A teoria austríaca da eficiência e do papel do governo

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gerentes-poder-de-compra-1A teoria ortodoxa dos bens públicos e seu corolário — que é a justificativa econômica padrão para intervenções governamentais — são ambas baseadas em definições particulares de eficiência e otimização. De acordo com a abordagem ortodoxa, se um mercado não está operando “eficientemente”, algum tipo de intervenção governamental para corrigir a ineficiência pode ser justificável. Porém, esse conceito de eficiência é derivado diretamente de uma visão neoclássica sobre estruturas de mercado e, mais especificamente, da noção de concorrência perfeita.
O ponto a ser enfatizado nesse artigo é que, quando se parte de um conceito distinto sobre eficiência e otimização de mercado, uma série de conclusões totalmente distintas a respeito da necessidade de intervenções governamentais pode ser obtida. Em particular, vamos examinar a abordagem econômica feita pela Escola Austríaca de economia e detalhar como essa abordagem é para se obter a teoria austríaca da eficiência. Adicionalmente, vamos examinar como os austríacos veem as intervenções governamentais no mercado e quais suas conclusões derradeiras acerca do papel do governo na sociedade.

A abordagem neoclássica sobre a eficiência: uma visão geral[1]

Antes de começarmos uma discussão sobre o modelo austríaco, uma breve análise sobre a perspectiva neoclássica ortodoxa é necessária. Essa análise ajudará a aguçar nossa compreensão acerca das principais diferenças entre a metodologia e as políticas recomendadas por ambos os modelos.

Existem dois pilares sobre os quais se baseiam os fundamentos da discussão tradicional sobre eficiência: o conceito de ótimo de Pareto e o conceito da concorrência perfeita.

Em sua forma mais básica, o ótimo de Pareto representa um estado estático em que não há como melhorar a situação de uma pessoa sem que isso gere uma piora para outra pessoa. Em outras palavras, nenhuma mudança pode ocorrer sem que isso faça com que uma pessoa melhore sua situação sem piorar a situação de uma outra pessoa. Essa noção é importante para a nossa discussão porque ela é adotada pela maioria dos economistas como representando um estado de perfeita “eficiência” econômica. Colocando de outra forma, para se obter um mercado perfeitamente eficiente, todas as transações econômicas na sociedade deveriam ser de tal modo que nenhuma pessoa melhore sua situação à custa de alguma outra. Adicionalmente, o equilíbrio final deve representar uma situação em que nenhuma transação adicional pode ser feita sem violar essa regra paretiana.

É nesse ponto que a noção neoclássica de concorrência perfeita entra em cena. Pode ser demonstrado que, quando se iguala o preço de um bem ao seu custo marginal — condição essa que é inerente ao modelo de concorrência perfeita —, tem-se uma situação suficiente para garantir o ótimo de Pareto, e, consequentemente, a “eficiência” do mercado. Quando o preço é igual ao custo marginal, o benefício marginal recebido pelo consumidor (refletido no preço) é igual ao valor marginal dos usos alternativos daqueles fatores que foram para a produção desse bem em questão (dado pelo custo marginal). Sob essas circunstâncias, se a produção for aumentada, o valor desse produto adicional para o consumidor será menor do que o valor daqueles outros usos dos quais se abriu mão.

Por outro lado, se a produção for reduzida, o valor perdido será maior do que valor a ser ganho em algum uso alternativo. Em ambos os exemplos, um setor está melhorando sua situação à custa de outro. Logo, esse estado — em que o custo marginal é igual ao preço ou ao benefício marginal — é ótimo no sentido de Pareto e eficiente. E qualquer desvio dessa igualdade será sempre menos eficiente.

Com isso, acabamos de revisar o padrão contra o qual a eficiência relativa de um mercado é mensurada, e, consequentemente, pelo qual a necessidade de intervenção governamental no mercado (para corrigir “ineficiências”) é determinada. De uma perspectiva neoclássica, a ineficiência de mercado é uma indicação de “falha de mercado”, e isso justifica uma intervenção governamental para corrigir o mercado — isto é, para torná-lo eficiente. Certas situações clássicas existem onde, ao se empregar esses padrões neoclássicos, os mercados inerentemente falham — e a visão ortodoxa diz que a intervenção do governo é necessária. Para propósitos ilustrativos, examinarei brevemente dois desses casos: bens públicos e o “problema” das externalidades.

Por definição, um bem público é aquele que provê benefícios a consumidores adicionais sem no entanto gerar custos adicionais ao produtor. O exemplo mais comumente dado de bem público é o da defesa nacional (forças armadas). Como o custo marginal de se produzir defesa adicional é supostamente zero, o preço teria de ser igual a zero para o mercado funcionar “eficientemente” no sentido neoclássico. Dado que ninguém na iniciativa privada forneceria esse tipo de bem ao preço tido como “eficiente”, assume-se que a responsabilidade do governo é intervir e fornecer tal produto.

A segunda situação é o “problema” das externalidades. Aqui, há custos e benefícios externos tanto para o comprador quanto para o vendedor, e essas externalidades não estão sendo consideradas quando preço e quantidade são determinados. Assim, o verdadeiro custo marginal não é igual ao benefício marginal, e o resultado é uma “falha de mercado”. A solução típica sugerida é o subsídio, a tributação ou a regulação direta, a fim de se garantir a eficiente combinação preço-produto. O exemplo mais comum desse problema é a poluição, em que os custos incorridos por uma comunidade em decorrência do seu ar poluído não são considerados pela empresa que está criando a poluição.

Deve-se enfatizar, nesse ponto, que essa noção neoclássica de externalidades de mercado cria a ideia de que há custos e benefícios para a sociedade como um todo, além de expandir o conceito de eficiência social. Esse conceito é normalmente apresentado como sendo distinto das ações eficientes feitas por indivíduos dentro da sociedade. Faço essa observação por um motivo — na discussão seguinte sobre a teoria austríaca da eficiência, veremos que, da perspectiva austríaca, não é possível haver uma explicação racional sobre “eficiência” sem se considerar os agentes individuais que atuam na sociedade.

A metodologia da Economia Austríaca

A valoração individual é a base da teoria econômica.[2] (M. N. Rothhard)

A importância da obra da Escola Austríaca para a história das ideias encontra talvez sua mais sugestiva expressão no fato de que, em sua teoria, o indivíduo que age está no centro dos eventos econômicos.[3] (Ludwig M. Lachmann)

É esse enfoque consistente nas ações e nas valorações subjetivas dos indivíduos que distingue a metodologia da Escola Austríaca de todas as outras abordagens econômicas feitas por outras teorias. Essa abordagem austríaca — algumas vezes chamada de “individualismo metodológico” ou “subjetivismo radical” — advém do fato de que os austríacos veem a economia como um ramo de uma ciência mais geral: a ciência da ação humana, também chamada de praxeologia.[4]

Para realmente se entender o ponto de vista austríaco, é necessário entender a definição do conceito de ação humana dada pelos austríacos. De forma simplificada, a ação humana é vista como um “comportamento proposital”.[5] Em outras palavras, trata-se da aplicação de meios específicos para se obter fins desejados. Esse conceito de ação humana foi desenvolvido — em relação à economia — de modo mais completo nos escritos do economista Ludwig von Mises, e tal noção pode ser melhor resumida e esclarecida em suas palavras:

Nenhuma proposição sensata e lógica a respeito da ação humana pode ser afirmada sem se fazer referência ao objetivo final dos indivíduos atuantes, bem como explicitar o que eles consideram ser um sucesso ou um fracasso, um lucro ou um prejuízo.[6]

Devido à natureza de sua existência, todos os humanos agem, e toda atividade econômica se baseia na ação. Disso se deduz que os austríacos veem a praxeologia como a fundação lógica da ciência econômica. A questão, então, para os austríacos passa a ser a seguinte: como o comportamento propositado de todos os indivíduos, em conjunto com os meios que eles escolhem para consumar seus propósitos, interagem em uma economia de mercado? Como disse um observador ao explicar as ideias de Ludwig Lachmann:[7]

Fenômenos econômicos só podem ser explicados se estiverem relacionados, direta ou indiretamente, às valorações subjetivas dos indivíduos. Tais valorações podem ser manifestadas tanto na escolha que os indivíduos fazem quanto nas expectativas em relação ao mercado.[8]

Essa noção de valoração subjetiva e dos propósitos e escolhas dos indivíduos permeia cada aspecto das análises econômicas da Escola Austríaca. Por exemplo, o conceito de custo é definido completamente em termos da percepção privada de oportunidades das quais se abriu mão,[9] a taxa de juros de mercado é a expressão da preferência temporal individual dos membros da sociedade,[10] e, como veremos em detalhes mais adiante, a eficiência é expressa em termos do sucesso ou fracasso dos planos individuais.[11]

A teoria austríaca da eficiência[12]

A. Eficiência e o Indivíduo. Em consonância com sua abordagem de toda e qualquer análise econômica, os austríacos começam sua discussão sobre eficiência centrando-se primeiramente no indivíduo. O problema, então, torna-se definir: o que constitui ‘atividade eficiente’ para os indivíduos de uma sociedade? Para responder a essa pergunta, os austríacos novamente recorrem às raízes praxeológicas de suas análises. Disso eles concluem que a eficiência deve ser vista em termos do comportamento proposital dos indivíduos; mais especificamente, se esse comportamento é consistente com a realização dos propósitos e objetivos buscados. Para o economista austríaco, portanto, um modo de ação eficiente seria utilizar os meios que são consistentes com a realização do(s) objetivo(s) desejado(s). A ineficiência surge quando os meios escolhidos são inconsistentes com os objetivos desejados.

Deve-se deixar claro que a natureza específica dos objetivos que estão sendo perseguidos não importa para a análise. Os objetivos são considerados como já estando determinados. Eles são determinados pelas valorações e preferências subjetivas de cada indivíduo. Não se está analisando a eficiência dos fins, mas sim a eficiência dos meios utilizados para se alcançar esses fins. Enfatizo isso porque, muito frequentemente, obter algo pelo menor custo monetário disponível ou pelo menor gasto de tempo possível é considerado “eficiente”. Porém, se esses aspectos são considerados como parte de um conjunto de metas do indivíduo, eles não precisam ser levados em consideração pelo economista. Por exemplo, suponha que uma pessoa tenha o objetivo de passar toda a tarde cortando a grama de seu quintal, algo que ele poderia fazer em apenas uma hora. Como gastar a tarde toda era parte do seu objetivo, o fato de que ele gastou todo esse tempo não pode ser visto como ineficiente. Com efeito, se ele terminar de cortar a grama em apenas uma hora, tendo planejado gastar toda uma tarde para isso, aí sim pode-se dizer que ele agiu ineficientemente. Supondo-se que ele não tenha mudado de ideia durante o processo, os métodos escolhidos por ele foram inconsistentes com seu objetivo.

Para o austríaco, essa noção de eficiência possui um papel importante em todas as análises econômicas, pois ela é o ponto crucial do problema econômico enfrentado pelo indivíduo. O grau em que um indivíduo age eficientemente irá determinar o sucesso e o fracasso de sua vida econômica. (A palavra “sucesso” é utilizada em seu sentido subjetivo, isto é, o sucesso advém da realização dos objetivos que foram determinados pelo indivíduo e não daquilo que um observador qualquer entende como sendo bem sucedido).

B. Sociedade e Eficiência. Tendo em mente essa análise de eficiência para o indivíduo, podemos agora prosseguir com um exame sobre como os austríacos veem o conceito de eficiência social. Assim como para o indivíduo, os austríacos entendem que o problema econômico com o qual a sociedade lida é o de garantir a eficiência. Porém, o ponto importante a ser entendido é que os austríacos não veem a eficiência da sociedade como estando separada da eficiência dos indivíduos que a compõem. Em outras palavras, eles reconhecem que a sociedade não pode ter objetivos distintos daqueles dos indivíduos que a formam. Essa noção é melhor exprimida pelo professor Israel Kirzner:

A sociedade é formada por vários indivíduos. Cada indivíduo pode ser visto como alguém que seleciona de maneira independente seu programa de metas… e cada indivíduo adota seu próprio modo de ação para atingir seus objetivos. É, portanto, irrealista falar de sociedade como sendo uma unidade individual e isolada que busca alocar recursos de modo que sejam um reflexo fiel de “sua” hierarquia de objetivos. A sociedade não possui uma mente única dentro da qual os objetivos de vários indivíduos distintos podem ser enumerados em uma ordem de classificação única.[13]

Kirzner então conclui que:

Eficiência para uma sociedade significa a eficiência com a qual ela permite que seus membros atinjam individualmente seus vários objetivos.[14]

Dado esse conceito de eficiência social, é fácil entender por que os austríacos geralmente concordam que um livre mercado seja o sistema mais eficiente. Com sua ênfase na cooperação voluntária, a economia de mercado garante que cada indivíduo possa buscar seus objetivos da maneira mais eficiente possível, considerando-se seu conhecimento da situação.

C. Determinantes da Eficiência: Conhecimento e Coordenação. O segredo da eficiência econômica, tanto para o indivíduo quanto para a sociedade, é o conhecimento. O grau com que um indivíduo age eficientemente será determinado pela quantidade de conhecimento que ele possui em relação aos meios apropriados para alcançar seus fins desejados. Um breve exemplo para ilustrar esse ponto. Suponha que o senhor Oliveira tenha estabelecido como seu objetivo a compra de um carro novo. Porém, em decorrência de seu conhecimento extremamente limitado sobre o assunto, ele acaba indo a uma loja de departamentos para fazer sua compra. É óbvio que, por causa de sua ignorância, ele escolheu uma linha de ação extremamente ineficiente no que concerne seu objetivo desejado. Em decorrência de sucessivas tentativas e erros, seu conhecimento irá melhorar, e, na medida em que melhora, o mesmo irá ocorrer com a eficiência de suas ações. Por exemplo, alguém na loja de departamentos poderá dizer ao senhor Oliveira que ele deve ir a uma concessionária de veículos, o que irá melhorar seu conhecimento da situação e, por conseguinte, a eficiência de seus atos subsequentes.

A eficiência do mercado como um todo também depende do conhecimento individual acerca das condições do mercado. Em uma economia de mercado, é a natureza mutuamente benéfica das trocas voluntárias que permite que todos os indivíduos simultaneamente busquem realizar seus objetivos. A busca eficiente dos objetivos em uma sociedade torna-se, assim, uma questão de coordenação entre compradores e vendedores, e a amplitude dessa coordenação irá refletir o conhecimento dos participantes acerca das oportunidades dentro do mercado. Para haver eficiência em uma economia, é preciso haver mais do que apenas a oportunidade de trocas comerciais; é preciso que compradores e vendedores tenham pleno conhecimento dessas oportunidades.

Para ilustrar essa noção de coordenação, voltemos ao exemplo do senhor Oliveira e sua jornada em busca de um automóvel. Suponha que ele agora possua o conhecimento necessário para saber que, para encontrar um carro a um preço aceitável, ele tem de ir a várias concessionárias e fazer comparações e pesquisa de preços. O problema agora enfrentado pelo senhor Oliveira é esse: ele está disposto a pagar um máximo de $14.000 por um carro, mas nenhum vendedor que ele conhece está disposto a vender pra ele um carro a esse preço tão baixo. Entretanto, o fato é que do outro lado da cidade há uma concessionária com um vendedor disposto a vender um carro novo por $13.500. Sem que os dois saibam da existência um do outro, não há coordenação de planos. Logo, surge uma ineficiência no mercado.

Para os austríacos, portanto, apenas quando todos os participantes de mercado possuem perfeito conhecimento e presciência sobre a disponibilidade de meios, é que os planos de mercado estarão em perfeita coordenação e, consequentemente, haverá a “perfeita” eficiência. Para o austríaco, essa noção de conhecimento perfeito em um mercado é a característica distintiva do equilíbrio. De acordo com Kirzner:

O estado de equilíbrio é o estado no qual todas as ações estão perfeitamente coordenadas, e cada participante de mercado concatena suas decisões de acordo com aquelas que ele sabe (com total acuidade) que os outros participantes também tomarão. Essa perfeição de conhecimento que define o estado de equilíbrio garante a completa coordenação dos planos dos indivíduos.[15]

Disso podemos concluir que um mercado em equilíbrio é um mercado funcionando com perfeita eficiência.

Esse conceito de equilíbrio não deve ser confundido com a noção de equilíbrio perfeitamente concorrencial e com o estado neoclássico de “eficiência perfeita”. A noção austríaca de eficiência perfeita e equilíbrio de mercado não impõe restrições à estrutura do mercado, à heterogeneidade dos produtos, ou à relação entre custo marginal de produção e o preço do bem produzido. Trata-se simplesmente de uma situação em que “todos os atos são coordenados”, em que não há escassez e nem excedentes no mercado.

D. Ineficiência e o Processo de Coordenação. Agora que já examinamos o conceito de eficiência, podemos olhar mais detalhadamente as ineficiências em um mercado e como se dá o processo que corrige essas ineficiências. Deveria ser óbvio que um estado de perfeita eficiência, isto é, de conhecimento perfeito, não pode ser atingido completamente em uma economia. Em qualquer momento, a informação disponível estará dispersa pelo mercado. Alguns planos estarão descoordenados, e, consequentemente, surgirão ineficiências. Porém, são as “forças naturais” presentes no próprio mercado que atuam para corrigir essas ineficiências. São os conceitos mercadológicos de preço e atividade empreendedorial que garantem a difusão do conhecimento e da tendência rumo ao uso eficiente de recursos — isto é, dos “meios” — em uma economia de mercado. Falando mais simples, é o sistema de preços que disponibiliza a informação pertinente, e é o empreendedor — motivado pela busca pelos lucros potenciais — quem utiliza essa informação de uma maneira que tende a aprimorar a eficiência.

O sistema de preços explicita as ineficiências que existem no mercado ao mostrar, por exemplo, que existem discrepâncias nos preços de bens iguais dentro do mercado. Afinal, tudo o mais constante, as pessoas irão sempre preferir comprar aos preços mais baixos disponíveis. Com o conhecimento perfeito de todos os preços, a preferência dos indivíduos pelos preços mais baixos, bem como sua aversão aos preços mais altos, resultaria, sob condições de perfeita eficiência, em um preço de mercado uniforme para o bem em questão. Consequentemente, as discrepâncias de preço representariam a existência de conhecimento imperfeito — isto é, ineficiência no mercado.

Deve-se deixar claro que essa uniformidade de preço sob condições de perfeita eficiência é válida apenas para bens que são homogêneos na mente do consumidor. Para os bens que, na mente do consumidor, são distintos, as discrepâncias de preços podem simplesmente refletir os distintos valores relativos dados aos bens em decorrência justamente do fato de que os indivíduos valoram distintamente os bens que existem na economia. O ponto a ser enfatizado é que, ao contrário das implicações do modelo neoclássico de concorrência perfeita, produtos homogêneos não são mais eficientes para a sociedade do que os produtos relativamente heterogêneos. O grau em que os produtos são diferenciados em uma economia reflete os desejos e preferências individuais, e, como dito anteriormente, o modelo austríaco analisa a eficiência dos meios utilizados, e não os fins desejados.

Sob essas condições, portanto, quando ocorrem ineficiências (isto é, discrepâncias de preços), surgirá a oportunidade de lucros para o empreendedor alerta. Como coloca Kirzner:

Uma oportunidade de lucro existirá sempre que um dado recurso ou um dado produto puder ser comprado no mercado a um dado preço e revendido a um preço maior. Logo, uma possibilidade de lucro existirá sempre que houver uma discrepância de preços.[16]

São essas oportunidades de lucro, bem como a atividade empreendedorial que elas estimulam, que tendem a promover a coordenação e, por conseguinte, a eficiência no mercado.

Nosso exemplo dado anteriormente pode ser utilizado para ilustrar esse ponto. Como foi dito, o senhor Oliveira está disposto a gastar $14.000 em um carro, porém ele não conhece nenhum revendedor disposto a vender um automóvel por esse preço. Digamos que o preço mais baixo que lhe foi oferecido até o momento foi de $15.000. Ao mesmo tempo, um outro vendedor que o senhor Oliveira não conhece está disposto a vender um carro por $13.500. Assim, existe uma discrepância de preços e, junto com ela, uma chance para lucros empreendedoriais. Entra em cena então o senhor Diniz, um empreendedor em busca do lucro, que está sempre à procura de novas oportunidades para ganhar dinheiro fácil e rápido. Vendo essa oportunidade de lucro, o senhor Diniz compra o carro ao preço de $13.500 e o revende ao senhor Oliveira pelo preço de $14.000. O que o senhor Diniz fez com grande eficácia foi coordenar os planos do senhor Oliveira e do vendedor disposto a vender por $13.500, desta forma aprimorando a eficiência do mercado.

Disso podemos concluir que, em um livre mercado, as ineficiências promovem a sua própria ação corretiva. Novamente, nas palavras de Israel Kirzner:

Uma discrepância de preços significa uma chance para lucrar. Por definição, empreendedores estão à procura de lucros; assim, a situação que aparentemente necessita de uma correção cria a própria força capaz de induzir tais ações. Ademais…. a busca empreendedorial por lucros implica uma procura por situações em que os recursos estão mal alocados.[17]

É compreensível que o leitor proteste dizendo que não há garantias de que os empreendedores irão reconhecer todas as ineficiências no mercado, ou que irão corretamente perceber aquelas que de fato existem. Isso é verdade. Porém, permanece indelével o fato de que o mercado irá recompensar os empreendedores bem sucedidos nessa busca, e penalizar os mal sucedidos. Assim, “o próprio processo de mercado… atrai apenas aqueles mais aptos e competentes a direcionar o curso futuro desse processo”[18]. Como conclui Kirzner: “Se os melhores talentos empreendedoriais forem insuficientes para remover todas as más alocações, mesmo estando eles motivados pela busca do lucro, então isso significa que essas más alocações que persistem no mercado devem ser simplesmente indetectáveis”[19] (Kirzner utiliza o termo “má alocação” para se referir a uma situação causada pela descoordenação de planos, e, por conseguinte, a uma ineficiência no mercado.)[20]

O papel do governo

De nossa discussão até agora, está claro que a noção neoclássica de falha de mercado, discutida na primeira seção desse artigo, não pode ser utilizada para justificar intervenções governamentais com o intuito de corrigir ineficiências. Embora um mercado jamais possa atingir a eficiência perfeita, as forças corretivas que surgem do próprio mecanismo de mercado irão torná-lo o mais eficiente possível. Com efeito, qualquer noção de falha de mercado, da perspectiva austríaca, terá surgido não do livre mercado, mas de intervenções governamentais que distorcem os preços de mercado e alocam recursos para outros fins que não aqueles sendo buscados pelos participantes do mercado.

Em seu livro, Market Theory and the Price System, Kirzner apresenta de modo perfeitamente claro suas conclusões sobre interferências no mercado. Diz ele:

A interferência nas redes e forças que estão entrelaçadas no processo de mercado limita as tentativas dos participantes de coordenar suas atividades por meio de uma máquina de extraordinária eficiência — o mercado. A análise do processo de mercado pode esclarecer os custos envolvidos em tais interferências, possibilitando aos participantes de mercado decidir, por meio do processo político, em que grau estão dispostos a deixar de lado essa máquina de eficiência em prol de propósitos especiais cuja importância seja possivelmente sobrepujante.[21]

Está claro da primeira parta dessa afirmação que Kirzner vê a intervenção governamental no mercado como uma medida que jamais pode ser justificada com base no aprimoramento da eficiência. A segunda parte da afirmação de Kirzner implica que pode haver uma justificativa para intervenções governamentais tendo por base outras justificativas que não a eficiência: “em prol de propósitos especiais cuja importância seja possivelmente sobrepujante”. Isso nos leva à área da economia assistencialista e impõe considerações de utilidade e igualdade que estão além do escopo deste artigo. Porém, deve-se enfatizar que os austríacos entendem que julgamentos sobre esses conceitos não podem jamais ser feitos pela sociedade como um todo, mas somente por indivíduos. Isso nos leva à conclusão de que não há justificativa para qualquer tipo ou forma de interferência governamental. Essa visão pode ser melhor resumida nas palavras do economista Murray Rothbard:

Nenhuma interferência governamental sobre as transações voluntárias pode jamais aumentar a utilidade social… sempre que o governo obriga um indivíduo a fazer uma troca que ele não teria feito em outros contextos, essa pessoa perde em utilidade como resultado dessa coerção. Porém, a tributação é apenas uma forma de transação coerciva… Dado que alguns perdem em decorrência da existência de impostos, e dado que todas as ações do governo dependem de seu poder de tributação, deduzimos então que absolutamente nenhum ato do governo pode aumentar a utilidade da sociedade como um todo.[22]

Essa pode parecer uma posição extrema, mas é consistente com a radical natureza subjetivista da metodologia austríaca.

A questão que surge agora é: como aqueles problemas da sociedade que tradicionalmente são atacados pelo governo seriam resolvidos sem ele? E o que dizer sobre o “problema” das externalidades, bem como todos os “bens públicos” que os governos tradicionalmente sempre ofereceram? Uma explicação completa sobre como o livre mercado se encarregaria de assumir todas as funções do governo estaria, novamente, além do escopo desse artigo. Esse assunto já foi abordado em outras instâncias.[23] Porém, de maneira sucinta, “bens públicos” como estradas, parques, tribunais e serviços de defesa seriam fornecidos pelo mercado de acordo com as condições de demanda. O fato de que esses serviços não podem ser precificados de modo que o custo marginal seja igual ao benefício marginal não teria qualquer implicação sobre a eficiência, do ponto de vista austríaco. Também deve ser enfatizado que uma economia de completo livre mercado implica um sistema claramente definido de direitos de propriedade sobre todos os recursos da sociedade. É esse sistema de direitos de propriedade que atuaria como o regulador geral de todos os atos sociais e econômicos. Para ser mais específico, o problema das externalidades seria nada mais que um problema de violação dos direitos de propriedade, e tais violações seriam resolvidas em tribunais assim como qualquer outro ato de agressão.

Deve ser observado que a maioria dos economistas neoclássicos também vê as externalidades, tais como poluição, como um problema de frouxidão dos direitos de propriedade. A diferença crucial é que o neoclássico vê os direitos de propriedade como algo variável e que deve ser concedido — presumivelmente pelo estado — de acordo com o critério de quem se beneficia mais ou quem perde menos com uma determinada alocação de direitos.[24] Isso é consistente com a noção neoclássica de eficiência social mencionada na primeira seção desse artigo, tendo a seguinte lógica: se os direitos de propriedade forem designados àquele que mais tem a ganhar ou àquele que menos tem a perder como resultado da externalidade, o benefício social líquido será aumentado, e a eficiência social será aprimorada.[25]

Já a abordagem austríaca é bastante diferente. Além da objeção austríaca — decorrente da natureza subjetivista de sua metodologia[26] — a essa análise de custo-benefício interpessoal e de eficiência social, há uma grande diferença no que concerne à visão austríaca acerca dos direitos de propriedade em geral. Deve ser enfatizado que, para se perseguir objetivos e fazer planos, é necessário ter um sistema de direitos de propriedade que seja claramente definido e com o qual todo e qualquer indivíduo possa contar em um futuro próximo. Qualquer alteração involuntária em uma dada estrutura de direitos de propriedade irá necessariamente interferir com os planos que estão sendo feitos por alguns donos de propriedade em relação à busca de seus objetivos. Por causa disso, os austríacos partem do atual sistema de direitos de propriedade e examinam a eficiência de ações que ocorrem dentro dos limites desse arranjo de direitos. Como disse um economista austríaco:

Um sistema de direitos de propriedade determina as regras e define as liberdades e restrições de acordo com as quais iremos avaliar nossas alternativas e fazer escolhas. Porém, como tal, esse sistema é conceitualmente distinto das alternativas dentre as quais fazemos nossas escolhas.[27]
Sobre quais fundamentos, então, os austríacos acreditam que os direitos de propriedade devem ser determinados? A resposta para essa pergunta pode ser melhor expressada pelo professor Rothbard. Ele declara que:

Não podemos decidir sobre… direitos ou obrigações tendo por base a eficiência ou a minimização de custos. Mas, senão custos ou eficiência, então o quê? A resposta é: apenas princípios éticos podem servir como critério para as nossas decisões. A eficiência jamais pode servir de base para a ética; ao contrário, a ética deve ser a guia e a pedra fundamental para quaisquer considerações sobre eficiência.[28]

Em outras palavras, a escolha de uma determinada estrutura de direitos de propriedade está além do âmbito da ciência econômica, e não possui lugar nas discussões positivas sobre eficiência. O dr. Rothbard prossegue concluindo:

Os economistas terão de se acostumar à ideia de que nem tudo na vida pode ser abrangido pela disciplina econômica. Uma lição dolorosa, sem dúvida, mas compensada pelo reconhecimento de que pode ser bom para nossas almas sabermos de nossas próprias limitações — e, talvez, aprendermos sobre ética e sobre justiça.[29]

Comentários finais

Esse artigo teve a intenção de mostrar que existe mais de uma abordagem para o conceito de eficiência na literatura econômica. Ademais, dependendo de qual teoria sobre eficiência é adotada, pode-se chegar a conclusões completamente distintas sobre o papel do estado tanto na economia quanto na sociedade em geral.

Deve estar claro que todas as metodologias dentro da ciência econômica merecem total consideração da parte de estudiosos e analistas. Somente após as alternativas terem sido consideradas é que decisões inteligentes podem ser tomadas acerca do papel que a economia deve ter nas análises políticas.

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Notas

[1] A discussão nessa seção foi generalizada baseando-se totalmente em H. T. Kolin, Microeconomic Analysis, Welare and Efficiency in Private and Public Sectors (New York: Harper and Row, 1971), pp. 10-14, 245-60.

[2] Murray N. Rothbard, “Toward a Reconstruction of Utility and Welfare Economics,”.

[3] Lawrence H. White, “Methodology of the Austrian School”.

[4] Ibid., p. 9.

[5] Rothbard, Man, Economy, and State, p. 1.

[6] Ludwig von Mises, The Ultimate Foundation of Economic Science, p. 80.

[7] Ludwig M. Lachmann, junto com F. A. Hayek, foi um dos mais longevos economistas austríacos a lecionar em universidades.

[8] Walter E. Grinder, “In Pursuit of the Subjective Paradigm,” Introdução para Capital, Expectations, and the Market Process: Essays on the Theory of the Market Process, de Ludwig M. Lachmann (Kansas City: heed, Andrews, and McMeel, 1977). p. 3.

[9] Israel Kirzner, Market Theory and the Price System (Princeton, N.J.: D. Van Nostrand Co., 1963), p. 184.

[10] Grinder, “In Pursuit of the Subjective Paradigm,” p. 4.

[11] Kirzner, Market Theory, p. 34, 35.

[12] Os principais pontos desta seção (A-D) foram extrapolados de Market Theory, de Kirzner, pp. 33-44, 297-310; e também do seu Competição e Atividade Empresarial (Chicago and London: University of Chicago Press, l973), pp. 13-17, 212-31. Todos os exemplos utilizados são de minha autoria.

[13] Kirzner, Market Theory, p. 35.

[14] Ibid.

[15] Kirzner, Competição, p. 218.

[16] Kirzner, Market Theory, pp. 302-303.

[17] Ibid., p. 303.

[18] Ibid., p. 304.

[19] Ibid.

[20] Ibid., p. 301

[21] Ibid., p. 309

[22] Rothbard, “Toward a Reconstruction,” p. 29.

[23] Ver a nossa seção anarcocapitalismo.

[24] Harold Demsetz. “Ethics and Efficiency in Property Rights Systems,” in Mario J. Rizzo, ed., Time, Uncertainty, and Disequilibrium: Exploration of Austrion Themes, (Lexington, Mass.: Lexington Books, D.C. Heath and Co., 1979), pp. 102-104.

[25] Ibid., p. 101.

[26] John B. Egger, “Comment: Efficiency is Not a Substitute for Ethics,” in Rizzo, Time, Uncertainty, p. 121.

[27] Ibid., p. 120.

[28] Rothbard, “Comment: The Myth of Efficiency,” in Rizzo, Time, Uncertainty, p. 95.

[29] Ibid.

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