nem mesmo dentro de suas próprias lojas, supostamente por pressão governamental. http://www.valoronline.com.br/impresso/especial/101/433903/sem-reajuste-big-mac-desaparece-das-lojas-argentinas-do-mcdonalds